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Processo n.º 633/10
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:I – Relatório
1. A., Lda., Recorrida nos presentes autos, inconformada com a decisão sumária proferida a 11 de Outubro de 2010, vem dela reclamar dizendo o seguinte:
“1. Vem a ora RECORRIDA, reclamar da decisão sumária proferida pelo Exmo. Conselheiro Juiz Relator, por considerar que os artigos 3° e 16 do Regulamento de Publicidade do Município de Lisboa são inconstitucionais, e que a referida decisão se encontra em oposição com as várias decisões jurisprudenciais proferidas pelo Tribunal Constitucional no âmbito desta matéria.
2. Salvo o devido respeito, tais normas revelam-se contrárias aos princípios consagrados na Constituição da República Portuguesa.
DA NATUREZA DO TRIBUTO
3. Dispõe o artigo 4.º da Lei Geral Tributária que, as taxas assentam na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares.
4. Contudo, não pode relevar o facto, de, porventura, a Lei Geral Tributária ter, na mencionada disposição legal, lançado mão de um conceito amplo de taxa, susceptível de abarcar a remoção de quaisquer obstáculos jurídicos ao comportamento dos particulares, mesmo que não lhes consentindo a utilização de bens semi-públicos.
5. Na verdade, não é possível enquadrar no conceito de taxa, as importâncias exigidas por quaisquer entidades públicas a um particular, como mera condição de remoção de um obstáculo jurídico à utilização dos seus bens próprios, se lhe conferir direito à utilização de bens semi-públicos ou colectivos.
6. Assim, não existindo qualquer contraprestação, é insusceptível de integrar aquele conceito, o mero exercício de actividades gerais, de policia por tais entes públicos, com vista à fiscalização do cumprimento pelo particular dos condicionamentos ou requisitos a certa e especifica utilização dos bens de que é proprietário, estabelecidos por lei ou regulamento.
7. Com efeito, tais prestações, só poderiam ser qualificadas de taxas caso existisse uma contrapartida para a RECORRIDA, o que não ocorreu.
8. Pois, a RECORRIDA no âmbito da sua actividade, efectuava a exploração comercial de publicidade, designadamente, através da afixação de suportes publicitários em empenas cegas ou fachadas laterais de edificações particulares sediadas na cidade de Lisboa.
9. Na verdade, a RECORRIDA não procedia à afixação de suportes publicitários em edifícios públicos ou semi-públicos, e sim em edifícios particulares, pelo que, não se vislumbra como pode a mui douta decisão sumária considerar que está em causa uma taxa.
10. Na verdade, conforme resulta de diversa jurisprudência do Tribunal Constitucional, como seja, por exemplo o Acórdão nr. 437/2003, relativo ao Proc. nr. 540/2002, publicado no Diário da Republica, da II Série, sob o nr 29, de 4.02.2004, pág. 2045, ‘os conceitos de imposto e de taxa, que relevam para efeitos da sujeição ou não ao princípio da legalidade tributária de reserva de lei formal da Assembleia da Republica (ou de decreto-lei do Governo emitido a coberto de autorização do Parlamento), não se acham positivamente definidos. Trata-se de conceitos pré-constitucionais, de conceitos que foram sendo construídos ao longo dos tempos pela ciência e doutrina do direito fiscal. A nossa lei fundamental adquiri-os com o sentido aí dominante construído, com um escopo especifico sistemático-funcional’.
11. Por outro lado, refere o aludido Acórdão do Tribunal Constitucional que, ‘a diferença específica entre a taxa e o imposto reside, essencialmente, em que, na taxa há um nexo sinalagmático - outros preferem falar numa relação de bilateralidade ou um tributo com causa especifica individualizada - entre a prestação do obrigado tributário e a contraprestação da autoridade pública, contraprestação esta que se traduz na prestação de um serviço público ou no uso de bens públicos, e, ainda (...) na remoção de um limite ou obstáculo jurídico à possibilidade de efectiva utilização de bens semi-públicos por aquele obrigado tributário, ou, (...) pela remoção de um limite ou obstáculo jurídico à possibilidade da prática de certa actividade ou gozo de certa situação’. (sublinhado nosso).
12. Mais, esclarece o Tribunal Constitucional no referido Acórdão que, ‘no imposto, não se verifica essa sinalagmaticidade entre prestações, pois que o obrigado ao tributo não tem direito a obter por via e por causa da prestação efectuada uma contraprestação específica ou individualizada por parte da administração: o imposto é uma exacção pecuniária unilateral que é destinada, por modo geralmente indiferenciado, ao financiamento com gastos públicos para a satisfação passiva das necessidades públicas’. (Sublinhado nosso).
13. Assim, como refere o mencionado Acórdão do Tribunal Constitucional, ‘nos impostos vigora, (...), o princípio da autotributação representativa ou da tributação consentida, apenas podendo ser lançados pelos representantes do povo (actualmente o artigo 165°, n.° 1, alínea i), da CRP) - princípio de legalidade tributária de reserva de lei formal do Parlamento. A garantia política exerce-se essencialmente através do voto nas eleições. A garantia jurídica individual consubstancia-se no direito de resistência ao pagamento dos impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição (actualmente o n.° 3 do artigo 103° da CRP).(sublinhado nosso)
14. De igual modo, esclarece ainda o mencionado Acórdão Constitucional que, ‘a garantia do contribuinte de não ser apoquentado com a exacção de taxas ilegais acaba por ser (...) simplesmente jurídica, só podendo assentar na própria natureza do tributo e numa dupla dimensão da mesma: a primeira é de que à quantia exigida tem de corresponder sempre um benefício económico, traduzido na efectiva, possibilidade de fruição de certos bens aptos a satisfazerem necessidades humanas - a prestação de uma actividade pública realizada através de uma prestação de serviços, ou uso de bens públicos ou a remoção dos obstáculos jurídicos existentes para o uso de uns ou outros, ou, (...), a remoção de um obstáculo ou limite jurídico à possibilidade de prática de certa actividade ou gozo de certa situação, (...).’
