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Processo n.º 876/12
3.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, A., S.A. veio interpor dois recursos, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
2. Ambos os requerimentos de interposição de recurso, de conteúdo idêntico, foram apresentados em 11 de outubro de 2012, sendo que um deles foi dirigido ao Supremo Tribunal de Justiça e o outro ao Tribunal da Relação do Porto.
Em tais requerimentos de interposição de recurso, a recorrente veio delimitar o respetivo objeto, nos seguintes termos:
“(…) inconstitucionalidade da interpretação dada pelo Tribunal da Relação do Porto à alínea b) do n.º 2 do artigo 233.º do CIRE” (…) “no sentido de que “o mero trânsito em julgado da sentença homologatória do plano de insolvência e do despacho de encerramento do processo em que foi proferida não determina a extinção da instância do processo de verificação de créditos por inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide”
3. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se o seguinte:
“(…) Relativamente ao requerimento de interposição de recurso dirigido ao Supremo Tribunal de Justiça e admitido por tal entidade, resulta do seu teor que a decisão recorrida corresponde ao acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto.
De acordo com jurisprudência reiterada do Tribunal Constitucional, não pode conhecer-se do recurso, quando o respetivo requerimento de interposição é dirigido a outro tribunal que não aquele que proferiu a decisão recorrida, sendo assim, por erro imputável ao recorrente, proferido o despacho, a que alude o artigo 76.º, n.º 1, da LTC, por tribunal incompetente para o efeito (cfr., nomeadamente, os Acórdãos n.os 701/06 e 278/08, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Nestes termos, não se admite o recurso a que se refere o requerimento de interposição dirigido ao Supremo Tribunal de Justiça.
(…) Resta, assim, apreciar a questão da admissibilidade do recurso dirigido ao Tribunal da Relação do Porto.
O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
(…) Começando a nossa análise pela natureza do respetivo objeto, diremos que o recurso de constitucionalidade apenas pode incidir sobre a constitucionalidade de normas ou interpretações normativas, impendendo sobre o recorrente o ónus de enunciar o concreto critério normativo, cuja desconformidade constitucional invoca, reportando-o a uma determinada disposição ou conjugação de disposições legais. A enunciação terá necessariamente de corresponder a um dos sentidos extraíveis da literalidade do(s) preceito(s) escolhido(s) como suporte da norma ou interpretação normativa colocada em crise.
Acresce que tal enunciação deverá ser apresentada em termos tais que o Tribunal Constitucional, no caso de concluir pela sua inconstitucionalidade, possa reproduzir tal enunciação, de modo a que os respetivos destinatários e operadores do direito em geral fiquem cientes do concreto sentido normativo julgado desconforme com a Lei Fundamental.
Ora, no caso concreto, contemplando o artigo 233.º, n.º 2, alínea b), do CIRE, expressamente, um regime excecional à extinção da instância dos processos de verificação de créditos, por efeito do encerramento do processo de insolvência, é notório que a enunciação do objeto do recurso não corresponde a um critério normativo extraível de tal preceito, por não encontrar, no mesmo, correspondência verbal.
(…) Sempre se dirá que, ainda que a recorrente tivesse conseguido enunciar, no requerimento de interposição de recurso, o critério normativo, extraível do artigo 233.º, n.º 2, alínea b), do CIRE, que foi utilizado como ratio decidendi pela decisão recorrida, estaria prejudicada a admissibilidade do recurso, pela circunstância de ter sido incumprido o ónus de suscitação prévia, junto do tribunal a quo.
Na verdade, na presente situação, a recorrente assume que apenas suscitou a questão de constitucionalidade, que reporta ao artigo 233.º, n.º 2, alínea b), do CIRE, em sede de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, referindo que essa foi a “primeira ocasião processual “ de que dispôs para o efeito.
De facto, analisada a peça processual em que a aqui recorrente responde às alegações relativas aos recursos interpostos para o Tribunal da Relação do Porto, - peça em que deveria ter suscitado ou renovado a suscitação da questão de constitucionalidade, que pretendesse ver apreciada em ulterior recurso para o Tribunal Constitucional – conclui-se que, em nenhum momento, a recorrente antecipa e enuncia o critério normativo, extraível do artigo 233.º, n.º 2, alínea b) do CIRE, que veio a ser utilizado como ratio decidendi pela decisão recorrida. Porém, não se encontrava dispensada de tal ónus.
