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Processo n.º 7/13
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, A. e B. recorreram para o Tribunal Constitucional, com fundamento no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (adiante referida como “LTC”), do acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte de 23 de novembro de 2012 (fls. 340 e ss.) que, concedendo provimento ao recurso jurisdicional interposto pela Fazenda Pública, revogou a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel em 7 de setembro de 2012 (fls. 295 e ss.) e, em consequência, julgou improcedente a reclamação apresentada contra o despacho de 4 de agosto de 2011 do Chefe do Serviço de Finanças de Paredes que havia determinado que se procedesse à venda do prédio penhorado, e melhor identificado nos autos, mediante negociação particular.
A fls. 382 e ss. foi proferida a Decisão Sumária n.º 39/2013 de não conhecimento do recurso de constitucionalidade com os seguintes fundamentos:
«2. Segundo o requerimento do recurso de constitucionalidade, “a norma constitucional violada [é] o art. 268.º, n.º 3, da CRP, quanto à questão da obrigatoriedade da fundamentação dos atos administrativos tributários, pois se aplicaram, como se vê, os arts. 158.º e 875.º do CPC, por força do art. 2.º, al. e) do CPPT, que se consideraram não estar sujeitos àquela obrigatoriedade e o que contraria aquele preceito constitucional”. No mesmo requerimento os recorrentes acrescentaram que “tal inconstitucionalidade [foi] suscitada nas contra-alegações de recurso da aqui Apelante [sic], designadamente quando aí se refere que a decisão da Administração Tributária confirmada pelo Acórdão recorrido carece de fundamentação e que qualquer decisão diferente da proferida em 1.ª instância e ora revogada – como a que foi tomada pelo Acórdão recorrido – sempre violaria o disposto naquela norma constitucional”.
Compulsada a peça processual indicada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 75.º-A, n.º 2, da LTC, verifica-se:
A omissão de qualquer referência ao artigo 158.º do Código de Processo Civil;
A menção dos artigos 875.º e 2.º, alínea e), respetivamente do Código de Processo Civil e do Código de Procedimento e de Processo Tributário, é feita nos seguintes termos:
“Acrescente-se apenas, mais por dever de ofício do que por qualquer outra coisa que, sobre a questão da adjudicação pedida pelos Reclamantes, aqui Recorridos, no uso da faculdade do art. 875.º do CPC, aplicável por força do art. 2.º, al. e), do CPPT, de acordo com a citação feita pela própria recorrente, rigorosamente a única coisa que se diz é:
«Notifique o senhor mandatário (…) que representa os reclamantes (…) na sequência do seu pedido de adjudicação com base no crédito que detêm sobre a executada que, caso pretendam adquirir o prédio, terão de apresentar uma proposta de valor superior às demais que eventualmente venham a ser apresentadas (…)»”.
3. No sistema português de fiscalização concreta de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional circunscreve-se ao controlo de inconstitucionalidades normativas, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas (ou a interpretações normativas, hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o sentido da interpretação que reputa inconstitucional) e traduz-se, por regra, no reexame (e não num primeiro julgamento) de tais questões. É o que resulta da exigência formulada no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC quanto ao objeto do recurso de constitucionalidade: a decisão de um tribunal que aplique norma cuja inconstitucionalidade (questão de inconstitucionalidade normativa) haja sido suscitada durante o processo (aquela questão deve poder ser conhecida e decidida pela decisão recorrida).
No caso sujeito, é ostensivo que nas contra-alegações não é suscitada qualquer questão de constitucionalidade normativa com referência aos artigos 875.º e 2.º, alínea e), respetivamente do Código de Processo Civil e do Código de Procedimento e de Processo Tributário ou relativamente ao artigo 158.º do primeiro daqueles dois códigos – os únicos preceitos legais referidos no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade. Diferentemente, o que resulta de tal peça processual é tão-somente o apoio declarado à decisão concreta tomada pela primeira instância:
“A sentença recorrida fez uma impecável aplicação do direito e da justiça.
Pelo que, com a devida vénia, permitimo-nos subscrever tudo o que aí se escreve.
Acrescente-se apenas […] [v. transcrição feita supra no n.º 2]
É óbvio que não há pronúncia sobre o pedido de adjudicação.
E não há decisões implícitas.
Assim muito bem andou o Meritíssimo Juiz a quo ao considerar no elenco factual sob o ponto 4º que o despacho reclamado não se pronunciou sobre o pedido de adjudicação.
E, se não se pronunciou, muito menos o fez de forma minimamente fundamentada, como exaustivamente se explicou na sentença recorrida.
E acrescente-se aqui apenas ainda que o disposto no art. 268.º, n.º 3, da Lei Fundamental, de que emana o art. 77.º da LGT, refere com todas as letras aquilo que decorre da própria lógica dos conceitos: que a fundamentação tem de ser expressa.
Pelo que, se tivesse decidido de modo diferente do que se decidiu, ter-se-ia violado flagrantemente o art. 268.º, n.º 3, da CRP”.
