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Processo n.º 321/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
(Conselheiro João Cura Mariano)
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal de Família e Menores de Braga, em que é recorrente o Ministério Publico e recorridos A. e B., foi interposto recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores, adiante designada LTC), da sentença daquele Tribunal na parte em que «recusou a aplicação do artigo 4.°, n.° 5, do Decreto-Lei n.° 164/99, de 13 de Maio, na interpretação fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.° 12/2009 (publicado no D.R. 1.ª Série, n.° 150, de 05 de Agosto de 2009), por inconstitucionalidade material (por violação dos artigos 8.°, 24.°, 69.°, 13.°, n.° 2, 63.°, n.° 3, 67.°, n.° 2, alínea c) e 81.°, alínea a) da Constituição da República Portuguesa), nos termos do disposto nos artigos 70.°, n.° 1, alínea a), 72.°, n.° 3, 75.° - A, n.° 1, 78.°, n.° 2 da Lei do Tribunal Constitucional.»
2. Na sentença recorrida, na parte que agora releva, conclui-se que «por tudo quanto ficou exposto, não se seguirá o decidido para uniformização de jurisprudência no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 12/2009, proferido no agravo ampliado n.º 682/09-6ª, por se entender que o mesmo não estará em conformidade com a Constituição da República nos termos sobreditos, e decidir-se-á que o F.G.A.D.M [Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores] deverá pagar a prestação mensal doravante, bem como as que se venceram desde o requerimento de intervenção do Fundo.»
O segmento decisório da sentença recorrida tem o seguinte teor:
«Condena-se o FGADM a pagar mensalmente a A. a pensão de alimentos relativa ao filho C., nascido a 23/11/2002, no montante mensal de 84€, a que o devedor B. está legalmente obrigado.
A pensão deverá, anualmente, ser aumentada em 3%, em Janeiro.
Notifique-se o Ministério Público, o representante legal ou a pessoa que detenha a guarda, IGFSS e, havendo, os respectivos advogados das partes, art. 4.º, n.º 3, do referido DL.
O CDSS deverá observar o n.º 5 do art. 4.º do DL 164/99, de 13/5, começando os pagamentos no mês seguinte à notificação do tribunal, ainda que sejam devidos retroactivos desde o pedido (Dezembro de 2009, fls. 95 do p.p.) – decidindo-se assim não seguir a uniformização de jurisprudência por se entender que o decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2009 não estará em conformidade com a Constituição da República Portuguesa, nos termos acima expostos.
(…)».
3. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional concluiu alegações da forma que se segue:
«(…) julga-se que este Tribunal deverá:
a) julgar inconstitucional, por violação dos arts. 1º, 8º, 13º, 24º, 63º, 67º da Constituição da República Portuguesa, a norma do art. 4º, nº 5 do Decreto-Lei 164/99, de 13 de Maio, quando interpretada no sentido de que a obrigação de prestação de alimentos a menor, assegurada pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, em substituição do devedor, só nasce com a decisão que julgue o incidente do incumprimento do devedor originário e a respectiva exigibilidade só ocorre no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal, não abrangendo, porém, quaisquer prestações anteriores;
b) confirmar, em consequência, a decisão recorrida.»
4. Tendo o primitivo relator ficado vencido, quanto à questão do conhecimento do objecto do recurso, houve lugar à mudança de relator.
II – Fundamentação
5. Cumpre, antes de mais, decidir a questão prévia do conhecimento do objecto do recurso.
Nas respectivas alegações, o Ministério Público pronunciou-se no sentido do preenchimento das condições necessárias a esse conhecimento, considerando, em suma, que o tribunal recorrido recusou expressamente a aplicação da norma do artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99.
Este Tribunal Constitucional já apreciou diversos recursos provenientes do mesmo tribunal a quo, nos quais se apresentava questão em tudo idêntica à que agora nos ocupa.