15. O referido Acórdão realça ainda que, ‘(...) a contraprestação da autoridade pública se traduz, (...), numa prestação que satisfaz uma necessidade humana individualizada num concreto sujeito sob a perspectiva de um homem médio e que só nessa medida é que pode ser vista como respeitante a uma necessidade objectiva, (...).’
16.No mesmo sentido, proclama o Acórdão nr. 346/01, do Tribunal Constitucional que, o conceito de taxa possui como principal característica a relação sinalagmática, o que, implica desde logo, uma contrapartida de diferentes naturezas por parte do ente público impositor do tributo.
17.Acresce que, a doutrina tem entendido que são essencialmente três os tipos de situações em que essa contrapartida se verifica e que se consubstanciam na utilização de um serviço público de que beneficiará o tributado, na utilização, pelo mesmo, de um bem público ou semi-público ou de um bem de domínio público e, finalmente, na remoção de um obstáculo jurídico ao exercício de determinadas actividades por parte dos particulares.
18. Mais, no mesmo sentido proclama o Acórdão nr. 92/02 do Tribunal Constitucional, que, não pode configurar-se como taxa a tributação da mera afixação de paneis publicitários em bens privados, sem que tal determine a realização de uma especifica contraprestação da entidade publica credora ou proporcione ao particular uma utilização de bens públicos ou semi-públicos.
19.Ora, tal como configura a decisão sumária, a utilidade essencial e determinante na óptica do utilizador que o obrigado do tributo obtém pela via do pagamento do tributo, não é propriamente a utilidade traduzida na afixação ou inscrição dos anúncios, nos bens do domínio privado mas sim, essencialmente, a utilidade dos mesmos poderem ser visíveis e tidos em conta por quem circula nos espaços públicos planificados pelos municípios e cuja preservação como ecologicamente sadios, principalmente lhes compete.
20. Contudo, tal conclusão não poderá proceder uma vez que, não foi prestada qualquer contrapartida por parte da Câmara, e mesmo nas hipóteses em que a actividade dos particulares sofre uma limitação, aqueloutra actividade estadual, consiste somente na retirada do obstáculo à mencionada limitação mediante o pagamento de um tributo, que é visto pela doutrina como a imposição de uma taxa desde que se traduza na dação de possibilidade de utilização de um bem publico ou semi-público, o que não é o caso, uma vez que, a RECORRIDA utilizou um bem privado.
21. Assim, não havendo qualquer oneração especial de um serviço público, nem qualquer utilização de um bem público ou semi-público, dado que o local pertence a particulares, terá de se considerar o tributo em causa como um imposto.
22. Tem sido entendimento jurisprudencial, que a diferença específica entre taxa e imposto decorre da existência ou não, de vínculo sinalagmático.
23. O que significa que, a taxa terá de representar, utilizando as palavras do Ac. TC nr. 654/93, de 4 de Novembro (Proc. 239/93), o ‘preço’ do serviço ou da prestação de um serviço ou actividade públicas ou de uma utilidade de que o tributado beneficiará.
24. No mesmo sentido, o Professor Saldanha Sanches, em Manual de Direito Fiscal, afirma que o sinalagma do ponto de vista financeiro só poderá ter lugar sempre que se trate de um qualquer bem que seja divisível: só se o bem for divisível é possível a prestação em unidade individualizáveis.
25. Mais, terá de haver uma mais estreita correlação entre o destinatário do encargo financeiro e o beneficiário da despesa pública, para que possamos estar perante uma taxa.
26. Ainda no mesmo sentido, a doutrina alemã refere a propósito que, o sistema das taxas assenta no princípio da equivalência, segundo o qual, as taxas se apreciam segundo os princípios da cobertura de custos, e da compensação de benefícios.
27. Com efeito, as taxas são prestações pecuniárias devidas por uma prestação especial — actuação oficial ou actividades assimiláveis — da Administração, ou pela utilização de instalações de locais públicos.
28. Na verdade, estabelece o Acórdão do Tribunal Constitucional nr 34/04, de 14 de Janeiro, proferido no âmbito do Proc. 33/03, que ‘trata-se, assim (a orientação jurisprudencial no sentido da inconstitucionalidade orgânica das ditas ‘taxas de publicidade’), jurisprudência constante, e, aliás, quase unânime deste Tribunal, (...), que cumpre reiterar nos presentes autos, pois não se deparam argumentos susceptíveis de alterar o decidido — não sendo este o caso, designadamente, da ideia de que o anunciante, ao afixar a publicidade em fachadas de prédios, de sua propriedade ou devidamente autorizado pela proprietário, estaria a fazer uma utilização ou ‘ocupação’ do ‘espaço público’, ou de qualquer bem semi-público, como o ambiente. Como se afirmou nesse Acórdão nr 437/03, não se divisa no caso de qualquer contrapartida específica, na utilização de um bem semi-público, para a remuneração periódica da mera permanência do reclamo e friso em questão’.
29. Assim conclui-se que, os tributos denominados ‘taxas’, cobrados pela Câmara Municipal de Lisboa relativamente a instalação de reclamos em prédios urbanos são, face à Constituição, de qualificar como impostos, uma vez que, a sua criação foi efectuada através de diploma não legislativo e não emitido pela Assembleia da República ou pelo Governo devidamente credenciado violando assim, o preceituado nos artigos 106°, 2 e 168°, 1, i) da CRP.
