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Processo n.º 107/13
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A., recorrente nos presentes autos em que é recorrido o Ministério Público, foi condenado pelo 2.º Juízo Criminal de Lisboa pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 107.º, n.º 1, e 105.º n.º 1, ambos do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho (adiante designado abreviadamente por “RGIT”), numa pena de 200 dias de multa à taxa diária de € 8,00, num total de € 1 600,00.
Inconformado com tal decisão condenatória, da mesma interpôs o arguido, ora recorrente, recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 6 de dezembro de 2012, negou provimento ao recurso e confirmou a sentença então recorrida. Desse acórdão foi interposto recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º28/82, de 15 de novembro, adiante referida como “LTC”), em requerimento com o seguinte teor:
« […]
O recorrente suscitou, nas conclusões da motivação do recurso apresentado nesse Tribunal da Relação o seguinte:
“e) Acresce que em caso de conflito de deveres, o dever fundamental plasmado nos art.º 59.º n.º 1, alínea a) e no art.º 53.º da Constituição, isto é, o dever de pagar salários aos trabalhadores e de assegurar os seus postos de trabalho, é mais valioso que o dever consignado no art.º 103.º, n.º1 da Constituição tendo o Meritíssimo Juiz a quo feito uma interpretação inconstitucional dos art.º 105.º, n.º 1 e 107.º da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho (RGIT) face àqueles preceitos constitucionais (os art.º 59.º n.º 1, alínea a) e 53.º da Constituição, o que também precipita, por erro de interpretação, a violação do art.º 1.º da Lei Fundamental, que consagra o princípio da dignidade da pessoa humana);”
Isto é, os art.º 105.º, n.º 1 e 107.º, da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho (RGIT), são inconstitucionais, face aos art.º 59.º, n.º 1, alínea a); 53.º e 1.º da Constituição, quando interpretados no sentido eleito pela Relação de Lisboa, isto é, de que o direito ao salário cede, em caso de conflito de direitos, face ao dever de entregar os descontos para a Caixa Geral de Aposentações, desses trabalhadores, dando, por isso, prevalência ao dever de pagar as contribuições à segurança social (que não são impostos!!!).
Destarte, e com o douto suprimento de Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, roga-se a admissão do recurso e a sua remessa, com os autos, para o Venerando Tribunal Constitucional.»
Pela Decisão Sumária n.º 94/2013 foi decidido não conhecer do objeto do recurso de constitucionalidade, por se entender que o critério normativo aplicado na decisão recorrida é diferente daquele cuja inconstitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada no recurso de constitucionalidade. Com efeito, considerou-se naquela Decisão que, segundo o tribunal recorrido, não ocorreu in casu um conflito de deveres previsto no artigo 36.º do Código Penal.
2. Não se conformando com tal Decisão, vem agora o recorrente dela reclamar para a conferência com os seguintes fundamentos:
«3.º
A questão colocada prende-se com um conflito de direitos/deveres constitucionais, o dever fundamental plasmado no artº 59.º nº 1, alínea a) e no artº 53.º da constituição, isto é o dever de pagar salários aos trabalhadores e de assegurar os seus postos de trabalho e o correspetivo direito de o trabalhador ser remunerado pela prestação do seu trabalho, e o dever consignado no artº 103º, nº 1 da CRP, que, face à interpretação dada pelas instâncias aos artºs 105 nº 1 e 107º da Lei 15/2001, de 5 de junho (RGIT), face àqueles imperativos constitucionais (os artºs 53º e 59º, 1, alínea a) do CRP), precipita, outrossim, a violação destas normas e o artº 1º da CRP, que consagra o princípio da dignidade da pessoa humana.
E isto porque para, designadamente, o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão recorrido, sufraga o entendimento que o direito ao salário cede face ao dever de se entregar à C.G.A. a contribuição respetivas. (mesmo que, não tendo a entidade empregadora, meios financeiros para satisfazer esta obrigação).