Na primeira dessas decisões (Decisão Sumária n.º 121/10) relatada pelo ora relator, entendeu-se não conhecer do objecto do recurso, entendimento esse que foi seguido, nomeadamente, nas Decisões Sumárias n.ºs 167/10, 182/10, 183/10, 184/10, 185/10, 186/10, 187/10, 188/10, 190/10, 191/10, 216/10, 221/10, 222/10, 224/10 e 232/10.
A fundamentação da citada Decisão Sumária n.º 121/10 é a seguinte:
«3. A norma do n.º 5 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 164/99 estabelece o seguinte: «O centro regional de segurança social inicia o pagamento das prestações, por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal».
Resulta do teor da sentença recorrida, especialmente da parte final do seu segmento decisório, que o tribunal não efectuou uma recusa de aplicação da norma do artigo 4.°, n.° 5, do Decreto-Lei n.° 164/99, de 13 de Maio, com fundamento em inconstitucionalidade.
Pelo contrário, essa norma foi aplicada como ratio decidendi do caso, tendo sido ao abrigo da mesma que o tribunal recorrido determinou que o CDSS iniciasse o pagamento das prestações de alimentos em causa.
Simplesmente, a decisão recorrida não aplicou tal norma, na parte respeitante ao momento em que se devem iniciar os pagamentos, com a interpretação que foi fixada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2009 aí citado, mas sim com a interpretação que o tribunal recorrido entendeu ser a correcta. Entendimento, esse, fundado, em boa medida, em razões, desenvolvidamente expostas, situadas no plano do direito infraconstitucional.
Resulta, na verdade, da fundamentação da sentença recorrida que esta não acolhe a interpretação constante do Acórdão n.º 12/2009 apenas por entender que a mesma é inconstitucional. Não o faz, antes disso, porque entende que a interpretação que está de acordo com as regras aplicáveis não é essa, mas sim a que, a final, entendeu seguir. De facto, quando na sentença se elencam quatro motivos de discordância da interpretação seguida no acórdão de uniformização, as primeiras razões invocadas prendem-se com a interpretação da norma no plano do direito ordinário (que não cabe a este Tribunal Constitucional sindicar); e só por último se acrescenta um motivo de inconstitucionalidade.
Ora, a escolha, entre duas interpretações, de uma delas, com o concomitante afastamento da outra interpretação, não é uma verdadeira recusa de aplicação de norma. E não o é mesmo quando a interpretação afastada o foi (também) por invocadas razões de inconstitucionalidade.
O facto de a interpretação que foi afastada pelo tribunal recorrido ser aquela que foi fixada em acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça não altera os dados da questão. Só assim seria se tal interpretação se impusesse como obrigatória para o tribunal recorrido. Só então é que o mesmo estaria habilitado a exercitar o poder-dever que o artigo 204.º da Constituição lhe confere, como último recurso para evitar a eficácia, no que diz respeito ao caso em juízo, dessa interpretação reputada inconstitucional.
Mas não tem essa eficácia a jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça, apesar do valor “reforçado”, que implica que a decisão judicial que a contrarie é sempre susceptível de recurso - cfr. actual artigo 678.º, n.º 2, alínea c), do CPC (cfr. neste sentido, entre outros, Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, 2003, Coimbra, 12-13, embora a propósito do regime anterior ao Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto).
Não obstante a diversidade de matérias, a questão aqui em juízo apresenta uma estrutura problemática análoga à presente no Acórdão n.º 652/09, relatado pelo ora relator. Explicitou-se, neste Acórdão, uma orientação que aqui se reitera:
“[U]m tribunal de instância pode provocar a apreciação, pelo Tribunal Constitucional, e mediante o recurso obrigatório do Ministério Público, de uma interpretação que ele próprio faça – interpretação que seria a inevitável ratio decidendi da questão em juízo, não fora a decisão de inconstitucionalidade que sobre ela recai. O que não pode é, através de uma artificiosa recusa de aplicação, que consta da decisão, mas não é apoiada pela fundamentação, pôr o Tribunal Constitucional a decidir a constitucionalidade de uma interpretação que não é a sua, mas a de um outro tribunal.”»
Este entendimento, que se mantém, é inteiramente transponível para o caso em apreço, que se mostra exactamente igual àquele que foi aí apreciado.