30. Em suma, as quantias cobradas ao abrigo dos artigos 3° e 16° do Regulamento de Publicidade da Câmara Municipal de Lisboa, pela colocação de reclamos luminosos em prédios pertença de particulares não são taxas, por ausência de contrapartida prestada pelo município, devendo ser vistas como impostos, e não tendo tais encargos sido criados por diploma emanado da Assembleia da República ou pelo Governo devidamente credenciado por aquela, devem as normas que os criaram ser consideradas organicamente inconstitucionais.
31. Assim, sendo o tributo cobrado pela instalação de mensagens publicitárias em prédios urbanos particulares, qualificado como imposto, verifica-se que o mesmo deveria estar sujeito ao princípio da legalidade de reserva de lei formal constante do artigo 165°, nr 2, alínea i) da CRP.
32. Na verdade, não se estando perante a utilização de bens públicos ou semi-públicos, não existe fundamento para as taxas em análise, uma vez que, os anúncios em causa estão instalados em locais pertencentes a particulares, conforme decorre do disposto no art. 1344° do C.C., pois a propriedade dos imóveis abrange também o espaço aéreo correspondente à superfície.
33. Pelo que, é de notar-se também que, ‘não será do simples facto de o licenciamento da actividade publicitária competir, na área dos respectivos municípios, às Câmaras municipais, que decorre, desde logo e sem mais, que o tributo cobrado pelas edilidades aos responsáveis pela afixação e inscrição das mensagens de propaganda, haja ser considerado uma ‘taxa’. (acórdão do Tribunal Constitucional n° 558/98 de 29 de Setembro, Proc. 240/97.).
34. Todavia, a possibilidade de cobrança de tributos pela instalação de mensagens publicitárias em prédios urbanos particulares, foi criada por meio de um diploma não legislativo, ferido de inconstitucionalidade, por violar os arts. 103°, nr 2 e 165°, nr 2, alínea i) da Constituição da República Portuguesa.
35. Com efeito, a inconstitucionalidade dos supra mencionados artigos 3° e 16° do Regulamento de Publicidade do Município de Lisboa, foi já declarada pelo Tribunal Constitucional em diversos Acórdãos, como sejam, os Acórdãos nrs. 558/98, publicado no D.R. II Série, de 11/11/1998, nr. 63/99, publicado no D.R. II Série, de 31/03/99, 32/200, 346/2001 e 437/2003, publicado no D.R. II SÉRIE, de 14/02/2004.
36. E isto, porque, conforme referido supra, nos termos do disposto do art. 165°, nr. 1, al. i) da CRP, a criação de impostos é da exclusiva competência legislativa da Assembleia da República, salvo autorização do Governo.
37. Não obstante a Jurisprudência do Tribunal Constitucional há muito se pronunciou no sentido da inconstitucionalidade orgânica dos artigos 3° e 16° do referido Regulamento de Publicidade, verifica-se que os serviços da autoridade administrativa, ora RECORRENTE, continuam a aplicá-los.
38. Perante o exposto, conclui-se que, por via de normas manifestamente ilegais e inconstitucionais, pretende a RECORRENTE, locupletar-se à custa da RECORRIDA, exigindo-lhe o pagamento de uma elevada quantia pecuniária que sabe não lhe ser devida.
39. Na verdade, através do acto de liquidação e cobrança, ora impugnado, está a RECORRENTE, a exigir ilegalmente da RECORRIDA o cumprimento de uma obrigação pecuniária que não tem direito a receber.
40. Nesta conformidade, não pode a RECORRENTE, a título de taxas, vir cobrar o referido montante pecuniário, já que, no âmbito do aludido licenciamento, não se verificaram quaisquer contrapartidas ou benefícios à RECORRIDA, que os justifiquem.
41. Na verdade, a RECORRENTE não proporcionou qualquer tipo de contraprestação directa e específica pela taxa que pretende cobrar.
42. Sendo certo que, não será o simples facto de o licenciamento da actividade publicitária competir, na área dos respectivos municípios, às câmaras municipais, que decorre, desde logo e sem mais, que o tributo cobrado pelas edilidades aos responsáveis pela afixação e inscrição das mensagens de propaganda, haja de ser considerado como uma taxa.
43. Com efeito, quando está em causa a remoção de um obstáculo jurídico ao exercício de determinada actividade por parte do tributado, in casu, a concessão de licenciamento para a afixação de publicidade, o tributo só pode configurar-se como «taxa» se, com essa remoção, se vier a possibilitar a utilização de um bem semi-público.
44. Neste contexto, e uma vez que no presente caso está em causa a afixação de suportes publicitários não em qualquer bem ou local público ou semi-público, mas sim em móveis particulares, não entende a RECORRIDA, que forma de utilização de bem público ou semi-público possa estar em causa no âmbito dos licenciamentos conferidos.
45. De facto, as vantagens que a RECORRENTE considera conferir à RECORRIDA em contrapartida do pagamento da receita ora impugnada, ou seja, em contrapartida da emissão das licenças, não têm como contrapartida ou equivalente do ponto de vista jurídico uma prestação de serviço individualizada por parte da primeira.
46.Acresce que, o encargo pela remoção do obstáculo jurídico ao exercício de uma determinada actividade por parte do tributado, no presente caso, a concessão de licenciamentos para a afixação de suportes publicitários nos supra identificados prédios urbanos, só poderia configurar-se como taxa se com essa remoção se possibilitasse a utilização de um bem público ou semi-público.
47. Assim, a taxa cuja liquidação se pretende através da factura emitida pela ora RECORRENTE, é uma prestação tributária que pressupõe ou dá origem a uma contraprestação específica, resultante de uma relação concreta (que pode ser ou não de benefício) entre o contribuinte e um bem ou serviço público.
