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Processo n.º 888/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Vaz Ventura
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, com o NUIPC 3/00.5TELSB, do Tribunal Judicial de Viseu, o Ministério Público deduziu acusação contra A., B., C., D., Lda, e E., Lda. O IFAP – Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, I.P., constituiu-se assistente, acompanhou a acusação do Ministério Público, e formulou pedido de indemnização civil contra os arguidos.
2. Antes de iniciado o julgamento, e para o que interessa ao presente recurso, foi proferido despacho, a fls. 2839, quanto ao requerimento de arguidos para a realização de perícia, sobre o qual incidiu recurso, apresentado pelos arguidos D., S.A, A., E., Lda, e B.. Paralelamente, a arguida D., Lda, interpôs recurso da decisão que, no decurso do julgamento, indeferiu requerimento de recusa de assessores nomeados.
3. A final, foram os arguidos A., B., C., D., Lda., e E., Lda, condenados pela prática de um crime de fraude na obtenção de subsídio, p. e p. pelo artigo 36.º, n.ºs 1, alíneas a), b), c), 2, 5, alínea a) e 8, do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro (e também artigos 3.º e 7.º quanto às arguidas sociedades). Ao primeiro arguido foi imposta a pena de cinco anos de prisão e aos segundo e terceiro a pena de quatro anos de prisão. Por seu turno, as arguidas D., Lda, e E., Lda., foram condenadas, respetivamente, nas penas de multa de €240.000,00 e €36.000,00. Mais foram solidariamente condenados os arguidos A., B., C. e a sociedade D., Lda. a pagar ao IFAP, a título de indemnização civil, a quantia de €10.182.740,17, acrescida de juros de mora, à taxa legal, “sobre o total de cada restituição, desde a data do seu recebimento até efetivo e integral pagamento, sem prejuízo (...) das amortizações realizadas”; e bem assim os arguidos A., B., C. e a sociedade E., Lda, a pagar ao IFAP, igualmente a título de indemnização civil, a quantia de €100.175,49, acrescida de juros de mora, à taxa legal, sobre o total de cada restituição, desde a data do seu recebimento até efetivo e integral pagamento.
4. Todos os arguidos recorreram para o Tribunal da Relação de Coimbra, impugnando a condenação criminal e em indemnização civil.
5. Por acórdão proferido em 29 de julho de 2011, o Tribunal da Relação de Coimbra decidiu rejeitar, por ilegitimidade, o recurso intercalar incidente sobre o despacho de fls. 2839, e, conhecendo dos demais recursos, julgou-os improcedentes, confirmando o decidido pelo Tribunal Judicial de Viseu.
6. Os arguidos C., A., B., bem como as arguidas D., Lda, e E., Lda, suscitaram a nulidade desse acórdão, com diversos fundamentos. Por acórdão proferido 30 de maio de 2012, o Tribunal da Relação de Coimbra julgou improcedentes todas as nulidades suscitadas.
7. Nessa sequência, foram apresentados diversos recursos para o Tribunal Constitucional, a saber:
7.1. Pela arguida D., Lda, restrito à apreciação do recurso que incidiu sobre o despacho de fls. 2839 (fls. 6605 a 6615);
7.2. Em requerimento conjunto, pelos arguidos A. e B., bem como pelas arguidas D., Lda, e E., Lda. (fls. 7023 a 7040); e
7.3. Pelo arguido C. (fls. 7081 a 7093).
8. Paralelamente, os arguidos, na qualidade de demandados civis, interpuseram recurso do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 29 de junho de 2011, na vertente cível, para o Supremo Tribunal de Justiça. Admitidos esses recursos e subido o processo ao Supremo Tribunal de Justiça, foi proferido pelo juiz conselheiro relator nesse Tribunal despacho a ordenar a devolução dos autos à Relação de Coimbra “para que aí se prossiga o processamento dos recursos para o TC e, se recebidos, se lhes confira prioridade”.
9. Por despacho proferido a fls. 7198, foram admitidos os recursos interpostos pelos arguidos para o Tribunal Constitucional.
10. Neste Tribunal, foram os recorrentes convidados pelo relator, nos termos do n.º 6 do artigo 75.ºA da LTC, a dar cabal cumprimento ao disposto nos n.ºs 1 e 2 do mesmo preceito.
11. Vieram, então, os recorrentes apresentar as seguintes peças processuais.
11. 1. Pela arguida D., Lda:
“(...)
I – Elementos comuns às (duas) normas cuja fiscalização da inconstitucionalidade é suscitada no presente recurso:
a. O presente recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art. 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (devidamente atualizada), assim como, da alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
b. Através do presente requerimento, são sujeitas a fiscalização de constitucionalidade duas normas de nível legal:
i) A primeira é a norma do art. 401.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal (CPP) na precisa interpretação que lhe dá o Tribunal da Relação de Coimbra (de resto, totalmente inédita e surpreendente e que, antecipe-se, vem a ser a norma que consubstancia e densifica o pressuposto processual da legitimidade);
ii) A segunda é a norma (rectius, o conjunto de normas) atinente à regulação e prolação da prova pericial – mais precisamente o art. 151.º do CPP –, também aqui na singular interpretação efetuada pelo tribunal de primeira instância e agora sufragada pelo Tribunal da Relação de Coimbra.
II – Elementos próprios da fiscalização da inconstitucionalidade da norma do artigo 401.º, n.º 1, alínea b) do CPP.
1. O Tribunal da Relação de Coimbra rejeitou, em conferência, o recurso interlocutório interposto pela Recorrente do despacho exarado a fls. 2.839, que indeferiu a realização da perícia colegial, por ter entendido, de forma absolutamente surpreendente e gritantemente atentatória da CRP, que a Recorrente não tinha legitimidade para recorrer.
2. O teor desse despacho do Tribunal de primeira instância é o seguinte:
“Na contestação pretende-se, ainda, a realização de perícia colegial.
Ora, no que tange à perícia requerida e aos quesitos formulados somos do entendimento que tais questões podem ser esclarecidas quer com a prova documental junta aos autos, quer com os peritos já indicados em audiência de julgamento ou com as testemunhas e técnicos indicados quer pela acusação quer pela defesa.
A isto acresce a circunstância de alguns dos quesitos serem matéria de direito e não factual.
Pelo exposto, para já, indefere-se a sua realização, sem prejuízo de vir a ser ordenada em relação a alguns aspetos, caso o tribunal assim o entenda no decurso da audiência”.
3. O recurso interlocutório interposto pela Recorrente foi admitido pelo Tribunal de 1.ª Instância e veio a subir a final com o recurso interposto da decisão condenatória.
4. A decisão de rejeição do recurso do despacho interlocutório de fls. 2.839 foi proferida em conferência pelo Tribunal da Relação de Coimbra e é insuscetível de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
5. O Tribunal da Relação de Coimbra considerou as seguintes disposições do artigo 401.º do Código de Processo Penal:
“1 Têm legitimidade para recorrer:
(…)
b) O arguido (...), de decisões contra ele proferidas;
(...)
2. Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir.”
6. No que ao interesse em agir diz respeito, o Tribunal da Relação de Coimbra entendeu que, para o exercício do direito à defesa e ao contraditório dos Arguidos, “em igualdade de armas com a acusação”, era necessário utilizar a via do recurso como meio de impugnação do despacho que indeferira a realização da perícia requerida.
7. Sucede, porém, que, não obstante o Tribunal da Relação de Coimbra ter entendido que a Recorrente possuía interesse em agir, concluiu, de forma totalmente inesperada e surpreendente, que a mesma não tinha legitimidade para recorrer, porquanto:
“... atentos os termos em que foi ponderada a sua pretensão (relegando-se para ulterior momento a possibilidade ainda de realização da diligência probatória em causa, e acaso viesse ulteriormente a ter-se por necessária) não podemos afirmar, desde já, que o despacho recorrido os prejudicou em uma qualquer das dimensões invocadas. Com efeito, apenas hipotética e eventual ulterior apreciação da pretensão dos arguidos, denegando-lhes o solicitado, lhes concederia legitimidade – porquanto afetados – para, então sim, poderem controverter o decidido”.
8. A fundamentação do Acórdão recorrido assume expressa e ostensivamente uma leitura interpretativa da norma de legitimidade que é nova, inesperada, restritiva e contrária à Constituição.
9. É necessário frisar e sublinhar que o Tribunal da Relação assume explicitamente que está a fazer uma interpretação da norma de legitimidade da alínea b) do n.º 1 do art. 401.º do CPP.
10. Com efeito, segundo este Acórdão, a cláusula de “para já” ou até ver torna o indeferimento expresso, formalizado num dado momento processual, num dano ou prejuízo puramente hipotético ou virtual.
11. Com o triunfo de tal conceção, ficaria encontrado o remédio (ou o veneno) que faria desaparecer a legitimidade de qualquer recurso: bastaria aos tribunais aditar aos seus despachos de indeferimento uma cláusula de provisoriedade ou revisão.
12. Eis o que decretaria o óbito do princípio dos dois graus de jurisdição (ao menos, dois..!).
13. Eis o que viola e vulnera intoleravelmente o art. 32.º, n.º 1, da Constituição e, bem assim, o princípio do Estado de Direito.
14. A norma jurídica cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, é, pois, a norma do art. 401.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, na interpretação restritiva do conceito de legitimidade do arguido em processo penal para recorrer, feita pelo Tribunal da Relação de Coimbra a fls. 32 a 34 do acórdão prolatado, que redunda num segmento normativo segundo o qual: “O arguido não tem legitimidade para recorrer do despacho que indefere a realização de prova pericial se o tribunal, no respetivo despacho de indeferimento, equacionar a eventualidade de, ainda no decurso da audiência de julgamento, poder reponderar parcialmente a sua decisão, mesmo que o tribunal não tenha efetuado tal reponderação e de ter até admitido, logo e sem mais, o dito recurso.”.
15. Tal interpretação ofende violentamente a Constituição da República Portuguesa, designadamente, o art. 32.º, n.º 1, que assegura aos arguidos todas as garantias de defesa, em especial o recurso.
16. Porque esta interpretação da norma de legitimidade é totalmente inovadora e surpreendente, nunca a ora Requerente invocou, em momento anterior ao da interposição do presente recurso, a inconstitucionalidade do art. 401.º, n.º 1, alínea b), do CPP.
17. Só não o fez, porque, razoável e diligentemente, não podia nunca ter antecipado que o Tribunal da Relação de Coimbra viesse a perfilhar uma interpretação logicamente viciada e totalmente contrária ao espírito e à letra das garantias constitucionais de processo criminal.
18. Na verdade, jamais, em caso e tempo algum, poderia a Requerente contar com uma leitura da norma de legitimidade que excluísse do direito ao recurso arguidos que viram formal e expressamente indeferido um requerimento de produção de prova. Tanto mais que o tribunal a quo afirma apertis brevis que indefere a pretensão de realização da prova pericial requerida e, em coerência, de imediato admitiu sem quaisquer peias ou reservas o requerimento de recurso.
19. Importa insistir que uma tal interpretação, por tão contrária ao mais elementar senso jurídico, é tudo menos expectável, trata-se de uma verdadeira decisão-surpresa.
20. Nenhum jurista, nem os que gozam de dons divinatórios, poderia contar com uma aplicação da norma de legitimidade feita em termos tão restritivos e, ainda por cima, estribada numa fundamentação explícita e clara.
21. Daí que se deva tomar esta decisão da Relação de Coimbra como uma verdadeira e própria decisão-surpresa, ao forjar uma novel e inédita corrente interpretativa para o art. 401.º, n.º 1, alínea b).
III – Elementos próprios da fiscalização da inconstitucionalidade da norma do artigo 151.º do CPP.
22. Soma-se à interpretação de normal legal profanadora da Lei Fundamental anteriormente referida a interpretação implícita - mas patente – no Acórdão da Relação de Coimbra acerca das normas respeitantes à prova pericial, a saber, e em concreto, do art. 151.º do CPP.
23. Na verdade, o Tribunal da Relação de Coimbra, ao rejeitar o recurso interposto pela Requerente, confirmou a decisão do 2º Juízo Criminal de Viseu que indeferiu a prova pericial requerida, em alegado detrimento da prova documental e testemunhal.
Ou seja, o Tribunal da Relação de Coimbra sufragou a interpretação inconstitucional do art. 151.º do CPP levada a cabo pelo 2.º Juízo Criminal de Viseu nos termos seguintes:
“Na contestação pretende-se, ainda, a realização de perícia colegial.
Ora, no que tange à perícia requerida e aos quesitos formulados somos do entendimento que tais questões podem ser esclarecidas quer com a prova documental junta aos autos, quer com os peritos já indicados em audiência de julgamento ou com as testemunhas e técnicos indicados quer pela acusação quer pela defesa.
(…)”
24. Tal interpretação vulnera a Constituição da República Portuguesa, designadamente, o art. 32.º, n.º 1, n.º 3 e n.º 5 da 2.ª parte do número 5 da CRP, que, em nome da radical desigualdade material de partida entre a acusação e a defesa, assegura aos arguidos todos os direitos e instrumentos necessários e adequados à salvaguarda da sua posição, em especial, o direito à organização da defesa e o princípio do contraditório.
25. Tais garantias de defesa e igualdade de armas e, em particular, o direito à organização da defesa e o princípio do contraditório, todos de bitola constitucional, constituem, assim, o padrão de controlo daquela interpretação judicial que se funda na solução normativa segundo a qual “quando a perceção e apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, pode ser livremente recusada pelo Tribunal a prova pericial requerida pelo arguido e substituída pela prova documental e testemunhal”.
26. A desconformidade constitucional de uma tal interpretação foi suscitada pela Requerente quando do recurso, interposto junto do Tribunal da Relação de Coimbra, do despacho interlocutório do 2.º Juízo Criminal de Viseu, de fls. 2.839, que recusou a perícia requerida pelos arguidos.
27. Os passos do recurso apresentado em que a Requerente alude à questão constituem, em especial, os artigos 14.º a 30.º das alegações de recurso do despacho interlocutório e as alíneas j), k), p) a u) e w) das respetivas conclusões (que no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra constam identificadas, a páginas 24, com os números 10, 11, 16 a 19 e 21).”
11.2. Pelos arguidos A., B., D., Lda, e E., Lda.:
“A., B. D., Lda. e E., Lda., Arguidos nos autos supra identificados, em que são Recorridos o Ministério Público e outros, notificados que foram do douto despacho do Exmo. Senhor Conselheiro Relator para vir “dar cabal cumprimento” ao disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 75.º - A da Lei do Tribunal Constitucional, relativamente ao requerimento de interposição de recurso a fls.7023 a 7040, vêm dizer o seguinte:
Excelências:
O recurso interposto pelos Recorrentes respeita ao acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de junho de 2011 e ao acórdão da mesma Relação de Coimbra que, em complemento do primeiro, em 30 de maio de 2012, julgou improcedentes as nulidades opostas pelos Arguidos ao segmento penal da decisão.
A – Elementos comuns às normas cuja fiscalização da inconstitucionalidade é suscitada no presente recurso:
i. O recurso é interposto ao abrigo da al. b) do n.º 1 do art. 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (devidamente atualizada), assim como da alínea b) do n.º 1 do art.º 280.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
ii. São sujeitas a fiscalização de constitucionalidade as seguintes normas:
1) Em primeiro lugar, as normas dos arts. 39.º, n.º 1 alíneas c) e d), do 40.º do Código de Processo Penal (CPP) e dos n.ºs 1 e 2 do art.º 649.º do Código de Processo Civil (CPC);
2) Em segundo lugar, a norma (rectius, o conjunto de normas) atinente à regulação e prolação da prova pericial – mais precisamente os arts. 151.º, 152.º n.º 1 e 153.º n.º 2 do CPP;
3) Em terceiro lugar, a norma do parágrafo 3 do art.º 267.º do Tratado da União Europeia;
4) Finalmente, e em quarto lugar, as normas dos arts. 1.º, alínea a) e 4.º, alínea a) da Lei n.º 12/83, de 24 de agosto, e do art.º 36.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro.
Explicitemos, em pormenor, cada uma das situações:
B – As inconstitucionalidades em concreto suscitadas
1) Da inconstitucionalidade das normas dos art.º 39.º, n.º 1, alíneas c) e d) e 40.º do CPP e do art.º 649.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, na aplicação que delas é feita pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de junho de 2011, na parte que decidiu o recurso interlocutório designado pela letra B (págs. 26 e seguintes e 35 e seguintes do Acórdão recorrido), confirmado pelo Acórdão de 30 de maio de 2012 (pág. 4)
a) Os Arguidos recorreram para o Tribunal da Relação de Coimbra do despacho de fls. 2.884 do Tribunal de 1.ª instância que nomeou como assessores técnicos do Tribunal, ao abrigo do art,º 649.º, n.º 1 do CPC, ex vi art.º 4.º do CPP, os inspetores da ASAE, a Sr.ª Dr.ª F. e o Sr. Eng.º G..
b) Fundou-se o recurso, além da pertença dos aludidos assessores a um órgão de polícia criminal, na sua intervenção direta, como testemunhas e autuantes, enquanto funcionários do Instituto da Vinha e do Vinho, em procedimentos criminais e de contraordenação que antecederam estes autos, tudo o que fere e atinge a sua imparcialidade.
c) Pelo acórdão de 29 de junho de 2011, o Tribunal da Relação de Coimbra julgou improcedente esse recurso, considerando não constituir o invocado “qualquer facto que objetivamente pudesse fundamentar o temor invocado (...)” na nomeação dos aludidos assessores técnicos, que “(...) cinge-se à circunstância da anterior participação de ambos os assessores nomeados (quer como testemunhas, quer como autuantes) em processos nos quais pelo menos ela (arguida D.) figuraria enquanto participada ou alvo de acusação (...)” (p. 38).
d) Ao fazê-lo, o Tribunal da Relação de Coimbra assume e afirma uma interpretação/aplicação que resulta no segmento normativo segundo o qual a circunstância da anterior participação dos assessores nomeados (quer como testemunhas, quer como autuantes) em processos nos quais os Arguidos figuraram enquanto participados ou alvo de acusação, não constitui fundamento da sua recusa.
e) Tal importa, mesmo que implicitamente, uma interpretação/aplicação dos artigos 39.º, n.º 1 alíneas c) e d) e 40.º do CPP e dos n.ºs 1 e 2 do art.º 649.º do CPC que atenta de forma grosseira contra os princípios básicos do Estado de Direito, das garantias de defesa e dos ditames de um processo justo e equitativo, plasmados nos arts. 2.º e 32.º, n.º 1 da CRP e no art.º 6.º n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH).
f) O artigo 649.º do CPC, que serviu de fundamento à nomeação dos assessores, dispõe que “ao técnico podem ser opostos os impedimentos e recusas que é possível opor aos peritos”. E aos peritos, por efeito do disposto no artigo 47.º, n.º 1 do CPP, é aplicável com as necessárias adaptações o regime de impedimentos, escusas e suspeições dos juízes constantes dos artigos 39.º e seguintes do CPP.
g) O artigo 39.º do CPP determina que “nenhum Juiz pode exercer a sua função num processo penal – aqui leia-se perito ou assessor técnico – “(...) c) Quando tiver intervindo no processo como (...) órgão de polícia criminal (...) ou perito; d) Quando, no processo, tiver sido ouvido ou dever sê-lo como testemunha.”
h) Considerando a jurisprudência, de modo praticamente unânime, que a existência de impedimento afeta sempre a imparcialidade e independência do juiz, o mesmo deverá entender-se relativamente aos seus assessores técnicos, posto que o prévio envolvimento destes no processo é, necessariamente, suscetível de condicionar a sua imparcialidade objetiva em futuros juízos, convicções e decisões que terá de transmitir ao juiz.
i) Entender o contrário põe em causa o direito dos Arguidos a um processo justo e equitativo previsto, designadamente, no art.º 32.º, n.º 1, da CRP, assim como, no artigo 6.º, n.º 1, da CEDH, segundo o qual “qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente (...) por um tribunal independente e imparcial, estabelecido por lei, o qual decidirá (...) sobre o funda mento de qualquer acusação em matéria penal dirija contra ela”.
j) Os Arguidos suscitaram a questão da inconstitucionalidade aduzida, designadamente, nas conclusões 3 a 7 e 9 a 13 das suas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra e no ponto 26 do requerimento em que arguiram a nulidade do Acórdão recorrido de 29 de junho de 2011, confirmado pelo acórdão de 30 de maio de 2012.
2) Da inconstitucionalidade das normas dos arts. 151.º, 152.º n.º 1. e 153.º n.º 2 do CPP, na aplicação/interpretação que delas é feita pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de junho de 2011, na parte que confirma a sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Viseu (págs. 239 e seguintes do Acórdão) e reiterada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 30 de maio de 2012 (pág. 4 e 5)
a) A consideração da prova pericial produzida em sede de inquérito como prova documental – dado que as perícias haviam sido realizadas ao arrepio das normas constantes dos arts. 151.º e seguintes do CPP –, conjugada com o indeferimento da realização da perícia colegial requerida pelos Arguidos – objeto de recurso autónomo –, impediu o cabal exercício do direito ao contraditório e traduziu-se numa desigualdade gritante de armas entre a Acusação e a Defesa.
b) Os Arguidos alegaram, com efeito, profusamente, nas suas alegações de recurso para a Relação de Coimbra, que o Tribunal de 1.ª Instância, não obstante ter formalmente desconsiderado os relatórios juntos aos autos como prova pericial, na valoração dos mesmos e, bem assim, dos depoimentos dos seus autores (também eles desconsiderados como peritos), assumiu-os como se verdadeiros juízos técnico-científicos se tratassem.
c) A realização de uma perícia, tendo em conta o estatuto conferido ao perito, sujeito a compromisso de honra, com a possibilidade de escusa e recusa (153.º n.º 2 do CPP), aliado à qualificação técnico-científica que lhe é exigida (art.º 152.º n.º 1 do CPP), permite garantir a possibilidade de ser obtido um juízo técnico rigoroso, alcançado de forma equidistante da Defesa e da Acusação.
d) O Tribunal de 1.ª instância ignorou, pura e simplesmente, a circunstância de inexistir nos autos qualquer prova técnica e cientifica comprovativa da adição de álcool ao vinho exportado por parte dos Arguidos. E de esse constituir o único meio possível e admissível de prova dessa mesma adição, isto é, da alegada falsificação do vinho.
e) O juízo do Tribunal de 1.ª Instância, numa questão exclusivamente técnico-científica, fundou-se, pois, em critérios próprios da livre apreciação da prova (testemunhal e documental) e não, como se impunha, considerando a especificidade do valor probatório da perícia.
f) Ora, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de junho de 2011, reiterado pelo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 30 de maio de 2012, ao julgar improcedente a argumentação dos Arguidos no que concerne a esta magna questão, atentou, também ele, de forma direta, contra o princípio do contraditório e da igualdade de armas entre a Defesa e a Acusação.
g) As normas dos arts. 151.º, 152.º, n.º 1, e 153.º, n.º 2, do CPP, na aplicação/interpretação implícita que delas faz o Tribunal da Relação de Coimbra, violam ostensivamente as garantias de defesa e o direito a um processo equitativo, bem como o princípio in dubio pro reo, consagrados nos arts. 2.º e 32.º, n.ºs 1, 2 e 5, 2.ª parte, da CRP.
h) A interpretação desenvolvida pelo Tribunal da Relação de Coimbra, a fls. 239 a 263 do acórdão de 29 de junho, resulta num segmento normativo segundo o qual “a realização de perícia em desconformidade com os arts. 151.º, 152.º, n.º 1, e 153.º, n.º 2, do CPP permite, sob ponto de vista formal, a consideração pelo tribunal dos respetivos relatórios periciais juntos aos autos como prova documental e dos depoimentos dos seus autores como testemunhas, atribuindo, todavia, a um e a outro meio de prova um caráter técnico-científico que só a prova pericial permite”.
i) O que é tanto mais decisivo e grave quando a dita prova documental e testemunhal não procede de peritos ou expertos independentes, mas consubstancia o próprio acervo probatório empregado pela acusação para carregar os arguidos a juízo, o que, em última análise, agrilhoa e fere a própria ideia de processo e julgamento e firma a de uma dupla acusação.
j) Os Arguidos suscitaram a questão da inconstitucionalidade aduzida, designadamente, a páginas 8, 54, 61, 62, 78 a 84, 152, 153, 165, t69, 178, 186, 195 a 210, 230, 234, 279 a 280 e 300 das alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, nas conclusões II, XIII, XV, XLV, XLVI, XLVII, LVII, LVIII, LIX, LXXI, LXXIII, LXXIV, LXXV, LXXVIII, LXXIX, LXXX, LXXXII, XCVII, XCVIII, XCX, CVII, CXXVIII e ainda no requerimento em que arguiram a nulidade do Acórdão de 29 de junho de 2011 (pontos 61 a 63).