Compreensivelmente o acórdão recorrido não conhece de qualquer questão de constitucionalidade normativa. Aliás, tal decisão, na parte aqui relevante, limita-se a decidir que o ato reclamado se mostra suficientemente fundamentado.
Compreensivelmente também – e coerente com a posição assumida nas contra-alegações oportunamente apresentadas - os ora recorrentes vêm no seu requerimento de recurso para este Tribunal manifestar o seu desacordo contra o assim decidido, referindo, quanto à “inconstitucionalidade suscitada nas contra-alegações de recurso”, que “a decisão da Administração Tributária confirmada pelo Acórdão recorrido carece de fundamentação e que qualquer decisão diferente da proferida em 1.ª instância e ora revogada – como a que foi tomada pelo Acórdão recorrido – sempre violaria o disposto naquela norma constitucional”.
É, deste modo, cristalino que os recorrentes apenas se insurgem contra a decisão concreta tomada pelo acórdão recorrido, e que nem nas aludidas contra-alegações nem no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade suscitaram qualquer questão de constitucionalidade normativa.»
2. Inconformados com tal Decisão, vêm os recorrentes reclamar para a conferência, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, com os fundamentos seguintes (cfr. fls. 388 e ss.):
«l. Como se vê, nas contra-alegações de recurso perante o Tribunal Central administrativo Norte, deram os Recorrentes por reproduzido o que se escreveu na sentença de 1ª instância.
2. Como desta se vê, aí se considerou o ato reclamado um ato administrativo sujeito obrigatoriamente a fundamentação nos termos do art. 268º, nº 3, da Lei Fundamental e art. 77º da LGT.
3. Nas contra-alegações de recurso perante o Tribunal Central Administrativo Norte mais ressaltaram os Recorrentes que, nos termos dos dispositivos constitucionais e legais invocados na sentença de 1ª instância, a fundamentação exigida tem de ser expressa.
4. Tendo dito expressamente que, se se tivesse decidido de forma diferente do que fez a primeira instância, se teria violado o art. 268º, nº 3, da CRP.
5. É evidente que nesta altura não conheciam os agora Reclamantes o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte que ainda não tinha sido proferido.
6. Mas, como neste se vê, aí se decide de forma diferente do que fez a primeira instância.
7. Decide-se que o ato reclamado não é um ato administrativo tributário, mas um ato proferido no processo judicial tributário, a que se aplica o art. 158º do CPC, pelo que não está sujeito àquela obrigatoriedade de fundamentação.
8. E aplicou-se também o art. 875º do CPC no sentido de dispensar aquela fundamentação.
9. Assim, ao contrário do decidido na decisão singular reclamada, a inconstitucionalidade consistente na violação do art. 268º, nº 3, da CRP, através da interpretação desses preceitos legais – o art. 158º e o art. 875º do CPC - no sentido de dispensarem fundamentação expressa foi suscitada no processo, tanto quanto o poderia ter sido, no momento em que o foi.
10. E note-se que essa inconstitucionalidade – ainda que suscitada cautelarmente para a hipótese de se vir a decidir diferentemente da 1ª instância – foi suscitada de forma inegavelmente expressa – ainda que algo imperfeitamente pois mais não consentia ao tempo a situação.
11. Ao contrário do que aconteceu com a decisão reclamada que essa contém – a conter – a sua fundamentação de forma total e exclusivamente implícita.
12. O que faz sobressair a injustiça da decisão singular reclamada.”
3. Notificada da apresentação da reclamação, veio a Fazenda Pública dizer o seguinte (cfr. fls. 396 e ss.):
«1.
Pretendem os Recorrentes que, por força da interpretação feita do art.158.º e 875.º do C.P.C., a decisão em recurso viola o art.º 268.º, 3 do CRP.
2.
É óbvio que não têm razão.
3.
O TCAN decidiu que o despacho reclamado não era uma ato administrativo mas sim um ato judicial de tramitação processual sem natureza jurisdicional.
4.
E, na sequência dessa decisão e por imperativo lógico, acabou por não se pronunciar sobre o tema da fundamentação do ato administrativo, mas sim sobre a questão da fundamentação das decisões judiciais.
5.
A decisão adotada não tem, portanto, qualquer relação com o art. 268.º do CRP, podendo afirmar-se que o campo de aplicação deste último não se situa, nem se prende com aquele em que o acórdão do TCAN operou e entendeu que era o relevante.
6.
O presente recurso não pode, pois, ser admitido.
7.
Ele representa um mero expediente dos Recorrentes que, ao abrigo duma suposta inconstitucionalidade, pretendem afrontar e rever a decisão recorrida no seu pressuposto essencial, isto é, na natureza judicial do ato objeto de reclamação do art. 276.º do C.P.P.T.
8.
Assim sendo, a decisão sumária de 16 de Janeiro de 2013, que julgou que o recurso não pode prosseguir porque ele se insurge contra a decisão concreta tomada pelo acórdão recorrido.