4º
Note-se que no acórdão recorrido, o do TRL, é citada a abundante jurisprudência da qual, aliás, para o caso apenas interessa o Ac. do TRL de 22.9.2004 tirado no âmbito do Procº 4855/04.3 – 3ª Secção, em que foi Relator o Mui Ilustre Desembargador, Doutor António Clemente Lima, porquanto só nesse é que se discute uma situação paralela à dos autos (a não entrega à Segurança Social ou à C.G.A. do “desconto meramente escritural” das contribuições ao Estado), já que aos outros arestos o que estava em causa era a não entrega do IVA, imposto que, como se sabe é entregue, de facto, pelo “cliente” a certa empresa e que, por não lhe pertencer, deve entregar à Fazenda Nacional.
5.º
Em nosso modesto entender obstam à concordância com a douta decisão sumária três ordens de razões:
Os fundamentos apresentados nessa douta decisão não estão corretos;
A questão não é simples, como determina o artº 78-A, nº 1 do LTC.
Compromete princípios jurídico-constitucionais fundamentais.
6º
O argumento essencial da douta decisão sumária é o seguinte:
O acórdão recorrido do Tribunal da Relação nega a existência do conflito de deveres constitucionais.
Então esse conflito não existe e por isso, o Tribunal Constitucional não se tem que pronunciar (fls. 6 da decisão).
Ora a realidade não é esta. E por dois motivos:
- Não é por um Tribunal Comum negar a existência de um conflito de direitos/deveres constitucionais que este não existe e que o TC não tem que se pronunciar.
Se assim fosse, não seria necessário existir TC ou a existir teria as suas competências limitadas pelos Tribunais comuns.
Se porventura admitirmos que os tribunais comuns ao afirmarem que não há questões constitucionais a considerar retiram o poder de aferir essa constitucionalidade ao TC, estamos a admitir que são os tribunais comuns que definem as competências reais do TC. Tal interpretação dos poderes do TC é inconstitucional. Não pode este deixar de se pronunciar sobre a inconstitucionalidade ou ilegalidade das normas jurídicas quando esta é invocada, mesmo que o tribunal comum tenha recusado um juízo de constitucionalidade. É de uma lógica liminar.
- Acresce, que no caso em apreço, desde sempre o arguido defendeu que considerava que se encontrava perante um conflito de deveres constitucionais. É verdade que as duas instâncias dos tribunais comuns recusaram esse entendimento no sentido, e apenas nesse, de excluírem a ilicitude nos termos do art. 36º do Código Penal, mas também é certo que sempre se pronunciaram sobre esse conflito de deveres fazendo o escalonamento que consideraram relevante. Isto quer dizer que a questão do conflito é efectivamente equacionada no referido aresto (ao contrário do afirmado na decisão sumária), embora negada. Se atentarmos a fls. 21 do acórdão recorrido é explanada uma larga teorização acerca de qual dos deveres deve prevalecer. Sendo certo que o acórdão conclui em termos diversos da pretensão do arguido, a verdade é que equaciona a questão e na primeira linha da decisão. Só depois a fls. 22 acrescentam os doutos Desembargadores “Mesmo que assim não se entenda…”.
7º
Assim, da conclusão base do Conselheiro-Relator ressaltam dois aspetos fulcrais:
A aceitar-se a sua tese estão-se a diminuir os poderes do TC e a permitir que a mera declaração da não existência de questão constitucional por parte de um Tribunal comum afaste essa questão inelutavelmente da esfera do TC. Tal entendimento é em si mesmo inconstitucional e corresponde a uma exclusão da sindicância constitucional inadmissível.
Ao contrário do que afirma o Excelentíssimo Conselheiro-Relator a questão do conflito de deveres é equacionada efetivamente pelo Tribunal da Relação e como primeira linha de argumentação decisória (fls. 19,20,21,22 do referido aresto)
8º
Um segundo argumento aduzido pelo Colando Conselheiro prende-se com a questão da construção feita pelo Tribunal da Relação de Lisboa segundo a qual as quantias discutidas no processo são quantias da propriedade do trabalhador e não do empregador pelo que a questão do conflito de direitos não se colocaria, também por essa razão. Só por aqui se vê que a questão não é simples como determina o art. 78º-A, pelo contrário, é complexa. E mais, esquecem-se os princípios que estão subjacentes a estas matérias – designadamente da “prevalência da matéria sobre a forma” e que as construções/ficções jurídicas em matéria fiscal não se estendem aos outros ramos do direito, como por exemplo o direito penal e constitucional.