48. Sucede que, no presente caso, não existe a supra referida contraprestação específica, já que o licenciamento em causa não pressupõe o uso pela recorrente de um bem de domínio público ou semi-público.
49. Assim, tratando-se de afixação de publicidade em edificações privadas, não se compreende que forma de utilização de bem público ou semi-público esteja em causa, já que, jamais se poderá considerar uma fachada de um prédio particular como um bem colectivo.
50. É certo que, à RECORRENTE assiste o direito de cobrar taxas como contrapartida das diligências relativas aos actos de licenciamento.
51. Todavia, a RECORRIDA, não se constituiu numa situação obrigacional de assunção de maiores encargos pela concessão dos mencionados licenciamentos.
52. Na verdade, no caso dos autos não existiu a remoção de obstáculo jurídico algum.
53. Em face do exposto, e porque se não vê que haja da parte da RECORRIDA a utilização de um bem público ou semi-público, não pode deixar de se concluir que a respectiva imposição tem de obedecer aos ditames que, pela Lei Fundamental, são dirigidos aos impostos.
54. Ora, nos termos do disposto do artigo 135° do Cód. de Procedimento Administrativo, ‘são anuláveis os actos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou normas jurídicas aplicáveis para cuja violação se não preveja outra sanção’.
55. Pelo que, os actos de liquidação e cobrança ora reclamados, constituem um acto afectado pelo vício da anulabilidade.
56. Perante o exposto, mal andou o Exmo. Juiz Conselheiro ao julgar improcedente a impugnação judicial, e consequentemente determinou a reforma da decisão recorrida em conformidade com o juízo de não inconstitucionalidade.
DA OPOSIÇÃO COM AS VÁRIAS DECISÕES PROFERIDAS PELO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
57.A decisão sumária, tal como se tem vindo a demonstrar ao longo da presente reclamação, encontra-se claramente em oposição com vários Acórdãos proferidos pelo Tribunal Constitucional sobre esta matéria.
58. Na verdade, a decisão sumária contraria os fundamentos dos Acórdãos nrs. 346/01, 437/2003, 92/02, 654/93, 34/04/, 558/98, 63/99 e 166/2008.
59. Com efeito, o mencionados Acórdãos, julgaram inconstitucionais o disposto nos artigos 3° e 16°, do Regulamento de Publicidade do Município de Lisboa, por considerarem que os tributos cobrados pela edilidade possuírem o carácter de imposto, e não de taxa.
60. Ora, tais decisões, nos seus fundamentos estabelecem a diferença entre imposto e taxa, determinando que a diferença entre a taxa e o imposto reside, no facto de na taxa existir um nexo sinalagmático entre a prestação do obrigado tributário e a contraprestação da autoridade pública, contraprestação esta que se traduz na prestação de um serviço público ou no uso de bens públicos, e, ainda na remoção de um limite ou obstáculo jurídico à possibilidade de efectiva utilização de bens semi-públicos por aquele obrigado tributário, ou, pela remoção de um limite ou obstáculo jurídico à possibilidade da prática de certa actividade ou gozo de certa situação.
61. Acresce ainda que, em sentido diverso à decisão sumária, estabelecem os Acórdãos enumerados em 58 que, o facto de se proceder a afixação de paneis publicitários, em bens privados, não determinam qualquer tipo de contraprestação por parte da entidade pública.
62. Na verdade, a decisão sumária, assenta os seus fundamentos numa compreensão abrangente do conceito de taxa, o que não poderá proceder, uma vez que, está em causa a afixação de publicidade num bem privado.
63. Não obstante, a decisão sumária afirmar que a publicidade é visível e tida em conta por quem circula nos espaços públicos, a verdade é que, tal fundamento revela-se insuficiente para determinar que as normas do Regulamento de Publicidade do Município de Lisboa, se encontram em conformidade com a Constituição.
64. Com efeito, nos autos, do Acórdão 437/2003, tratou-se de uma hipótese similar, pois tratava-se da colocação de reclamos luminosos instalados em telhados de/ou nos próprios prédios urbanos, em que não se está perante a utilização de bens ou locais públicos ou semi-públicos, mas de bens ou locais pertencentes a particulares, nos termos do disposto no art. 1344 do C. Civ., uma vez que, a propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície.
65.Assim, o conceito de taxa terá de ser verificado à luz da remoção do obstáculo jurídico entre o anunciante e a administração local, neste caso a Câmara Municipal, o que, não se verifica nos presentes Autos, nem tão pouco se vislumbra a existência de qualquer contraprestação.
66. Em face do exposto, os Acórdãos enunciados são unânimes ao proclamarem que, estando em causa a afixação de paneis publicitários em bens privados, o tributo cobrado pela edilidade assume o carácter de imposto, e consequentemente viola o disposto nos artigos 103°, nr. 2 e 165°, nr. 1, alínea i) da Lei Fundamental.
67. Perante o exposto deverá a decisão sumária proferida pelo Exmo. Juiz Conselheiro Relator, ser alterada em virtude de se encontrar em oposição com as decisões que têm sido proferidas pelo Tribunal Constitucional sobre os presentes Autos.”
2. A decisão reclamada, e no que ora importa, tem o seguinte teor:
“2. O objecto do presente recurso integra os artigos 3.º e 16.º do Regulamento de Publicidade do Município de Lisboa, em face dos artigos 106.º, n.º 2 e 168.º, alínea i), da Constituição na versão resultante da revisão constitucional de 1989 (artigos 103.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, alínea i), na redacção actualmente em vigor).
Tais preceitos regulamentares prevêem a necessidade de licenciamento prévio da afixação ou inscrição de mensagens publicitárias em bens ou espaços afectos ao domínio público, ou deles visíveis, bem como o pagamento das taxas estabelecidas na Tabela de Taxas, Licenças e Outras Receitas Municipais pelo licenciamento e respectivas renovações.
