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Processo n.º 294/11
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Évora, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 243/2011:
“I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A., arguido preso, e recorrido o Ministério Público, o primeiro vem interpor recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, do acórdão proferido, em conferência, pela 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em 01 de Março de 2011 (fls. 711 a 761), para que seja apreciada a constitucionalidade do artigos 127º do Código de Processo Penal (CPP), quando interpretado no sentido de que “vale como prova o reconhecimento presencial, realizado nos termos do artigo 147º do CPP, de arguido estrangeiro colocado ao lado de dois figurantes que são agentes de autoridade da Polícia local, há mais de dez anos exercendo funções, na respectiva localidade onde ocorreram os factos indiciados, observando-se que tal circunstância, de per si, excluiria, sem qualquer sombra de dúvida, que tal facto pudesse perturbar a capacidade de memória ou avaliação da testemunha que participe da respectiva diligência” (fls. 766).
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr. fls. 768) com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que se deve começar por apreciar se estão preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº 2, da LTC.
Se o Relator verificar que algum, ou alguns deles, não foram preenchidos, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
3. Como ponto de partida, deve realçar-se que o Tribunal Constitucional apenas pode conhecer da inconstitucionalidade de normas jurídicas (artigo 277º, n.º 1, da CRP), ou, no limite, de interpretações normativas. Ora, o modo como o recorrente fixou o objecto do presente recurso demonstra não estar em causa qualquer questão com verdadeira dimensão normativa, limitando-se o recorrente a expressar a sua discordância face aos procedimentos concretos que foram adoptados em sede de prova por reconhecimento. E, surpreendentemente, o recorrente nem suscitou, nem tão pouco interpôs recurso relativamente a uma eventual inconstitucionalidade das interpretações normativas extraídas do artigo 147º do CPP, que rege a prova por reconhecimento de pessoas, pelo que, consequentemente, acaba por admitir que os procedimentos em causa cumpriram a lei, conforme, aliás, nota a decisão recorrida:
“Não resulta, por seu lado, que algum dos requisitos a que obedece tal meio de prova, por referência aos n.ºs 2 e 3 do mesmo art. 147.º tenha sido preterido, nem o recorrente propriamente o invoca (…)” (fls. 743)
Pelo contrário, o recorrente apenas coloca em crise a constitucionalidade do artigo 127º do CPP, que se limita a fixar a regra da livre apreciação da prova. Conforme já julgou o Acórdão n.º 254/2009, em recurso através do qual se apreciava norma extraída do mesmo preceito legal:
“Em boa verdade, o recorrente limita-se a discordar do juízo formulado pelo tribunal recorrido quanto à prova produzida em audiência de discussão e julgamento, ao abrigo dos poderes que lhe foram legalmente atribuídos pelo artigo 127º do Código de Processo Penal. O recorrente não contesta – nem contestou, em sede de motivação de recurso – que aquele preceito legal atribua aos tribunais criminais uma liberdade de apreciação da prova produzida. O que o recorrente contesta é o concreto juízo levado a cabo pelo tribunal recorrido, ao abrigo de tais poderes.”
Este tribunal não dispõe de poderes para ajuizar, em recurso, do julgamento proferido ao abrigo da liberdade de apreciação de prova, mas apenas da inconstitucionalidade de normas jurídicas concretamente aplicadas. Por conseguinte, torna-se legalmente impossível conhecer do objecto do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, atenta a ausência de dimensão normativa do objecto livremente fixado pelo recorrente.
III – DECISÃO
Nestes termos, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, e pelos fundamentos expostos, decide-se não conhecer do objecto do presente recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.”
2. O recorrente vem agora reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78º-A, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
“Segundo a fundamentação da decisão sumária em causa, o recorrente teria fixado o objecto do recurso, não pondo em causa qualquer questão com “verdadeira dimensão normativa”, limitando-se a expressar a sua discordância face aos procedimentos concretos que foram adoptados em sede de prova por reconhecimento ex vi o disposto pelo artigo 147°, do CPP.
Salvo o devido respeito, entende o recorrente que não limitou o seu recurso, nem fixou o seu objecto com mera discordância face a procedimentos concretos adoptados em sede de prova por reconhecimento.