Basta esta sintética argumentação para verificarmos que não estamos perante uma questão simples. Pelo contrário, estamos perante uma questão bem complexa e que merece a atenção deste Tribunal. Aliás, se repararmos no dispositivo da decisão não surge clarificado o fundamento da decisão de indeferimento. Esse tinha que ser a simplicidade da causa, designadamente que já tivesse sido decidida ou fosse manifestamente infundada. Mas o certo é que tal não surge expresso na decisão, logo em termos formais esta não obedece ao disposto no art.º 78-A.
9º
Finalmente há o princípio constitucional do direito a uma “fair hearing”. Todo o cidadão tem direito a ser ouvido no Tribunal Constitucional e não é por existirem correntes de opinião que querem desvalorizar o papel do TC por não ser um tribunal de recurso ordinário ou por questões ligadas à prescrição que esse “fair hearing” deve ser coarctado, sobretudo num caso que baseou toda a sua defesa, desde o princípio, nesta questão de conflito de deveres. Não se trata de uma teoria inventada na vigésima quinta hora. Há um dever de dar suporte ao cidadão, sabendo-se como se sabe que os tribunais comuns não são especialmente sensíveis a questões constitucionais.
E, dentro deste direito a uma “fair hearing”, também estabelecido pelo art.º 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) assume especial relevância o facto de estarmos perante um caso de natureza criminal. Nesses casos, toda a jurisprudência e doutrina internacionais considera que quanto mais séria a consequência para o indivíduo mais elevado o patamar de exigência para uma audição em tribunal. Assim, a doutrina da simplicidade plasmada pelo art.º 78-A tem que estar submetida a requerimentos especiais em casos criminais que são aqueles que consequências mais sérias têm para o indivíduo. A simplicidade será uma coisa para casos civis ou de outra natureza, outra coisa para casos de natureza criminal, devendo haver uma predisposição favorável à audição pelo tribunal.
[…]»
3. Notificado para se pronunciar, o Ministério Público pugna pelo indeferimento da reclamação.
4. Para a boa decisão da presente reclamação cumpre ter presente o que o acórdão recorrido afirmou no tocante ao fundamento do recurso relacionado com a matéria do conflito de deveres (cfr. fls. 1099 a 1102):
« Como terceira questão invoca o recorrente que se verifica violação do art.º 36º CP, pois existe conflito de deveres entre a obrigação de pagar salários e o dever de entregar à CGA as contribuições descontadas nos salários dos trabalhadores, chamando à liça os art.ºs 53º, 59º e 103º da CRP.
A eventual justificação de condutas de características essenciais idênticas às daquela por que o arguido responde nestes autos tem vindo a ser tratada pela jurisprudência dos Tribunais Superiores de modo sensivelmente uniforme, no sentido oposto ao propugnado pelo recorrente.
Com efeito, vem a jurisprudência entendendo que a utilização por empresários, quer a título individual, quer enquanto representantes de uma sociedade, de importâncias recebidas no âmbito de uma relação de substituição fiscal, como seja a cobrança das contribuições para a Segurança Social e de IVA aos clientes ou o desconto de IRS nas retribuições pagas aos trabalhadores, para solver outros compromissos da empresa, designadamente, o pagamento de salários não configura, por via de regra, uma situação de conflito de deveres, suscetível de justificar o facto nos termos do art. 36º do CP.
Como representativos dessa orientação jurisprudencial podemos indicar, a título meramente exemplificativo, e reportando-nos apenas a decisões do STJ, os Acórdãos de 15/1/97 e de 20/6/01, publicados em CJ, STJ, tomo I, ano 1997, págs. 190 a 194 e tomo II, ano 2001, pág. 227 respetivamente, e de 18.06.2003 e 5.11.1986 in www.dzsi.pt/jstj.