A interpretação que o tribunal recorrido fez de normas processuais, que o levou à busca de um “argumento novo”, para decidir em sentido contrário ao do Acórdão do STJ n.º 12/2009, tem mero valor argumentativo, sem incidência na fixação do objecto do recurso, pelo que pode ser contrariada por este Tribunal.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam em não conhecer do objecto do recurso.
Sem custas.
Lisboa, 6 de Outubro de 2010.- Joaquim de Sousa Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro - João Cura Mariano (vencido, conforme declaração que anexo) – Rui Manuel Moura Ramos.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Da leitura da sentença recorrida constata-se que ela decidiu que o F.G.A.D.M. deveria pagar a prestação de alimentos arbitrada a favor do menor C. no âmbito da regulação do poder paternal a partir do momento em que foi requerida a intervenção daquele Fundo, não se tendo assim seguido a orientação definida pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 12/2009, segundo o qual a referida obrigação de prestação de alimentos a menor pelo referido Fundo, só nasce com a decisão que julgue o incidente de incumprimento do devedor originário e a respectiva exigibilidade só ocorre no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal, não abrangendo quaisquer prestações anteriores.
A sentença recorrida após revelar que não concordava com a interpretação que o referido Acórdão uniformizador havia feito do disposto no n.º 5 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 164/99, aderindo antes à posição dos votos de vencido lavrados naquele Acórdão, entendeu que não podia deixar de seguir a jurisprudência uniformizada por com ela não concordar, salvo se o pudesse fazer com um argumento novo.
E com este pensamento fundamentou a sua decisão na inconstitucionalidade da interpretação acolhida pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 12/2009, por violar os princípios da soberania partilhada (artigo 7.º, n.º 6, da C.R.P.), e do primado do Direito internacional (artigo 8.º, da C.R.P.).
Na verdade, lê-se na sentença recorrida:
“Posto isto, está visto que o subscritor não concorda com a decisão de uniformização de jurisprudência.
- Que fazer, pergunta-se-
O julgador, segundo o art. 8º 2 C.C., não pode deixar de aplicar uma lei por a achar injusta ou imoral.
Também não pode deixar de seguir a jurisprudência uniformizada por com ela não concordar - apenas o podendo fazer se adiantar argumento novo, que não tenha sido considerado ou se houver motivos que possam levar à conclusão que uma jurisprudência está ultrapassada (- cf. Ac. S.T.J. de 13/2/2008, no proc. 409/08-5º S. pontos I a IV do sumário, Ac. T. R. Guimarães de 6/3/2008 no proc. 2706/07-2, pontos 2 a 5 do sumário, e Ac. S.T.J. de 17/10/2007 no proc. 2576/06-4ª S., sendo relatores, respectiva mente, Simas Santos, Espinheira Baltar e Mário Pereira).
Independentemente de tudo quanto ficou dito acima, mesmo no tocante a normas constitucionais que não estiveram no cerne da decisão, sendo assim um “argumento novo adiantado”, redirecciona-se agora o problema para os princípios da soberania partilhada (art. 7º 6 C.R.P), do primado do Direito Internacional (art. 8º C.R.P.), maxime, da União Europeia (nºs. 3 e 4 do art. 8º), esta entendida enquanto União de Direito, sendo ambas normas uma pura decorrência do princípio da lealdade, que consta do art. 10º C.R.P”.
E foi unicamente com fundamento neste “argumento novo” que a sentença recorrida condenou o FGDA a pagar a A. a pensão de alimentos relativa ao menor C., determinando que fossem efectuados pagamentos dos retroactivos devidos desde o pedido, constando da parte decisória:
“O C.D.S.S. deverá observar o n.º 5, do artº 4º D.L. 164/99, de 13/5, começando os pagamentos no mês seguinte à notificação do Tribunal ainda que sejam devidos os retroactivos desde o pedido (Dezembro de 2009, fls. 95 do p.p.), decidindo-se assim não seguir a uniformização da jurisprudência por se entender que o decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2009 não estará em conformidade com a Constituição da República Portuguesa, nos termos acima expostos.”