3) Da inconstitucionalidade do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de junho de 2011 e do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 30 de maio de 2012, por omissão do dever de reenvio
a) Os pressupostos do crime em que os Arguidos foram condenados – fraude na obtenção de subsídio consistente na atribuição de restituições à exportação de vinho de mesa para fora da Comunidade - são concretamente definidos pela regulamentação comunitária, nomeadamente pelos Regulamento n.ºs 351/79, 822/87 e 3665/87.
b) Ou seja, embora o tipo legal de crime esteja previsto no art.º 36.º do Decreto-Lei n.º 24/84, de 20 de janeiro, a verificação dos requisitos materiais e formais de que dependia a atribuição, ou não, da ajuda à restituição está inteiramente dependente do direito comunitário.
c) Esta questão é desenvolvida pelo Tribunal da Relação de Coimbra, designadamente, a páginas 266 a 280 do acórdão de 29 de junho de 2011 e a páginas 2 e 3 (por remissão da página 5) do acórdão de 30 de maio de 2012.
d) Ora, perante as dúvidas de interpretação dos arts. 67.º, nº 1 do Regulamento n.º 822/87, 13º do Regulamento n.º 3.665/87, 1.º, n.º 1 e n.º 3, alínea d), 2.º, n.º 1 e 3.º, n.º 1 do Regulamento n.º 351/79, bem como do art.º 24.º, n.º 1 do Regulamento (CE) n.º 883/2001 da Comissão, de 24 de abril, bem como da questão relativa à inaptidão e incapacidade do método comunitário para detetar a falsificação de vinho pela adição de álcool, impunha-se ao Tribunal da Relação de Coimbra que efetuasse, ex oficio, o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia.
e) Na verdade, estando em causa uma questão de interpretação de Direito Comunitário primário, que assume decisiva relevância para a questão sub judice – existência de práticas enológicas proibidas –, e não sendo admitido recurso do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de junho de 2011, de acordo com a alínea f) do n.º 1 do art.º 400.º do CPP, deveria este Tribunal ter suspendido a presente instância e submetido ao Tribunal de Justiça da União Europeia, ao abrigo do disposto no paragrafo 3 do art.º 267.º do Tratado da União Europeia, a questão prejudicial da interpretação das referidas normas comunitárias.
f) Ao não dar cumprimento ao dever de reenvio imposto pelo parágrafo 3 do art.º 267.º do TCE, o Tribunal da Relação de Coimbra interpretou/aplicou a referida norma em violação dos n.ºs 1 a 4 do art.º 8.º da CRP.
g) Uma tal interpretação/aplicação é, ainda, inconstitucional por violação do princípio do juiz legal/natural, consagrado nos arts. 32.º, n.º 9, 216.º, n.º 1 e 217.º, n.º 3, da CRP, uma vez que implica a negação da competência exclusiva atribuída ao TJUE para julgar questões prejudiciais relativas à interpretação de normas do direito comunitário, quando as mesmas são suscitadas em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno.
h) Mas não é só: a interpretação do parágrafo 3 do art.º 267.º do TCE no sentido propugnado pelo Tribunal da Relação de Coimbra implica, também, a inconstitucionalidade desta norma à luz do n.º 1 do art.º 277.º da CRP.
i) A interpretação implícita que é feita do parágrafo 3 do art.º 267.º do TCE pelo Tribunal da Relação de Coimbra resulta num segmento normativo segundo os qual “O TJUE não tem competência exclusiva para julgar questões prejudiciais relativas à interpretação de normas do direito comunitário, quando as mesmas são suscitadas em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, pelo que não é obrigatório o reenvio prejudicial das questões desta natureza ao TJUE”.
j) Os Arguidos suscitaram a questão da inconstitucionalidade aduzida, relativamente ao segmento normativo referido na anterior alínea i), no requerimento em que arguiram a nulidade do Acórdão recorrido (ponto 98 até final, em especial nos pontos 117 a 119 e no pedido final).
k) A interpretação perfilhada na espécie é, ainda, desenvolvida pelo Tribunal da Relação de Coimbra a páginas 2 e 3 (por remissão da página 5) do acórdão de 30 de maio de 2012, que julgou improcedente a nulidade invocada pelos Arguidos, e resulta no segmento normativo segundo o qual “O Tribunal Judicial que, em matéria penal, julga em última instância não está obrigado a proceder ao reenvio prejudicial quando exista recurso interlocutório pendente para o Tribunal Constitucional ou recurso restrito à matéria cível, na medida em que não está ainda esgotada a possibilidade de recursos internos”;
l) Em relação ao segmento normativo referido na anterior alínea k), a interpretação preconizada pelo Tribunal da Relação de Coimbra é totalmente inovadora e surpreendente, constituindo uma verdadeira decisão-surpresa (tal como a caracteriza a judiciosa jurisprudência do Tribunal Constitucional). Na verdade, jamais, em caso e tempo algum, poderiam os Arguidos contar com uma leitura da norma que excluísse a obrigação do reenvio prejudicial em relação a uma decisão que, em matéria criminal, por força das regras que enformam o nosso processo penal, não é suscetível de recurso judicial, propugnando, ao invés, a solução de que o recurso em matéria cível para o Supremo Tribunal de Justiça ou o recurso para o Tribunal Constitucional têm a virtualidade de dispensar o cumprimento daquela obrigação decorrente do parágrafo 3 do art.º 267.º do Tratado da União Europeia. Assim, os Arguidos só não invocaram tal inconstitucionalidade em momento anterior porque, razoável e diligentemente, não podiam nunca ter antecipado que o Tribunal ad quem viesse a perfilhar uma interpretação logicamente viciada e contrária ao espírito e à letra das garantias comunitárias e constitucionais do processo criminal.
4) Da inconstitucionalidade material dos arts. 1.º, alínea a) e 4.º, alínea a) da Lei n.º 12/83, de 24 de agosto e da inconstitucionalidade orgânica do art.º 36.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro
a) O artigo 1.º, alínea a) e o artigo 4.º, alínea a) da mesma Lei n.º 12/83, de 24 de agosto, que constitui uma lei de autorização legislativa, são materialmente inconstitucionais, por violação do disposto no art.º 165.º, n.º 2, da CRP, segundo o qual “as leis de autorização legislativa devem definir o objeto, o sentido, a extensão e a duração da autorização”.
b) As referidas disposições, ao habilitarem o Governo para a alteração dos regimes em vigor, tipificando novos ilícitos penais e contravencionais e definindo novas penas ou modificando as atuais, no sentido de obter “maior celeridade e eficácia na prevenção e repressão deste tipo de infrações”, não definem suficientemente, nem sequer minimamente, o sentido e a extensão dessa habilitação, constituindo, assim, um verdadeiro “cheque em branco”.
c) O artigo 36.º do Decreto-lei n.º 28/84, do 20 de janeiro, decreto-lei autorizado emitido ao abrigo da referida Lei n.º 12/83, de 24 de agosto, é, por conseguinte, organicamente inconstitucional, porquanto a referida lei, enquanto lei autorizativa, não habilitava o Governo a criar o tipo criminal de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção.
d) Tendo excedido o âmbito da autorização concedida pela Assembleia da República e constituindo uma inovação não autorizada por esta, o Decreto-Lei n.º 28/84 é organicamente inconstitucional, vulnerando o disposto no art.º 165.º, nº 1, al. c) e n.º 2 da CRP.
e) Os Arguidos suscitaram a questão das inconstitucionalidades aduzidas, designadamente, nas suas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra (pág. 314) e na conclusão CXXVIII, bem como nos pontos 65 a 67 do requerimento em que arguiram a nulidade do Acórdão recorrido, não tendo a sua argumentação, todavia, obtido acolhimento (cf. fls. 307 e seguintes do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de junho de 2011, bem como fls. 5 do acórdão de 12 de maio de 2012 que complementou aquele e conheceu das nulidades invocadas).
Nestes termos requerem a V. Ex.ª se digne admitir o presente recurso com os efeitos previstos no art.º 78.º da Lei n.º 28/82 e fazer o mesmo subir, seguindo-se os demais termos legais.”
11.3. E, agora pelo arguido C.:
“C., Arguido nos autos supra identificados, em que são Recorridos o Ministério Público e outros, notificado que foi do douto despacho do Exmo. Senhor Conselheiro Relator para vir “dar cabal cumprimento” ao disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 75.º- A da Lei do Tribunal Constitucional, relativamente ao requerimento de interposição de recurso a fls.7081 a 7093, vem dizer o seguinte:
Excelências:
O recurso interposto pelos Recorrente respeita ao acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de junho de 2011 e ao acórdão da mesma Relação de Coimbra que, em complemento do primeiro, em 30 de maio de 2012, julgou improcedentes as nulidades opostas pelo Arguido ao segmento penal da decisão.
A – Elementos comuns às normas cuja fiscalização da inconstitucionalidade é suscitada no presente recurso:
i. O recurso é interposto ao abrigo da al. b) do n.º i do art. 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (devidamente atualizada), assim como da alínea b) do n.º 1 do art.º 280.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
ii. Através do presente requerimento, são sujeitas a fiscalização de constitucionalidade as seguintes normas:
1) Em primeiro lugar, a norma do art.º 36.º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de janeiro;
2) Em segundo lugar, a norma do artigo 6.º-A do Código do Procedimento Administrativo;
3) Finalmente, e em terceiro lugar, a norma do parágrafo 3 do art.º 267.º do Tratado da União Europeia e a norma do artigo 36º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, mas agora na perspetiva da legislação comunitária in casu aplicável.
Explicitemos, em pormenor, cada uma das situações:
B – As inconstitucionalidades em concreto suscitadas
1) Da inconstitucionalidade da norma do art.º 36.º do Decreto-lei n.º 28/84, de 20 de janeiro (fls. 283 a 287 do Acórdão recorrido de 29 de junho de 2011)
a) O Regulamento (CEE) n.º 3665/87, da Comissão, de 27 de novembro, que, contém as regras comuns de execução do regime das restituições à exportação de produtos agrícolas, estabelece no seu artigo 11.º (após as alterações que lhe foram introduzidas pelos Regulamentos n.ºs 1.525/92, 2.945/94 e 1.384/95) o regime sancionatório para os casos de pedido e pagamento de uma restituição à exportação superior à aplicável.
b) Existe, portanto, um regime específico destinado a sancionar pecuniariamente a conduta do agente económico que solicitou e recebeu uma restituição à exportação que venha a ser considerada indevida.
c) No caso dos autos, foi praticado pelo Instituto de Financiamento da Agricultura e das Pescas, IP (IFAP), ao abrigo desse regime, um ato administrativo que ordenou aos Arguidos (rectius, às sociedades arguidas) que procedessem à devolução das restituições à exportação recebidas indevidamente.
d) E sindicada judicialmente a legalidade desse ato veio a mesma a ser objeto de confirmação por acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, já transitado em julgado.
e) A atuação dos Arguidos já foi, portanto, objeto de censura e sanção, através do regime especificamente consagrado no Direito Comunitário e no próprio Direito Administrativo nacional.
f) Com o reembolso das restituições à exportação tidas por indevidamente recebidas foi reposto o respeito pelo bem jurídico-penal que os crimes contra a economia visam proteger e que radica no interesse da manutenção da ordenação económica estabelecida, tida como necessária à realização das superiores tarefas económicas da Comunidade.
g) Visando esse mesmo objetivo, a criminalização dessas condutas revela-se, in casu, absolutamente desnecessária, sendo esse o único entendimento conforme aos princípios da subsidiariedade e da última ratio do Direito Penal, consagrados no artigo 18.º, n.º 2 da CRP.
h) A interpretação acolhida pelo Tribunal da Relação de Coimbra com fundamento no artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 28/84, para sancionar criminalmente uma conduta para cuja danosidade social se encontram previstas sanções de outra índole e cuja aplicação permite alcançar a tutela do bem jurídico que aquele visa proteger, mormente quando aquelas sanções já foram efetivamente aplicadas (cf. fls. 283 a 287 do Acórdão da Relação de Coimbra de 29 de junho de 2011), vulnera a nossa Lei Fundamental, por ofensa aos princípios da subsidiariedade e da ultima ratio do Direito Penal, acolhidos no seu n.º 2 do art. 18.º.
i) O Arguido suscitou a questão da inconstitucionalidade aduzida nas suas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra (pág. 68 a 70) e na conclusão 14.ª dessas mesmas alegações
2) Da inconstitucionalidade da norma do art.º 6.º-A do Código do Procedimento Administrativo (fls. 287 a 292 do Acórdão da Relação de Coimbra de 29 de junho)
a) O Instituto da Vinha e do Vinho tinha a obrigação de prover ao cumprimento da legislação comunitária aplicável às restituições à exportação e de definir e publicitar regras e procedimentos básicos sob os quais deveria pautar e orientar a sua atuação na coordenação, regulação e controlo do setor vitivinícola. Não fez, todavia, uma coisa nem outra, como o atesta e comprova o relatório da Inspeção-Geral e Auditoria de Gestão.
b) Tal incumprimento/omissão conduziu a que as falhas documentais que estiveram na base da condenação dos Arguidos fossem tidas, durante anos, como perfeitamente regulares por aquele Instituto. E gerou, concomitantemente, de forma legítima, nos Arguidos a confiança na regularidade da sua atuação.
c) O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de junho entendeu, não obstante o exposto, que o atropelo por parte do Instituto da Vinha e do Vinho daqueles acima referidos deveres não violava a obrigação da Administração de agir em conformidade com o princípio da boa fé, na vertente da tutela da confiança.
d) Ora, a interpretação sufragada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, designadamente a fls. 287 a 292 do aresto de 29 de junho de 2011, resulta num segmento normativo segundo o qual “age de boa fé e não viola a confiança dos administrados a Administração que, tendo a obrigação (i) de prover ao cumprimento da legislação comunitária aplicável à atribuição de fundos comunitários e (ii) de definir e publicitar regras e procedimentos básicos sob os quais deveria pautar e orientar a sua atuação na coordenação, regulação e controlo de um determinado setor de atividade, não faz, durante anos, uma coisa nem outra”.
e) A norma do art.º 6.º-A do Código do Procedimento Administrativo, na mencionada interpretação sufragada pelo Tribunal da Relação de Coimbra a fls. 287 a 297 do aresto de 29 de junho, viola, pois, frontalmente o princípio da boa fé plasmado no art.º 266.º, n.º 2 da CRP.
f) O Recorrente suscitou a questão desta concreta inconstitucionalidade, designadamente, nas páginas 63 a 68 e na conclusão 13.ª das alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra.
3) Da inconstitucionalidade decorrente da omissão do dever de reenvio: a norma do parágrafo 3 do art.º 267.º do Tratado da União Europeia e a norma do artigo 36º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro
a) Os pressupostos do crime em que o Arguido foi condenado – fraude na obtenção de subsídio consistente na atribuição de restituições à exportação de vinho de mesa para fora da Comunidade – são concretamente definidos pela regulamentação comunitária, nomeadamente pelos Regulamento n.ºs 351/79, 822/87 e 3665/87.
b) Ou seja, embora o tipo legal de crime esteja previsto no art.º 36.º do Decreto-Lei n.º 24/84, de 20 de janeiro, a verificação dos requisitos materiais e formais de que dependia a atribuição, ou não, da ajuda à restituição está inteiramente dependente do direito comunitário.
c) Esta questão é desenvolvida pelo Tribunal da Relação de Coimbra, designadamente, a páginas 266 a 280 do acórdão de 29 de junho de 2011 e a páginas 2 e 3 do acórdão de 30 de maio de 2012.
d) Ora, perante as dúvidas de interpretação dos arts. 67.º, n.º 1 do Regulamento n.º 822/87, 13.º do Regulamento n.º 3.665/87, 1.º, n.º 1 e n.º 3, alínea d), 2.º, n.º 1 e 3.º, n.º 1 do Regulamento n.º 351/79, bem como do art.º 24.º, n.º 1 do Regulamento (CE) n.º 883/2001 da Comissão, de 24 de abril, bem como da questão relativa à inaptidão e incapacidade do método comunitário para detetar a falsificação de vinho pela adição de álcool, impunha-se ao Tribunal da Relação de Coimbra que efetuasse, ex oficio, o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia.
e) Na verdade, estando em causa uma questão de interpretação de Direito Comunitário primário, que assume decisiva relevância para a questão sub judice – existência de práticas enológicas proibidas –, e não sendo admitido recurso do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de acordo com a alínea f) do n.º 1 do art.º 400.º do CPP, deveria este Tribunal ter suspendido a presente instância e submetido ao Tribunal de Justiça da União Europeia, ao abrigo do disposto no paragrafo 3 do art.º 267.º do Tratado da União Europeia, a questão prejudicial da interpretação das referidas normas comunitárias.
f) Ao não dar cumprimento ao dever de reenvio imposto pelo parágrafo 3 do art.º 267.º do TCE, o Tribunal da Relação de Coimbra interpretou/aplicou, implicitamente, a referida norma em violação dos n.ºs 1 a 4 do art.º 8.º da CRP.
g) Uma tal interpretação/aplicação é, ainda, inconstitucional por violação do princípio do juiz legal/natural, consagrado nos arts. 32.º, n.º 9, 216.º, n.º 1 e 217.º, n.º 3, da CRP, uma vez que implica a negação da competência exclusiva atribuída ao TJUE para julgar questões prejudiciais relativas à interpretação de normas do direito comunitário, quando as mesmas são suscitadas em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno.
h) Mas não é só: a interpretação do parágrafo 3 do art.º 267.º do TCE no sentido propugnado pelo Tribunal da Relação de Coimbra implica, também, a inconstitucionalidade desta norma à luz do n.º 1 do art.º 277.º da CRP.
i) A interpretação implícita que é feita do parágrafo 3 do art.º 267.º do TCE pelo Tribunal da Relação de Coimbra resulta num segmento normativo segundo os qual “O TJUE não tem competência exclusiva para julgar questões prejudiciais relativas à interpretação de normas do direito comunitário, quando as mesmas são suscitadas em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, pelo que não é obrigatório o reenvio prejudicial das questões desta natureza ao TJUE”.
j) O Arguido suscitou a questão da inconstitucionalidade aduzida, relativamente ao segmento normativo referido na anterior alínea i), designadamente, nas páginas 50 a 59 e nas conclusões 8.ª e 9.ª das alegações do recurso por si interposto da sentença de 1.ª instância para o Tribunal da Relação de Coimbra, bem como no requerimento em que arguiu a nulidade do Acórdão recorrido (pontos 1 a 17, em especial nos pontos 15 a 17 e no pedido final).
k) A interpretação perfilhada na espécie é, ainda, desenvolvida pelo Tribunal da Relação de Coimbra a páginas 2 e 3 do acórdão de 30 de maio de 2012, que julgou improcedente a nulidade invocada pelos Arguidos, e resulta no segmento normativo segundo o qual “O Tribunal Judicial que, em matéria penal, julga em última instância não está obrigado a proceder ao reenvio prejudicial quando exista recurso interlocutório pendente para o Tribunal Constitucional ou recurso restrito à matéria cível, na medida em que não está ainda esgotada a possibilidade de recursos internos”;
l) Em relação ao segmento normativo referido na anterior alínea k), a interpretação preconizada pelo Tribunal da Relação de Coimbra é totalmente inovadora e surpreendente, constituindo uma verdadeira decisão-surpresa (tal como a caracteriza a judiciosa jurisprudência do Tribunal Constitucional). Na verdade, jamais, em caso e tempo algum, poderiam os Arguidos contar com uma leitura da norma que excluísse a obrigação do reenvio prejudicial em relação a uma decisão que, em matéria criminal, por força das regras que enformam o nosso processo penal, não é suscetível de recurso judicial, propugnando, ao invés, a solução de que o recurso em matéria cível para o Supremo Tribunal de Justiça ou o recurso para o Tribunal Constitucional têm a virtualidade de dispensar o cumprimento daquela obrigação decorrente do parágrafo 3 do art.º 267.º do Tratado da União Europeia. Assim, os Arguidos só não invocaram tal inconstitucionalidade em momento anterior porque, razoável e diligentemente, não podiam nunca ter antecipado que o Tribunal ad quem viesse a perfilhar uma interpretação logicamente viciada e contrária ao espírito e à letra das garantias comunitárias e constitucionais do processo criminal.
ACRESCE QUE,
m) O artigo 36º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, na interpretação sufragada pelo Tribunal recorrido, com ofensa do disposto pelas citadas normas comunitárias que definem concretamente pressupostos da subsunção da conduta do Arguido ao crime de fraude na obtenção do subsídio das restituições à exportação, padece, igualmente, de inconstitucionalidade.
n) Isto porque, dispondo o n.º 4 do art. 8.º, da CRP que as normas comunitárias devem ser aplicadas na ordem interna nos termos definidos pelo Direito da União, o crime de fraude de obtenção do subsídio da restituição à exportação exige a verificação dos requisitos definidos nos Regulamentos Comunitários invocados.
o) Assim, não se verificando, no caso em apreço, os requisitos definidos pelos Regulamentos Comunitários invocados, a aplicação do citado normativo incriminatório envolve a ofensa do n.º 4 do art. 8.º, da CRP, sendo inconstitucional por força do n.º 1 do art. 277º da CRP.
p) O Arguido suscitou a questão da inconstitucionalidade aduzida, relativamente ao segmento normativo referido na anterior alínea m), designadamente, nas páginas 50 a 59 e nas conclusões 8.ª e 9.ª das alegações do recurso por si interposto da sentença de 1.ª instância para o Tribunal da Relação de Coimbra, bem como no requerimento em que arguiu a nulidade do Acórdão recorrido (pontos 18 a 20 e no pedido final).
Nestes termos requer a V. Ex.ª que se digne admitir o presente recurso com os efeitos previstos no art. 78.ª da Lei n.º 28/82 e fazer o mesmo subir, seguindo-se os demais termos legais.”
12. Notificados para alegar, (com a advertência para a eventualidade de não conhecimento de parte das questões colocadas), vieram todos os arguidos fazê-lo, com os seguintes remates conclusivos:
12.1. Recurso apresentado pela arguida D., Lda:
“I. Através do presente recurso, são sujeitas a fiscalização de constitucionalidade duas normas de nível legal;
i) A primeira é a norma do art. 401.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal (CPP) na precisa interpretação que lhe dá o Tribunal da Relação de Coimbra;
ii) A segunda é a norma (rectius, o conjunto de normas) atinente à regulação e prolação da prova pericial em processo penal - em especial, os artigos 151.º e 340.º, n.º 1 do CPP.