Na verdade, a jurisprudência constitucional vem entendendo, de forma criteriosa e necessariamente restritiva, a exceção ao princípio de que a suscitação da questão de constitucionalidade deve preceder a prolação da decisão recorrida, reservando-a para aquelas situações, absolutamente anómalas, em que o recorrente não podia razoavelmente antecipar a possibilidade de uma dada dimensão normativa – objetivamente surpreendente - ser acolhida na decisão recorrida.
Salienta-se que a inexigibilidade do dever de antecipação em análise deve ser perspetivada à luz de um modelo de litigância diligente e prudente, em que não se enquadra a parte que, demasiado confiante na bondade da sua tese, desconsidera outras soluções plausíveis de direito, nomeadamente as preconizadas por outro sujeito processual, no contexto da mesma ação.
É que, recaindo sobre as partes o ónus de analisarem as diversas possibilidades interpretativas, suscetíveis de virem a ser seguidas na decisão, cumpre-lhes, em observância de um dever de litigância tecnicamente prudente, a formulação de um juízo de prognose que antecipe as várias hipóteses, razoavelmente previsíveis, de enquadramento normativo do litígio, de modo a confrontarem atempadamente o tribunal com as inconstitucionalidades que poderão viciar as normas ou interpretações normativas convocadas.
Na sequência das considerações expendidas, podemos concluir que a exceção ao ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade encontra-se liminarmente afastada, quando o recorrente é confrontado com a defesa da interpretação normativa, – que vem a ser adotada na decisão recorrida – por um outro sujeito processual, e a tramitação processual legalmente prevista lhe permite contraditar tal tese, antes da prolação da decisão. Não aproveitando o recorrente a oportunidade processual de confrontar o tribunal a quo com o seu entendimento, sobre a desconformidade constitucional da referida interpretação, antes de o mesmo produzir a decisão recorrida, fica definitivamente prejudicada a possibilidade de vir interpor ulterior recurso de constitucionalidade.
Assim, no presente caso, sempre a admissibilidade do recurso estaria prejudicada, por incumprimento do pressuposto de legitimidade previsto no n.º 2 do artigo 72.º da LTC, ainda que a recorrente tivesse conseguido fazer coincidir o objeto do recurso com o critério normativo, extraível do artigo 233.º, n.º 2, alínea b) do CIRE, que foi utilizado como ratio decidendi pela decisão recorrida, circunstância que – como já vimos – não se verificou.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
4. Manifesta a reclamante a sua discordância, relativamente ao não conhecimento do recurso interposto da decisão proferida pelo Tribunal da Relação, afirmando que enunciou, de modo adequado, o critério normativo, extraível do artigo 233.º, n.º 2, alínea b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), que foi utilizado como ratio decidendi pelo acórdão recorrido.
Acrescenta que, caso o Tribunal Constitucional assim não entendesse, deveria ter dado à reclamante a possibilidade de suprir tal deficiência, nos termos do n.º 6 do artigo 75.º-A, da LTC, antes de proferir decisão sumária.
Mais invoca a impossibilidade objetiva de suscitação prévia da questão de constitucionalidade atinente à interpretação, dada pelo Tribunal da Relação, ao artigo 233.º, n.º 2, alínea b), do CIRE, argumentando que tal questão só surgiu no momento da prolação do acórdão recorrido.
Refere a reclamante que o ónus de suscitação prévia se impõe quando a questão de constitucionalidade se reporta a uma norma em si mesma considerada e a aplicação da mesma é previsível. Porém, no caso concreto, sendo previsível a aplicação do preceito, era imprevisível a interpretação insólita que o Tribunal da Relação veio a adotar.
Salienta a reclamante que tal interpretação não foi aplicada na decisão da 1.ª Instância, não coincidindo igualmente com as interpretações invocadas no processo pelas recorridas.
Nestes termos, conclui pedindo a revogação da decisão sumária proferida e o consequente prosseguimento dos autos.
5. B. A.G., na sua resposta à reclamação, refere que a verdadeira pretensão da recorrente corresponde à apreciação do próprio acórdão do Tribunal da Relação do Porto e não de qualquer interpretação normativa do artigo 233.º, n.º 2, alínea b), do CIRE. Será essa a razão que explica que a recorrente não tenha sido capaz de enunciar o objeto do recurso, abstraindo dos contornos do caso concreto, “não conseguindo formular um critério normativo, por um lado, extraível daquele dispositivo legal e, por outro lado, suscetível de ser reproduzido de um modo geral para um número indefinido de destinatários.”