Apesar do subscritor da sentença recorrida perfilhar uma interpretação contrária ao critério normativo recusado, como entendeu que apenas podia deixar de o seguir com fundamento num “argumento novo”, encontrou esse argumento na inconstitucionalidade desse critério e com esse fundamento recusou a sua aplicação.
Ao Tribunal Constitucional não cabe ajuizar da correcção infra-constitucional deste raciocínio, tendo que o aceitar como um dado adquirido; o que é certo é que a sentença recorrida recusou a aplicação do critério normativo enunciado pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 12/2009, apenas com o “argumento novo” da sua inconstitucionalidade, por violação dos princípios da soberania partilhada (artigo 7.º, n.º 6, da C.R.P.), e do primado do Direito internacional (artigo 8.º, da C.R.P.).
A recusa de uma das interpretações possíveis de um determinado preceito, com fundamento na sua inconstitucionalidade, consubstancia uma efectiva recusa de aplicação de norma para efeitos de definição da competência do Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, a), da LTC, pelo que entendi que deveria conhecer-se do mérito do recurso interposto.
O tribunal a quo afastou a aplicação da norma constante do n.º 5 do art. 4.º do DL n.º 164/99, de 13 de Maio, na interpretação segundo a qual a obrigação de prestação de alimentos a menor, assegurada pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, só nasce com a decisão que julgue o incidente de incumprimento do devedor originário e a respectiva exigibilidade só ocorre no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal, não abrangendo quaisquer prestações anteriores, com fundamento na sua inconstitucionalidade.
É esta recusa que constitui o objecto do recurso interposto pelo Ministério Público.
No plano jurídico-constitucional, a obrigação de prover ao sustento dos menores surge, numa primeira linha de exigibilidade, inscrita na esfera jurídica dos respectivos pais, uma vez que estes têm o dever – e também o direito – fundamental de educação e manutenção dos filhos (artigo 36.º, n.º 5, da Constituição).
Assim, dentro das suas possibilidades económicas, cabe aos pais, pelo menos durante a menoridade dos filhos, velar pela sua educação, segurança e saúde e prover ao seu sustento.
Mesmo em caso de separação, o progenitor que não tem a guarda do filho deve prestar-lhe alimentos.
Em caso de frustração do cumprimento da obrigação de alimentos no quadro da solidariedade familiar, os menores podem incorrer numa situação grave de falta ou diminuição de meios de subsistência.
Como se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 306/2005, “(…) a insatisfação do direito a alimentos atinge directamente as condições de vida do alimentando e, ao menos no caso das crianças, comporta o risco de pôr em causa, sem que o titular possa autonomamente procurar remédio, se não o próprio direito à vida, pelo menos o direito a uma vida digna” (em ATC, 62.º vol., pág. 649).
Incumbe ao Estado de Direito Social organizar um sistema de segurança social que assegure inter alia a protecção efectiva desses menores em particular, para, assim, garantir o respectivo direito fundamental a uma sobrevivência minimamente condigna, uma vez que estes se encontram em situação de falta de meios de subsistência e de capacidade para o trabalho (artigo 63.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição, em cujo conteúdo essencial já se mostra suficiente e autonomamente projectado o princípio da dignidade da pessoa humana).
Essa mesma intervenção assistencial do Estado é também exigida pelo artigo 69.º, n.º 1, da Constituição.
Ora, constatado o elevado número de situações de incumprimento de pensão de alimentos devidos a menores, o legislador ordinário já interveio a respeito desta matéria através da aprovação da Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, fixando as condições em que o Estado garante a satisfação dessa prestação.
Assim, “quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor (...) não satisfazer as quantias em dívida (…), e o alimentado não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efectivo cumprimento da obrigação” (art. 1.º, da Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro).
De acordo com a solução preconizada pelo legislador ordinário, o Estado não se limita, a título subsidiário, a prestar alimentos nos precisos termos em que se encontrava onerado o primitivo obrigado aos alimentos. Efectivamente, a pedido do Ministério Público ou daqueles a quem a prestação de alimentos deveria ter sido entregue, o tribunal, após as diligências de investigação tidas por indispensáveis, fixará então o montante mensal, nunca superior a 4 UC, que o Estado, em substituição do devedor, deverá prestar (artigos 2.º e 3.º).