- Da inconstitucionalidade da interpretação realizada do artigo 401.º, n.º 1, alínea b) do CPP
II. O Tribunal da Relação de Coimbra entendeu, em relação ao recurso interlocutório interposto pela Recorrente do despacho que indeferiu a realização da perícia colegial por si requerida - de forma que se reputa absolutamente surpreendente e gritantemente atentatória da CRP - que a Recorrente não tinha legitimidade para recorrer porquanto, '(...) atentos os termos em que foi ponderada a sua pretensão (relegando-se para ulterior momento a possibilidade ainda de realização da diligência probatória em causa, e acaso viesse ulteriormente a ter-se por necessária), não podemos afirmar, desde já, que o despacho recorrido os prejudicou em uma qualquer das dimensões invocadas. Com efeito, apenas a hipotética e eventual ulterior apreciação da pretensão dos arguidos, denegando-lhes o solicitado, lhes concederia 'legitimidade' - porquanto 'afetados' - para, então sim, poderem controverter o decidido'.
III. A interpretação perfilhada pelo Tribunal da Relação de Coimbra da alínea b) do n.º 1 do artigo 401.º do CPP é intolerável e é violadora dos mais basilares direitos de defesa constitucionalmente garantidos a um qualquer arguido em processo penal.
IV. O despacho de fls. 2.839 do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu foi um despacho de recusa de uma concreta pretensão deduzida pela Recorrente - a de realização de prova pericial.
V. A lei processual penal reconhece ao arguido legitimidade para recorrer das decisões contra si proferidas, integrando o direito ao recurso o núcleo essencial das garantias de defesa constitucionalmente consagradas (artigo 32.º, n.º 1, da CRP.
VI. A possibilidade de revisão alvitrada pelo Tribunal Judicial da Comarca de Viseu no seu despacho de rejeição em nada põe em causa o indeferimento/recusa perpetrados e, em rigor, mais não é do que a afirmação do que resulta do artigo 340.º do CPP, designadamente, dos seus n.º 1 e 2.
VII. A interpretação do conceito de legitimidade sufragada pelo Tribunal da Relação de Coimbra é ainda mais espantosa quando se sabe - e esse mesmíssimo Tribunal assim o considera - que o interesse em agir tem de se verificar em concreto e a legitimidade subjetiva é valorada a priori, ou seja, de uma forma mais genética.
VIII. De acordo com o entendimento perfilhado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, sempre que um tribunal profira uma decisão contra um arguido - contra uma legítima pretensão processual sua -, mas admita a hipótese de vir a ordenar no futuro, oficiosamente, uma diligência idêntica ou similar àquela que foi objeto de indeferimento expresso (e mesmo que depois - como é aqui o caso - tal não venha efetivamente a acontecer), fica precludido o direito ao recurso do despacho de rejeição.
IX. A aceitar-se a interpretação sufragada no acórdão recorrido, tal há de significar que toda a decisão desfavorável proferida por um tribunal, a que se acrescente, por cautela ou cortesia, a reserva 'por ora', 'para já' ou 'até ver', passa a ser insuscetível de recurso.
X. Com o triunfo de uma tal conceção, ficaria encontrado o remédio (ou o veneno) que faria desaparecer a legitimidade de qualquer recurso: bastaria aos tribunais aditar aos seus despachos de indeferimento uma cláusula de provisoriedade ou possível revisão do decidido.
XI. A interpretação da alínea b) do n.º 1 do artigo 401.º do CPP, perfilhada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, viola e vulnera intoleravelmente o artigo 32.º, n.º 1, da CRP e, bem assim, o princípio da confiança e da segurança jurídicas decorrentes do princípio do Estado de Direito Democrático, consagrado no artigo 2.º da mesma lei fundamental.
XII. A norma jurídica cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional é a do art. 401.º, n.º 1, alínea b), do CPP, na interpretação restritiva do conceito de legitimidade do arguido em processo penal para recorrer, feita pelo Tribunal da Relação de Coimbra a fls. 32 a 34 do acórdão recorrido.
XIII. E que redunda no segmento normativo segundo o qual 'o arguido não tem legitimidade para recorrer do despacho que indefere a realização de um meio de prova por si requerido se o tribunal, no respetivo despacho de indeferimento, equacionar a eventualidade de, ainda no decurso da audiência de julgamento, poder reponderar parcialmente a sua decisão, mesmo que o tribunal não tenha efetuado tal reponderação e de ter até admitido, logo e sem mais, o recurso interposto contra o despacho de indeferimento'.
XIV. Multo embora este Venerando Tribunal tenha já admitido o presente recurso quanto à apreciação da inconstitucionalidade da interpretação sufragada pelo Tribunal da Relação de Coimbra do art. 401.º, n.º 1, alínea b), do CPP, não é demais lembrar que esta interpretação da norma de legitimidade, porque é totalmente inovadora e surpreendente, nunca a ora Recorrente a invocou, em momento anterior ao da interposição deste recurso.
- Da inconstitucionalidade da interpretação realizada pelo Tribunal a quo dos artigos 151.º e 340.º do CPP.
XV. O Tribunal da Relação de Coimbra, ao rejeitar o recurso interposto pela Recorrente, confirmou a decisão do 2.º Juízo Criminal de Viseu que indeferiu a prova pericial requerida, em alegado detrimento de prova documental e testemunhal, fazendo uma interpretação implícita, mas patente, das normas respeitantes à prova pericial, a saber, e em concreto, dos artigos 151.º e 340.º do CPP, que se reputa inconstitucional.
XVI. A decisão do Tribunal da Relação de Coimbra leva implícita uma interpretação que vulnera a CRP, designadamente, o seu artigo 32.º, n.º 1, n.º 2 e n.º 5, 2.ª parte, que, em nome da radical desigualdade material de partida entre a acusação e a defesa, assegura aos arguidos todas as garantias de defesa e todos os direitos e Instrumentos necessários e adequados à salvaguarda da sua posição, em especial, o direito à organização da defesa e o princípio do contraditório.
XVII. Independentemente do mérito da valoração da prova efetuada em julgamento, e que não cabe a este Venerando Tribunal sindicar, a verdade é que para a apreciação da conformidade constitucional da decisão de indeferimento da perícia requerida pela Recorrente, não são indiferentes as regras específicas que o CPP impõe à realização da prova pericial.
XVIII. No presente processo, para apurar a prática do crime de fraude na obtenção de subsídio, suscitavam-se questões de cariz eminentemente técnico-científico, relacionadas com a alegada manipulação do vinho exportado por parte dos arguidos, mormente a adição de álcool e mistura de vinho branco e outros produtos vínicos, tendo em vista o putativo aumento do teor alcoométrico e o volume do vinho.
XIX. O próprio Tribunal Judicial da Comarca de Viseu entendeu que no presente processo se suscitavam questões de natureza técnica complexa, que requeriam, inclusivamente, a necessidade de o tribunal se fazer assistir por assessores técnicos (cf. fls. 2.884 e 2.893).
XX. O único meio possível e admissível de prova quanto às sobreditas operações de suposta falsificação do vinho seria, in casu, a realização de uma perícia.
XXI. Os 'exames periciais', valorados enquanto prova documental pelo Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, foram realizados, em fase de inquérito, sem que aos arguidos fosse concedida a oportunidade de neles intervir, participar ou sequer acompanhar, o que se mostra intolerável à luz dos princípios constitucionais que garantem ao arguido 'todos os meios de defesa' (tanto mais que as conclusões alcançadas não foram de que ao vinho foi adicionado álcool, mas antes, e apenas, que a amostra analisada era meramente compatível com etanol vínico).
XXII. Para além dos referidos 'exames', como alegada prova técnico-científica, resultam dos autos, apenas e só, as afirmações, produzidas em audiência de julgamento, dos seus autores a corroborar, como não poderia deixar de ser, os respetivos resultados.
XXIII. A prova pericial tem um especial valor: o juízo técnico, científico ou artístico presume-se subtraído à livre apreciação do Tribunal e se a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos tem aquele um dever acrescido de fundamentar a divergência (cf. artigo 163.º do CPP).
XXIV. O Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, ao rejeitar a perícia requerida pela Recorrente por considerar que 'tais questões podem ser esclarecidas quer com a prova documental junta aos autos, quer com os peritos já indicados em audiência de julgamento ou com as testemunhas e técnicos indicados quer pela acusação quer pela defesa', entendeu socorrer-se da livre apreciação da prova e da sua, mesmo que respeitosa, impreparada perceção, numa interpretação das regras reguladoras da perícia plasmadas nos artigos 151.º e seguintes do CPP e, bem assim, no artigo 340.º, n.º 1, do CPP, violadora das garantias de defesa constitucionalmente consagradas.
XXV. Ao indeferir a perícia requerida pela Recorrente, quando estavam em apreciação questões de cariz eminentemente técnico cuja complexidade o próprio Tribunal reconheceu, o Tribunal Judicial de Viseu fez uma interpretação do artigo 151.º do CPP e, bem assim, do artigo 340, n.º 1, do CPP, inconstitucional, por coartar à Recorrente o uso pleno dos meios de prova necessários à descoberta da verdade material que a lei processual penal lhe confere, em violação do princípio do contraditório imposto, relativamente à audiência de julgamento em processo penal, pelo n.º 5 do artigo 32.º da CRP.
XXVI. A interpretação normativa sufragada pela Tribunal a quo a propósito desta questão viola, ainda, o direito ao processo equitativo, acolhido no n.º 4 do artigo 20.º da CRP, entendido não só como um processo justo na sua conformação legislativa, mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais de justiça nos vários momentos processuais.
XXVII. A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em torno do artigo 6.º da CEDH, que consagrou expressamente o direito ao processo equitativo, fornece um contributo relevante para a densificação deste direito, o qual deverá ser entendido como o direito à conformação do processo de forma materialmente adequada a uma tutela judicial efetiva, sendo o artigo 32.º da CRP uma densificação do processo justo ou equitativo, em sede de processo penal.
XXVIII. Tais garantias de defesa e igualdade de armas e, em particular, o direito à organização da defesa e o princípio do contraditório, todos de bitola constitucional, constituem o padrão de controlo daquela interpretação judicial que se funda na solução normativa segundo a qual “quando o Tribunal reconheça que a perceção e a apreciação dos factos exigem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, pode, ainda assim, recusar a realização de prova pericial requerida pelo arguido e tomar em consideração, para a formação da sua convicção, apenas a prova documental - exames realizados na fase de inquérito sem a intervenção, a participação ou o acompanhamento por parte dos arguidos - e a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento”.
XXIX. O que é tanto mais decisivo e grave quando a dita prova documental e testemunhal (não procede de peritos ou espertos independentes, mas) consubstancia o próprio acervo probatório empregado pela acusação para carregar os arguidos a juízo, e que, em última análise, agrilhoa e fere a própria ideia de processo e julgamento e firma a de uma dupla acusação.
XXX. A desconformidade constitucional de uma tal interpretação foi suscitada pela Requerente quando do recurso, interposto junto do Tribunal da Relação de Coimbra, do despacho interlocutório do 2.º Juízo Criminal de Viseu, de fls. 2.839, que recusou a perícia requerida pelos arguidos.
XXXI. Os passos do recurso apresentado em que a Recorrente alude à questão constituem, em especial, os artigos 14.º a 30.º das alegações de recurso do despacho interlocutório e as alíneas j), k), p) a u) e w) das respetivas conclusões (que no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra constam identificadas, a páginas 24, com os números 10, 11, 16 a 19 e 21).
XXXII. Por último, e a respeito do 'segmento normativo' que foi aplicado pelo Acórdão recorrido, importa destacar que o Tribunal Judicial da Comarca de Viseu não identificou expressamente os preceitos legais em que estribou a sua decisão, sendo que o mesmo sucede com a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra que, ao rejeitar o recurso interposto pela Recorrente, confirmou a decisão do tribunal de primeira instância.
XXXIII. Assim, a Recorrente subsumiu o critério normativo fundamento da decisão ao disposto no artigo 151.º do CPP, conjugado com as demais normas relativas à regulação da prova pericial no CPP e ao artigo 340.º, n.º 1, do CPP.
XXXIV. Na verdade, não é pelo facto de uma decisão judicial não indicar quais são exatamente os preceitos legais que está a aplicar que se pode concluir que determinada norma ou segmento normativo não foi aplicado por essa mesma decisão, como, de resto, a jurisprudência deste Venerando Tribunal tem vindo uniformemente a entender.”
12.2. Recurso apresentado pelos arguidos A., B., D., Lda, e E., Lda:
“1. Através do presente recurso, são sujeitas a fiscalização de constitucionalidade as seguintes normas ou conjunto de normas:
i. Em primeiro lugar, as normas dos arts. 39.º, n.º 1, alíneas c) e d), do 40.º do Código de Processo Penal (CPP) e dos n.ºs 1 e 2 do art.º 649.º do Código de Processo Civil (CPC);
ii. Em segundo lugar, a norma (rectius, o conjunto de normas) atinente à regulação e prolação da prova pericial - mais precisamente, os arts, 151.º, 152.º, n.º 1, e 153.º n.º 2, todos do CPP;
iii. Em terceiro lugar, a norma do parágrafo 3 do art.º 267.º do Tratado da União Europeia;
iv. Finalmente, e em quarto lugar, as normas dos arts. 1.º, alínea a), e 4,º, alínea a), da Lei n.º 12/83, de 24 de agosto, e do art.º 36.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro.
i. Da inconstitucionalidade das normas dos artigos 39.º, n.º 1, alíneas c) e d), e 40.º do CPP e do artigo 649.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, na aplicação que delas é feita pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de junho de 2011, na parte que decidiu o recurso interlocutório designado pela letra B (págs. 26 e seguintes e 35 e seguintes do Acórdão recorrido), confirmado pelo Acórdão de 30 de maio de 2012 (pág. 4)
2. A Recorrente 'D.' recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra do despacho de fls. 3.272/3 do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, que indeferiu o incidente de recusa dos assessores técnicos que haviam sido nomeados ao abrigo do art.º 649.º, n.º 1, do CPC, ex vi art.º 4.º do CPP, a saber, os senhores inspetores da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), Sr.ª Dr.ª F. e Sr. Eng.º G..
3. A Recorrente considerou, e considera, tal como os demais Arguidos, que estavam, in casu, feridas e atingidas, de forma letal, a imparcialidade e independência de ambos os consultores técnicos nomeados pelo Tribunal Judicial da Comarca de Viseu para o assessorarem.
4. O Tribunal da Relação de Coimbra, pelo acórdão de 29 de junho de 2011, julgou improcedente o aludido recurso (p. 38).
5. No requerimento em que arguiram a nulidade do douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 29 de junho de 2011 (fls. 6.643), os Recorrentes invocaram a nulidade daquela decisão por não ter apreciado oficiosamente a questão da existência do impedimento dos dois assessores que foram nomeados para coadjuvar o Tribunal Judicial da Comarca de Viseu.
6. O Tribunal da Relação de Coimbra, ao não conhecer desta concreta questão e ao admitir, ao menos implicitamente, que um órgão de polícia criminal pode, em sede de processo penal, desempenhar a função de assessor técnico do tribunal tendo já tido intervenção anterior na questão em discussão e interesse direto na mesma, fez uma interpretação/aplicação dos artigos 39.º, n.º 1, alínea c) e 40.º do CPP e dos n.ºs 1 e 2 do art.º 649.º do CPC que atenta de forma grosseira contra os princípios básicos do Estado de Direito, das garantias de defesa e dos ditames de um processo equitativo, plasmados nos artigos 2.º e 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP e no artigo 6.º, n.º 1, da CEDH.
7. A Recorrente 'D.' suscitou a questão da inconstitucionalidade aduzida, designadamente, nas conclusões 3 a 7 e 9 a 13 das suas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra e os demais Recorrentes no ponto 26 do requerimento em que arguiram a nulidade do Acórdão recorrido de 29 de junho de 2011, confirmado pelo acórdão de 30 de maio de 2012.
8. Como fundamentos do incidente suscitado pela Recorrente, foi alegado que ambos os inspetores pertenciam aos quadros da ASAE (que, como é sabido, é um órgão de polícia criminal), haviam participado em ações de fiscalização visando a Recorrente e, bem assim, pelo menos em relação à Sra. Dra. F., havia tido intervenção direta nos procedimentos de análise do vinho cuja adulteração é discutida nos autos.
9. Aos assessores podem ser opostos os impedimentos e recusas que é possível opor aos peritos em processo civil (cf. n.º 2 do art.º 649.º do CPC).
10. Nos termos do n.º 1 do art.º 47.º do CPP são aplicáveis aos peritos os impedimentos previstos no artigo 39.º do CPP, o qual, nas alíneas c) e d) do n.º 1, estabelece que 'Nenhum Juiz pode exercer a sua função num processo penal quando tiver intervindo no processo como (...) órgão de polícia criminal; quando, no processo, tiver sido ouvido ou dever sê-lo como testemunha.'
11. O impedimento consistirá sempre um vício objetivo e de ordem pública, arguível por um sujeito processual ou de conhecimento oficioso, cuja verificação implica a nulidade do ato praticado pelo impedido.
12. Sendo o assessor o auxiliar do verdadeiro agente, que é o juiz, prestando a estes esclarecimentos (pareceres técnicos), o mínimo que lhe será exigível, para lá da capacidade técnica, é a imparcialidade, característica que um órgão de polícia criminal, por natureza, não reúne, para mais quando tenha tido intervenção direta nos factos em discussão e que consubstanciam a acusação.
13. O que, naturalmente, põe em causa o direito do arguido a um processo justo e equitativo, previsto, designadamente, no art.º 32.º, n.º 1, da CRP.
14. Além de atentar contra o direito fundamental e inalienável a um Tribunal imparcial, inscrito no art.º 6.º, n.º 1, da CEDH, como um dos elementos centrais da noção de processo equitativo.
15. A circunstância do prévio envolvimento do assessor no processo, seja como testemunha, seja como autuante, seja como perito, é, ainda, violadora do princípio acusatório, constante do artigo 32.º, n.º 5, da CRP.
16. Aceitar que um órgão de polícia criminal pode, no âmbito do processo penal, desempenhar a função de assessor técnico do tribunal, quando ainda para mais já havia tido intervenção anterior na concreta questão em discussão e interesse direto na mesma, traduz-se, em rigor, em aceitar que o tribunal, enquanto órgão julgador, seja assessorado nessa sua função por quem teve já no processo intervenção enquanto 'órgão acusador'.
17. O Acórdão recorrido sufraga, por conseguinte, ainda que de forma implícita, uma interpretação dos arts. 39.º, n.º 1, alíneas c) e d), e 40.º do CPP e dos n.ºs 1 e 2 do art.º 649.º do CPC, que resulta no segmento normativo segundo o qual o membro de um órgão de policia criminal pode, no âmbito do processo penal, desempenhar a função de assessor técnico do tribunal, ainda que tenha tido intervenção anterior na concreta questão em discussão e interesse direto na mesma.
18. Tal atenta, todavia, de forma que se crê ser grosseira, contra os princípios básicos do Estado de Direito, das garantias de defesa e dos ditames de um processo justo e equitativo, plasmados nos arts. 2.º e 32.º, n.ºs 1 e 5 da CRP e no art.º 6.º n.º 1 da CEDH.
ii. Da inconstitucionalidade das normas dos arts. 151.º, 152.º, n.º 1, e 153.º, n.º 2, do CPP, na aplicação/interpretação que delas é feita pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de junho de 2011, na parte que confirma a sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Viseu (págs. 239 e seguintes do Acórdão) e reiterada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 30 de maio de 2012 (pág. 4 e 5)
19. A consideração da prova pericial produzida em sede de Inquérito como prova documental - dado que as perícias haviam sido realizadas ao arrepio das normas constantes dos arts. 151.º e seguintes do CPP -, conjugada com o indeferimento da realização da perícia colegial requerida pelos Recorrentes - objeto de recurso autónomo -, impediu o cabal exercício do direito ao contraditório e traduziu-se numa desigualdade gritante de armas entre a Acusação e a Defesa.
20. Os Recorrentes alegaram, com efeito, profusamente, nas suas alegações de recurso para a Relação de Coimbra, que o Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, não obstante ter formalmente desconsiderado os relatórios juntos aos autos como prova pericial, na valoração dos mesmos e, bem assim, dos depoimentos dos seus autores (também eles desconsiderados como peritos), assumiu-os como se verdadeiros juízos técnico-científicos se tratassem.
21. Nos presentes autos, não existiu, do ponto de vista formal, qualquer perícia (nos termos dos artigos 151.º e seguintes do CPP) relativamente às questões centrais que cumpria conhecer e que revestiam cariz eminentemente técnico e científico.
22. Foi o próprio Tribunal Judicial da Comarca de Viseu que entendeu que a matéria de facto em que se consubstanciava a acusação suscitava dificuldades de natureza técnica e científica, conforme resulta claro da motivação da decisão recorrida, tendo, inclusivamente, sentido necessidade de designar assessores técnicos para o coadjuvar no julgamento da causa, ao abrigo do artigo 649.º, n.º 1, do CPC (cf. fls. 2.884 e 2.893).
23. O juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, numa questão exclusivamente técnico-científica, fundou-se, todavia, em critérios próprios da livre apreciação da prova (testemunhal e documental).
24. A realização de uma perícia, tendo em conta o estatuto conferido ao perito, sujeito a compromisso de honra, com a possibilidade de escusa e recusa (153.º n.º 2 do CPP), aliado à qualificação técnico-científica que lhe é exigida (art.º 152.º n.º 1 do CPP), permite garantir a possibilidade de ser obtido um juízo técnico rigoroso, independente e imparcial, alcançado de forma equidistante da Defesa e da Acusação.
25. O acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de junho de 2011, reiterado pelo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 30 de maio de 2012, ao julgar improcedente a argumentação dos Recorrentes no que concerne a esta magna questão, atentou, também ele, de forma direta, contra o princípio do contraditório e da igualdade de armas entre a Defesa e a Acusação.
26. Mas não só: ao fazê-lo sufragou, implicitamente, uma Interpretação dos artigos 151.º, 152.º, n.º 1, e 153.º, n.º 2, e bem assim do artigo 340.º, n.º 1, todos do CPP, contrária à Constituição, vulnerando, designadamente, o seu art. 32.º, n.º 1, n.º 2 e n.º 5, 2.a parte.
27. A interpretação normativa sufragada pelo Tribunal viola, ainda, o direito ao processo equitativo, acolhido no n.º 4 do artigo 20.º da CRP e no artigo 6.º da CEDH.
28. A interpretação desenvolvida pelo Tribunal da Relação de Coimbra a fls. 239 a 263 do Acórdão de 29 de junho resulta, deste modo, num segmento normativo segundo o qual 'a realização de perícia na fase de inquérito em desconformidade com os artigos 151.º, 152.º, n.º 1, e 153.º, n.º 2, do CPP permite, sob ponto de vista formal, que o tribunal, no juízo a empreender quanto à matéria de facto a julgar, valore os relatórios periciais assim produzidos como simples prova documental e os depoimentos dos seus autores como meras testemunhas, atribuindo, todavia, a um e a outro meio de prova, o caráter técnico-científico que só a prova pericial permite'.
29. As normas dos artigos 151.º, 152.º, n.º 1, e 153.º, n.º 2, do CPP e, bem assim, do artigo 340.º, n.º 1, também do CPP, na aplicação/interpretação implícita que delas fez o Tribunal da Relação de Coimbra, violam, assim, ostensivamente as garantias de defesa e o direito a um processo equitativo, bem corno o princípio in dubio pro reo, consagrados nos artigos 2.º, 20.º, n.º 4 e 32.º, n.ºs 1, 2 e 5, 2.a parte, da CRP e no art.º 6.º, n.º 1, da CEDH.
30. Os Recorrentes suscitaram a concreta questão da inconstitucionalidade aqui aduzida, designadamente, a páginas 8, 54, 61, 62, 78 a 84, 152, 153, 165, 169, 178, 186, 195 a 210, 230, 234, 279 a 280 e 300 das alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, nas conclusões II, XIII, XV, XLV, XLVI, XLVII, LVII, LVIII, LIX, LXXI, LXXIII, LXXIV, LXXV, LXXVIII, LXXIX, LXXX, LXXXII, XCVII, XCVIII, XCX, CVII, CXXVIII e ainda no requerimento em que arguiram a nulidade do Acórdão de 29 de junho de 2011 (pontos 61 a 63).