3. A questão que se apresenta nos autos não é nova. Com efeito, o Tribunal Constitucional teve já oportunidade de apreciar a conformidade com a Constituição de preceitos regulamentares que prevêem a liquidação de taxas pelo licenciamento (ou respectiva renovação) de material publicitário afixado em propriedade privada. Algumas dessas pronúncias, aliás, versaram especificamente os artigos 3.º e 16.º do Regulamento de Publicidade do Município de Lisboa. Os acórdãos n.ºs 346/2001, 92/2002 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), 437/2003 (publicado no Diário da República, II Série, de 4 de Fevereiro de 2004), 453/2003 e 34/2004 (igualmente disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), julgaram tais normas inconstitucionais, por violação dos artigos 106.º, n.º 2 e 168.º, n.º 1, alínea i), da Constituição (na versão resultante da revisão constitucional de 1989). De modo reiterado, o Tribunal foi-se pronunciando no sentido da inconstitucionalidade orgânica de tais preceitos. Em síntese, o Tribunal tem rejeitado a configuração como taxas de receitas em que não se vislumbra que esteja em causa qualquer forma de utilização de um bem público ou semi-público e em que o ente tributador não venha a ser constituído numa situação obrigacional de assunção de maiores encargos pelo levantamento do obstáculo jurídico.
4. Muito recentemente, no entanto, esta orientação jurisprudencial foi alterada. Pelo acórdão n.º 177/2010, publicado no Diário da República, II Série, de 5 de Maio de 2010, o Plenário foi chamado a apreciar o artigo 2.º, n.º 1, do Regulamento de Taxas e Licenças Municipais e o artigo 31.º, da Tabela de Taxas a ele anexa, do Município de Guimarães, quando interpretados no sentido de a taxa aí prevista incidir sobre o licenciamento de painéis publicitários instalados em propriedade privada. Atentemos no que decidiu então o Tribunal:
‘8. Esta orientação restritiva entronca na conceptologia própria da ciência das finanças públicas, como os seus defensores reconhecem. TEIXEIRA RIBEIRO, por exemplo, aponta essa matriz, quando declara que houve que ‘pedir às Finanças Públicas o conceito de taxa’, na ausência de uma definição legal (ob. cit., 291).
Acontece, porém, que essa situação se alterou com a promulgação da Lei Geral Tributária (aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro). Na verdade, o artigo 4,º, n.º 1, desse diploma veio explicitar que «as taxas assentam na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares». De igual modo, a Lei n.º 53-E/2006, de 29 de Dezembro (alterada pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, e pela Lei n.º 117/2009, de 29 de Dezembro), que aprova o regime geral das taxas das autarquias locais, consagra, no artigo 3.º, idêntica categorização.
Perante esta enumeração tripartida das categorias de prestação pública que dão causa e servem de contrapartida à prestação exigível a título de taxa, é incontroverso que o legislador não acolheu aquela concepção restritiva, tendo antes considerado a remoção de um obstáculo jurídico como pressuposto autosuficiente da figura. A própria formulação utilizada sugere isso mesmo, pois a disjuntiva que antecede a referência final corta toda a ligação conectiva com os dois tipos de contraprestação antes expressos. E não faria, na verdade, qualquer sentido que o enunciado legal previsse um terceiro grupo de situações, em alternativa às duas outras anteriormente previstas, para se concluir que não se chega, afinal, a ultrapassar o âmbito da ‘utilização de um bem do domínio público’, pois só conta a remoção que a ela conduza.
Não pode extrair essa conclusão um intérprete obrigado a presumir que o legislador ‘soube exprimir o seu pensamento em termos adequados’ (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil). A não valer por si mesma, sem mais, a previsão do último tipo de situações qualificadoras da taxa seria inteiramente dispensável e enganadora. Até porque a utilização de um bem público implica sempre uma prévia permissão ou autorização dessa conduta, sem a qual a utilização está vedada. No quadro dessa previsão, os dois pressupostos estão sempre interligados, sendo manifestamente inapropriada a criação de uma outra hipótese de contraprestação, com um âmbito aplicativo inteiramente coincidente com o de outra já prevista. Pode até concluir-se, tendo em conta esse factor sistemático de interpretação, que o espaço de operatividade autónoma, em face da previsão anterior, da modalidade consistente na remoção de um obstáculo jurídico é precisamente dado por aqueles casos em que essa remoção não está funcionalizada à utilização de um bem público.
Esta noção mais ampla de taxa não representa, aliás, uma inovação, por via legislativa, pois o legislador limitou-se a perfilhar uma orientação, contraposta à acima referida, já anteriormente presente num significativo sector da doutrina portuguesa. Na verdade, a classificação tripartida, sem qualquer restrição, das modalidades de taxas já era advogada por autores como ALBERTO XAVIER, Manual de direito fiscal, I, Lisboa, 1974, 42-43 e 48-53, BRAZ TEIXEIRA, Princípios de direito fiscal, I, Coimbra, 1985, 43, e SOUSA FRANCO, Finanças públicas e direito financeiro, II, 4.ª ed., 1992, 64.
9. Mas a adopção, pelo legislador ordinário, deste conceito de taxa, posto que não deva ser desconsiderada, não resolve a questão de constitucionalidade.
