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Processo n.º 328/2010
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A. foi condenado, por sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Vieira do Minho, pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, nº 1, alíneas a) e b) do Código Penal (na redacção dada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro) na pena de 2 anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução, subordinada ao dever de o arguido abandonar a casa que ocupava, no prazo de trinta dias contados desde o trânsito em julgado da decisão, de modo a permitir o regresso a casa da assistente.
Desta decisão interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão datado de 15 de Dezembro de 2009, julgou o recurso parcialmente procedente, determinando a revogação da sentença recorrida na parte em que esta última condenara o arguido nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 152.º do Código Penal. Manteve-se, no entanto, a condenação, nos termos da alínea a) do mesmo preceito.
Notificado deste Acórdão, arguiu A. a sua nulidade. Por decisão datada de 22 de Fevereiro de 2010, o Tribunal da Relação de Guimarães indeferiu a reclamação apresentada.
2. Interpôs então o arguido recurso para o Tribunal Constitucional das decisões tomadas pela Relação de Guimarães a 15/12/2009 e a 22/2/2010.
Depois de convidado a aperfeiçoar o seu requerimento de interposição de recurso, A. solicitou que o Tribunal apreciasse, ao abrigo da alínea b)
do nº 1 do artigo 70.º da Lei nº 28/82 (LTC), as seguintes quatro questões de constitucionalidade:
a (in)constitucionalidade da norma contida no artigo 51.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, na interpretação acolhida de que como uma das condições cumulativas ou cumprimento de deveres para beneficiar da suspensão da execução da pena de prisão se impõe ao arguido a obrigação de abandonar/entregar à assistente a casa da morada de família, por violação do direito à habitação do arguido e do princípio da proporcionalidade, consagrados nos artigos 65.º e 18.º da Constituição, quando é certo ademais que está por decidir a atribuição da casa de morada de família, estando também ainda pendente o inventário para separação de meações, na sequência do divórcio;
a (in)constitucionalidade da norma contida, conjugadamente, nos artigos 368.º, n.º 2 e 374.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, de que se fez aplicação, na interpretação acolhida de que anterior condenação do arguido pode integrar a relação de factos provados e assim servir – de novo – para a condenação e fixação agravada da medida da pena em processo ulterior (ademais quando a anterior pena se encontra extinta), por violação do preceituado no artigo 29.º, n.º 5 da Constituição;
a (in)constitucionalidade da norma contida no artigo 2.º do Código Penal, de que se fez aplicação, na interpretação acolhida de que é de aplicar, no caso ocorrente, a lei nova posterior ainda que mais gravosa, por violação do princípio da aplicação da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido, consagrado no artigo 29.º, n.º 4 da Constituição;
a (in)constitucionalidade da norma contida no artigo 419.º, n.º 3 (que prevê taxativamente os casos em que o recurso é julgado em conferência), por si só ou conjugada com o preceituado no n.º 5 do artigo 411.º, ambos do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, na interpretação de que deve o recurso ser julgado em conferência, quando é certo que o arguido, oportunamente, requereu a realização da audiência para serem debatidos os especificados “pontos da motivação de recurso” designadamente atinentes a matéria de direito, por violação do princípio constitucional da presunção de inocência e das mais amplas garantias de defesa, incluindo o direito ao recurso e do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, previstos nos artigos 32.º e 20.º, ambos da Constituição.
3. Por decisão sumária datada de 8 de Junho de 2010, não foi o recurso admitido quanto às questões a), c) e d). Relativamente à questão a), por se entender que estava em causa um recurso de decisão e não de norma, colocado, portanto, para além dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional; quanto à questão c), por se ter entendido que a mesma não fora suscitada durante o processo, em conformidade com o exigido pela alínea b) do nº 1 do artigo 80.º da Constituição e nos termos do nº 2 do artigo 72.º da LTC; quanto à questão d), por se ter entendido que a norma cuja inconstitucionalidade se pedia que o Tribunal sindicasse não fora efectivamente aplicada pela decisão recorrida.
Relativamente à segunda questão de constitucionalidade colocada pelo arguido ao Tribunal [questão b)], entendeu-se, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 78º-A da LTC, que a mesma era manifestamente infundada.
4. É desta decisão que reclama, para a conferência, A..
Fá-lo nos seguintes termos:
I)
Salvaguardado o devido respeito, não se pode partilhar do entendimento sufragado na douta Decisão Sumária em apreço, nas várias vertentes que comporta, considerando-se antes que se verificam os pressupostos ou requisitos para o conhecimento por esse Alto Tribunal do recurso interposto.