31. Por último, a respeito do 'segmento normativo' que foi aplicado pelo Acórdão recorrido, importa ainda destacar que o Tribunal Judicial da Comarca de Viseu não identificou expressamente os preceitos legais em que estribou a sua decisão, sendo que o mesmo sucede com a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra que, ao rejeitar o recurso interposto pelos Recorrentes, confirmou a decisão do tribunal de primeira instância.
32. Os Recorrentes subsumiram, portanto, o critério normativo fundamento da decisão ao disposto no artigo 151.º do CPP, conjugado com as demais normas relativas à regulação da prova pericial no CPP e ao artigo 340.º, n.º 1, também do CPP.
33. Na verdade, não é pelo facto de uma decisão judicial não indicar quais são exatamente os preceitos legais que está a aplicar que se pode concluir que determinada norma ou segmento normativo não foi aplicado por essa mesma decisão, como, de resto, a jurisprudência deste Venerando Tribunal tem vindo uniformemente a entender.
iii. Da inconstitucionalidade do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de junho de 2011 e do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 30 de maio de 2012 por omissão do dever de reenvio
34. Embora o tipo legal de crime em que os Arguidos foram condenados esteja previsto no artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, os pressupostos do tipo legal são concretamente definidos pelos regulamentos comunitários n.ºs 351/79, 822/87 e 3665/87.
35. A verificação dos requisitos materiais e formais de que dependia a atribuição ou não do subsídio aqui em causa está inteiramente dependente do direito comunitário.
36. Os Recorrentes insurgiram-se perante Relação de Coimbra, contra a aplicação que in casu foi feita pela decisão recorrida da legislação comunitária (mais propriamente, do artigo 67.º, n.º 1, do Regulamento n.º 822/87 e do artigo 13.º do Regulamento n.º 3665/87).
37. O preceito à luz do qual foram consideradas proibidas as práticas enológicas realizadas pelos Recorrentes, circunscrevia ou limitava a sua aplicação aos vinhos destinados ou oferecidos ao consumo humano direto na Comunidade (artigo 67.º, n.º 1, do Regulamento n.º 822/87), mas os vinhos a que os autos se reportam tiveram todos como destino Angola e não se destinavam ao consumo humano direto.
38. Sendo admitida a adição de álcool ao vinho destinado a países terceiros, bem como a mistura de vinho branco com vinho tinto a países da União (pelo menos a Espanha), não se vislumbra como pode inferir-se, liminarmente e sem hesitação, resultar de qualquer dessas práticas pelos Recorrentes a diminuição do estado e características do vinho em termos de inutilizar, absoluta ou consideravelmente, a sua afetação para a alimentação humana, à luz do disposto no artigo 13.º do Regulamento n.º 3665/87.
39. Por se haver como requisito incriminatório indispensável o lugar de destino do vinho, num (outro) caso de exportação de vinho para Angola uma das Recorrentes foi absolvida da alegada prática de operações enológicas proibidas pelo Regulamento n.º 822/87, por decisão proferida e transitada em julgado nos autos de processo-crime n.º 172/1988, que correram termos pelo Tribunal da Comarca de Tondela.
40. O cabal esclarecimento da admissibilidade ou não do aumento do teor alcoométrico do vinho à luz das disposições comunitárias importava, designadamente, o esclarecimento do conceito de 'lote à exportação' o que só se almejaria com o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia.
41. O enfoque da questão é suscetível de radical alteração em função dos contornos concretos do conceito de 'lote' constante do n.º 1 do artigo 24.º do Regulamento (CE) n.º 883/2001 da Comissão, de 24 de abril, em especial, se for a concluir-se pela abrangência ou não pelo referido conceito das situações do tipo daquela destes autos.
42. Justificava-se, também, submeter ao Tribunal de Justiça da União Europeia a confirmação da conclusão, implícita na interpretação empreendida pelo Tribunal, quanto à inaptidão e incapacidade do método consagrado pela legislação comunitária para detetar a falsificação de vinho pela adição de álcool.
43. Atento as diferentes interpretações possíveis dos referidos normativos comunitários e não sendo o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de junho de 2011, suscetível de recurso, o Tribunal da Relação de Coimbra estava, por força do disposto no parágrafo 3 do art.º 267.º do Tratado da União Europeia, obrigado a submeter questão prejudicial da interpretação das referidas normas comunitárias ao Tribunal de Justiça da União Europeia.
44. As dúvidas de interpretação a que se reporta o artigo 267.º do TUE terão de ser consideradas objetivamente, perante a concreta configuração que é dada ao processo pelos seus intervenientes e não na perspetiva subjetiva de quem aplica o direito.
45. A não submissão das questões descritas ao TJUE configura uma interpretação do parágrafo 3 do artigo 267.º do TCE violadora dos nºs 1 a 4 do artigo 8.º da CRP e a inconstitucionalidade dessa mesma norma à luz do n.º 1 do art.º 277.º da CRP.
46. É, também, inconstitucional por violação do princípio do juiz legal/natural, consagrado nos artigos 32.º, n.º 9, 216.º, n.º 1 e 217.º, n.º 3, todos da CRP.
47. A interpretação implícita que é feita do parágrafo 3 do art.º 267.º do TCE pelo Tribunal da Relação de Coimbra resulta, em síntese, num segmento normativo segundo o qual “o Tribunal de Justiça da União Europeia não tem competência exclusiva para julgar questões prejudiciais relativas à interpretação de normas de direito comunitário, quando as mesmas são suscitadas em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, não sendo obrigatório o reenvio prejudicial das questões desta natureza ao Tribunal de Justiça da União Europeia”.
48. Os Recorrentes suscitaram a questão da inconstitucionalidade aduzida, relativamente ao segmento normativo referido no ponto anterior, no requerimento em que arguiram a nulidade do Acórdão recorrido (ponto 98 até final, em especial nos pontos 117 a 119 e no pedido final) e a problemática do reenvio é desenvolvida pelo Tribunal da Relação de Coimbra, designadamente, a páginas 266 a 280 do acórdão de 29 de junho de 2011 e a páginas 2 e 3 (por remissão da página 5) do acórdão de 30 de maio de 2012.
49. A interpretação perfilhada na espécie é, ainda, desenvolvida pelo Tribunal da Relação de Coimbra a páginas 2 e 3 (por remissão da página 5) do acórdão de 30 de maio de 2012, que julgou improcedente a nulidade invocada pelos Recorrentes, e resulta no segmento normativo segundo o qual “O Tribunal Judicial que, em matéria criminal, julga em última instância a questão penal não está obrigado a proceder ao reenvio prejudicial quando exista recurso de despacho interlocutório pendente para o Tribunal Constitucional ou recurso restrito à matéria cível pendente para o Supremo Tribunal de Justiça, na medida em que não está ainda esgotada a possibilidade de interposição de recursos internos'.
50. Esta última Interpretação preconizada pelo Tribunal da Relação de Coimbra é totalmente inovadora e surpreendente, constituindo uma verdadeira decisão-surpresa (tal como a caracteriza a judiciosa jurisprudência do Tribunal Constitucional) e em caso e tempo algum, poderiam os Recorrentes contar com uma leitura da norma que excluísse a obrigação do reenvio prejudicial em relação a uma decisão que, em matéria criminal, por força das regras que enformam o nosso processo penal, não é suscetível de recurso judicial, propugnando, ao invés, a solução de que o recurso em matéria cível para o Supremo Tribunal de Justiça ou o recurso para o Tribunal Constitucional de um despacho interlocutório têm a virtualidade de dispensar o cumprimento daquela obrigação decorrente do parágrafo 3 do art.º 267.º do Tratado da União Europeia.
iv) Da inconstitucionalidade material do artigo 1.º, alínea a), e artigo 4.º, alínea a), da Lei n.º 12/83, de 24 de agosto e da inconstitucionalidade orgânica do artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro
51. Os padrões de controlo a tomar em consideração são, por um lado, o artigo 1.º, alínea a), e o artigo 4,º, alínea a), da Lei n.º 12/83, de 24 de agosto, por inconstitucionalidade material; e, por outro lado, o artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, por inconstitucionalidade orgânica.
52. A Lei n.º 12/83, de 24 de agosto, constitui uma lei de autorização legislativa destinada a 'alterar os regimes em vigor, tipificando novos ilícitos penais e contravencionais, definindo novas penas, ou modificando as atuais”.
53. Os artigos 1.º, alínea a), e 4.º, alínea a), da Lei n.º 12/83, de 24 de agosto, que respeitam às infrações antieconómicas e contra a saúde pública, no entender dos Recorrentes, autorizam o Governo a legislar em sede de infrações antieconómicas sem indicar, sequer minimamente, o objeto, sentido e extensão dos futuros crimes a tipificar nesse âmbito.
54. Mais propriamente, não contém a descrição dos elementos constitutivos ou a moldura penal a aplicar para punir dos ditos crimes, designadamente, quanto ao tipo de fraude na obtenção do subsídio ou subvenção previsto no artigo 36.º do Decreto-lei n.º 28/84, de 20 de janeiro.
55. A Lei n.º 12/83, de 24 de agosto, não fornece elementos que permitam identificar na legislação governamental a produzir ao abrigo da mesma o crime de fraude na obtenção do subsídio ou subvenção, configurando-se como um verdadeiro 'cheque em branco', ao permitir ao Governo criar livremente e à sua vontade novos tipos de ilícito e novas penas.
56. Não identifica os novos ilícitos que pretende ver tipificados, não elenca os ilícitos já pré-existentes para os quais propugna a consagração de novas penas ou a alteração das atuais, tampouco esclarece se a intervenção que projeta quanto às penas de atuais ilícitos é no sentido de as diminuir ou de as aumentar.
57. A Lei n.º 12/83, de 24 de agosto, é materialmente inconstitucional por indefinição do objeto e indeterminação do sentido, por violação do disposto no art.º 165.º, n.º 2, da CRP, o que se comunica ao decreto-lei autorizado.
58. O artigo 36.º do Decreto-lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, emitido ao abrigo da referida Lei n.º 12/83, de 24 de agosto, é organicamente inconstitucional, por violação do disposto na alínea c), do número 1 e do número 2 do artigo 165.º da CRP, porquanto a referida lei, enquanto lei de autorização legislativa, não habilitava o Governo a criar o tipo criminal de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção.
59. Na verdade, o artigo 36.º do Decreto-lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, enquanto norma pertencente a um decreto-lei autorizado materialmente inconstitucional que criou o referido tipo criminal, é inconstitucional.
60. Por outro lado, na medida em que excedeu o âmbito da autorização concedida pela Assembleia da República, e como tal constitui uma inovação não autorizada por esta, o Decreto-Lei n.º 28/84 é, também por isso, organicamente inconstitucional, vulnerando as mencionadas disposições constitucionais (art.º 165.º, n.º 1, alínea c) e n.º 2 da CRP).
61. Os Recorrentes suscitaram a questão das inconstitucionalidades aduzidas, designadamente, nas suas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra (pág. 314) e na conclusão CXXVIII, bem como nos pontos 65 a 67 do requerimento em que arguiram a nulidade do Acórdão recorrido, não tendo a sua argumentação, todavia, obtido acolhimento (cf, fls. 307 e seguintes do acórdão recorrido, bem como fls. 5 do acórdão de 12 de maio de 2012, que complementou aquele e conheceu das nulidades invocadas).”
12.3. Recurso apresentado pelo arguido C.:
“I. O Tribunal da Relação de Coimbra, nos acórdãos de 29 de junho de 2011 e de 30 de maio de 2012 - este último que, em complemento do primeiro, julgou improcedentes nulidades opostas pelo Recorrente ao segmento penal da decisão - aplicou várias normas em sentido que o Recorrente reputou no processo inconstitucionais e que nesta sede sujeita ao escrutínio do Tribunal Constitucional.
II. São três essas normas (ou conjunto de normas), a saber, o artigo 36.º do Decreto-lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, o artigo 6.º-A do Código do Procedimento Administrativo (CPA) e, finalmente, o parágrafo 3 do art.º 267.º do Tratado da União Europeia (TUE) e o artigo 36º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, mas agora na perspetiva da legislação comunitária aplicável.
III. O Tribunal Judicial da Comarca de Viseu condenou o Recorrente e os demais arguidos pela prática, sob a forma consumada, de um crime de fraude na obtenção de subsídio, previsto e punido pelo artigo 36.º, número 1, alíneas a), b) e c), número 2, número 5, alínea a) e número 8 do Decreto-lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, a saber, “(...) na pena de 4 (quatro) anos de prisão efetiva o arguido C.”.
Da inconstitucionalidade da norma do art.º 36.º do Decreto-lei n.º 28/84, de 20 de janeiro (fls. 283 a 287 do Acórdão recorrido)
IV. O artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, na interpretação sufragada pela Relação de Coimbra, no sentido de criminalizar uma conduta para cuja danosidade social se encontram previstas sanções de outra índole e cuja aplicação permite obter a tutela do bem jurídico que aquele visa proteger, mormente quando aquelas sanções já foram aplicadas, é inconstitucional por ofender o princípio da subsidiariedade do direito penal, acolhido no n.º 2 do art.º 18.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
V. As regras comuns de execução do regime das restituições à exportação de produtos agrícolas foram estabelecidas no Regulamento (CEE) n.º 3665/87, da Comissão, de 27 de novembro, o qual no seu art. 11.º estabelece o regime sancionatório para os casos de pedidos e pagamentos de uma restituição à exportação superior à aplicável, decorrendo daí, entre o mais, que a restituição à exportação, embora seja reduzida pela aplicação de uma sanção pecuniária, não é retirada no caso de serem fornecidas “deliberadamente informações falsas”.
VI. Prevendo a legislação comunitária um regime específico destinado a sancionar a conduta do agente e estando em causa a utilização de Fundos Comunitários, não há qualquer razão justificativa para a criminalização dessa conduta.
VII. Os “graves efeitos económicos” que justificariam a criação do crime de fraude na obtenção de subsídio e da respetiva punição, não têm na legislação comunitária, que regula esta matéria, qualquer acolhimento.
VIII. O direito comunitário considera como suficiente para a defesa dos interesses financeiros da União Europeia a devolução dos montantes recebidos indevidamente, nem sequer na totalidade do montante recebido, mas apenas e só a sua redução.
IX. Prever para a mesma situação sanções penais apresenta-se excessivo, desnecessário e desproporcional em face dos valores constitucionais em confronto, o que fere o artigo 36.º do Decreto-lei n.º 28/84 de inconstitucionalidade por ofensa ao disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição.
X. A incriminação constante do artigo 36.º do Decreto-lei n.º 28/84, no sentido e na medida da sua mobilização para proteger os interesses financeiros da Comunidade Europeia, tem de ser harmonizada com o próprio direito comunitário, que considera que os mecanismos oferecidos pelo direito civil e administrativo (restituição, Indemnização, retenção, etc.) asseguram a necessária tutela dos seus interesses.
XI. Esta harmonização com o direito comunitário decorre do primado do direito comunitário e é solução a única que se coaduna com a concretização do princípio da subsidiariedade do direito penal e da última ratio do Direito Penal, consagrados no art. 18.º, n.º 2 da Constituição.
XII. Nos autos, o IFAP ordenou às sociedades arguidas que procedessem à devolução das restituições à exportação recebidas indevidamente ato que, sindicado judicialmente, foi objeto de confirmação por decisão judicial já transitada em julgado.
XIII. A atuação do Recorrente e dos demais arguidos já foi objeto de censura e sanção, através da aplicação do regime previsto no Direito Comunitário e no próprio Direito Administrativo nacional.
XIV. Com o reembolso das restituições à exportação tidas por indevidamente recebidas é reposto o respeito pelo bem jurídico-penal que os crimes contra a economia visam proteger e que radica no interesse da manutenção da ordenação económica estabelecida, tida como necessária à realização das superiores tarefas económicas da Comunidade, pelo que a sua criminalização se revela, in casu, absolutamente desnecessária.
XV. O art.º 36.º do Decreto-Lei n.º 28/84, na interpretação acolhida pelo Tribunal da Relação de Coimbra no Acórdão recorrido - criminalização de uma conduta para cuja danosidade social se encontram previstas sanções de outra índole cuja aplicação permite alcançar a tutela do bem jurídico que aquele visa proteger, mormente quando aquelas sanções já foram efetivamente aplicadas - vulnera a nossa lei Fundamental por ofender os princípios da subsidiariedade e da última ratio do Direito Penal, acolhidos no número 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa.
XVI. O Recorrente suscitou a questão nas suas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra (pág. 68 a 70) e na conclusão 14.ª dessas mesmas alegações e o Tribunal da Relação de Coimbra pronunciou-se a fls. 283 a 287 do Acórdão recorrido.
Da inconstitucionalidade da norma do art.º 6.º-A do CPA (fls. 287 a 292 do Acórdão)
XVII. O artigo 6.º-A do Código do Procedimento Administrativo na interpretação sufragada pela Relação de Coimbra no Acórdão recorrido, é violadora do princípio da boa fé a que se acham subordinados os órgãos e agentes administrativos no exercício das suas funções e que se encontra plasmado no artigo 266.º, n.º 2, da CRP.
XVIII. Durante o período de mais de quatro anos em que se processaram as exportações de vinho subjacentes aos autos, o Recorrente e dos demais coarguidos apresentaram no INSTITUTO DA VINHA E DO VINHO - agente da Administração interlocutor para na formação, instrução, apreciação e decisão dos processos de obtenção de restituições à exportação - os documentos que este exigia e nos moldes por estes considerados como suficientes para a concessão das restituições às exportações.
XIX. O relatório da IGA - INSPEÇÃO-GERAL E AUDITORIA DE GESTÃO atesta que a atuação do INSTITUTO DA VINHA E DO VINHO assentava na inexistência, e na consequente inobservância, de quaisquer regras, mesmo as mais elementares, nesse âmbito.
XX. A ausência de regras sob as quais o INSTITUTO DA VINHA E DO VINHO deveria pautar e orientar a sua atuação na coordenação, regulação e controlo do setor vitivinícola, conduziu a que as falhas documentais que estiveram na base da condenação do Recorrente e demais arguidos fossem tidas, durante anos, como perfeitamente regulares por aquele Instituto.
XXI. A Intervenção do INSTITUTO DA VINHA E DO VINHO na condução, verificação e apreciação dos processos de restituição à exportação gerou, naturalmente, no Recorrente e demais arguidos a confiança na legalidade e regularidade da sua atuação.
XXII. A forma desassombrada e transparente com que sempre foram apresentados pelo Recorrente e demais coarguidos documentos que só muito posteriormente, por ação da inspeção do ORGANISMO EUROPEU DE LUTA ANTI-FRAUDE (OLAF), vieram a ser reputados como Irregulares, evidencia que o INSTITUTO DA VINHA E DO VINHO não considerava como importantes as matérias sobre que incidiam.
XXIII. Na interpretação acolhida pelo Acórdão recorrido do artigo 6.º-A do CPA, “não viola o princípio da boa fé plasmado no n.º 2 do artigo 266.º da CRP a entidade nacional competente para averiguar do cumprimento dos requisitos de direito comunitário para concessão de subsídios em dado setor que no relacionamento com os operadores económicos não observou regras e procedimentos básicos de coordenação, regulação e controlo do setor que lhe incumbia, assim fazendo crer aos operadores que a sua atuação era compatível com as restituições às exportações”.
XXIV. A interpretação perfilhada na espécie é expressamente assumida e desenvolvida pelo Tribunal da Relação, designadamente, a fls. 287 a 292 do acórdão prolatado, tendo o Recorrente suscitado a questão da inconstitucionalidade aduzida, designadamente, nas páginas 63 a 68 e na conclusão 13.ª das suas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra.
Da inconstitucionalidade decorrente da omissão do dever de reenvio: a norma do parágrafo 3 do art.º 267.º do Tratado da União Europeia e a norma do artigo 36º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro
XXV. O parágrafo 3 do art.º 267.º do Tratado da União Europeia (TUE), na interpretação que dela faz a Relação de Coimbra no acórdão recorrido é violadora dos n.ºs 1 a 4 do art.º 8.º da CRP e do princípio do juiz legal/natural, consagrado nos arts. 32.º, n,º 9, 216.º, n,º 1 e 217.º, n.º 3, da CRP e importa também a violação o n.º 1 do art.º 277.º da CRP.
XXVI. A interpretação desenvolvida pela Relação de Coimbra resulta nos seguintes dois segmentos normativos segundo os quais: i) o Tribunal Judicial que, em matéria penal, julga em última instância não está obrigado a proceder ao reenvio prejudicial quando exista recurso interlocutório pendente para o Tribunal Constitucional ou recurso restrito à matéria cível pendente para o Supremo Tribunal de Justiça, na medida em que não está ainda esgotada a possibilidade de recursos internos”; ii) “O TJUE não tem competência exclusiva para julgar questões prejudiciais relativas à interpretação de normas do direito comunitário, quando as mesmas são suscitadas em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, pelo que não é obrigatório o reenvio prejudicial das questões desta natureza ao TJUE'.
XXVII. O primeiro segmento normativo constitui uma interpretação totalmente inovadora e surpreendente, constituindo uma verdadeira decisão-surpresa, tal como a caracteriza a judiciosa jurisprudência do Tribunal Constitucional, razão pelo Recorrente, razoável e diligentemente, não podia nunca ter antecipado que o Tribunal viesse a perfilhá-la.
XXVIII. Jamais poderia o Recorrente contar com uma leitura da norma que excluísse a obrigação do reenvio prejudicial em relação a uma decisão que, em matéria criminal, por força das regras que enformam o nosso processo penal, não é suscetível de recurso judicial, antes propugnando que o recurso em matéria cível para o Supremo Tribunal de Justiça ou o recurso para o Tribunal Constitucional têm a virtualidade de dispensar o cumprimento daquela obrigação decorrente do parágrafo 3 do art.º 267.º do TUE.
XXIX. Os pressupostos do crime em que o Recorrente e os demais arguidos foram condenados são concretamente definidos pela regulamentação comunitária, nomeadamente pelos Regulamento n.ºs 822/87 e 3665/87.
XXX. Embora o tipo legal de crime esteja previsto no art.º 36.º do Decreto-Lei n.º 24/84, de 20 de janeiro, a verificação dos requisitos materiais e formais de que dependia a atribuição, da ajuda à exportação está inteiramente dependente do direito comunitário.
XXXI. O Recorrente insurgiu-se contra a aplicação que foi feita pela decisão recorrida do art.º 67.º, n.º 1 do Regulamento n.º 822/87, à luz do qual foram consideradas proibidas as práticas enológicas realizadas, que circunscrevia ou limitava a sua aplicação aos vinhos destinados ou oferecidos ao consumo humano direto na Comunidade, sendo certo que tal não se verificou em relação aos vinhos a que os autos se reportam, todos eles exportados para Angola e não destinados ao consumo humano direto;
XXXII. O Recorrente insurgiu-se contra a aplicação que foi feita pela decisão recorrida do art.º 13.º do Regulamento n.º 3.665/87, porquanto, sendo admitida a adição de álcool ao vinho destinado a países terceiros, bem como a mistura de vinho branco com vinho tinto a países da União, pelo menos à Espanha, forçosamente não resultava de tal prática a diminuição do estado e características do vinho em termos de inutilizar, absoluta ou consideravelmente, a sua afetação para a alimentação humana, sendo, por conseguinte, admissível a concessão do subsídio atribuído, de harmonia com aquela norma.