Acrescenta a reclamada que não se verifica uma situação em que a reclamante se encontrasse dispensada - ao contrário do que alega – do ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade que pretenderia ver apreciada.
Na verdade, face ao cerne do debate que se travou nos autos, a interpretação normativa adotada pelo Tribunal da Relação do Porto era uma das claramente previsíveis. Acresce que tal interpretação foi defendida pela aqui reclamada, nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação, peça processual a que a reclamante teve oportunidade de responder.
Pelo exposto, conclui pela improcedência da reclamação e manutenção da decisão sumária proferida.
6. C. Inc. igualmente respondeu à reclamação, manifestando a sua concordância com a decisão reclamada.
Refere que, de facto, a questão enunciada pela recorrente não tem correspondência verbal com o preceito indicado, não consubstanciando uma interpretação normativa do mesmo extraível. Tal circunstância deixa claro que o que a recorrente verdadeiramente pretende é a apreciação da constitucionalidade do próprio acórdão do Tribunal da Relação do Porto, o que não é possível no nosso ordenamento jurídico.
Relativamente à alegada impossibilidade objetiva de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, refere a reclamada que não procede tal argumento, uma vez que o entendimento acolhido pelo Tribunal da Relação do Porto correspondia a uma das hipóteses previsíveis de solução do caso, tendo sido defendido pela aqui reclamada.
Nestes termos, conclui pela improcedência da reclamação.
II - Fundamentos
7. Face ao teor da reclamação deduzida, conclui-se que a reclamante se insurge contra a circunstância de não lhe ter sido dirigido um convite ao aperfeiçoamento, apesar de afirmar que elegeu e enunciou, como objeto do recurso, o critério normativo que foi utilizado como ratio decidendi pelo acórdão recorrido.
Não lhe assiste razão.
De facto, o convite ao aperfeiçoamento apenas se destina a permitir suprir a omissão de indicação de algum dos elementos previstos no artigo 75.º-A, da LTC.
No presente caso, porém, a reclamante não omitiu a indicação da questão, cuja apreciação de constitucionalidade pretendia. Pelo contrário, indicou a mesma, deixando claro que tal questão não constituía objeto idóneo do presente recurso, por não corresponder a um critério normativo extraível do preceito escolhido como seu suposto suporte legal.
Não podendo o convite ao aperfeiçoamento servir para corrigir uma indicação incorreta do objeto do recurso, manifesto se torna que não existia fundamento para a prolação do despacho previsto no n.º 6 do artigo 75.º-A da LTC.
Nestes termos, reitera-se a fundamentação aduzida na decisão sumária proferida, concluindo-se pela improcedência da reclamação, nesta parte.
Refere ainda a reclamante que não lhe era exigível que antecipasse o critério normativo, que veio a ser adotado pelo acórdão recorrido, como ratio decidendi, uma vez que o mesmo assume uma natureza insólita e imprevisível, não tendo sido aplicado pelo tribunal da 1.ª Instância.
Igualmente nesta parte, não assiste razão à reclamante.
De facto, desde logo face às posições assumidas pelas partes, nas alegações de recurso que antecederam a prolação do acórdão recorrido, era exigível que a recorrente previsse a possibilidade de o Tribunal da Relação vir a adotar o critério normativo, extraível do artigo 233.º, n.º 2, alínea b) do CIRE, que efetivamente acolheu como ratio decidendi.
Nestes termos, quanto a este ponto, dando por reproduzida a fundamentação da decisão reclamada, nada mais se impondo acrescentar, conclui-se pelo indeferimento da reclamação apresentada.
Não existindo motivos para alterar a decisão sumária proferida, com a qual se concorda, decide-se confirmar a mesma.
III - Decisão
8. Pelos fundamentos expostos, decide-se confirmar a decisão sumária reclamada, proferida no dia 30 de abril de 2013, e, em consequência, indeferir a reclamação apresentada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 15 de Julho de 2013. – Catarina Sarmento e Castro – Lino Rodrigues Ribeiro – Maria Lúcia Amaral
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