Trata-se, na verdade, de um conceito vigente na ordem infraconstitucional, sem qualquer garantia ‘automática’ de aplicabilidade no plano da Constituição. Como logo se afirmou, a este propósito, no Acórdão n.º 346/2001, e foi reiterado em arestos posteriores, o princípio da constitucionalidade opõe-se a que os preceitos e princípios constitucionais sejam interpretados ‘em função do direito infraconstitucional em vigor’. Em face do conceito da lei ordinária, há que aferir se esse é também o conceito pressuposto pelas normas constitucionais que submetem as taxas a um tratamento diferenciado, em relação aos impostos. E não é de afastar que tal conceito se revele inapto a definir adequadamente o âmbito de incidência da não aplicação das exigências constitucionais referentes aos impostos, o mesmo é dizer, que tenha cabimento um conceito ‘constitucional’ de taxa, mais restritivo do que o fixado na Lei Geral Tributária.
Mas o tratamento da questão, no específico plano jurídico-constitucional, não pode ignorar este dado legislativo, pois o que urge saber, ao fim e ao cabo, é se há fundamento para nos afastarmos do conceito de direito ordinário. Não havendo, nesta matéria, uniformidade de posições doutrinais, ‘o mais’ da consagração legislativa de uma das duas orientações em confronto, sem ser decisivo, deve contar, na apreciação a fazer quanto à noção de taxa presente na disciplina constitucional. E, nesta perspectiva, não é descabido considerar que o ónus da argumentação incide com peso acrescido sobre os que entendem ser aquele conceito imprestável, no plano da normatividade constitucional. Importaria deixar a claro que, com a noção mais extensiva de taxa, ficam libertos das exigências constitucionais respeitantes à imposição de impostos tributos que, de acordo com a teleologia própria dessas exigências, a elas deveriam ficar submetidas.
Ora, não vemos que tenha sido avançado, nem na doutrina, nem na jurisprudência, qualquer argumento no sentido de que a noção de taxa, tal como estabelecida no artigo 4.º, n.º 1, da LGT, e no artigo 3.º da RGTAL, contemplando como modalidade autónoma a prestação exigível pela remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares, ‘não serve’ ao princípio da legalidade no domínio fiscal, por comprometer as valorações que lhe subjazem.
Não só isso não foi feito como, pelo contrário, já se argumentou convincentemente no sentido da adequação do conceito de direito ordinário às razões constitucionais de diferenciação do tratamento das duas espécies de tributos.
Essa ideia já encontra eco na declaração de voto do Conselheiro Benjamim Rodrigues, apensa aos Acórdãos n.º 436/2003 e n.º 34/2004, onde se salienta que, com a qualificação dos tributos em causa como taxas, seguramente que não saem ‘postergadas as exigências garantísticas que fundamentam a distinção funcional dos conceitos’.
Mais recentemente, pode ler-se em CARDOSO DA COSTA, ‘Ainda sobre a distinção entre ‘taxa’ e ‘imposto’ na jurisprudência constitucional’, Homenagem a José Guilherme Xavier de Basto, Coimbra, 2006, 547 s., 570-571:
«Por seu turno, o ponto de vista do direito constitucional, ao distinguir entre dois tipos fundamentais de receitas públicas, é naturalmente outro: é antes o da diferente onerosidade de umas e outras para os obrigados ao respectivo pagamento – a implicar um tratamento mais estrito e exigente (em particular no que concerne ao princípio da legalidade) para aquelas receitas que correspondem a uma pura ‘exacção’, sem que o seu sujeito passivo obtenha qualquer utilidade específica (uti singuli) com o respectivo pagamento: aí, há que acautelar mais intensamente (para nos restringirmos à consideração do mencionado princípio e das suas funções), seja o direito de propriedade daquele contra exacções desnecessárias ou exorbitantes, seja a legitimidade e a transparência democrática da decisão que estabelece e fica a fundamentar tal exacção. Ora, há-de reconhecer-se que, quando certa receita pública é exigida para que um particular possa desenvolver determinada actividade ou praticar determinado acto, que sem isso lhe estaria vedado, do pagamento dessa receita deriva sempre, para quem o faz, uma utilidade do tipo antes referido (uma vantagem), traduza-se ela em, ou implique ela ou não a utilização de um bem semi-público».
Acompanhamos inteiramente estas considerações, que levaram o Autor a propender, hoje, para acolher o critério fixado no artigo 4.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária.
10. Por detrás do conceito restritivo de taxa, estão razões pragmáticas, ligadas à preocupação legítima de obstar a que, sob o rótulo enganador de ‘taxas’, se obtenham verdadeiras receitas fiscais, receitas a que é de atribuir essa qualificação por não se vislumbrar que o obstáculo a remover tutele um interesse público que não seja esse mesmo, de ordem estritamente financeira. E há que reconhecer que a noção ampla de taxa potencia o risco de verificação dessas situações, em que a exigência de licença é uma ‘mero estratagema para obter receitas’ (CASALTA NABAIS, Direito fiscal, 5.ª ed., Coimbra, 2009, 15, n. 27).
Simplesmente, a solução vai longe demais, sendo patentemente desproporcionada à prossecução do objectivo de combater a criação de verdadeiros impostos sem os resguardos e as garantias constitucionalmente exigidos. Ela, na verdade, leva a tratar igualitariamente (como impostos) todas as prestações exigidas pelo levantamento de um obstáculo jurídico a uma actividade privada, se esta não se traduzir na utilização de um bem semi-público, sem levar em conta a natureza finalística desse obstáculo, a razão de ser da sua existência e a concomitante configuração real do interesse protegido. Esta orientação não separa aquilo que pode e deve ser separado, já que todas as ‘taxas’ devidas por licenças que não se projectem na utilização de um bem semi-público são tratadas como licenças fiscais, apagando a autonomia e a especificidade, sob o ponto de vista constitucionalmente relevante, das chamadas licenças administrativas ou policiais – aquelas, no dizer de ALBERTO XAVIER (ob. cit., 53), ‘estabelecidas predominantemente por razões gerais de ordem administrativa’.