XXXIII. Perante as dúvidas de interpretação dos aludidos arts. 67.º, n.º 1, do Regulamento n.º 822/87 e 13.º do Regulamento n.º 3.665/87, suscitadas nos autos pelo Recorrente, impunha-se ao Tribunal da Relação de Coimbra que suspendesse a instância e efetuasse, ex oficio, o reenvio prejudicial para o TJUE.
XXXIV. As dúvidas de interpretação que motivam o reenvio terão de ser consideradas objetivamente, perante a concreta configuração que é dada ao processo pelos seus intervenientes e não, portanto, na perspetiva subjetiva de quem aplica o direito.
XXXV. A concreta interpretação adotada exclui um remédio jurisdicional que faz parte integrante da ordem jurídica Portuguesa (justamente por força do art.º 8.º da CRP) e que, ainda por cima, é um remédio única e especificamente pensado para o tipo de situações que se verificam na espécie,
XXXVI. A interpretação de uma norma que exclua um meio de tutela jurisdicional constitucionalmente garantido equivale, não a uma concreta denegação de Justiça, mas à consagração normativa de um nicho geral e abstrato de denegação de justiça.
XXXVII. Ao sufragar uma tal interpretação violou-se, ainda, o princípio do juiz legal/natural, consagrado nos arts. 32.º, n.º 9, 216.º, n.º 1 e 217.º, n.º 3, da CRP, uma vez que a mesma implica a negação da competência exclusiva atribuída ao TJUE para julgar questões prejudiciais relativas à interpretação de normas do direito comunitário, quando as mesmas são suscitadas em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, além de implicar a inconstitucionalidade do parágrafo 3 do art.º 267.º do TUE à luz do n.º 1 do art.º 277.º da CRP.
XXXVIII. O artigo 36.º do Decreto-Lei n,º 28/84, de 20 de janeiro, na interpretação sufragada pelo Tribunal recorrido, com ofensa do disposto pelas citadas normas comunitárias que definem concretamente pressupostos da subsunção da conduta do Recorrente ao crime de fraude na obtenção do subsídio das restituições à exportação, padece, igualmente, de inconstitucionalidade.
XXXIX. Dispondo o n.º 4 do art. 8.º, da CRP que as normas comunitárias devem ser aplicadas na ordem interna nos termos definidos pelo Direito da União, o crime de fraude de obtenção do subsídio da restituição à exportação exige a verificação dos requisitos definidos nos Regulamentos Comunitários invocados.
XL. O Recorrente suscitou a questão das inconstitucionalidades aduzidas, designadamente, nas páginas 50 a 59 e nas conclusões 8.ª e 9.ª das suas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, bem como no requerimento em que invocou a nulidade do Acórdão recorrido.”
13. Por seu turno, os recorridos Ministério Público e IFAP-Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, IP, apresentaram contra-alegações.
13.1. O Ministério Público formulou as seguintes conclusões:
“V. Conclusões
55. Quanto ao recurso de D., por inexistência de objeto (n.ºs 11 e 14), é de rejeitar o presente recurso (LOFPTC, art. 78.ºA, n.º1).
56. Quanto ao recurso de C. e outros, não ocorrendo a pretensa inconstitucionalidade, é de negar provimento ao recurso (n.º20), sendo que, por falta de objeto idóneo (n.º 25) e por carecer de legitimidade, bem como, sem conceder, igualmente por falta de objeto idóneo (n.º 35), é de rejeitar o presente recurso (LOFPTC, art. 78.ºA, n.º1).
57. Finalmente, quanto ao recurso de A. e outros, por falta de objeto idóneo (n.º 39), por inexistência de objeto (n.º 43), e por carecer de legitimidade, bem como, sem conceder, igualmente por falta de objeto idóneo (n.º 49), é sempre, e em qualquer caso, de rejeitar o presente recurso (LOFPTC, art. 78.ºA, n.º 1), sendo, finalmente, que, não ocorrendo a pretensa inconstitucionalidade, é de negar provimento ao recurso.”
13.2. Em articulado desprovido de conclusões, o assistente IFAP considera que a norma incriminadora do artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, não ofende o princípio da subsidiariedade; aponta a irrelevância do julgamento da conduta das entidades administrativas, perante o artigo 6.º do CPA, para a decisão da causa; entende que estava afastada a obrigatoriedade de reenvio para o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE); e apoia “o entendimento preconizado pelo Tribunal da Relação de Coimbra”, considerando que não foi proferida decisão desfavorável ao recorrente e, então, não lhe assistia legitimidade, nos termos do artigo 401.º do CPP, para recorrer do despacho proferido determinação de prova pericial. Quanto às questões relacionadas com a produção e regulação de prova pericial e recusa de assistentes, considera que não estão verificados os pressupostos para o conhecimento do recurso. Finalmente, no que concerne à questão de inconstitucionalidade material dos artigos 1.º, alínea a) e 4.º, alínea a) da Lei n.º 12/83, de 24 de agosto e da inconstitucionalidade orgânica do art.º 36.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, entende que o recurso deverá ser julgado improcedente, invocando jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre o problema.
14. Notificados para se pronunciarem sobre os novos fundamentos de não conhecimento do recurso, decorrentes da tomada de posição do Ministério Público e da assistente, vieram os recorrentes, em articulado conjunto (igualmente sem conclusões), sustentar a sua improcedência, dizendo o seguinte, em síntese:
- No que concerne ao recurso da arguida D. relativo ao despacho proferido a fls. 2839, a apreciação da questão de inconstitucionalidade da norma do art.º 401.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, foi já admitida – sem qualquer reserva ou condição – pelo Tribunal Constitucional;
- O Tribunal da Relação de Coimbra interpretou o conceito de legitimidade do arguido para recorrer de decisões proferidas contra si, constante da norma do art. 401.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, de forma restritiva, passando aquele conceito a excluir as decisões desfavoráveis às quais seja aposta a reserva por ora, para já ou até ver;
- Não merece acolhimento a tese do recorrido de que deve ser rejeitado o recurso por estarmos perante a impugnação de erro de aplicação da lei;
- No que concerne ao recurso interposto pelo arguido C., que a inconstitucionalidade da interpretação normativa do artigo 6.ºA do CPA que questionou foi submetida à apreciação do Tribunal da Relação de Coimbra e foi aplicada na decisão recorrida;
- Quanto à questão da inconstitucionalidade da interpretação da norma do parágrafo 3.º do art.º 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), só era exigível ao recorrente que suscitasse previamente essa questão a partir do momento em que, ao não ter apreciado oficiosamente a questão do reenvio prejudicial, a decisão incorreu em omissão de pronúncia, com a consequente nulidade, por força da alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP. Pelo que o momento oportuno para a suscitação da questão foi o requerimento de arguição de nulidade do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 2011, não sendo expectável para um litigante normalmente diligente e cauteloso que o Tribunal da Relação de Coimbra viesse a perfilhar a interpretação de que o recurso em matéria cível para o Supremo Tribunal de Justiça ou o recurso para o Tribunal Constitucional têm a virtualidade de dispensar o cumprimento da obrigação decorrente do parágrafo 3.º do art.º 267.º do TFUE;
- Ainda que a questão de saber se o Tribunal da Relação de Coimbra é ou não a última instancia, nos termos previstos no parágrafo 3.º do artigo 267.º do TFUE, possa ser incidental da questão cuja inconstitucionalidade normativa se pretende ver apreciada, o certo é que não se confunde com ela, pelo que improcedem os argumentos invocados pelo recorrido no sentido da rejeição do recurso. Sem prescindir, e para o caso, que não se concede, de assim se não entender, deve a presente instância ser suspensa e ordenado o reenvio prejudicial para o TJUE, ao abrigo do disposto no artigo 267.º do TFUE, a fim de serem esclarecidas as seguintes questões prejudiciais - “À luz dos artigos 67.º, n.º 1 do Regulamento n.º 822/87 e 13.º do Regulamento n.º 3665/87, o vinho tinto de mesa de origem comunitária, exportado para Angola, durante os anos de 1990 a 1999, e não destinado a consumo humano direto na Comunidade, era elegível para efeitos de restituição à exportação (subsídio), mesmo que tal vinho tenha sido objeto de: i. Adição de vinho branco; ii. Adição de outros produtos vínicos que não vinho de mesa tinto (VQPRD, abafado, acidulado e rose); iii. Adição de álcool que representasse um aumento do grau alcoólico do vinho em 2%”;
- No que concerne ao recurso dos arguidos A. e outros, e quanto à questão referida a interpretação reportada aos artigos 39.º, n.º 1, alíneas c) e d), e 40.º do CPP e do artigo 649.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, não se trata, como defendido pelo Ministério Público, de problema de mera aplicação da lei. O Tribunal da Relação, ao não ter apreciado oficiosamente a questão da existência de impedimento dos dois assessores que foram nomeados para coadjuvar o Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, desconsiderando que o incidente suscitado pelo arguidos abarcava não apenas a suspeição dos assessores nomeados, mas, mais do que isso, a própria imparcialidade dos mesmos, resultante, designadamente, da sua qualidade de órgão de polícia criminal. E ao admitir, ao menos implicitamente, que um órgão de policia criminal pode, em sede de processo penal, desempenhar a função de assessor técnico do tribunal tendo já tido intervenção anterior na questão em discussão e interesse direto na mesma, sufragou uma interpretação dos artigos 39.º, n.º 1, alínea c) e 40 .º do CPP e dos n.ºs 1 e 2 do art.º 649.º do CPC, que resulta no segmento normativo segundo o qual o membro de um órgão de policia criminal pode, no âmbito do processo penal, desempenhar a função de assessor técnico do tribunal, ainda que tenha tido intervenção anterior na concreta questão em discussão e interesse direto na mesma, cuja inconstitucionalidade se pretende ver sindicada no presente recurso;
- Quanto à questão incidente sobre interpretação do parágrafo 3.º do artigo 267.º, do TFUE, improcedem os argumentos invocados pelo recorrido Ministério Público. Sem prescindir, e para o caso de assim não se entender, deve a presente instância ser suspensa e ordenado o reenvio prejudicial para o TJUE, a fim de serem esclarecidas ainda se: “1. À luz do conceito de lote constante do mesmo art. 24.º, n.º 1 do Regulamento (CE) n.º 883/2001 da Comissão, de 24 de abril, consubstanciado na (...) quantidade do mesmo produto expedida pelo mesmo expedidor para o mesmo destinatário: i. Se o agente económico estaria obrigado a ter registo de lotes e lotações dos vinhos exportados desde a produção; ou ii. Se ao agente económico bastaria o registo do lote de vinho a exportar, comprovada a sua origem comunitária, sustentada no DAA e nas contas correntes por entreposto fiscal; ou ainda iii. Se um tal regime de lotes se circunscreve ao controle de vinhos com origem determinada, engarrafados, não se aplicando, assim, aos vinhos a granel; iv. E, ainda, se o Lote, no caso de vinho a granel, corresponde ao registo em conta corrente das entradas e saídas de vinho, concretizado no saldo da mesma conta corrente, em cada momento. Ou seja, se o saldo da conta corrente corresponde ao Lote; 2. Se confirma a inaptidão e incapacidade do método consagrado pela legislação comunitária para detetar a falsificação de vinho pela adição de álcool.”
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
1.1. Requisitos gerais do recurso de constitucionalidade
15. No sistema português, os recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade têm necessariamente objeto normativo, devendo incidir sobre a apreciação da constitucionalidade de normas ou interpretações normativas, e não sobre a apreciação de alegadas inconstitucionalidades imputadas pelo recorrente às decisões judiciais, em si mesmas consideradas, atenta a inexistência no nosso ordenamento jurídico-constitucional da figura do recurso de amparo ou de queixa constitucional contra atos concretos de aplicação do Direito. Não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar os factos materiais da causa, definir a correta conformação da lide ou determinar a melhor interpretação do direito ordinário.
Assim, por imperativo do artigo 280.º da Constituição, objeto do recurso (em sentido material) são exclusiva e necessariamente normas jurídicas, tomadas com o sentido que a decisão recorrida lhes tenha conferido, sem que caiba ao Tribunal Constitucional uma função revisora da atuação dos demais tribunais, fundada na direta imputação de violação da Constituição – mormente no plano dos direitos fundamentais - por tais decisões.
Nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, como acontece nestes autos, a sua admissibilidade depende ainda da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada durante o processo, de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, do sentido normativo cuja ilegitimidade constitucional vem arguida pelos recorrentes.
Consistindo a competência do Tribunal Constitucional, no domínio da fiscalização concreta, na faculdade de revisão, em via de recurso, de decisões judiciais, compreende-se que a questão de constitucionalidade deva, por regra, ter sido colocada ao tribunal a quo, além de que permitir o acesso a este Tribunal com base numa invocação da inconstitucionalidade unicamente após a prolação da decisão recorrida abriria o indesejável caminho à sua utilização como expediente dilatório. Donde só tenha legitimidade para pedir ao Tribunal Constitucional a fiscalização de constitucionalidade de uma norma quem tenha colocado previamente essa questão ao tribunal recorrido, em termos de o vincular à sua apreciação, face às normas procedimentais que regem o processo em que se enxerta o recurso constitucional.
Dito isto, este requisito (suscitação da questão de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferida a decisão impugnada) considera-se dispensável nas situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou nas situações, de todo excecionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou em que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade, sendo de esperar, face ao ónus que decorre da parte final do n.º 2 do artigo 75.ºA, da LTC, que tais circunstâncias justificativas da ausência de suscitação prévia sejam indicadas pelo recorrente no requerimento de interposição do recurso.
Por outro lado, considerando o caráter ou função instrumental dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade face ao processo-base (artigo 80.º, n.º 2, da LTC), exige-se, para que o recurso tenha efeito útil, que haja ocorrido efetiva aplicação pela decisão recorrida da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade é sindicada. É necessário, pois, que esse critério normativo tenha constituído ratio decidendi do acórdão recorrido, pois, só assim, um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar a reformulação dessa decisão.
Expostos, sumariamente, os pressupostos essenciais ao conhecimento do recurso de constitucionalidade interposto nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alíneas b), da LTC, cumpre verificar o seu preenchimento, relativamente às questões colocadas pelos recorrentes nos presentes autos, tendo em atenção que, como dispõe o n.º 3 do artigo 76.º da LTC, a decisão que admitiu o recurso não vincula o Tribunal Constitucional, assim como a determinação do prosseguimento do processo para alegações não preclude essa apreciação, desde logo face à posição dos recorridos.
De acordo com a ordem de precedência lógico-processual das questões colocadas pelos recorrentes, decorrente dos seus efeitos potenciais, importa começar pelas questões que versam o segmento do Acórdão recorrido que rejeitou o recurso intercalar, passando, depois, às questões incidentes sobre o recurso intercalar julgado improcedente e, seguidamente, às demais questões formuladas.
Intercede, no entanto, e com a natureza de questão prévia, outra dimensão da lide a apreciar, consubstanciada na formulação pelos requerentes, em sede de resposta ao convite que lhes foi dirigido ao abrigo do n.º 6 do artigo 75.ºA da LTC, de impulso recursório inovador.
1.2. Ampliação dos recursos ao Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 12 de maio de 2012
16. O objeto do recurso constitucional mostra-se definido pelos termos do requerimento de interposição de recurso (artigos 684.º, n.º 2 do CPC, 69.º e 75.ºA da LTC). De acordo com jurisprudência constante e uniforme deste Tribunal, ao enunciar no requerimento de interposição de recurso, a norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretende sindicar, o recorrente delimita, em termos irremediáveis e definitivos, o objeto do recurso, não lhe sendo consentida qualquer modificação ulterior, sem prejuízo da sua restrição, expressa ou tacitamente, nas conclusões da alegação, prevista no n.º 3 do artigo 684.º do CPC (Acórdãos n.º 286/00, 146/06, 293/07 e 3/09, acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt, como os demais referidos). Assim sendo, recai sobre o recorrente o ónus de especificar no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Judicial a decisão judicial impugnada, na qual ocorreu a efetiva aplicação normativa questionada no plano da legitimidade constitucional, e cuja reforma se pretende obter (artigo 80.º, n.º 2 da LTC), sem que lhe seja permitido ampliar em momento posterior esse impulso, dirigindo-o, alternativa ou conjuntamente, a outra decisão judicial.
17. Ora, todos os recursos apresentados (fls. 6605 e segs.; 7023 e segs.; e 7081 e segs.) fazem menção a uma única decisão como recorrida, pese embora aludam incidentalmente a outras decisões judiciais. Essa conclusão, de acordo com os cânones hermenêuticos acolhidos no artigo 236.º do Código Civil, encontra no texto desses requerimentos suporte inequívoco, dada a constância das referências, no singular, à “decisão recorrida”, reportada a (um) Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra.
Assim acontece no requerimento apresentado pela recorrente D., Lda, a fls. 6605 e segs., a partir da referência inicial ao Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de junho de 2011 e a que “dele vem interpor recurso”, prosseguindo com alusões ao conteúdo dessa decisão.
Também no requerimento de fls. 7023 e segs, apresentado conjuntamente pelos arguidos A., B., D., Lda, e E., Lda, voltamos a encontrar a indicação inicial de interposição de recurso de uma única decisão judicial. Assim decorre da utilização do singular no pronome em “vêm dele interpor recurso para o Tribunal Constitucional” e das repetidas alusões, igualmente no singular, ao “Acórdão recorrido” nos títulos atribuídos a vários segmentos e no corpo do texto.
Sobre qual seja esse “Acórdão recorrido”, o requerimento de interposição de recurso oferece resposta de sentido único. Com efeito, quando se escreve “na interpretação sufragada pelo Acórdão recorrida na parte em que decidiu o recurso interlocutório designado pela letra B (págs. 26 e seguintes e 35 e seguintes do Acórdão recorrido)”, denota-se referência especificada que apenas encontra correspondência no Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de junho de 2011. O mesmo acontece com a referência a “fls. 38 do acórdão prolatado”, na alusão a “págs. 239 e seguintes do Acórdão” e a “pág. 268 do acórdão, nota 57”.
Nenhuma outra decisão vem referida no requerimento inicial como recorrida, i.e., como visada no recurso, em termos de obter a sua reversão. Encontram-se, é certo, alusões ao Acórdão que conheceu da arguição de nulidade mas, em nenhum momento, vem atribuída ao mesmo a efetiva aplicação, como ratio decidendi, dos “sentidos normativos” cuja ilegitimidade constitucional se aponta. Especificamente, encontra-se a referência ao “ponto 26 do requerimento em que arguíram a nulidade do Acórdão recorrido”, o que denota mais uma vez a atribuição dessa qualidade apenas ao acórdão proferido em 29 de junho de 2011, e, mais adiante, a propósito da segunda questão, repete-se a alusão ao “requerimento em que arguíram a nulidade do Acórdão recorrido (pontos 61 a 63)”, encontrando-se referências similares relativamente à quarta questão, colocando-se, entre parêntesis, menção a “fls. 307 e seguintes do acórdão recorrido, bem como fls. 5 do acórdão de 12 de maio de 2012, que completou aquele e conheceu das nulidades invocadas”. Manifestamente, quando o intérprete é confrontado com expressão que alude a duas decisões judiciais em que apenas uma é referida como “acórdão recorrido” não pode, sem colisão com o elemento textual, atribuir essa qualidade a todos os incidentalmente aludidos.
A única menção a que se pode atribuir alguma ambiguidade a esse propósito reside na alusão, inscrita na enunciação da terceira questão, a que o acórdão que conheceu das nulidades invocadas desenvolveu o que se designa por “interpretação perfilhada na espécie”. Porém, essa referência coexiste com a caracterização inicial da “inconstitucionalidade do Acórdão recorrido na parte que confirma a sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Viseu por omissão do dever de reenvio”, sentido confirmatório que assenta unicamente na decisão que julgou do mérito do recurso. Já não no acórdão da relação que conhece e indefere questão de nulidade aposta a outro acórdão da relação, pois não assume função de reexame da decisão proferida em 1ª instância.
Também no recurso apresentado pelo arguido C. (fls. 7081 e segs.), encontramos menção singular reiterada ao “Acórdão recorrido”, seguida de referências a folhas 283 a 287 e a fls. 287 a 292, remição que só encontra lugar no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de junho de 2011. O aresto proferido em 30 de maio de 2012 não ultrapassa a dezena de páginas, o que o afasta da condição de referido nas supra aludidas menções, em que se consubstancia, de acordo com o princípio do pedido, o impulso processual relevante para o cumprimento do ónus imposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 75.º-A da LTC, onde se inclui, como se disse, o ónus de indicar, em termos claros, qual a decisão que se pretende impugnar perante o Tribunal Constitucional (cfr. Lopes do Rego, Os recursos de fiscalização concreta na lei e na jurisprudência do Tribunal Constitucional, 2010, Almedina, pp. 211-212).
18. Acontece que, no seguimento de convite que lhes foi dirigido, ao abrigo do n.º6 do artigo 75.ºA da LTC, os recorrentes A., B., D., Lda e E., Lda, por um lado, e C., por outro, apresentaram peças processuais em que, conjuntamente com a formulação das questões colocadas à apreciação deste Tribunal, procuram inscrever no objeto do recurso impugnação dirigida não apenas ao acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de junho de 2011, mas igualmente ao acórdão do mesmo Tribunal proferido em 30 de maio de 2012, que indeferiu as nulidades arguidas pelos recorrentes sobre o primeiro.
Procuram obter esse efeito com a inscrição de parágrafo onde referem que o “recurso interposto pelos Recorrentes respeita ao acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de junho de 2011 e ao acórdão da mesma Relação de Coimbra que, em complemento do primeiro, em 30 de maio de 2012, julgou improcedentes as nulidades opostas pelos Arguidos ao segmento penal da decisão” e, ao longo do texto – bastante similar, embora mais condensado, ao que constava do requerimento de interposição de recurso - aditando às passagens em que especificam páginas do acórdão proferido em 29 de junho de 2011, indicação de “confirmado” ou “reiterado” pelo acórdão de 30 de maio de 2012, ou simplesmente juntando menção a esse aresto às referências ao acórdão anterior. Concomitantemente, todas as referências a “Acórdão recorrido” foram suprimidas, encontrando-se em seu lugar alusão genérica ao “Tribunal da Relação de Coimbra”.
Porém, contrariamente ao que os arguidos procuram sustentar, não existe entre as duas decisões do Tribunal da Relação de Coimbra elo de complementaridade, de confirmação ou de renovação que permita afastar a autonomia material e processual de ambas as pronúncias judiciais, mormente na perspetiva do exercício do direito ao recurso para o Tribunal Constitucional.
Na verdade, a decisão proferida em 29 de junho de 2011 esgotou o poder jurisdicional do Tribunal a quo sobre as questões colocadas nos recursos interpostos das várias decisões da primeira instância, nos termos do n.º 1 do artigo 666.º do CPC, ex vi artigo 4.º do CPP, sem prejuízo do suprimento de nulidades, nos termos admitidos pelo n.º 2 do preceito (o que aqui não aconteceu). Por seu turno, o acórdão proferido em 30 de maio de 2012, toma posição sobre a questão da presença de vícios geradores de nulidade, concluindo pela sua inverificação, pelo que os seus fundamentos e critério normativos efetivamente aplicados incidem necessariamente sobre esse objeto processual específico, sem afetar o precedente juízo sobre o mérito do recurso. Ou seja, o seu objeto – e a sua ratio decidendi - encontra-se circunscrito às específicas questões pós-decisórias suscitadas, mormente no cotejo com o preceito processual onde se encontram previstos os invocados vícios da sentença penal (artigo 379.º, n.º 1 do CPP).
Quanto muito, pode encontrar-se no acórdão que indefira a arguição de nulidades de sentença ou acórdão maior detalhe explicativo de certos aspetos da decisão anterior, por decorrência da necessidade de fundamentar a conclusão de que a anterior pronúncia obedecera plenamente à obrigação de fundamentação, conhecera de todas as questões de que devia conhecer - o que implica naturalmente a delimitação e caracterização das questões a conhecer - ou não padecia de inconciliabilidade entre os seus fundamentos ou entre estes e a decisão. Porém, esse esforço de motivação da decisão sobre as questões de nulidade não opera qualquer modificação nos termos da decisão primária, cujo sentido material e fundamentação persistem inalterados, face à improcedência das nulidades invocadas e ausência de qualquer reforma (ou correção) do decidido.