Independentemente do quantum da prestação estatal de alimentos que vier concretamente a ser fixada pelo tribunal – matéria que extravasa o objecto do presente recurso de constitucionalidade –, coloca-se a questão da necessidade de assegurar um mínimo de eficácia jurídica na garantia de satisfação desta obrigação de alimentos, sob pena de violação do direito fundamental à segurança social (Vide neste sentido o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 509/2002, em ATC, 54.º vol., pág. 19).
Para assegurar a satisfação deste direito fundamental nestas situações não basta criar um qualquer mecanismo assistencial dos menores em relação aos quais o dever parental de prover à sua subsistência é incumprido, é também necessário que esse mecanismo esteja construído de modo a poder dar uma resposta eficaz a essas situações.
Quando se trata da atribuição de prestações pecuniárias regulares destinadas a custear as despesas dos menores a questão temporal de exigibilidade dessas prestações é essencial. O sistema de segurança social deve garantir uma adequação temporal da resposta, concedendo oportunamente as prestações legalmente previstas para uma satisfatória promoção das condições dignas de vida das crianças (vide sobre este princípio da segurança social, João Carlos Loureiro, em “Proteger é preciso, viver também: a jurisprudência constitucional portuguesa e o Direito da Segurança Social”, in XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, pág. 383, da ed. de 2009, da Coimbra Editora).
No caso concreto, o tribunal a quo desaplicou a norma constante do n.º 5 do artigo 4.º do DL n.º 164/99, de 13 de Maio, na interpretação segundo a qual a obrigação de prestação de alimentos a menor, assegurada pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, só nasce com a decisão que julgue o incidente de incumprimento do devedor originário e a respectiva exigibilidade só ocorre no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal, não abrangendo quaisquer prestações anteriores, que foi fixada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2009 (publicado no Diário da República, 1.ª Série, de 5 de Agosto de 2009).
Ora, esta solução normativa acaba por comprometer a eficácia jurídica da satisfação das necessidades básicas do menor alimentando, na medida em que a mesma se traduz na aceitação – dir-se-ia intolerável – de um novo período, de duração incerta, de carência continuada de recebimento de qualquer prestação social de alimentos, a cumular ao anterior período – mais ou menos longo – em que já se revelou a frustração total da solidariedade familiar.
Efectivamente, de acordo com a interpretação normativa sob análise, a situação continuada de carência de prestação alimentos ao menor alimentando que precede a apresentação do requerimento de intervenção do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores não só não é eficazmente estancada, ainda que retroactivamente, com este pedido de auxílio estatal, como ainda subsiste para além deste momento, durante um período de duração incerta, até ser proferida decisão judicial em primeira instância a qual não acautela a satisfação dos alimentos que ter-se-iam vencido até então.
Este juízo não é afastado pela possibilidade de decretamento de uma decisão judicial provisória de alimentos a cargo do Estado – prevista no artigo 3.º, n.º 2, da Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro –, uma vez que esta decisão provisória, não só não abrange todas as situações em que o menor não tem assegurada a sua subsistência pelos obrigados principais, apenas podendo ser utilizada nos casos de excepcional urgência, como também o momento da exigibilidade das prestações sociais assim decretadas não deixa de se revelar incerto e sempre tardio, uma vez que essa decisão provisória também só é decretada já no decurso do processo de apuramento da necessidade da intervenção subsidiária do Estado, podendo igualmente ser precedida de diligências de prova de execução temporal incerta.
Em virtude do exposto, importa concluir que a interpretação normativa sob análise padece de inconstitucionalidade material na medida em que consubstancia desde logo uma violação do direito fundamental à segurança social previsto no artigo 63.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição, pelo que acompanharia o juízo de inconstitucionalidade emitido pela decisão recorrida, embora com fundamentação distinta, julgando improcedente o recurso.- João Cura Mariano.
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