Ao nível da jurisprudência das Relações podemos referenciar, na mesma ordem de ideias, os Acórdãos da Relação de Guimarães de 11/11/02, proferido no processo nº 283/02-1 e relatado pelo Exmo. Desembargador Dr. Heitor Gonçalves, e de 25/5/06, proferido no processo nº 1039/04-1 e relatado pelo Exmo. Desembargador Dr. Ricardo Silva, da Relação do Porto de 29/1/03, relatado pelo Exmo. Desembargador António Gama, de 2/4/03, relatado pelo Exmo. Desembargador Dr. Marques Salgueiro, de 22/9/04, relatado pelo Exmo. Desembargador Dr. Fernando Monterroso e de 26/9/07, relatado pelo Exmo. Desembargador Dr. Borges Martins, todos disponíveis em www.dgsi.pt e os da Relação de Lisboa de 22/9/04, proferido no processo nº 4885/04-3 e relatado pelo Exmo. Desembargador Clemente Lima, de 17/1/07, proferido no processo nº 9326/06-3 e relatado pelo Exmo. Desembargador Dr. Rui Gonçalves, de 15/2/07, proferido no processo nº 1552/07-9 e relatado pelo Exmo. Desembargador Dr. Trigo Mesquita e de 17/5/07, proferido no processo nº 3273/07-9 e relatado pelo Exmo. Desembargador Dr. Almeida Cabral, estes sumariados em www.pgdlisboa.pt.
Por outro lado, a argumentação desenvolvida pelo recorrente confunde, neste tocante, duas realidades jurídicas bem distintas.
Uma coisa é a tutela constitucional dispensada pelo art. 59º nº l al. a) da CRP ao direito do trabalhador à retribuição do seu trabalho de forma a garantir uma existência condigna, observando-se o princípio «trabalho igual, salário igual», tutela essa que se reflete em toda a normação infra-constitucional, seja de natureza pública, seja de cariz privado.
Outra coisa muito diferente é a obrigação de pagar salários, que tem necessariamente fonte contratual e à qual só está sujeito quem tiver, em concreto, celebrado um contrato de trabalho na qualidade de patrão.
Pelo contrário, o dever de pagar este ou aquele imposto específico tem fonte na própria Lei, como, aliás, a própria Constituição impõe, no seu art. 103º nº 2, fonte que, no caso das contribuições para a Segurança Social se reconduz ao respetivo Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social constante da Lei n.º 110/2009, de 16 de Setembro, alterada pela Lei n.º 119/2009, de 30 de Dezembro e pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro.
As receitas fiscais destinam-se a assegurar a cobertura das necessidades gerais da comunidade, representada pelo Estado.
Inversamente, o direito do trabalhador à retribuição do seu trabalho tem por função assegurar interesses que, por mais respeitáveis que sejam e que efetivamente o são, revestem natureza parcelar e privada, a saber os do trabalhador envolvido e da sua família.
Nesta conformidade, o dever de pagar impostos e o de pagar salários não são, em face da ordem jurídica, qualitativamente equiparáveis, atendendo quer à sua fonte, que é legal, no caso do primeiro, e contratual, no do segundo, quer à natureza dos interesses que têm por função tutelar, que é pública, quanto ao primeiro, e privada, relativamente ao segundo.
Por conseguinte, em caso de conflito em que o cumprimento de um implique necessariamente o sacrifício do outro, o dever de pagar impostos deverá sobrelevar, como regra, o do pagamento de salários, conforme vem sustentando a generalidade da jurisprudência.
Mesmo que assim se não entenda, sempre diremos que o conflito de deveres nem sequer deverá ser colocado, em abstrato, relativamente às quantias recebidas pelo sujeito «interposto», no quadro de uma relação de substituição fiscal.
Nesse contexto, o sujeito «interposto» fica investido da disponibilidade fáctica e jurídica dessas importâncias, mas estas não se integram no seu património, pois ficam-lhe entregues a título não translativo da propriedade, para a exclusiva finalidade de serem entregues ao Fisco.
