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Processo n.º 394/10
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos, A. reclama (fls. 7867 a 7884), para a conferência prevista no n.º 3 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, do despacho proferido pelo Relator junto da 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em 13 de Abril de 2010 (fls. 7858 a 7860), nos termos do qual foi decidida a não admissão de recurso de constitucionalidade, para efeitos de apreciação de interpretação normativa extraída dos artigos 36º, 110º, 115º, 116º, 127º do Código de Justiça Militar, “quando prevêem que possa ser investigado pela Polícia Judiciária [não militar], sob direcção do MP [não assessorado militarmente] e julgado pela 4ª Vara Criminal de Lisboa [sem juízes militares] um crime de corrupção passiva para acto ilícito cometido quando de processos de aquisição de equipamento militar e para uso militar, aplicando-se em sede punitiva e de forma inconstitucional o artigo 372º do Código Penal e não normativo incriminatório militar”, por violação dos artigos 20º, nºs 1 e 4, 32º, n.º 1, 211º, n.º 3 e 219º, n.º 3, todos da Constituição da República Portuguesa [CRP].
O despacho reclamado recusou a admissão do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, com fundamento simultâneo na falta de suscitação processualmente adequada da questão de inconstitucionalidade e na falta de aplicação efectiva daquela mesma interpretação normativa.
2. Em suma, são estas as linhas orientadoras da reclamação:
i) Na sequência da suscitação de questão prévia, em sede de contestação, foi proferido despacho, na sessão da audiência de julgamento ocorrida em 05 de Junho de 2008, que rejeitou a alegada incompetência da 4ª Vara Criminal de Lisboa, em virtude da aplicação das normas processuais penais gerais e, portanto, da consequente não aplicação das normas processuais penais previstas no Código de Justiça Militar;
ii) Deste despacho foi interposto recurso interlocutório, pelo ora reclamante, tendo o mesmo sido alvo de pronúncia pelo Ministério Público. Contudo, e conforme legalmente determinado, o mesmo não subiu imediatamente nos autos, tendo prosseguido o julgamento. O referido recurso só veio a ser julgado conjuntamente com o recurso interposto da decisão condenatória final, proferida pela 4ª Vara Criminal de Lisboa (cfr. fls. 7743 a 7838-verso);
iii) Em suma, o Tribunal da Relação de Lisboa conheceu, simultaneamente: a) do recurso interlocutório, relativo à questão da competência do tribunal (fls. 7743 a 7746-verso); b) do recurso da decisão final proferida pelo tribunal de primeira instância (fls. 7746-verso a 7848-verso). Quanto ao recurso principal, interposto da decisão final, o Tribunal da Relação de Lisboa recusou conhecer desta parte do objecto do recurso (fls. 7746-verso a 7747-verso), por considerar que “a questão da competência foi proferida na audiência no dia 05/06/2008. Dessa decisão o arguido interpôs recurso (que acabou de ser decidido). O arguido não pode interpor novo recurso da mesma decisão” (fls. 7747);
iv) Em sede de recurso interposto da decisão condenatória final, o reclamante alegou a inconstitucionalidade dos «artigos 36º, 110º, 115º, 116º e 127º do Código de Justiça Militar, bem como ao artigo 23º da Lei nº 101/2003, de 15.11 e ao art.º 5º do Decreto-Lei nº 200/2001, de 13.07, quando prevêem que possa ser investigado pela Polícia Judiciária (não militar), sob a direcção do MP (não assessorado militarmente) e julgado pela 4ª Vara Criminal de Lisboa (sem juízes militares) um crime de corrupção passiva para acto ilícito cometido quando de processos de aquisição de equipamento militar e para uso militar são materialmente inconstitucionais por violação dos artigos 219º, nº 3, 211º, nº 3, 32º, nº 1 (por, na substância, não terem sido asseguradas todas as garantias de defesa) e nºs 1 e 4 do artigo 20º (por não ter sido assegurada/garantida uma tutela jurisdicional efectiva)» (fls. 7871);
v) A seu ver, de modo ilegal, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 02 de Março de 2010, não se teria pronunciado sobre a referida questão de inconstitucionalidade normativa, por considerar que tal questão apenas seria objecto do recurso interlocutório anteriormente interposto (fls. 7746-verso a 7747-verso);
vi) Segundo o seu entendimento, em sede de contestação, o reclamante teria suscitado não só a questão da incompetência da 4ª Vara Criminal de Lisboa, mas também a questão da “natureza intrinsecamente militar” dos factos pelos quais vinha acusado, bem como a questão relativa à própria composição do tribunal militar (alegadamente) competente (fls. 7874 e 7875);
vii) Alega ainda que a decisão proferida em 05 de Junho de 2008, alvo de recurso interlocutório, seria precária e, portanto, só se teria tornado definitiva com o acórdão condenatório final, pelo que o recorrente ainda estaria em tempo de interpor recurso de constitucionalidade desta última decisão, pois os tribunais estariam onerados com o dever de controlar a constitucionalidade de quaisquer normas, nos termos do artigo 204º da CRP até à prolação da decisão condenatória final (fls. 7876 a 7879);
viii) Finalmente, considera o reclamante que a interpretação normativa por si reputada de inconstitucional foi efectivamente aplicada pela decisão recorrida, ainda que de modo implícito, não procedendo a fundamentação segundo a qual as questões relativas a vícios de actos processuais praticados na fase do inquérito não foram alvo de decisão pelo acórdão condenatório final (fls. 7879 a 7883).