II)
No que respeita especificamente ao Ponto 2 do Requerimento de Interposição de Recurso e à concreta aplicação da norma constante do Artigo 51°-N°s 1 e 2 do Código Penal,
Ressalvado o devido respeito, não se pode concordar com posição expendida na douta Decisão Sumária reclamada – no que ora importa – de que, do ponto de vista substancial, se trata de um
“abusivo expediente consistente em forjar artificialmente uma “norma” para assim aceder à jurisdição constitucional” !...
Com efeito, aquando da concreta interpretação e aplicação do direito aos casos sujeitos é de presumir que os Tribunais (judiciais) têm sempre presente a necessária conformidade da pertinente norma da lei ordinária com a Lei suprema, i.é a Constituição.
Por isso que, é normal um Tribunal (judicial) não fazer aplicação concreta de uma norma da lei ordinária, se – na prévia interpretação que dela faz – a considerar contrária à Constituição.
Destarte, o modo como se fez aplicação daquela norma do Código Penal reconduz-se a que, na prática, se acolheu uma determinada interpretação da mesma norma.
Essa interpretação está necessariamente subjacente e é intrínseca à própria Decisão (condenatória) de concreta aplicação da norma.
ORA, da concreta aplicação da norma afigura-se claramente que a interpretação acolhida foi a de que
“como uma das condições cumulativas ou cumprimento de deveres para beneficiar da suspensão da execução da pena de prisão se impõe ao Arguido a obrigação de abandonar/entregar à Assistente a Casa de Morada de Família quando é certo ademais que está por decidir a atribuição da casa de morada de Família (Acção principal pendente no Tribunal de Família de Braga) e o Inventário para separação de meações, na sequência do divórcio, está também ainda pendente”,
não é inconstitucional.
Do que o Recorrente/Reclamante manifestou a sua discordância, por considerar que – ao contrário – tal interpretação é inconstitucional por violação do direito à habitação do Arguido e do princípio da proporcionalidade, consagrados nos Arts. 65° e 18° da Constituição.
Aquela questão de (in)constitucionalidade normativa foi apenas suscitada – como não podia deixar de ser – quando surgiu, com a prolação e notificação ao Recorrente/ /Reclamante do(s) douto(s) Acórdão(s) em apreço.
E, afigura-se que o foi de forma processualmente adequada.
Daí que, não poderá, agora, o Recorrente/Reclamante ser prejudicado com o não conhecimento do objecto do presente recurso.
III)
No que concerne aos Pontos 3, 4 e 5 do Requerimento de Interposição de Recurso também as questões de (in)constitucionalidade normativa foram apenas suscitadas – como é bom de ver – quando surgiram, com a prolação e notificação ao Recorrente/Reclamante do(s) douto(s) Acórdão(s) em apreço.
E, afigura-se pois que o foram de forma processualmente adequada.
IV)
Trata-se – de resto – de um caso excepcional e anómalo em que o Recorrente não dispôs processualmente da oportunidade de levantar a questão de constitucionalidade e era de todo imprevisível a aplicação da(s) norma(s) ou a interpretação que lhe(s) foi dada, pelo que a questão de constitucionalidade pode nesse caso ainda ser suscitada no próprio Requerimento de interposição de Recurso.
Afigura-se – ressalvado o devido respeito – que não é no Requerimento de Interposição de Recurso mas sim nas Alegações de recurso a produzir no próprio Tribunal Constitucional que o Recorrente terá de “explicar” com algum desenvolvimento e fazer a demonstração da verificação da(s) inconstitucionalidade(s) previamente suscitada(s).
De resto, é jurisprudência pacífica desse Alto Tribunal, que:
“Os critérios jurisprudenciais (referentes ao ónus de suscitação da questão de constitucionalidade durante o processa) não hão-de ser tomados rigidamente, de jeito a não permitir o recurso quando ao interessado se depare uma decisão relativamente à qual não seria razoável exigir uma prognose de um conteúdo e de um despacho inesperados anómalos ou excepcionais. Como igualmente, quando não houve oportunidade processual de suscitar a questão anteriormente, tem lugar a flexibilização dos descritos critérios em benefício do direito de recurso (...) acórdãos nºs 188/93 e 6º/95, publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vols. 24, págs. 495 e segs., e 30, págs. 445 e segs., respectivamente).
Com efeito, não era razoável – antes da prolação do(s) douto(s) Acórdão(s) em
apreço – exigir ao Recorrente/Reclamante a “prognose” ou previsão de uma Decisão de conteúdo “inesperado, anómalo ou excepcional”.
O que teve determinante efeito no sentido da decisão contida naqueles Acórdão(s) da Relação de Guimarães.
Daí que, se devam ter como adequadamente suscitadas, pelo Recorrente, as correspondentes questões de (in)constitucionalidade.