Assim, sendo autónomas as decisões, o recurso que procure impugnar uma e outra deverá exprimir, com o mínimo arrimo no texto da peça processual que o interponha, esse duplo alcance.
O que não acontece, como se referiu, com os requerimentos de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, cingidos à impugnação do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de junho de 2011 e que, nos termos uniformemente afirmados pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, fixam o objeto do recurso, sem margem para a sua ampliação posterior.
É certo que, no caso do recorrente C., encontramos de específico o facto do despacho-convite, proferido ao abrigo no n.º 6 do artigo 75.ºA da LTC, ter aludido ao Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 30 de maio de 2012 como aquele por si impugnado. Essa leitura, que, como se viu, resulta incorreta face à consideração global do requerimento, legitima o recorrente a esclarecer o sentido do recurso, precisando em termos claros e inequívocos qual a “decisão recorrida” a que aludira, como aconteceu com a indicação de abertura na peça processual de resposta de que “[o] recurso interposto [...] respeita ao acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de junho de 2011”. Mas, não consente que o objeto do recurso (em sentido processual) seja ampliado, de forma a passar a comportar duas decisões recorridas, no que constitui, em substância, a apresentação, já fora do respetivo prazo, de um novo recurso de constitucionalidade.
19. Face ao exposto, não será conhecido o recurso na parte em que, nas peças processuais de resposta ao convite formulado neste Tribunal pelo relator, procuram os recorrentes A., B., D., Lda e E., Lda, por um lado, e C., por outro, impugnar também o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 30 de maio de 2012.
1.3. Questões de que não cabe conhecer
1.3.1. Do recurso interposto pela arguida D., Lda
20. Tomemos, agora, as várias questões colocadas pelos recorrentes, a começar pelo recurso interposto pela arguida D., Lda, incidente sobre o segmento do Acórdão recorrido em que se rejeitou o recurso interposto do despacho proferido a fls. 2839, tendo em atenção a posição veiculada pelo Ministério Público em alegações quanto à inverificação dos pressupostos de que depende o respetivo conhecimento.
1.3.1. 1. Primeira questão de constitucionalidade
21. Nesse recurso, a recorrente formula duas questões de constitucionalidade. A primeira questão remete para “sentido normativo”, que a recorrente qualifica como “interpretação restritiva do conceito de legitimidade para recorrer”, e aponta como extraída do artigo 401.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal, enunciada nos seguintes termos: “O arguido não tem legitimidade para recorrer do despacho que indefere a realização de prova pericial se o tribunal, no respetivo despacho de indeferimento, equacionar a eventualidade de, ainda no decurso da audiência de julgamento, poder reponderar parcialmente a sua decisão, mesmo que o tribunal não tenha efetuado tal reponderação e de ter admitido, logo e sem mais, o dito recurso”. Como parâmetro constitucional violado, indica-se o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
Em alegações, a recorrente considera que o Tribunal a quo entendeu que o recurso interlocutório versava decisão de indeferimento da realização de perícia colegial que havia requerido na contestação e que lhe negou o direito ao recurso, com fundamento em ilegitimidade, em função da “hipótese [do tribunal de julgamento] vir a ordenar no futuro, oficiosamente, uma diligência idêntica ou similar àquela que foi objeto de indeferimento expresso”. E, à violação do artigo 32.º, n.º 1 da Constituição sustentada aquando da interposição do recurso, acrescenta a infração dos princípios da confiança e da segurança jurídica, decorrentes do princípio do Estado de Direito Democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição.
O Ministério Público, em resposta, considera que o que vem controvertido não é uma norma mas, antes, o ato de julgamento, e pugna pela “rejeição” do recurso nessa parte, por inidoneidade do seu objeto.
Notificada, a recorrente reitera que questionou “segmento normativo”, inscrito na interpretação perfilhada na decisão recorrida, e não “erro de aplicação da lei”.
22. Para melhor perceção do problema a dirimir, centrado no conteúdo material do despacho proferido fls. 2839, em apreciação dos requerimentos de prova apresentados na contestação, deixemos o segmento da decisão recorrida em que se pondera esse recurso intercalar, concluindo pela sua rejeição:
“2.1. Na contestação oportunamente oferecida (fls. 2.638 e segs.), concretamente a fls. 2.650/2.657), além do mais por ora irrelevante, requereram os arguidos D., S.A; A.; E., Lda., e B., a realização de prova pericial.
Tal pretensão mereceu apreciação judicial nos termos do despacho exarado a fls. 2.839, com o teor seguinte:
“Na contestação pretende-se, ainda, a realização de uma perícia colegial.
Ora, no que tange à perícia requerida e aos quesitos formulados somos do entendimento que tais questões podem ser esclarecidas quer com a prova documental junta aos autos, quer com os peritos já indicados em audiência de julgamento ou com as testemunhas e técnicos indicados quer pela acusação quer pela defesa.
A isto acresce a circunstância de alguns dos quesitos serem matéria de direito e não factual.
Pelo exposto, para já, indefere-se a sua realização, sem prejuízo de vir a ser ordenada em relação a alguns aspetos, caso o Tribunal assim o entenda no decurso da audiência.”
Esta a decisão que fundamenta a primeira irresignação de alguns dos arguidos, tal como vertida supra em 1.5. A.
E, que dizer relativamente à mesma?
De acordo com o art.º 401.º, do Código de Processo Penal:
“1. Têm legitimidade para recorrer:
(…)
b) O arguido (…), de decisões contra ele proferidas;
(…)
2. Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir.”
Explicitando a destrinça que deve fazer-se entre “legitimidade” e “interesse em agir” para recorrer, opina Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição atualizada, pág. 1.021, que “Tem legitimidade para recorrer aquele que é “afetado” pela decisão, isto é, aquele cujos direitos foram prejudicados ou poderão vir a ser prejudicados pela mesma.
(…)
Tem interesse em agir aquele que tem carência do processo (rectius, do recurso) para fazer valer o seu direito. Ou seja, não existe interesse em agir nos seguintes casos:
a. O sujeito ou interveniente processual conformou-se com a decisão proferida.
b. O sujeito ou interveniente processual promoveu a decisão proferida.”
Por outro lado e a propósito, menciona Maia Gonçalves – In Código de Processo Penal Anotado, Legislação Complementar, 16.ª edição, Almedina, Coimbra, pág. 850 –, que “Enquanto a legitimidade é subjetiva e vai valorada a priori, o interesse em agir é objetivo e terá de se verificar em concreto.”
O interesse em agir não visa “apenas, proteger meros interesses particulares do réu, mas, e com caráter principal, a ele está subjacente um interesse público – o interesse de se promover o andamento da atividade jurisdicional, mantida a expensas da coletividade, somente quando os direitos estejam carecidos de tutela judicial.” Como mais anota este autor “o interesse processual deverá ser encarado como um requisito capaz de glorificar a máquina processual, fazendo-a funcionar somente nas situações objetivamente carecidas de tutela judicial.”
In casu, afigura-se-nos comprovar-se o interesse em agir dos arguidos recorrentes, uma vez que carentes do processo (rectius, do recurso) para fazerem valer o seu direito a uma defesa ampla, nomeadamente sem preclusão do contraditório relativamente aos factos que constituem o objeto do processo, e contraditório a poder exercitar-se em igualdade de armas com a acusação.
Todavia, outro tanto não se verifica com a legitimidade. Na verdade, atentos os termos em que foi ponderada a sua pretensão (relegando-se para ulterior momento a possibilidade ainda de realização da diligência probatória em causa, e acaso viesse ulteriormente a ter-se por necessária) não podemos afirmar, desde já, que o despacho recorrido os prejudicou em uma qualquer das dimensões invocadas. Com efeito, apenas hipotética e eventual ulterior apreciação da pretensão dos arguidos, denegando-lhes o solicitado, lhes concederia “legitimidade” – porquanto “afetados” – para, então, sim, poderem controverter o decidido.
A admissão do recurso em 1.ª instância não vincula este Tribunal [art.º 414.º, n.º 3, do Código de Processo Penal].
Donde que por tal fundamento, caiba rejeitar-se esta primeira impugnação.”
Como se vê, o Tribunal a quo assume como critério ou padrão normativo para aferir da legitimidade ativa para a interposição de recurso, a afetação negativa da posição jurídico- subjetiva do arguido atingido, operada pela concreta decisão judicial, como emerge da transcrição a que se procede de obra de Paulo Pinto de Albuquerque. E, compreende-se das alegações que a recorrente pugna por esse mesmo entendimento, tanto assim que sublinha essa mesma passagem (cfr. ponto 22 do corpo das alegações) como, mais adiante, em transcrição de jurisprudência, remete para critério normativo em tudo idêntico, por referência a que “a legitimidade corresponde à utilidade que o recorrente resulta da procedência do recurso, aferida de acordo com um critério material pelo que (à exceção do MP) tem legitimidade o recorrente para quem a decisão é desfavorável (ou não é a mais favorável que podia ser)...”.
Verificada essa sintonia de entendimento sobre o critério normativo sufragado, emerge a interrogação sobre onde se situa o dissídio da recorrente e, a jusante, qual o plano de desconformidade constitucional colocado à apreciação deste Tribunal.
23. Confrontado o impulso recursório formulado, a resposta encontra-se, como sustenta o Ministério Público, no plano da subsunção ao referido critério normativo de desfavor substancial dos contornos específicos do caso em apreço, em especial na presença ou ausência de impugnação de decisão judicial que pese negativamente sobre o recorrente (rectius, a sua defesa), tomando o objeto do recurso para a relação fixado nas conclusões das pertinentes motivações, e a interpretação do sentido dispositivo e das vinculações processuais decorrentes do despacho recorrido.
Com efeito, a recorrente toma como realidade indiscutível a natureza do despacho proferido a fls. 2839, como traduzindo o indeferimento da pretensão formulada – “um despacho de recusa desta pretensão” - e, inerentemente, a aquisição processual da denegação da realização de perícia com o âmbito por que pugnou na contestação.
Assim, a partir do sentido que retira do referido despacho, a recorrente vem questionar interpretação normativa que, além do que consta do preceituado na alínea b) do n.º 1 do artigo 401.º do Código de Processo Penal, exija a irreversibilidade da decisão sobre a prova. Na ótica do recorrente, do critério normativo efetivamente aplicado pelo Tribunal a quo faz parte, como elemento negativo (limite) da legitimidade para recorrer, a eventualidade de reponderação da decisão de indeferimento ao longo da audiência de julgamento.
Porém, não foi essa a leitura do Tribunal a quo. Interpretando os termos do despacho recorrido para a relação, considera que a 1ª instância sobrestou na decisão da realização da perícia e, nessa medida, não “denegou o solicitado”; apenas relegou para momento ulterior a pronúncia definitiva. E, a partir dessa premissa, concluiu que o despacho recorrido não determinou prejuízo para os sujeitos processuais requerentes (onde se inclui a arguida D., Lda) “em uma qualquer das dimensões invocadas”.
Ou seja, o Tribunal a quo não aplicou norma, ou interpretação normativa, de que faça parte, como determinante da afirmação de ilegitimidade para o recurso, a mera possibilidade de vir a ser posteriormente ordenada perícia cuja realização tivesse sido apreciada e indeferida. Como se disse, na interpretação do despacho proferido pela 1ª instância efetuada pelo Tribunal a quo, o efeito processual pretendido – realização da perícia requerida - não foi negado, mas sim sobrestado o seu conhecimento, o que encontra tradução – certa ou errada, não nos cabe apreciar – na asserção final: “[c]om efeito, apenas hipotética e eventual ulterior apreciação da pretensão dos arguidos, denegando-lhes o solicitado, lhes concederia legitimidade – porquanto afetados – para, então sim, poderem controverter o decidido” (sublinhado nosso).
Note-se que, na economia da decisão recorrida, os adjetivos hipotético e eventual encontram-se associados ao resultado negativo (denegatório) para o requerente da apreciação ulterior, e não, como pretende a recorrente, à adição de uma cláusula genérica de provisoriedade ou de revisibilidade potencial de decisão de indeferimento já proferida e consolidada no processo. Como também não se encontra em qualquer momento do Acórdão recorrido a afirmação do elemento de facto casuístico que a recorrente procura introduzir na formulação da questão que coloca à apreciação do Tribunal Constitucional, a saber, que o Tribunal de julgamento não efetuou “tal reponderação”.
Nestes termos, verificamos que a recorrente constrói a aplicação de interpretação normativa ancorada na alínea b) do n.º 1 do artigo 401.º do Código de Processo Penal que não se identifica com aquela efetivamente acolhida e aplicada pelo Tribunal a quo.
São, por outro lado, espúrias as considerações levadas às alegações sobre a aplicação pelo Tribunal a quo de “um perfeito absurdo lógico”. Não cabe a este Tribunal apreciar o resultado da aplicação do critério normativo às especificidades (processuais) do caso, no que constitui ato de julgamento, em si mesmo considerado, mas sim a conformidade da regra efetivamente aplicada (bem ou mal) com a Constituição. E, como se viu, a regra ou padrão aplicado reconduz-se à interpretação literal da alínea b) do n.º 1 do artigo 401.º do Código de Processo Penal, sem qualquer recorte limitativo, expresso ou implícito, de forma a “excluir as decisões desfavoráveis às quais seja aposta a reserva por ora, para já ou até ver”. Persiste, antes, dissídio sobre se a decisão proferida em 1ª instância encontra subsunção no conceito de decisão desfavorável, fruto de diferente perceção do seu conteúdo dispositivo, o que, por não constituir questão normativa, permanecerá intocado, qualquer que seja a resposta à questão colocada no recurso para o Tribunal Constitucional.
Em suma, verificando-se que a dimensão normativa inscrita na questão colocada não foi efetivamente aplicada, como ratio decidendi, na decisão recorrida, cumpre concluir, face ao disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, pelo inidoneidade do objeto do recurso quanto a essa primeira questão e decidir pelo seu não conhecimento.
24. Assente a ausência desse pressuposto objetivo e a incognoscibilidade do recurso nessa parte, mostra-se inútil prosseguir com a apreciação da legitimidade da recorrente, face ao ónus imposto pelo n.º 2 do artigo 72.º da LTC, uma vez que, como a recorrente indica, não suscitou previamente, perante o Tribunal da Relação de Coimbra, questão normativa de constitucionalidade ancorada no preceituado na alínea b) do n.º 1 do artigo 401.º do Código de Processo Penal (artigo 660.º, n.º 2 do Código de Processo Civil ex vi artigo 69.º da LTC).
1.3.1.2. Segunda questão de constitucionalidade
25. A segunda questão colocada no recurso que a arguida D., Lda., dirigiu à vertente do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 29 de junho de 2011 sobre o recurso interlocutório interposto, alude a “solução normativa”, que a recorrente reconduz ao preceituado no artigo 151.º do Código de Processo Penal, segundo a qual, “quando a perceção e apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos científicos ou artísticos, pode ser livremente recusada pelo Tribunal a prova pericial requerida pelo arguido e substituída pela prova documental e testemunhal”.
Ora, e como bem aponta o Ministério Público e a assistente, em momento algum a decisão recorrida integra a aplicação de norma ou de interpretação normativa com esse sentido e versando os termos de admissão, produção ou substituição de prova pericial.
Na verdade, o recorrente defende que o Acórdão recorrido confirmou a decisão da 1ª instância, apesar de ter rejeitado o recurso, o que não é correto. A decisão de rejeição do recurso por ausência de legitimidade, como aconteceu, afasta o conhecimento do recurso, inexistindo decisão sobre o respetivo mérito e, inerentemente, decisão confirmatória a que seja possível atribuir, como ratio decidendi, critério normativo (aquele questionado ou qualquer outro). Encontramo-nos no campo de aplicação conjugada dos artigos 420.º, n.º 1, alínea b), 414.º, n.º 2 e 401.º, n.º 1, alínea b) do CPP, em que a decisão de rejeição equivale à não admissão do recurso, e não da rejeição prevista nos artigos 420.º, n.º 1, alínea a) do CPP, por manifesta improcedência, em que existe apreciação de (de)mérito, mesmo que perfunctória.
Pretende, então, o recorrente, que o Tribunal Constitucional aprecie ex novo questão de constitucionalidade relativamente a interpretação normativa que não foi por qualquer forma aplicada pelo Tribunal a quo, nem o podia ser, não estando este vinculado ao conhecimento de qualquer problema de constitucionalidade sobre essa dimensão do recurso levado às conclusões da motivação respetiva (sem cuidar aqui de apreciar se o foi), como aconteceria se o recurso tivesse merecido decisão de admissibilidade.
Importa assinalar que não nos encontramos perante situação enquadrável como de aplicação implícita de norma cuja desconformidade constitucional fora suscitada, relativamente à qual vem sendo firmada jurisprudência constante no sentido da verificação do requisito de admissibilidade decorrente da alínea b) do n.º 1 do Artigo 70.º da LTC (cfr., entre muitos, os Acórdãos 176/88, 451/89, 253/93, 318/90, 11/99, 355/05 e 49/09). Essa jurisprudência assenta no pressuposto de que o tribunal recorrido omitiu o conhecimento da questão de constitucionalidade pertinente aos critérios normativos determinantes da decisão tomada. O que, no caso, abrange o plano da sua legitimidade para o recurso, versado na primeira questão colocada pela recorrente, mas não aquele relativo à subsistência constitucional de critério normativo cujo perímetro aplicativo diz respeito ao mérito de recurso que não chegou a ser conhecido.
Nessa medida, também quanto a esta segunda questão, e, então, in totum, não pode o recurso apresentado pela arguida D., Lda, sobre o segmento do Acórdão do Tribunal da Relação de 29 de junho de 2011 que rejeitou o recurso interposto do despacho de fls. 2839 ser conhecido, por inidoneidade do seu objeto.
1.3.2. Do recurso interposto pelos arguidos A. e outros
26. Passemos, agora, ao recurso que, conjuntamente, os arguidos A., B., D., Lda, e E., Lda, interpuseram do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de junho de 2011, no âmbito do qual distinguiram quatro questões de constitucionalidade.
Relativamente às três primeiras questões, o Ministério Público e o assistente IFAP pugnam pela inverificação dos pressupostos exigidos para o seu conhecimento, o que cumpre, desde já, apreciar, a começar por aquela que versa, igualmente, a decisão de recurso interlocutório, relativo ao decaimento do recurso que versou a decisão que indeferiu incidente de recusa de assessores nomeados pelo Tribunal.
1.3.2.1. Primeira questão de constitucionalidade
27. Os recorrentes colocam à apreciação do Tribunal Constitucional questão que caracterizam nestes termos: “[d]a inconstitucionalidade das normas dos art.ºs 39.º, n.º 1, alíneas c) e d) e 40.º do CPP e do art.º 649.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, na aplicação que delas é feita pelo Acórdão da Relação de Coimbra, na parte em que decidiu o recurso interlocutório designado pela letra B”. E, mais adiante, referem que nessa decisão se “afirma uma interpretação/aplicação que resulta no segmento normativo segundo o qual a circunstância da anterior participação dos assessores nomeados (quer como testemunhas, quer como autuantes) em processos nos quais os Arguidos figuraram enquanto participados ou alvo de acusação, não constitui fundamento da sua recusa”.
Considera o Ministério Público que “não foi aplicada, ou sequer construída, qualquer pretensa norma extraída” daqueles preceitos e, novamente, aponta ao recurso “inexistência de objeto”, fundamentadora da sua rejeição. Também a assistente afirma que a interpretação normativa apontada pelos recorrentes não encontra efetiva aplicação na decisão recorrida e pugna pela não conhecimento do recurso nessa parte. Em resposta, os recorrentes sustentam que não colocaram problema circunscrito à mera aplicação da lei aos factos apurados nos autos, pois houve aplicação implícita do “segmento normativo” questionado e que em contrário não há que invocar o facto da decisão recorrida não indicar expressamente os apontados preceitos legais.
28. Importa dizer que a razão encontra-se com o Ministério Público e assistente. A decisão recorrida assenta inteiramente em critério normativo extraído do artigo 43.º do Código de Processo Penal, sem que sejam equacionados, isolada ou conjugadamente, como ratio decidendi da decisão do recurso sobre o incidente de recusa como fonte normativa os artigos 39.º e 40.º do Código de Processo Penal, preceitos relativos à figura do impedimento, ou o artigo 649.º do Código de Processo Civil, atinente à requisição ou designação de técnico para assessorar o Tribunal em questões que exijam conhecimentos especiais.
Na verdade, denota-se que essa conjugação de preceitos integra a solução defendida pelos recorrentes no plano infraconstitucional, imputando os recorrentes a desconformidade constitucional à decisão, e não a qualquer norma ou interpretação normativa. As repetidas referências à devida aplicação de tais preceitos no requerimento de interposição de recurso revelam esse objeto, assim como a inclusão de referência às “circunstâncias” dos presentes autos, passando pela imputação da desconformidade constitucional ao que for “[e]ntender o contrário” (cfr. B), 1, i)). E prossegue nas alegações, em que, novamente, a ilegitimidade constitucional é referida à divergência com decisão recorrida sobre o que “deverá entender-se relativamente aos (...) assessores técnicos”.
Acresce que, contrariamente ao que pretendem fazer crer os recorrentes, o Tribunal não desconsiderou a anterior atividade dos assessores; considerou, sim, que estava perante mera referência genérica a um temor minimamente fundado e, então, perante quadro de facto insuscetível de fundar a afirmação de motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do visado. Encontra-se aí, no acolhimento desse conceito como padrão para a recusa de assessores nomeados, o critério normativo efetivamente aplicado, sem que sobre o mesmo incida qualquer questão de desconformidade constitucional.
Então, para além de não atingir a efetiva ratio decidendi em que assenta a decisão recorrente, encontramo-nos perante questão que visa na realidade ver controlado pelo Tribunal Constitucional o ato de julgamento, em si mesmo considerado, na autónoma valoração das particularidades do caso em apreço e na atividade de subsunção do direito ordinário, e não a conformidade constitucional de qualquer norma, ou interpretação normativa, enunciada abstratamente e vocacionada para aplicação generalizada a todos os processos.
Resta acrescentar que os termos da resposta apresentada pelos recorrentes apenas confirma o acerto do que se vem de dizer. Na verdade, os recorrentes pretendem convencer que o Tribunal a quo que não apreciou oficiosamente, como devido, questão de impedimento de dois assessores, no que constituiu afirmação de silêncio decisório sobre questão, para, logo de seguida, afirmar que esse silêncio constituiu admissão implícita de determinada situação processual e construir, inteiramente no vazio, um “segmento normativo” aplicado.
Afasta-se, pelo exposto, o conhecimento desta questão.
1.3.2.2. Segunda questão de constitucionalidade
29. A mesma ordem de considerações encontra lugar na ponderação da questão seguinte, dirigida a interpelar o que se qualifica de “segmento normativo”, segundo o qual “a realização de perícia em desconformidade com os arts. 151.º, 152.º, n.º 1, e 153.º, n.º 2, do CPP permite, sob o ponto de vista formal, a consideração pelo tribunal dos respetivos relatórios periciais juntos aos autos como prova documental e dos depoimentos dos seus autores como testemunhas, atribuindo, todavia, a um ou a outro meio de prova um caráter técnico que só a prova pericial permite”.
Novamente, o Ministério Público e a assistente consideram que o recurso não pode ser conhecido nessa parte, pela ausência de efetiva aplicação na decisão recorrida da interpretação questionada.