3. Em sede de vista, o Procurador-Geral-Adjunto neste Tribunal pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação ora em apreço, nos seguintes termos:
“(…)
2. Como resultado do Acórdão da Relação de Lisboa que negou provimento ao recurso interposto da decisão de 1.ª instância e se pode ver claramente pelo despacho que não admitiu o recurso para este Tribunal, a única questão apreciada pela 1.ª instância que podia englobar o objecto do recurso para a Relação era a relacionada com a competência do Tribunal (daquela Vara Criminal) para julgar os crimes pela prática dos quais o arguido vinha pronunciado.
3. Todas as outras questões, relacionadas com os vícios do inquérito e com a investigação, porque questões novas e apenas levantadas no recurso, não foram nem tinham de ser apreciadas pela Relação, sendo ainda de realçar que o recorrente não invocou qualquer nulidade do acórdão por omissão de pronúncia.
4. Assim sendo, naturalmente que as questões de inconstitucionalidade relacionadas com tais normas não foram apreciadas, e, não integrando elas o objecto do recurso tal com a Relação o definiu e posteriormente conheceu, poderíamos mesmo dizer que, neste âmbito, elas não foram aplicadas na decisão recorrida.
5. No recurso, a questão de competência do Tribunal não vem autonomizada mas surge apenas no seguimento lógico de todas as outras que anteriormente referimos.
6. Por outro lado, tendo o arguido sido pronunciado e estando condenado pela prática de crimes de corrupção passiva para acto ilícito (artigos 372.º, n.º 1 e 386.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal) e do crime de branqueamento previsto e punido pelo artigo 368.º-A, n.ºs 1, 2, 3 e 4 do Código Penal, o que o arguido entende é que as condutas deviam integrar o crime previsto no artigo 36.º do Código de Justiça Militar (“Corrupção passiva para a prática de actos ilícitos”).
7. Ora, a competência e composição do tribunal para a realização do julgamento é uma mera decorrência da não qualificação do crime como estritamente militar.
8. Deste modo, se alguma questão de inconstitucionalidade tivesse de ser suscitada, seria a da qualificação dos crimes em causa, como estritamente militares.
9. O recorrente, durante o processo e de forma processualmente adequada, nunca suscita qualquer inconstitucionalidade normativa de uma questão com aqueles contornos.
10. Numerosas vezes o Tribunal Constitucional se pronunciou sobre a constitucionalidade das normas que previam e puniam determinadas condutas como “crimes essencialmente militares” (anterior Código de Justiça Militar) ou “crimes estritamente militares” (actual Código de Justiça Militar).
11. Nesses processos, fora as situações em que era o próprio tribunal a recusar a aplicação das normas, os arguidos questionavam aquela qualificação, entendendo que devia ser aplicável o Código Penal ou a legislação penal comum.
12. Bem se compreende que assim fosse, uma vez que as penas pelos “crimes essencialmente militares” eram mais pesadas do que as aplicáveis aos correspondentes crimes na legislação penal comum e o processo penal militar, na vigência do anterior Código de Justiça Militar, era mais limitador dos direito de defesa dos arguidos.
13. Ora, após a extinção dos Tribunais Militares em tempo de paz (pela revisão constitucional de 1997), aplicando-se, hoje, aos “crimes estritamente militares” o processo penal comum, apenas com algumas especificidades, e continuando os crimes a ser mais severamente punidos (como é o caso da corrupção), não é fácil entender que seja o próprio arguido a pugnar pela aplicação do Código de Justiça Militar.
14. Aliás, não identificando minimamente porque entende que a integração de um juiz militar no tribunal colectivo de julgamento (artigo 105º, nº 4, da Lei nº 105/2003, de 10 de Dezembro), reforça o seu direito de defesa e considerando que a pena na legislação penal comum é mais pesada, podemos mesmo dizer que o recorrente pretende que lhe seja aplicado o regime menos favorável.