Desse modo, deverá considerar-se que a prévia suscitação das questões de constitucionalidade foram feitas de modo processualmente adequado, perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida.
Termos em que, deverá ser atendida a presente Reclamação e, em consequência ser decidido conhecer do objecto do recurso (art. 78°-A citado).
5. Notificado desta reclamação, pugnou pelo seu indeferimento o representante do Ministério Público junto do Tribunal, dada a sua manifesta improcedência.
II – Fundamentação
6. Como acabou de relatar-se, vem o reclamante discordar da decisão reclamada por duas razões fundamentais:
Em primeiro lugar, e quanto à primeira questão colocada, por sustentar que a mesma se reporta a uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa e não à decisão judicial recorrida que, como bem se sabe, é em si própria insindicável pelo Tribunal Constitucional.
Em segundo lugar, e quanto às restantes questões colocadas [atrás identificadas por questões b), c) e d)], por sustentar basicamente que o teor surpreendente e anómalo da decisão recorrida lhe não permitira a suscitação, durante o processo, do problema de constitucionalidade.
7. Quanto à primeira razão, nenhum motivo há para alterar o entendimento acolhido na Decisão reclamada e a respectiva fundamentação. Com efeito, traduzindo-se a discordância do reclamante no seguinte argumento essencial [retranscreva-se]:
(…) aquando da concreta interpretação e aplicação do direito aos casos sujeitos é de presumir que os Tribunais (judiciais) têm sempre presente a necessária conformidade da pertinente norma da lei ordinária com a Lei suprema, i.é a Constituição.
Por isso que, é normal um Tribunal (judicial) não fazer aplicação concreta de uma norma da lei ordinária, se – na prévia interpretação que dela faz – a considerar contrária à Constituição.
Destarte, o modo como se fez aplicação daquela norma do Código Penal reconduz-se a que, na prática, se acolheu uma determinada interpretação da mesma norma.
Essa interpretação está necessariamente subjacente e é intrínseca à própria Decisão (condenatória) de concreta aplicação da norma.
não se vê como é que pode ela contradizer os fundamentos da decisão reclamada, segundo os quais não constitui objecto idóneo para efeitos de recurso de constitucionalidade a questão colocada o Tribunal, por nela se não conter, não obstante a alusão formal a uma “interpretação” do preceituado nos nºs 1 e 2 do artigo 51.º do Código Penal, a generalidade e a abstracção (ou seja, a independência face à características irrepetíveis do caso concreto) que são próprias das normas, e dos critérios normativos subjacentes às decisões judiciais. Nestes termos, é de manter a decisão de não admitir, quanto a este ponto, o objecto do recurso, por dele não poder conhecer o Tribunal (artigo 280º, nº 1, da CRP).
8. Quanto à segunda razão invocada pelo reclamante para discordar da decisão reclamada, deve concluir-se, igualmente, pela sua improcedência, desde logo por pouco ou nada ter que ver com os fundamentos pelos quais se não conheceu, em parte, do objecto do recurso, e, noutra parte, se considerou que o mesmo era manifestamente infundado.
Vem na verdade agora o reclamante sustentar que o teor “anómalo” e “surpreendente” das duas decisões da Relação (das quais pretendeu interpor recurso) o impediram de suscitar atempada e adequadamente todas as restantes questões de constitucionalidade apresentadas, e acima identificadas como questões b), c) e d).
Deve no entanto recordar-se que, quanto à questão b), o juízo foi o da manifesta não fundamentação, juízo esse emitido ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 78.º-A da LTC. Neste ponto, portanto, nenhuma relação lógica existe entre os argumentos oferecidos pela reclamação e o decidido pela decisão reclamada.
Como nenhuma relação lógica existe entre uma coisa e outra quanto à questão d), visto que, aí, se não conheceu do objecto do recurso por vir nele questionada uma norma que não fora efectivamente aplicada pela decisão recorrida, facto que, por si só e como muito bem se sabe, tornaria inútil qualquer juízo que o Tribunal viesse a proferir sobre a questão.
Só quanto à questão identificada em c) foi a não suscitação adequada do problema de constitucionalidade fundamento para que se não conhecesse do objecto do recurso.
No entanto, ainda aí, nenhuma razão oferece a reclamação apresentada para que se decida agora de modo diverso, visto não demonstrar o reclamante como é que o teor “anómalo” e “surpreendente” da decisão recorrida o terá impedido de, como o exige desde logo a Constituição, suscitar durante o processo a questão que pretenderia ver apreciada pelo Tribunal.
IIII – Decisão
Pelos motivos expostos, é indeferida a reclamação.
Custas pelo reclamante, fixadas em 20 unidades de conta da taxa de justiça.
Lisboa, 22 de Setembro de 2010. – Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão
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