Ora, resulta da formulação escolhida, com forte clareza, que os recorrentes procuram impugnar o ato casuístico de valoração da prova, partindo até de uma conclusão por completo arredada da decisão recorrida: a de que foi realizada perícia desconforme com os artigos 151.º, 152.º, n.º 1, e 153.º, n.º 2, do CPP, o que por si só conduziria à ausência de identidade da questão colocada com a ratio decidendi em que assenta a decisão recorrida.
Trata-se, também aqui, de procurar questionar o acerto do ato de julgamento (em matéria de facto), enquanto valoração casuística das provas, e de imputar à decisão - e não a qualquer interpretação normativa aplicada como determinante judicativa - infração constitucional alojada na conjugação daqueles preceitos processuais penais. Aliás, isso mesmo resulta evidente do segmento em que se imputa ao julgamento de improcedência do recurso a violação do princípio do contraditório e da igualdade de armas.
Diga-se, por fim, que os recorrentes indicam nas alegações que “subsumiram (...) o critério normativo fundamento da decisão ao disposto no artigo 151.º do CPP, conjugado com as demais normas relativas à regulação da prova pericial no CPP e ao artigo 340.º, n.º 1, também do CPP” porque o Tribunal da Relação de Coimbra não identificou os preceitos legais em que estribou a sua decisão “que, ao rejeitar o recurso interposto pelos Recorrentes, confirmou a decisão do tribunal de primeira instância” (cfr. conclusões 96 a 100, observando-se que no requerimento de interposição de recurso não é feita menção ao artigo 340.º do CPP).
Ora, sendo certo que o Tribunal Constitucional tem afirmado que a circunstância de determinado preceito não ser expressamente referido na decisão recorrida não impede, de um ponto de vista lógico jurídico, a consideração da aplicação implícita de norma dele extraída, contando que resulte com segurança da conjugação argumentativa que o Tribunal a quo não podia deixar de o ter em mente (cfr., entre muitos, os Acórdãos n.º 207/86, 158/86, 406/87, 466/91, 481/94, 637/94, 33/96, 454/03, 9/06, 545/07, 111/08 e 49/09) esse quadro interpretativo não se identifica, nem confunde, com a ficção de critério normativo a partir de resultado aplicativo contrário ao direito ordinário tido por correto. O reexame a desenvolver no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade incide sobre a norma efetivamente aplicada como determinante do julgado, e não sobre a norma que, no entender dos recorrentes, deveria ter sido aplicada. Caso contrário, estaria o Tribunal Constitucional a censurar a decisão recorrida por ter ou não escolhido determinadas normas, o que não cabe nas suas competências.
Encontra aqui aplicação o que se refere no Acórdão n.º 111/08: “(...) É certo que a conclusão de que determinada norma foi efetivamente aplicada na solução de uma concreta questão que aos tribunais cumpra resolver não tem necessariamente de ser obtida (sempre e apenas) por referencia explícita contida no texto da decisão. Apesar da ausência de menção expressa a uma certa norma, ainda haverá aplicação dela (aplicação implícita) quando o contexto da decisão ou os seus antecedentes processuais imponham a inferência de que a solução da questão foi necessariamente extraída do critério normativo nela estabelecido. Mas o mero silêncio sobre certos factos ou aspetos da questão que interessariam à aplicação da norma em determinado sentido não basta para que se conclua pela sua aplicação com o sentido inverso. (...) [N]ão tendo o acórdão recorrido considerado tais factos relevantes para a decisão dessas questões – antes guardado sobre elas e sobre a sua relevância total silêncio -, nem os tendo dado como verificados, não é possível afirmar que tenha perfilhado o sentido normativo cuja apreciação se pretende. Ignorando-se as razões pelas quais esses factos não foram objeto de ponderação na decisão recorrida (para afirmar ou rejeitar a sua relevância), a apreciação de constitucionalidade a que agora se precedesse não iria recair sobre a aplicação efetiva do sentido normativo indicado pelo recorrente, mas sobre uma sua aplicação hipotética”.
Resta dizer que, contrariamente ao referido pelos recorrentes, o recurso (em matéria de facto) não foi rejeitado nessa parte. Foi julgado improcedente, de acordo com a valoração probatória efetuada, explicitada nas págs. 239 e 263 (ponto 4.3.), e, acrescente-se, sem que da fundamentação exarada resulte, expressa ou implicitamente, a atribuição a qualquer prova documental ou pessoal, do regime valorativo da prova pericial. Perscrutando na decisão recorrida passagem sobre essa dimensão – sem o auxílio das alegações dos recorrentes, onde não se encontra especificado qualquer segmento da decisão recorrida, abundando, sim, as alusões à decisão proferida em 1ª instância – encontra-se apenas a referência a um relatório extraído do processo 111/02.8 TAALQ para dizer que “foi o mesmo apreciado em 1.ª instância, livremente, subtraindo-se ao regime da prova pericial, mas, em todo o caso, submetido ao crivo do contraditório”.
Assim, mesmo que se encontrasse na formulação da questão a enunciação de critério normativo (sem cuidar neste momento da sua prévia e adequada suscitação nesses termos, pois os próprios recorrentes reconhecem em alegações que imputaram no recurso para a Relação a violação da Constituição “ao acórdão proferido pelo Tribunal Judicial de Viseu” - cfr. ponto 67 do corpo das alegações e conclusão 127ª da motivação do recurso para a Relação – e não a qualquer interpretação normativa), sempre seria de concluir pela sua inaplicação pelo Tribunal a quo como determinante do julgado.
Cumpre, também aqui, concluir pela inidoneidade do objeto do recurso e pelo seu não conhecimento.
1.3.2.3. Terceira questão de constitucionalidade (comum ao recurso apresentado pelo arguido C.)
30. Estas considerações transportam-nos para a terceira questão colocada, nos termos da qual, partindo do que se considera integrar omissão de cumprimento do dever de reenvio imposto pelo parágrafo 3.º do artigo 267.º do TFUE, teria sido aplicado “segmento normativo”, de acordo com o qual “O TJUE não tem competência exclusiva para julgar questões prejudiciais relativas à interpretação de normas do direito comunitário, quanto as mesmas são suscitadas em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, pelo que não é obrigatório o reenvio prejudicial das questões desta natureza ao TJUE”.
E, num segundo plano, com a indicação de que “a interpretação perfilhada na espécie é (...) desenvolvida pelo Tribunal da Relação de Coimbra a páginas 2 e 3 (por remissão da página 5) do acórdão de 30 de maio de 2012”, encontra-se a enunciação de um segundo “segmento normativo”, de acordo com o qual “o Tribunal Judicial que, em matéria penal, julga em última instancia não está obrigado a proceder ao reenvio prejudicial quando exista recurso interlocutório pendente para o Tribunal Constitucional ou recurso restrito à matéria cível, na medida em que não está ainda esgotada a possibilidade de recursos internos”. Note-se que essa dupla formulação encontra-se já no requerimento inicial, sendo repetida, ainda que com diferente arrumação expositiva, na resposta ao convite ao aperfeiçoamento.
A mesma questão - ou questões - com formulação inteiramente coincidente, encontra-se no requerimento de interposição de recurso “aperfeiçoado” apresentado pelo arguido C., como uma das normas indicadas no ponto 3, o que justifica a apreciação conjunta de ambos os impulsos recursórios.
Como parâmetro constitucional violado apontam-se os n.ºs 1 a 4 do artigo 8.º da Constituição, por, no entender dos recorrentes, ao não se proceder ao reenvio prejudicial, ter sido negada a receção no ordenamento interno da competência do TJUE estabelecida no parágrafo 3.º do artigo 267.º do TFUE, e, do mesmo jeito, violado o princípio do juiz legal ou natural e infringidos os artigos 32.º, n.º 9, 216.º, n.º 1 e 217.º, n.º 3 da Constituição.
Acontece que nenhuma das questões colocadas corresponde a norma, ou interpretação normativa, efetivamente aplicada na decisão recorrida, proferida em 29 de junho de 2011, como, novamente, apontam Ministério Público e assistente.
31. Com efeito, os recorrentes A. e outros afirmam nas suas alegações que “a problemática do reenvio é desenvolvida pelo Tribunal da Relação de Coimbra, designadamente, a páginas 266 a 280 do acórdão de 29 de junho de 2011” (cfr. ponto 105) mas, percorrendo essas páginas, e em geral todo o aresto, nele não se encontra qualquer menção à propriedade – ou impropriedade - de colocação de questão prejudicial ao TJUE, a reenvio, ou sequer ao preceituado no parágrafo 3.º do artigo 267.º do TFUE. Encontra-se, sim, a apreciação do Direito da União Europeia reputado pertinente para o preenchimento do tipo penal do artigo 36.º do Decreto-Lei 28/84, de 20 de janeiro, mormente dos Regulamentos (CEE) n.ºs 351/79, 3389/81, 822/87, 3665/87, 2391/89 e 2238/93, sem expressão de dúvida ou de condições propiciadoras de pluralidade interpretativa.
Não se encontra, pois, qualquer decisão, no sentido relevante para a fiscalização concreta da constitucionalidade, ou seja, efetiva aplicação de norma ou interpretação normativa que constitua em termos lógico jurídicos a determinante do conteúdo dispositivo da decisão judicial impugnada, de forma a que, se removida, será necessariamente outra a sua apreciação. Carece, então, de propriedade a invocação de “decisão surpresa” pela simples razão que não existe na decisão recorrida qualquer dimensão aplicativa, expressa ou implícita, do preceituado no parágrafo 3.º do artigo 267.º do TFUE.
32. Mas não só. Contrariamente ao que refere o recorrente C., e encontra expressão nos termos da questão colocada – “(...) quando as mesmas são suscitadas em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional (...)” - , o problema da colocação de questão prejudicial sobre Direito da União Europeia ao TJUE, assim como dimensão normativa alojada no n.º 3 do artigo 267.º do TFUE e a respetiva conformidade constitucional, não foi posta à apreciação do Tribunal da Relação de Coimbra em qualquer das conclusões das várias motivações de recurso que lhe foram dirigidas e sobre as quais estava vinculado a tomar conhecimento na decisão recorrida. As conclusões referidas por aquele recorrente no requerimento de interposição de recurso (conclusões 8ª e 9ª, transcritas a fls. 6 da decisão recorrida) aludem a errada aplicação da “legislação comunitária então em vigor”, sem referência a qualquer obrigação de formulação de reenvio prejudicial ou a plano normativo de desconformidade constitucional caso fosse recusado ou omitido esse impulso, em termos de configurar aplicação implícita de tal dimensão normativa.
Na resposta que apresentaram quanto às questões de não conhecimento suscitadas pelo Ministério Público e assistente, os recorrentes objetam que o reenvio prejudicial não depende do princípio do pedido e constitui dever legalmente imposto ao Tribunal nacional cuja decisão não seja suscetível de recurso interno. Assim sendo, defendem, a sua legitimidade estaria assegurada pela verificação substancial da necessidade de proceder a reenvio prejudicial e pela condição de questão de conhecimento oficioso que a apreciação desse impulso assume no ordenamento processual penal português.
Porém, essa linha argumentativa, ainda tributária da visão que encontra no não conhecimento de questão de conhecimento oficiosa aplicação de critério normativo oposto ao que os recorrentes têm como ajustado – que já vimos incorreta – encerra confusão entre o que constitui o plano da questão de constitucionalidade e o plano, distinto, da melhor interpretação do direito infraconstitucional, incluindo do Direito da União Europeia.
Com efeito, quando se articula a ausência de colocação do problema do reenvio prejudicial no âmbito do recurso dirigido ao Tribunal da relação de Coimbra não se cuida de apreciar os poderes de cognição do tribunal ad quem nesse domínio e muito menos de negar a condição de questão oficiosamente cognoscível relativamente a qualquer tribunal que seja chamado a interpretar atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União. É que, não sendo essa interpretação e aplicação, em si mesma, uma questão constitucional, mas sim de aplicação de direito vigente no ordenamento nacional, por força da cláusula geral de receção plena constante do artigo 8.º, n.ºs e 1 e 4 da Constituição, a norma de Direito da União Europeia ou a interpretação normativa extraída de preceito constante de ato da União que se pretenda desconforme com a Constituição carece, nos mesmos termos do direito interno, de ser suscitada perante o Tribunal recorrido para assegurar a legitimidade do recorrente em sede de recurso para o Tribunal Constitucional, como exigido pelo n.º 2 do artigo 72.º da LTC.
Assim sendo, não se encontra na posição dos recorrentes situação que permita afirmar a inexigibilidade de suscitação prévia de questão de constitucionalidade em situação de recusa de formulação de questão prejudicial para o TJUE, por efeito de interpretação extraída do parágrafo 3.º do artigo 267.º do TFUE.
Diferentemente da visão dos recorrentes, que têm esse impulso como certo e necessário para Tribunal chamado a decidir de questão penal em que estejam imbricadas normas de Direito da União Europeia, nos termos em que o foi o Tribunal da Relação de Coimbra, a jurisprudência do TJUE e a doutrina acolhem exceções ao dever decorrente do parágrafo 3.º do artigo 267.º do TFUE, que não podem deixar de ser equacionadas. Constitui entendimento uniforme que o instituto não comporta automaticidade e que mesmo o juiz do Tribunal de última instância (condição que o os recorrentes atribuem ao Tribunal da Relação de Coimbra em matéria penal) deve, oficiosamente, proceder ao reenvio prejudicial tão somente quando se mostre objetivamente pertinente para a resolução da causa em julgamento. Pertinência objetiva essa avaliada, e fundamentada minimamente, em função: da aplicação de norma de Tratado institutivo ou de norma de Direito derivado, com sentido interpretativo que releve para a questão principal; da verificação pelo juiz de dúvidas razoáveis e sérias, sem que possa socorrer-se de jurisprudência consolidada, precedentes interpretativos ou casos análogos; ou da presença de dúvidas sobre a validade de norma de Direito da União Europeia derivado aplicável ao caso em questão (cfr. Fausto Quadros e Ana Maria Guerra Martins, Contencioso da União Europeia, 2ª edição, 2007, págs. 91 a 93 e Blanco de Morais, Justiça Constitucional, II, 2011, págs. 675 e 676).
Perante essa jurisprudência, inscrita no que os recorrentes designam por “problemática do reenvio”, não existe razão para dispensar os recorrentes da obrigação de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, o que constitui requisito da sua legitimidade (artigo 72.º, n.º 2 da LTC).
Face ao exposto, além de não respeitar a norma ou interpretação normativa efetivamente aplicada na decisão recorrida, falece igualmente aos recorrentes legitimidade para suscitar as questões colocadas à apreciação do Tribunal Constitucional, fundadas em interpretação do preceituado no artigo 267.º, parágrafo 3.º do TFUE.
33. Acrescente-se, mesmo que se aceitasse como decisão recorrida o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 30 de maio de 2012, ou a relação de complementaridade substantiva ou de integração entre os dois arestos propugnada pelos recorrentes – o que não acontece, como se disse – ainda assim o impulso desencadeado não poderia ser conhecido por este Tribunal.
Na verdade, o Tribunal da Relação afastou a presença de nulidade do acórdão que julgou improcedentes os recursos, em virtude de considerar que não estava vinculado a conhecer da questão de reenvio porquanto não lhe havia sido colocada como questão prejudicial previamente ao acórdão em que decidira do mérito do recurso e também – como segundo fundamento - porque considerou que não revestia a qualidade de Tribunal de última instância, face à interposição, então já verificada, de recursos para o Tribunal Constitucional e para o Supremo Tribunal de Justiça.
Não se tratou, então, de remover do campo normativo do parágrafo 3.º do artigo 267.º do TFUE a competência exclusiva do TJUE para a apreciação de questão prejudicial, mas sim subsumir o caso sub judicio a critério normativo assente na condição de “órgão jurisdicional nacional de cuja decisão já não haja recurso judicial no direito interno”, enquanto pressuposto positivo para a obrigação de reenvio prejudicial, na perspetiva de aferir da alegada nulidade do acórdão de 29 de julho de 2011, por omissão de conhecimento dessa questão.
Novamente, os recorrentes discordam do resultado dessa aplicação subsuntiva e, a partir desse dissídio, procuram construir critério normativo onde caibam elementos que o Tribunal a quo expressamente afastou, como seja a circunstância das questões suscetíveis de formulação de questão prejudicial não serem “suscetíveis de recurso judicial”. Saber se o Tribunal da Relação de Coimbra constitui – rectius, constituía no momento da decisão de mérito – o Tribunal com a última palavra sobre as normas de Direito da União Europeia pertinentes e estabelecer a melhor interpretação do artigo 267.º, parágrafo 3.º do TFUE nesse particular (domínio que não encontra resposta de sentido único, como dão notícia Fausto Quadros e Ana Maria Guerra Martins, ob. cit., pág. 90) e a sua correta aplicação no caso concreto, não constitui objeto idóneo ao controlo normativo da constitucionalidade acolhido na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição.
34. Face ao exposto, por inidoneidade do seu objeto, e também por ilegitimidade dos recorrentes, não será conhecida a terceira questão de constitucionalidade colocada pelos recorrentes A. e outros e, na parte relativa a norma extraída do artigo 267.º, parágrafo 3.º do TFUE e, a terceira questão de constitucionalidade colocada pelo arguido C..
35. Aqui chegados, cumpre tomar os pedidos, formulados a título subsidiário, pelo recorrente C., por um lado, e pelos recorrentes A. e outros, por outro, de suspensão da instância e colocação, pelo Tribunal Constitucional, de questões prejudiciais ao TJUE relativas à aplicação dos regulamentos n.ºs 822/87, 3665/87 e 883/2001.
A improcedência desses pedidos é manifesta.
Desde logo porque as questões formuladas não apresentam qualquer relevo – pertinência objetiva - para a decisão de qualquer das questões de constitucionalidade colocadas à apreciação do Tribunal Constitucional. Por outro lado, na perspetiva em que as colocam os requerentes, como questões incidentais das questões extraídas de interpretação normativa fundada no parágrafo 3.º do artigo 267.º do TFUE, a decisão de inadmissibilidade do recurso nessa parte significa que não resta instância constitucional pendente, suscetível de ser suspensa e de conferir utilidade à resposta que os recorrentes visam obter do TJUE.
Tanto basta para negar provimento a essas pretensões incidentais.
1.3.3. Recurso do arguido C.
36. Chegamos ao recurso interposto pelo arguido C., o qual formulou três questões, a última das quais, na vertente atinente ao artigo 267.º, parágrafo 3.º do TFUE, vimos de apreciar e de concluir pela prolação de decisão de não conhecimento.
1.3.3.1. Primeira questão de constitucionalidade
37. A primeira questão vem referida à criminalização operada pelo artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, por ofensa, na ótica do recorrente, do princípio da subsidiariedade acolhido no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, e dela cuidaremos adiante.
38. Esse mesmo preceito incriminatório é convocado numa outra dimensão da terceira questão formulada por esse recorrente, atinente ao reenvio para o TJUE, com afirmação de inconstitucionalidade “na interpretação sufragada pelo Tribunal recorrido, com ofensa do disposto pelas citadas normas comunitárias que definem concretamente pressupostos da subsunção da conduta do Recorrente ao crime de fraude na obtenção do subsídio”, por ofensa do n.º 4 do artigo 8.º da Constituição.
Assim colocada, a questão constitui impugnação da subsunção jurídico-penal operada no Acórdão recorrido, ou seja, visa o controlo por este Tribunal do ato de julgamento, em si mesmo considerado, no confronto com os elementos essenciais do crime de fraude na obtenção de subsídio e os elementos de direito europeu que integram, na espécie, a sua previsão.
Não se trata, novamente, de questionar critério normativo extraído de preceito de direito europeu, recebido no ordenamento nacional nos termos do n.º 4 do artigo 8.º da Constituição, na sua conformidade com princípios ou preceitos constitucionais, mas sim, ao cabo e ao resto, colocar ao Tribunal Constitucional o problema de saber se o crime imputado aos arguidos foi ou não cometido, por preenchido o seu tipo objetivo.
Temos, então, que o recorrente impugna verdadeiramente o ato judicial condenatório, em si mesmo considerado, na sua correção aplicativa do direito infraconstitucional pertinente, seja de direito nacional, seja de Direito da União Europeia.
Também aqui, o recurso não pode ser conhecido, por inidoneidade do seu objeto.
39. A questão restante, indicada em segundo lugar, partilha da mesma condição, de impugnação da decisão na sua ponderação e solução casuística, e não de reexame de critério normativo aplicado como ratio decidendi pelo Tribunal a quo com fundamento em desconformidade constitucional.
Com efeito, partindo do não acolhimento da pretensão de imputar ao Instituto da Vinha e do Vinho incumprimento dos respetivos deveres, e do sustentado efeito excludente da responsabilidade criminal dos arguidos por confiarem “na regularidade da sua atuação”, o recorrente sustenta que o Tribunal recorrido aplicou “segmento normativo”, extraída do artigo 6.º-A do Código do Procedimento Administrativo, segundo o qual “age de boa fé e não viola a confiança dos administrados a Administração que, tendo obrigação i) de prover ao cumprimento da legislação comunitária aplicável à atribuição de fundos comunitários e ii) de definir e publicitar a sua atuação na coordenação, regulação e controlo de um determinado setor de atividade, não faz, durante anos, nem uma coisa nem outra”.
O Ministério Público e a assistente apontam ao recurso, nessa parte, a ausência de questionamento normativo e assiste-lhes razão.
Patentemente, não nos encontramos perante o questionamento de uma norma, nem mesmo de dimensão interpretativa do conceito legal e constitucional de boa fé, mas sim de procurar ver apreciado, sopesando as particularidades do caso sub judicio, se a Administração agiu para com os arguidos de acordo com esse o princípio.
Aliás, foi isso mesmo que o recorrente colocou à apreciação do Tribunal da Relação de Coimbra – saber se fora, em concreto, na decisão da 1ª instância adequadamente apreciado o princípio da boa fé -, observando-se que o enfoque não foi colocado, como no recurso para o Tribunal Constitucional, na atuação da Administração, mas sim, diferentemente, na atuação dos arguidos. O que se diz na conclusão 13ª da motivação de recurso foi que ”a sentença recorrida mal andou ao considerar a atuação dos arguidos como lesiva do princípio da boa-fé, ao arrepio do disposto pelos artigos 6.º-A, do Código do Procedimento Administrativo, e 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa”.
Novamente, por não colocar questão normativa de constitucionalidade, o recurso não pode ser conhecido nessa parte por força do estatuído na alínea b) do n.º1 do artigo 70.º da LTC.
1.4. Questões a conhecer
40. Aqui chegados, verifica-se que, porque reunidos os respetivos pressupostos e requisitos, apenas cabe conhecer de duas questões colocadas pelos recorrentes A. e outros e pelo arguido C., a saber:
– A inconstitucionalidade material dos artigos 1.º, alínea a) e 4.º, alínea a) da Lei n.º 12/83, de 24 de agosto e a inconstitucionalidade orgânica do artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro;
– A inconstitucional material, por ofensa do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, do artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro.
2. Do mérito dos recursos
2.1. Da inconstitucionalidade material da Lei n.º 12/83, de 24 de agosto, e da inconstitucionalidade orgânica do artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro
41. Vêm os recorrentes A., B., D., Lda e E., Lda, sustentar que a Lei n.º 12/83, de 24 de agosto, que constituiu a lei de autorização legislativa que visou habilitar a alteração do ordenamento antieconómico, com tipificação de novos ilícitos penais e contravencionais, definindo novas penas ou modificando as então vigentes, não revestiu densificação material bastante, na medida em que dos seus artigos 1.º, alínea a) e 4.º, alínea a) não decorre, “sequer minimamente, o objeto, sentido e extensão dos futuros crimes a tipificar nesse âmbito”. Por tais razões, apontam-lhe indefinição do objeto e indeterminação de sentido, configurando “cheque em branco” ao Governo, em infração do disposto no artigo 168.º, n.º 2 da Constituição (versão de 1982).