15. Assim, nestas circunstâncias, a nível dos preceitos constitucionais invocados, como os artigos 20.º e 32.º da Constituição, sempre o recurso seria de considerar manifestamente infundado.
16. Por tudo o exposto, deve indeferir-se a reclamação.” (fls. 7892 a 7895)
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Proferida decisão sobre a questão da competência, em 5/6/2008, interpôs o ora reclamante recurso dela, não tendo suscitado qualquer questão de inconstitucionalidade normativa em relação às normas ora questionadas (fls. 6155 a 6167). Razão pela qual o Tribunal da Relação, ao decidir esse recurso interlocutório, no acórdão de 2/3/2010, não tenha julgado nenhuma questão de inconstitucionalidade. E razão igualmente para que, nesse contexto, não esteja aberta ao ora reclamante, via de recurso para este Tribunal.
Há, assim, neste ponto, que confirmar a decisão ora reclamada.
5. Ao julgar o recurso do acórdão final diz o Tribunal:
“A decisão da competência foi proferida na audiência no dia 05/06/2008. Dessa decisão o arguido interpôs recurso (que acabou de ser decidido). O arguido não pode interpor novo recurso da mesma decisão. Pelo que, nesta parte, as conclusões não têm objecto útil, incluindo a questão da inconstitucionalidade que não tinha sido incluída no primeiro recurso e que tem a ver com normas que não foram aplicadas no acórdão final. O recurso principal não é o lugar próprio para o arguido completar o recurso interlocutório, introduzindo questões novas.” (p. 7742).
Ora, chegados a este ponto, importa então determinar se a interpretação normativa reputada de inconstitucional por parte do ora reclamante foi (ou não) efectivamente aplicada pelo acórdão, de 2 de Março de 2010, de que foi interposto o recurso para este Tribunal que não foi admitido. Na verdade, o Tribunal Constitucional só dela pode conhecer se tal tiver sucedido, conforme impõe o artigo 79º-C da LTC.
Note-se que não cabe a este Tribunal decidir sobre se o Direito infra-constitucional aplicado – designadamente, aquele que diz respeito à definição dos objectos do recurso interlocutório e do recurso principal – foi adequada ou inadequadamente aplicado. Independentemente da determinação sobre qual o objecto do recurso principal interposto – que acórdão recorrido entende não integrar a questão de inconstitucionalidade – certo é que o Tribunal Constitucional apenas pode conhecer da constitucionalidade de interpretações normativas efectivamente aplicadas pelo tribunal recorrido.
Sucede que, conforme nota a decisão reclamada, o acórdão proferido em 02 de Março de 2010, pela 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa (fls. 7743 a 7838-verso), nunca interpreta as normas reputadas de inconstitucionais pelo ora reclamante nos precisos termos em que este configura o objecto do presente recurso. Se atentarmos naquele acórdão, quando este aprecia as questões de Direito colocadas pelo ora reclamante, em sede de recurso da decisão final, apenas conclui que, ao contrário do afirmado pelo (então) arguido:
i) Os elementos típicos do crime de corrupção passiva para prática de acto ilícito (artigo 372º do CP) se encontram preenchidos (cfr. fls. 7824-verso a 7825-verso);
ii) É possível a punição pelo crime de branqueamento, mesmo quando os valores alvo daquela operação provêm do próprio autor do referido crime (cfr. fls. 7825-verso a 7826);
iii) Deu-se por provado o crime de corrupção passiva para prática de acto ilícito, pelo que é admissível a punição a título de branqueamento (fls. 7826);
iv) Não se deram por verificados os pressupostos da aplicação do regime do crime continuado, na medida em que não terá havido solicitação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente (cfr. fls. 7826 a 7826-verso);
v) Não há motivos que justifiquem quer a diminuição da medida concreta da pena aplicada quer a suspensão da mesma (cfr. fls. 7837 a 7838).
Foram estas – e apenas estas – as questões apreciadas pela decisão recorrida, no que diz respeito ao recurso interposto a título principal. E, note-se, o ora reclamante nem sequer suscitou nos autos recorridos qualquer questão respeitante a eventual omissão de pronúncia relativamente a qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, incluindo aquela que constitui o objecto do presente recurso.
6. Assim sendo, mais não resta do que concluir pela improcedência da presente reclamação, na medida em que a questão de constitucionalidade não foi suscitada de modo processualmente adequado e a interpretação normativa que constitui objecto do presente recurso não foi efectivamente aplicada pela decisão recorrida, conforme impõe o artigo 79º-C da LTC.
III – Decisão
Nestes termos, pelos fundamentos supra expostos e ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 77º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 14 de Julho de 2010. – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão
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