A distinção a fazer não é, assim, entre as remoções que facultam e as que não facultam a utilização de um bem semi-público, mas entre as que afastam um obstáculo real, ditado por um genuíno interesse administrativo, e as que eliminam um obstáculo artificialmente erguido para, através da remoção, propiciar à administração a cobrança de uma receita (cfr., quanto a esta distinção, CASALTA NABAIS, ob. cit., 14-15, Autor que, no entanto, considera ‘verdadeiras licenças fiscais’ as taxas relativas à publicidade através de anúncios).
O tratamento, de modo constitucionalmente adequado, das prestações devidas pela concessão de licenças municipais não exige a diferenciação que o critério restritivo de taxa propugna, mas uma outra, decorrente do indispensável controlo sobre a verdadeira funcionalidade do obstáculo cujo levantamento justifica a contrapartida pecuniária. O modo de combater a ‘fuga’ para o regime mais benévolo das taxas, sem que a natureza substancial da relação com o administrado o legitime, passa, como acentua CARDOSO DA COSTA, por esse meio – o do «teste de verosimilhança, destinado (…) a afastar a qualificação de ‘taxa’ nos casos em que ela se ligue à remoção de um obstáculo ‘artificial’, criado apenas para se proporcionar a cobrança de uma receita (dito por outras palavras, nos casos em que à criação do obstáculo não vá subjacente um interesse ‘administrativo’ autónomo, mas unicamente um interesse ‘fiscal’» (ob. loc. cit.).
11. Assente que há prestações conexas, sem mais, ao licenciamento de um comportamento dos particulares, a que cabe, também do ponto de vista das valorações constitucionais, a qualificação como taxa, cumpre ajuizar, por último, se o tipo de situações de que o caso vertente é exemplo se integra nessa categoria.
Está em causa, como já vimos, a colocação de um anúncio luminoso num prédio particular. Seja qual for a materialidade concreta desse reclamo e o modo do seu posicionamento no prédio – matéria sobre a qual não há elementos nos autos - não sofre dúvidas de que o local de implantação do suporte físico da publicidade se situa em domínio privado, num imóvel de propriedade privada. Mas isso não invalida que, pelo seu modo funcional de ser, a actividade publicitária assente em painéis ou inscrições se projecte visualmente no espaço público, interferindo conformadoramente na configuração do ambiente de vivência urbana das colectividades locais. A fixação do âmbito de incidência da taxa em questão leva em conta isso mesmo, pois só são taxados ‘os anúncios que se divisem da via pública’ (observação 1), aplicável às normas do Capítulo IV, em que se integra a do artigo 31.º, da Tabela de Taxas anexa ao Regulamento em causa).
Na busca da máxima perceptibilidade e do maior impacto da respectiva mensagem junto dos potenciais consumidores ou utentes dos produtos ou serviços publicitados, o anunciante utiliza, com muita frequência, formas agressivas de comunicação, em termos luminosos, gráficos ou, até, de dimensão e destaque físicos, pelo que a visualização tem verdadeiros efeitos intrusivos, no ambiente de vida comunitária.
Contrariamente ao que transparece de algumas apreciações, a questão não se resolve, pois, pela simples demarcação ‘física’ dos espaços privado e público, determinando-se a legitimidade da qualificação como taxa pela ‘ocupação’ de um ou de outro, por parte da fonte emissora da mensagem publicitária. «É que – faz-se notar na referida declaração de voto do Conselheiro Benjamim Rodrigues – a utilidade essencial e determinante na óptica do utilizador que o obrigado do tributo obtém pela via do pagamento do tributo não é propriamente a utilidade traduzida na afixação ou inscrição dos anúncios nos bens do domínio privado mas sim, essencialmente, a utilidade dos mesmos poderem ser visíveis e tidos em conta por quem circula nos espaços públicos planificados pelos municípios e cuja preservação como ecologicamente sadios principalmente lhes compete».
A colocação, em prédios de propriedade privada, de anúncios de natureza comercial tem directa e muito marcante incidência ‘externa’, que extravasa da esfera dominial do respectivo titular. Pela natureza do efeito útil pretendido, ela contende necessariamente com o espaço público, cuja gestão e disciplina compete à edilidade exercitar. Justifica-se, assim, que a actividade publicitária seja relativamente proibida (cfr., entre outros, o Acórdão n.º 558/98), ficando sujeita a um licenciamento prévio pelas câmaras municipais, ‘para salvaguarda do equilíbrio urbano e ambiental’ (artigo 1.º da Lei n.º 97/88 de 17 de Agosto, alterada pela Lei n.º 23/2000, de 23 de Agosto).
De forma alguma este regime pode ser perspectivado como um obstáculo jurídico arbitrário, como uma intervenção abusivamente limitadora do jus utendi de um bem privado, com o único fito de obter receitas. Independentemente da posição adoptada quanto a saber se a iniciativa publicitária corresponde ou não ao gozo de uma faculdade contida no direito de propriedade privada, não sofre dúvida de que tal regime se encontra objectivamente legitimado pela tutela de reais interesses públicos, cuja preservação é condição indispensável da ‘qualidade ambiental das povoações e da vida urbana’, nos termos constitucionalmente exigidos (alínea e) do artigo 66.º da CRP).
12. Mas a conexão privado-público, que se estabelece por força da afixação e inscrição de mensagens de publicidade em prédios privados, não deve representar-se apenas segundo um ‘modelo de limites’, traduzindo a ideia simples de que ao privado cumpre respeitar as restrições que advêm da intangibilidade de interesses públicos.