E, na medida em que foi esse o diploma invocado como habilitante do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, em que se insere o crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, tipificado no artigo 36.º do mesmo Decreto-Lei, pelo qual foram condenados, consideram que essa normação se encontra, reflexa ou derivadamente, ferida de inconstitucionalidade orgânica, porquanto editada sem lei de autorização que habilitasse o Governo a criar esse tipo penal, por violação do disposto no artigo 168.º, n.ºs 1, alínea c) e 2 da Constituição. Importa esclarecer que os recorrentes aludem ao artigo 165.º da Constituição, onde atualmente se acolhe a reserva relativa de competência legislativa, em numeração que resulta da Lei Constitucional n.º 1/97. No momento da edição de qualquer dos diplomas questionados tal reserva alojava-se no artigo 168.º, na versão decorrente da Lei Constitucional n.º 1/82.
O problema colocado pelos recorrentes foi já apreciado pelo Tribunal Constitucional, como, aliás, se dá notícia no acórdão recorrido, através de transcrição do Acórdão n.º 302/95, e que tem como antecedente os Acórdãos n.ºs 213/95 e 214/95, sendo a conclusão de não inconstitucionalidade, nos planos questionados, reafirmada nos Acórdãos n.º 707/95, 959/96, 53/98, 635/98, 604/98, 453/00, 134/01 e 139/03.
Diz-se no Acórdão n.º 213/95:
“B - A alegada insuficiência na definição do sentido extensão da autorização legislativa concedida pela Lei nº 12/83, maxime, no que respeita aos artigos1º, alínea a) e 4º, alínea a)
1 - A Lei nº 12/83, na parte que aqui importa reter, dispunha assim:
Artigo 1º
É concedida ao Governo autorização legislativa para alterar os regimes em vigor, tipificando novos ilícitos penais e contravencionais, definindo novas penas, ou modificando as atuais, tomando para o efeito, como ponto de referência, a dosimetria do Código Penal, nas seguintes áreas:
a) Em matéria de infrações antieconómicas e contra a saúde pública;
.....................................................
Artigo 4º
O sentido das autorizações constantes dos artigos anteriores é:
a) Quanto às infrações antieconómicas e contra a saúde pública, a obtenção de maior celeridade e eficácia na prevenção e repressão deste tipo de infrações, nomeadamente atualizando o regime em vigor;
Sustenta o recorrente Município de Caminha que estas normas não definem 'suficientemente (nem sequer minimamente) o sentido e a extensão da autorização, configurando-se, pelo contrário, como um `cheque em branco' pois permite ao Governo criar `ad libitum' novos tipos de ilícito e novas penas'.
Será efetivamente assim?
2 - Em conformidade com o disposto no artigo 168º, nº 2 da Constituição, 'as leis de autorização legislativa devem definir o objeto, o sentido, a extensão e a duração da autorização, a qual pode ser revogada'.
A versão originária da Constituição no seu artigo 168º, nº 1, no quadro dos limites materiais, apenas se referia ao objeto e extensão, vindo a exigência do sentido da autorização a ser aditada na revisão da 1982, com o que se sublinhou a autonomia deste elemento substancial face ao significado dos demais, reforçando-se também o grau de rigor na determinação dos respetivos limites.
Acolheu-se assim a experiência de outros ordenamentos constitucionais onde tinha assento, já há muito, o princípio da especialidade das delegações legislativas (cfr. Lei Fundamental de Bona, artigo 80º e Constituição Italiana, artigo 7º).
Este Tribunal, ao longo de uma reiterada e uniforme jurisprudência - coincidente aliás com a doutrina mais autorizada - tem vindo a definir os contornos de delimitação e condicionamento do âmbito das leis de autorização, cabendo agora recordar, tão somente, a linha argumentativa ali utilizada, que por inteiro aqui se perfilha e mantém.
Seguindo tal orientação, dir-se-á que o objeto constitui o elemento enunciador da matéria sobre que versa a autorização, a extensão especifica qual a amplitude das leis autorizadas e através do sentido são fixados os princípios base, as diretivas gerais, os critérios rectores que hão de orientar o Governo na elaboração da lei delegada.
Este último elemento de condicionamento substancial constitui já, não um limite externo, definidor dos contornos da autorização, mas um verdadeiro limite interno à própria autorização, pois que é essencial para a determinação das linhas gerais das alterações a introduzir numa dada matéria legislativa.
Assim sendo, a autorização há de conter os princípios, as normas fundamentais que concedem unidade lógico-política à disciplina a editar pelo Governo, e há de estabelecer também as diretivas, reconduzíveis à determinação das finalidades a que aquela disciplina tem de adequar-se.
E deve sublinhar-se com especial destaque, que se o sentido da autorização não tem de exprimir-se em abundantes princípios ou critérios diretivos (que levados às últimas consequências poderiam até condicionar por inteiro em termos de conteúdo o exercício dos poderes delegados), deverá, no mínimo, como condição da sua própria verificação, ser suficientemente inteligível a fim de poder operar como parâmetro de aferição dos atos delegados e, consequentemente, como padrão de medida por parte do legislador delegado do essencial dos ditames do legislador delegante (cfr. por todos, os acórdãos nºs 107/88 e 70/92, Diário da República, respetivamente, I série, de 21 de junho de 1988 e II série, de 18 de agosto de 1992).
Ora, à luz do entendimento jurisprudencial que vem sendo afirmado por este Tribunal, haverá de dizer-se que a Lei nº 12/83, nas normas sob sindicância, não colide com o texto constitucional.
Com efeito, tanto os elementos enunciadores da matéria sobre que versa a autorização, como a amplitude a revestir pelas leis delegadas, isto é, o objeto e a extensão da autorização, se mostram suficientemente explicitadas no artigo 1º, alínea a) da respetiva lei, quando ali se habilita o Governo, no domínio da 'matéria de infrações antieconómicas e contra a saúde pública' a 'alterar os regimes em vigor, tipificando novos ilícitos penais e contravencionais, definindo novas penas, ou modificando as atuais, tomando para ao efeito, como ponto de referência, a dosimetria do Código Penal'.
E o mesmo deverá afirmar-se relativamente aos princípios gerais, aos critérios rectores a que a legislação autorizada havia de se conformar e obedecer.
Ao definir o sentido da autorização relativa às infrações antieconómicas e contra a saúde pública em termos de aquele se traduzir na 'obtenção de maior celeridade e eficácia na prevenção e repressão deste tipo de infrações, nomeadamente atualizando o regime em vigor' a Assembleia da República instruiu o Governo com uma diretiva suficientemente percetível quanto à 'orientação política da medida legislativa a adotar', e quanto aos valores, os bens jurídicos e os interesses que o legislador delegado deverá tutelar com a criminalização daquelas condutas.
Ao contrário do que vem sustentado pelo recorrente Município de Caminha, as indicações constantes da lei delegante, não constituindo propriamente um exemplo paradigmático do modo como deve ser traduzido o sentido das autorizações legislativas, fornecem todavia ao Governo os critérios de delimitação substancial indispensáveis à respetiva concretização legislativa, como aliás foi implicitamente reconhecido no debate parlamentar que antecedeu a aprovação da Lei nº 12/83, muito em particular nas intervenções dos senhores deputados António Vitorino, Costa Andrade e Magalhães Mota (cfr. Diário da Assembleia da República, I série, nº 21, de 14 de julho de 1983, pp. 884, 888 a 890 e 892 e 893).
C - Quanto ao alegado excesso de autorização do Decreto-Lei nº 28/84, na parte respeitante à definição dos crimes e à fixação das penas a que se reportam as normas dos artigos 36º e 37º, bem como a sua extensão às pessoas coletivas e equiparadas por forçados artigos 3º, nº 1 e 7º, nºs 1 e 4 do mesmo diploma
1 - O Decreto-Lei nº 28/84, nos artigos 36º e 37º definiu, respetivamente, os crimes de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção e desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado, e fixou as respetivas penas.
A propósito da criação destes dois novos tipos legais de crime, na exposição preambular daquele diploma, escreveu-se assim:
'Entre os novos tipos de crimes incluídos neste diploma destacam-se a fraude na obtenção de subsídios ou subvenções, o desvio ilícito dos mesmos e a fraude na obtenção de créditos, conhecidos de outras legislações, como a da República Federal da Alemanha, os quais, pela gravidade dos seus efeitos e pela necessidade de proteger o interesse da correta aplicação de dinheiros públicos nas atividades produtivas, não poderiam continuar a ser ignoradas pela nossa ordem jurídica'.
Ora, quando a Assembleia da República autorizou o Governo, em matéria de infrações económicas e contra a saúde pública a 'alterar os regimes em vigor' e a tipificar 'novos ilícitos penais e contravencionais, definindo novas penas ou modificando as atuais', com o objetivo de se alcançar 'maior celeridade e eficácia na prevenção e repressão deste tipo de infrações' facultou-lhe os instrumentos de política legislativa necessários 'a uma rápida revisão dos tipos e penas em matéria de criminalidade nos domínios económicos, financeiro e de defesa do consumidor, de modo a adequá-los a novas modalidades de delinquência e à gravidade das infrações praticadas' (cfr. Exposição de motivos da Proposta de Lei nº 20/III, Diário da Assembleia da República, II série, nº 18, de 9 de julho de 1983).
E assim sendo, ao definir os novos tipos legais de crime que se contêm nas normas dos artigos 36º e 37º do Decreto-Lei nº 28/83, o Governo não 'extravasou os limites normativos fixados na autorização legislativa', nem desrespeitou o seu sentido, limitando-se a concretizar uma diretiva que nesta seguramente se continha.”
Não se encontram motivos para nos afastarmos dessa doutrina, bem consolidada e inteiramente transponível para o presente recurso, pelo que, remetendo para tais fundamentos, se conclui pela improcedência da questão de inconstitucionalidade material dos artigos 1.º, alínea a) e 4.º, alínea a), da Lei n.º 12/83, de 24 de agosto e da (derivada) inconstitucionalidade orgânica do artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro.
2.2. Da inconstitucionalidade material do artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro
42. Também o recorrente C. colocou questão dirigida à inconstitucionalidade material do artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro. Entende que a incriminação consagrada nesse preceito ofende o n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, por “criminalizar uma conduta para cuja danosidade social se encontram previstas sanções outra índole e cuja aplicação permite obter a tutela do bem jurídico que aquele visa proteger”, designadamente no plano civil e administrativo, através da restituição, indemnização e retenção dos subsídios indevidamente auferidos.
Contra esse entendimento, posicionam-se Ministério Público e assistente.
O preceito em causa tem a seguinte redação:
Artigo 36.º
(Fraude na obtenção de subsídio ou subvenção)
1 - Quem obtiver subsídio ou subvenção:
a) Fornecendo às autoridades ou entidades competentes informações inexatas ou incompletas sobre si ou terceiros e relativas a factos importantes para a concessão do subsídio ou subvenção;
b) Omitindo, contra o disposto no regime legal da subvenção ou do subsídio, informações sobre factos importantes para a sua concessão;
c) Utilizando documento justificativo do direito à subvenção ou subsídio ou de factos importantes para a sua concessão, obtido através de informações inexatas ou incompletas;
será punido com prisão de 1 a 5 anos e multa de 50 a 150 dias.
2 - Nos casos particularmente graves, a pena será de prisão de 2 a 8 anos.
3 - Se os factos previstos neste artigo forem praticados em nome e no interesse de uma pessoa coletiva ou sociedade, exclusiva ou predominantemente constituídas para a sua prática, o tribunal, além da pena pecuniária, ordenará a sua dissolução.
4 - A sentença será publicada.
5 - Para os efeitos do disposto no n.º 2, consideram-se particularmente graves os casos em que o agente:
a) Obtém para si ou para terceiros uma subvenção ou subsídio de montante consideravelmente elevado ou utiliza documentos falsos;
b) Pratica o facto com abuso das suas funções ou poderes;
c) Obtém auxílio do titular de um cargo ou emprego público que abusa das suas funções ou poderes.
6 - Quem praticar os factos descritos nas alíneas a) e b) do n.º 1 com negligência será punido com prisão até 2 anos ou multa até 100 dias.
7 - O agente será isento de pena se:
a) Espontaneamente impedir a concessão da subvenção ou do subsídio;
b) No caso de não serem concedidos sem o seu concurso, ele se tiver esforçado espontânea e seriamente para impedir a sua concessão.
8 - Consideram-se importantes para a concessão de um subsídio ou subvenção os factos:
a) Declarados importantes pela lei ou entidade que concede o subsídio ou a subvenção;
b) De que dependa legalmente a autorização, concessão, reembolso, renovação ou manutenção de uma subvenção, subsídio ou vantagem daí resultante.
Nota-se, desde logo, que os recorrentes não discriminam qual o específico sentido normativo considerado, dentre as várias dimensões normativas alojadas no preceito. Não obstante, compreende-se que se pretende colocar em exame apenas aquela efetivamente aplicada na decisão recorrida, a saber, o ilícito criminal previsto e punido nos n.ºs 1, alíneas a), b), c), 2, 5, alínea a) e 8, do artigo 36.º, do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro.
A questão colocada prende-se com a identificação na criminalização da fraude na obtenção de subsídio ou subvenção de recurso desnecessário e, nessa medida, excessivo, à tutela penal, constituindo restrição de direitos, maxime do direito à liberdade, não legitimada pela salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (artigo 18.º, n.º 2 da Constituição).
Na verdade, como se diz no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 211/95 'o que justifica a inclusão de certas situações no direito penal é a subordinação a uma lógica de estrita necessidade das restrições de direitos e interesses que decorrem da aplicação de penas públicas (artigo 18º, nº 2, da Constituição). E é também ainda a censurabilidade imanente de certas condutas, isto é, prévia à normativação jurídica, que as torna aptas a um juízo de censura pessoal. Em suma, é, desde logo, a exigência de dignidade punitiva prévia das condutas, enquanto expressão de uma elevada gravidade ética e merecimento de culpa (artigo 1º da Constituição, do qual decorre a proteção da essencial dignidade da pessoa humana), que se exprime no princípio constitucional da necessidade das penas (e não só da subsidiariedade do direito penal e da máxima restrição das penas que pressupõem apenas, em sentido estrito, a ineficácia de outro meio jurídico)'.
Porém, assim não acontece com o tipo penal em questão, em que o valor carecido de proteção radica em bens jurídicos supraindividuais que não se exauram na vertente patrimonial individual, projetando-se materialmente na promoção da economia, designadamente no seu funcionamento, desenvolvimento e sobrevivência. Encontra-se na dimensão funcional comunitária que a afetação de recursos públicos, concedidos a título de subsídio ou de subvenção, procura atingir, fundamento bastante para o recurso à tutela penal, sem resposta (e censura) idónea e cabal (esgotante) nos mecanismos de tutela cível e administrativa, de cariz reintegrativo, indemnizatório ou mesmo através de imposição de sanção pecuniária não penal, como vem sendo afirmado pelo Tribunal Constitucional, sempre que chamado a pronunciar-se sobre a questão sub judicio.
Exemplo desse entendimento encontra-se no Acórdão n.º 134/01:
“Os artigos 36º e 37º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de janeiro, foram já, por diversas vezes e à luz de diferentes perspetivas, objeto de apreciação pelo Tribunal Constitucional, que sempre se pronunciou, em casos inteiramente análogos ao que agora está a ser julgado, pela sua não inconstitucionalidade.
Fê-lo, designadamente, nos acórdãos nºs 651/93 (Diário da República, 2ª Série, de 31 de março de 1994), 212/95 (Diário da República, de 24 de junho de 1995), 213/95 (Diário da República, 2ª Série, de 26 de junho de 1995), 302/95 (Diário da República, 2ª Série, de 29 de setembro de 1995), 604/99 (Diário da República, 2ª Série, de 26 de maio de 2000) e 1142/96, 364/97, 440/97, 310/98, 633/98 e 487/2000 (estes ainda inéditos).
Aí, concluiu já o Tribunal Constitucional que as normas agora objeto de recurso não eram nem organicamente, nem formalmente, nem materialmente inconstitucionais. E, no que a esta última dimensão se refere, que não o eram designadamente por violação das normas e princípios da Constituição com que agora, mais uma vez, se pretende que as mesmas sejam confrontadas.
Recordaremos por isso, agora, apenas o que a certa altura se ponderou no acórdão nº 604/99 (já citado), remetendo, em tudo o mais, para a fundamentação daqueles arestos:
'É que o recorrente questiona ainda a constitucionalidade da norma por violação dos princípios da proporcionalidade, danosidade social, subsidariedade e fragmentaridade do direito penal e ainda do princípio non bis in idem.
Ora, a este respeito, importa relembrar que, na incriminação por desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado, está em causa o êxito dos programas que o Estado se propõe levar a cabo, pelo que uma incorreta aplicação dos dinheiros públicos pode comprometer ou mesmo frustrar o interesse público subjacente. A medida justifica-se pela gravidade dos efeitos dessa aplicação e pela necessidade de se proteger o interesse do correto emprego dos dinheiros públicos nas atividades produtivas, como se realça no ponto 6 da nota preambular ao Decreto-Lei nº 28/84 e tem sido destacado pela jurisprudência deste Tribunal, ao analisar a questionada norma, se bem que em resposta a problemática diversa - como é o caso, entre outros, dos citados acórdãos nºs. 213/95 e 302/95.
Como se observou noutro aresto já mencionado, o nº 1142/96, 'se é sabido que o direito penal de um Estado de Direito visa a proteção de bens jurídicos essenciais ao viver comunitário, só estes assumindo dignidade penal, o certo é que a Constituição não contém qualquer proibição de criminalização, e, observados que sejam certos princípios, como sejam o princípio da justiça, o princípio da humanidade e o princípio da proporcionalidade [...] «o legislador goza de ampla liberdade na individualização dos bens jurídicos carecidos de tutela penal (e, assim, na decisão de quais os comportamentos lesivos de direitos ou interesses jurídico-constitucionalmente protegidos que devem ser defendidos pelo recurso a sanções penais)», (na linguagem do acórdão nº 83/95, publicado no Diário da República, II Série, nº 137, de 16 de junho de 1995, que seguiu na linha dos acórdãos nºs. 634/93 e 650/93, publicados no Diário da República, II Série, Suplemento, nº 76, de 31 de março de 1994).
«É evidente - lê-se no citado acórdão nº 634/83 - que o juízo sobre a necessidade do recurso aos meios penais cabe, em primeira linha, ao legislador, ao qual se há de reconhecer, também nesta matéria, um largo âmbito de discricionariedade. A limitação da liberdade de conformação legislativa, nestes casos, só pode, pois, ocorrer quando a punição criminal se apresente como manifestamente excessiva»'.
Não se crê que a norma em sindicância coenvolva uma situação reconduzível, pela sua excessividade, à violação do princípio da proporcionalidade e ao desrespeito do artigo 18º da CR, ou, tão pouco, que importe 'danosidade social' a exigência de utilização vinculada dos meios financeiros concedidos exclusivamente para a execução de programas nessa medida e enquanto tais a eles concretamente afetados.
Pois bem, sublinhou-se na decisão ora recorrida a passagem do preâmbulo do Decreto-Lei nº 28/84 onde a tipificação das condutas que passaram a ser tuteladas criminalmente se justifica pela necessidade de proteger o interesse público que a 'correta aplicação dos dinheiros públicos' encerra, nesse tipo de atuação.
E, na verdade, verificada a insuficiência da lei civil para controlar os interesses em jogo, surgiu, naturalmente, a necessidade de tipificar legalmente, no plano da criminalidade económica, as condutas eticamente censuráveis, dando-se, assim, combate às violações mais graves dos respetivos bens jurídicos que integram o direito penal económico, como se escreve, a certo passo, no acórdão nº 1142/96, citado, a propósito das chamadas 'irregularidades' nos subsídios do Fundo Social Europeu, um trabalho de Pedro Verdelho, publicado na Revista do Ministério Público, nº 66, págs. 61 e ss. ('As chamadas «irregularidades» nos subsídios do Fundo Social Europeu são crime ou apenas constituem ilícito civil?').
Ora, não contendo o texto constitucional uma qualquer proibição de criminalização e conhecendo a necessidade experimentada em Estado de direito de proteger penalmente os bens e interesse jurídicos essenciais ao viver em comunidade, a liberdade de conformação do legislador ordinário só conhecerá limitação, nesta perspetiva, se se representar como manifestamente excessiva a punição criminal encontrada.
O que significa que a existência de instrumentos legais disciplinadores da matéria de concessão de subsídios concedidos pelo Fundo Social Europeu, sancionando civil ou administrativamente as referidas 'irregularidades' - globalmente consideradas -, não significa, nem exclui, que certos desses 'desvios' tenham merecido do legislador ordinário uma sanção mais severa, do foro criminal, uma vez tipicizados os respetivos comportamentos.
O facto de o direito comunitário prever sanção diferente para a prática de irregularidades na utilização das contribuições do FSE - suspensão, redução ou supressão, quando ainda não estejam pagas, a sua repetição, nos casos em que já tenha havido pagamento - pode significar que o legislador nacional não qualifique como penalmente ilícitas as correspondentes condutas exigidas ou autorizadas por aquele direito, mas não exclui, em princípio, que os Estados membros punam atuações que tenham por ilícitas, o que é substancialmente distinto, como, aliás, se fez notar no acórdão nº 440/97, inédito.
3.4. - Por outro lado, com a interpretação dada à norma tão pouco se desenha violação do princípio non bis in idem, cuja contrariedade depende da identidade do bem jurídico tutelado por normas sancionadoras concorrentes, ou do desvalor pressuposto por cada uma delas, como se observou recentemente no acórdão nº 244/99, publicado no Diário da República, II Série, de 12 de julho último. Com efeito, não se vê que à prática da infração em causa corresponda uma plúrima aplicação de sanções jurídico-penais, sendo certo que os lugares legislativos convocados pelo recorrente, nas suas alegações, se situam em planos diferenciados (assim, v.g., o caso Decreto-Lei nº 132/83, de 18 de março, ao regular o regime de incentivos fiscais e financeiros ao investimento, revogando o regime estabelecido pelo Decreto-Lei nº 194/80, de 19 de junho; do Decreto-Lei nº 75º-A/91, de 15 de fevereiro, ao aprovar o sistema de incentivos à modernização do comércio; do Decreto-Lei nº 289/92, de 26 de dezembro, ao prever a resolução dos contratos, nomeadamente por não cumprimento dos objetivos e obrigações aí estabelecidos ou pelo não cumprimento atempado das obrigações fiscais por parte da empresa promotora ou, ainda, pela prestação de informações falsas sobre a situação da empresa ou viciação de dados fornecidos na apresentação e apreciação e no acompanhamento dos projetos; do Decreto-Lei nº 246/93, de 8 de junho, situado na mesma área e de outros, que nada têm a ver com o bem jurídico tutelado especificamente pela norma do questionado artigo 37º)'.
É esta jurisprudência que se reitera, por manter inteira validade, sem que os recorrentes avancem argumentos nela não ponderados, cumprindo negar provimento ao recurso, também quanto esta questão.
III. Decisão
43. Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 1.º, alínea a) e 4.º, alínea a), da Lei n.º 12/83, de 24 de agosto;
b) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro;
c) Julgar improcedentes, nessa parte, os recursos interpostos pelos arguidos A., B., D., Lda, e E., Lda, por um lado, e pelo arguido C., por outro;
d) Não conhecer das demais questões colocadas pelos arguidos A., B., D., Lda, E., Lda, e C.;
e) Condenar os recorrentes nas custas, que se fixam em 25 (vinte e cinco) unidades de conta, tendo em atenção os critérios seguidos por este Tribunal e a dimensão do impulso desenvolvido.
Lisboa, 15 de Julho de 2013. – Fernando Vaz Ventura – Ana Guerra Martins - Pedro Machete - João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.
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