Assim sendo, as quantias em referência não respondem por outras obrigações pecuniárias a que esteja vinculado o sujeito que as receba, incluindo as que relevem do pagamento de salários.
Como tal, teremos de concluir pela improcedência da invocação pelo recorrente da causa de exclusão da ilicitude de conflito de deveres pelo que nenhuma violação do art.º36º CP se verifica.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
5. Em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, nomeadamente nos recursos previstos na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, tratando-se de formular um juízo que tem por objeto uma norma, ou interpretação normativa, tal como aplicada num caso concreto, é pressuposto de conhecimento do recurso que a decisão que o Tribunal Constitucional venha a proferir sobre a questão de constitucionalidade suscitada possa produzir algum efeito sobre a decisão de que se recorre (cfr., entre muitos, os Acórdãos deste Tribunal n.os 463/94, 366/96, 687/2004, 447/2012). Exige-se, por outras palavras, a correspondência entre o critério normativo cuja fiscalização de constitucionalidade se requereu e aquele que foi adotado pela decisão recorrida. De outro modo, o eventual juízo positivo de inconstitucionalidade a emitir pelo Tribunal Constitucional não terá qualquer efeito útil sobre a decisão recorrida (cfr. o artigo 80.º, n.º 2, da LTC).
No caso vertente, o critério normativo cuja constitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada por este Tribunal é a solução dada ao conflito entre o dever de pagar salários e o dever de entregar os descontos para a Caixa Geral de Aposentações – e há conflito, em seu entender, porque o empregador não dispõe das quantias necessárias ao cumprimento simultâneo das duas obrigações. Assim, para o recorrente, a aplicação do disposto nos artigos 105.º, n.º 1, e 107.º, ambos do RGIT, implica uma interpretação normativa inconstitucional destes dois preceitos, na medida em que dá prevalência ao dever de pagar as contribuições à segurança social.
Porém, a ratio decidendi considerada especificamente na decisão recorrida consiste precisamente na negação da existência de tal conflito. E, se é certo que o tribunal recorrido procede na sua argumentação a uma comparação dos diferentes deveres, dando a conhecer qual, no seu entendimento, deve prevalecer em geral; não é menos certo que, a final, vem a julgar o caso com base em solução diversa.
Com efeito, o tribunal recorrido começa por sustentar, como posição geral e de princípio (“por via de regra”), a prevalência geral do dever de pagar impostos (ou as contribuições obrigatórias para a Segurança Social, incluindo nesta a Caixa Geral de Aposentações) sobre o dever de pagar os salários. Por entender assim, afirma-se no acórdão recorrido, aderindo expressamente à orientação jurisprudencial nele citada, que “em caso de conflito em que o cumprimento de um implique necessariamente o sacrifício do outro, o dever de pagar impostos deverá sobrelevar, como regra, o do pagamento de salários, conforme vem sustentando a generalidade da jurisprudência”.
Mas a seguir, referindo-se especificamente ao tipo de situações como a dos presentes autos, em que a importância do crédito fiscal fica na disponibilidade fáctica e jurídica de um terceiro (“quantias recebidas o sujeito «interposto», no quadro de uma relação de substituição fiscal”), o tribunal recorrido considera que, em abstrato, nem sequer existe um conflito de deveres que impendam sobre o dito terceiro, porquanto o mesmo apenas detém aquela importância “a título não translativo da propriedade, para a exclusiva finalidade de [a entregar] ao Fisco”. Como se refere no artigo 107.º, n.º 1, do RGIT, trata-se de importâncias deduzidas “do valor das remunerações devidas a trabalhadores”, mas que são “por estes legalmente devidas”.
Nesta construção – que não cabe ao Tribunal Constitucional sindicar – as importâncias em causa pertencem aos trabalhadores e são por eles devidas à segurança social, pelo que “as quantias em referência não respondem por outras obrigações pecuniárias a que esteja vinculado o sujeito que as receba, incluindo as que relevem do pagamento de salários”. E é apenas com base nesta asserção – aquela que se aplica diretamente ao caso sujeito - que no acórdão recorrido se conclui “pela improcedência da invocação pelo recorrente da causa de exclusão da ilicitude de conflito de deveres” e pela consequente não violação do artigo 36.º do Código Penal. De harmonia com este entendimento, falta o próprio pressuposto de aplicação do preceito, ou seja, não se verifica qualquer conflito de deveres (“o conflito de deveres nem sequer deverá ser colocado, em abstrato, relativamente às quantias recebidas pelo sujeito «interposto», no quadro de uma relação de substituição fiscal”).