9.
Acresce que a referida decisão está integralmente correta quando refere que, em sede de contra no recurso da 1.ª instância, os aqui Recorrentes não suscitaram a questão da constitucionalidade normativa relativamente aos art.º 875.º do C.P.C. e ao art.º 2.º, e) do C.P.P.T.
10.º
De facto, eles não invocaram sequer os referidos normativos.
11.º
Desta forma, a presente reclamação só pode ser indeferida com as legais consequências.”
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
4. Resulta claro do teor da reclamação que não é posto em causa o que na Decisão ora reclamada se diz em relação às contra-alegações oportunamente apresentadas. Por outro lado, a referência que nesta peça processual é feita quanto ao facto de os recorrentes haverem «subscrito o que na sentença recorrida se diz» não tem outro alcance que não seja a expressão de concordância com o aí decidido, designadamente com a qualificação do ato reclamado como ato administrativo e a apreciação sobre a insuficiência da fundamentação de tal ato à luz das exigências consignadas no artigo 268.º, n.º 3, da Constituição. Aliás, é esse o cerne da sua discordância relativamente ao decidido pelo tribunal recorrido, ou seja, a qualificação que este último faz do ato objeto de reclamação contenciosa como ato judicial de natureza não jurisdicional, e não como ato administrativo tributário (cfr. o próprio requerimento de recurso de constitucionalidade e os n.os 2 e 7 da reclamação).
Todavia, esse é um problema de subsunção de factos ao direito aplicável; e, portanto de aplicação do direito. Não se trata da fixação do sentido e alcance do próprio direito, com abstração das particularidades do caso concreto.
Das mesmas contra-alegações não decorre a suscitação de qualquer questão de inconstitucionalidade normativa. E, muito menos, resulta de tal peça a invocação de que os artigos 158.º e 875.º, ambos do Código de Processo Civil, interpretados no sentido de dispensarem a fundamentação expressa, são inconstitucionais - questão essa alegadamente suscitada «cautelarmente para a hipótese de se vir a decidir diferentemente da 1.ª instância» (cfr. os n.os 9 e 10 da presente reclamação). Aliás, o que ressalta das mesmas contra-alegações é que a falta de fundamentação é meramente consequencial: resulta da alegada omissão de pronúncia sobre o pedido de adjudicação formulado pelos ora reclamantes. Mas ambas as imputações – a da omissão de pronúncia e a de falta de fundamentação - são dirigidas direta e imediatamente – e tão-somente - ao ato de adjudicação reclamado contenciosamente junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel.
Como se escreveu no Acórdão deste Tribunal n.º 269/94 (disponível, assim como os demais adiante citados, em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), “suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que - como já se disse - tal se faça de modo claro e percetível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma), que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a Lei Fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringidos”. Acresce que “a exigência de um cabal cumprimento do ónus da suscitação atempada - e processualmente adequada - da questão de constitucionalidade não é, pois [...], uma 'mera questão de forma secundária'. É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade e para que o Tribunal Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame (e não a um primeiro julgamento) de tal questão” (assim, v. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 560/94).
De todo em todo, não foi isso que se verificou nas contra-alegações em análise.
Como referido na Decisão Sumária ora reclamada, o artigo 158.º do Código de Processo Civil nem chega a ser mencionado. E a referência ao artigo 875.º do mesmo Código é feita num contexto em que inequivocamente não se pretende suscitar questão alguma, mas apenas reforçar a adesão ao decidido na primeira instância.
Tanto basta para comprovar o acerto do decidido na Decisão ora reclamada.
5. Refira-se, por fim, que, contrariamente ao que parecem sugerir os reclamantes na no n.º 5 e na parte final do n.º 10 da sua reclamação – sem que, todavia, o tenham feito em momento anterior -, nem sequer é exato que o acórdão recorrido represente uma novidade totalmente inesperada quanto à qualificação jurídica do ato objeto de reclamação contenciosa - a determinação de que a venda de um bem penhorado seja feita mediante negociação particular, fixando o valor mínimo de venda – como ato judicial de natureza não jurisdicional. O próprio acórdão recorrido remete para o acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 9 de fevereiro de 2012 (Processo n.º 220/08.BERT) – portanto, uma decisão anterior à sentença de primeira instância proferida nos presentes autos… - que, por sua vez, acolhe a doutrina sufragada no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 7 de dezembro de 2011 (Processo n.º 1054/11). Acresce que, como se sustenta no acórdão recorrido, com apoio noutras decisões judiciais, aqueles atos judiciais de natureza não jurisdicional estão sujeitos a estritas regras processuais - que não às regras aplicáveis ao procedimento tributário - entre elas a consignada no artigo 158.º do Código de Processo Civil, aplicável às sentenças e aos despachos.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação apresentada e condenar os reclamantes nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UC, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. o artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 20 de fevereiro de 2013. – Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro.
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