Se assim fosse, poderia ter cabimento a orientação que valora diferentemente a taxa devida pela concessão da licença, como acto administrativo praticado em dado momento temporal, das sucessivas renovações dessa taxa, das prestações periodicamente reiteradas, em função da manutenção, ao longo do tempo, da publicidade. Poderia sustentar-se, deste ponto de vista, que é apenas a colocação da publicidade que requer, como contrapartida, a actividade administrativa prévia de verificação da observância dos deveres negativos do obrigado tributário, os quais dão conteúdo aos critérios de licenciamento enunciados no artigo 4.º da Lei n.º 97/88. Uma vez prestado, esse serviço público não se renova, pelo que não se divisa a existência de qualquer contrapartida específica para a remuneração periódica da mera permanência do reclamo (assim, o Acórdão n.º 437/2003; cfr. ainda o Acórdão n.º 166/2008, onde se salienta que, estando em causa – como acontece nos presentes autos – a renovação da licença e não o licenciamento ex novo, «mais reforça a ausência de correspectividade/sinalagmaticidade entre a taxa devida e o serviço a prestar pelo município, na medida em que a publicidade em causa já se encontra devidamente afixada no imóvel pertencente à recorrida, não se vislumbrando que serviços concretos poderia aquele município ser forçado a praticar, por força da mera renovação da licença»).
Afigura-se-nos que esta orientação, para além de se apoiar numa compreensão restritiva do conceito de taxa, denegatória da autonomia da modalidade consistente na remoção de um obstáculo jurídico, é excessivamente redutora do conteúdo da relação estabelecida entre o anunciante e a administração local. Não está em causa apenas o interesse de integridade dos valores, ambientais, urbanísticos e outros, que poderiam ser afectados por causa da actividade publicitária, interesse esse acautelado através da intervenção administrativa de fiscalização do cumprimento dos deveres específicos de omissão enumerados no artigo 4.º da Lei n.º 97/88. A emissão da licença, o mesmo é dizer, o levantamento do obstáculo jurídico (que já vimos não ser arbitrário) dá origem a uma relação com o obrigado tributário distinta da que intercede com a generalidade dos administrados, no quadro da qual a entidade emitente assume uma particular obrigação – a duradoura obrigação de suportar (pati) uma actividade que, embora respeitando aqueles deveres, interfere permanentemente com a conformação de um bem público. Com o licenciamento, alteram-se as posições jurídicas recíprocas de administração e administrado, ficando aquela onerada, enquanto a situação persistir, com uma obrigação até aí inexistente. Inversamente, o anunciante ganha título para uma activa e particular fruição, em termos comunicacionais, do espaço ambiental, necessária à realização da utilidade individual procurada, a qual não se confunde com o gozo passivo desse espaço, ao alcance da generalidade dos cidadãos (cfr., todavia, o Acórdão n.º 437/2003). Em exclusivo proveito próprio, um sujeito privado – o anunciante – introduz, através da actividade publicitária, mudanças qualitativas na percepção e no gozo do espaço público por parte de todos os que nele se movem, ‘moldando-o’, em função do seu interesse. A constituição da obrigação passiva de se conformar com essa influência modeladora é justamente a contrapartida específica que dá causa ao pagamento da taxa, estruturando, em termos bilaterais, a relação estabelecida com o obrigado tributário.
Findo o prazo para o qual tinha sido concedida a remoção da proibição do exercício da actividade publicitária, torna-se necessário proceder à reavaliação da situação, do ponto de vista da permanência das condições legais de licenciamento, o que justifica a cobrança de uma nova prestação tributária. Essa reavaliação é um pressuposto da continuidade da fruição, por um novo período, das utilidades propiciadas por tal actividade, no que o particular se mostra interessado. Não faz sentido, atenta essa relação causal, distinguir o licenciamento da sua renovação, ou a contrapartida devida pelo período inicial das que são exigíveis pelos períodos de renovação da licença.
Assim como, noutra dimensão problemática, não há razões para considerar a taxa de publicidade consumida por anteriores quantias devidas para a realização de outros trâmites de que eventualmente depende a utilização de edifícios privados para fins publicitários. Já defendida na doutrina (cfr. P. PITTA e CUNHA/J. XAVIER DE BASTO/A. LOBO XAVIER, ‘Os conceitos de taxa e imposto a propósito de licenças municipais’, Fisco, ano 5 (1993), 3 s., 6-7), esta tese ignora a especificidade da contrapartida outorgada ao anunciante, inconfundível com qualquer outra e autónoma em relação a causas de prestação com ela eventualmente cumuláveis.’
Esta fundamentação é transponível para os presentes autos, reiterando-se, agora, a orientação então firmada.”
4. Os Reclamados Ministério Público e Município de Lisboa pronunciaram-se no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação5. Adiante-se já que a reclamação deduzida carece manifestamente de fundamento. Com efeito, a Reclamante vem falar em contradição com jurisprudência anterior quando, como expressamente se refere na decisão sumária, assumindo-se essa mesma jurisprudência, a orientação foi alterada recentemente em acórdão do Plenário deste Tribunal Constitucional. Realce-se ainda o facto de o mesmo ter sido tirado por unanimidade, com algumas declarações de voto que salientam precisamente a mudança de posição.
Tudo o resto que é aduzido na Reclamação se limita ao dissídio com os fundamentos da decisão de não inconstitucionalidade, repetindo, na essência, a posição que já foi assumida, anteriormente, por parte significativa da jurisprudência constitucional. Deste modo, conclui-se que todos os argumentos falecem face aos fundamentos do Acórdão n.º 177/2010, cuja fundamentação se transcreveu na decisão reclamada.
III – Decisão6. Face ao exposto, sem necessidade de ulteriores considerações, acordam, em conferência, indeferir a reclamação deduzida e confirmar a decisão sumária proferida.
Custas pela Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) uc.
Lisboa, 10 de Novembro de 2010.- José Borges Soeiro – Gil Galvão – Rui Manuel Moura Ramos.
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