6. Na reclamação ora em análise afirma-se, todavia, que o tribunal recorrido “equaciona a questão [do conflito de deveres] e na primeira linha da decisão”. Aliás, “só depois a fls. 22 acrescentam os doutos Desembargadores «Mesmo que assim não se entenda…»”.
Contudo, a verdade é que o inciso transcrito pelo reclamante evidencia a autonomia do que, na lógica da reclamação, constituiria uma «segunda linha argumentativa», ou, porventura melhor, um «segundo fundamento decisório». E tanto basta para comprovar que um eventual juízo de inconstitucionalidade sobre a solução dada ao alegado conflito de deveres – a «primeira linha argumentativa» ou, melhor, o «primeiro fundamento decisório» - seja insuscetível de produzir efeito útil sobre a decisão recorrida. Isto é: mesmo que este Tribunal julgasse procedente a argumentação deduzida pelo recorrente, ora reclamante, quanto à solução abstrata do conflito de deveres, tal juízo em nada alteraria a decisão proferida pelo tribunal a quo, uma vez que, para este, inexiste no caso sujeito qualquer conflito de deveres.
Porém, como referido anteriormente e conforme resulta do próprio teor do acórdão recorrido, a decisão do caso sub iudicio pelo tribunal recorrido pressupôs “que o conflito de deveres nem sequer deverá ser colocado, em abstrato, relativamente às quantias recebidas pelo sujeito «interposto», no quadro de uma relação de substituição fiscal”.
7. No que se refere aos demais fundamentos da reclamação, é manifesto o equívoco do recorrente quanto à natureza e função da fiscalização concreta da constitucionalidade consignada na ordem jurídica portuguesa.
Em primeiro lugar, tal fiscalização respeita exclusivamente à inconstitucionalidade de normas jurídicas aplicadas ou desaplicadas num dado caso.
Em segundo lugar, a mesma fiscalização compete a todos os tribunais, nos termos do artigo 204.º da Constituição, devendo o Tribunal Constitucional intervir apenas para decidir os recursos interpostos das decisões sobre questões de inconstitucionalidade normativa tomadas por outros tribunais. A interpretação e aplicação do direito infraconstitucional não integram a competência do Tribunal Constitucional, pelo que este não controla o respetivo acerto.
Por ser assim, o problema não é o de saber se «um tribunal comum nega, ou não, um conflito de direitos/deveres constitucionais», conforme pretende o reclamante; o que importa determinar é antes se o tribunal comum aplica ou desaplica uma norma - decidindo com base em tal aplicação ou desaplicação o caso em juízo – relativamente à qual se coloque a questão da sua compatibilidade com a Constituição. Se, ao invés, o problema reside na interpretação ou aplicação erróneas do direito infraconstitucional pelo tribunal comum, esse é um problema que só pode ser resolvido na ordem de tribunais em que tal tribunal se integre e sobre o qual o Tribunal Constitucional não se pode pronunciar. Esta limitação dos poderes de cognição e decisão do Tribunal Constitucional resulta diretamente do artigo 280.º da Constituição.
Finalmente, no que respeita à admissibilidade da prolação de decisões sumárias pelo relator, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, cumpre recordar que tais decisões são admissíveis, além dos casos em que “a questão a decidir é simples”, sempre que não se possa conhecer do objeto do recurso em virtude da não verificação de algum dos seus pressuposto processuais. Foi o que sucedeu in casu, quanto à falta de correspondência exigida entre o critério normativo cuja fiscalização da constitucionalidade o recorrente requereu e a ratio decidendi da decisão recorrida.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação apresentada e condenar o reclamante nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. o artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 20 de março de 2013. – Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro.
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