O recorrente foi mais longe: fixou o objecto do seu recurso pela livre apreciação da prova realizada com base num reconhecimento que não possui qualquer valor de prova.
Com efeito, nos termos indicados pelo recorrente, o reconhecimento que serviu de base a sua condenação, possui completa ineficiência jurídica, como meio de prova.
Isto posto, o que o recorrente questiona, efectivamente, é a constitucionalidade de uma determinada interpretação da norma que define o princípio da livre apreciação da prova em consentir, em julgamento, a valoração de um reconhecimento realizado nos termos dos procedimentos adoptados.
Este mesmo Tribunal Constitucional, através do Acórdão nº 137/01, no âmbito do proc. 778/00, 3ª Secção, de lavra da ilustre Relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, julgou que:
«Deste modo, é claramente lesivo ao direito de defesa do arguido, consagrado no nº 1, do artigo 32 da Constituição, interpretar o artigo 127º do Código de Processo Penal no sentido de que o principio da livre apreciação da prova permite valorar em julgamento, um acto de reconhecimento realizado sem a observância de nenhuma das regras previstas no artigo 147° do mesmo diploma.
Nestes termos, decide-se:
a. Não conhecer do recurso, no que toca ao artigo 147° do Código de processo Penal;
b. Julgar inconstitucional, por violação das garantias de defesa do arguido, consagradas no nº 1, do artigo 32° da Constituição, a norma constante do artigo 127º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de admitir que o principio da livre apreciação da prova permite a valoração, em julgamento, de um reconhecimento do arguido realizado sem a observância de nenhuma das regras definidas pelo artigo 147° do Código de Processo Penal.»
Diante de tal decisão, salvo devido respeito, entende o recorrente que contrariamente ao indicado pela doutra decisão sumária em debate, este Tribunal Constitucional pode conhecer do objecto do recurso, bem como pronunciar-se e julgar a questão de inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente.
Isto porque a interpretação dada ao artigo 127°, do CPP, pelas inferiores instancias, viola igualmente as garantias defesa do ora recorrente, porque admitiu que o principio da livre apreciação da prova permitisse a valoração, em julgamento, de prova de reconhecimento com manifesta ineficiência jurídica, como meio de prova, nos termos em que foi realizado.
Pelo que, requer-se seja acolhida a presente reclamação, decidindo-se admitir e conhecer do objecto do presente recurso, bem como ordenar o seu regular processamento ate decisão da questão de inconstitucionalidade suscitada.”
3. Notificado para o efeito, o Ministério Público veio responder nos seguintes termos.
“(…)
3.º
Na reclamação, vem agora o recorrente dizer que quando invocou a inconstitucionalidade do artigo 127.º do CPP, foi numa determinada interpretação - a que permitia a valoração de um reconhecimento nos termos em que teria sido realizado -, invocando, para sustentar o seu entendimento, o que o Tribunal decidira no Acórdão n.º 778/2000.
4.º
Ora, facilmente se constata que a situação dos autos é radicalmente diferente da tratada naquele aresto.
5.º
Na verdade, ali questionou-se a constitucionalidade de poder valer como prova (artigo 127.º do CPP), um reconhecimento “realizado sem a observância de nenhuma das regras definidas pelo artigo 147.º do CPP” (sublinhado nosso).
6.º
Bem pelo contrário, nos presentes autos, no Acórdão recorrido, após análise cuidadosa e criteriosa de toda a tramitação e forma como decorrera a diligência, concluiu-se: “assim, a utilização desse meio de prova – que respeitou as legais exigências previstas no artigo 147.º do CPP - na motivação do tribunal “a quo” não merece censura, porque consubstancia meio de prova legal, examinado em audiência” (sublinhado nosso).
7.º
Parece-nos, pois, evidente que saber se, no caso concreto, foram ou não respeitadas as exigências constantes artigo 147º, traduz-se em sindicar a própria decisão e mesmo que fosse enunciada uma questão de natureza normativa, ela teria sempre de radicar em alguma interpretação do artigo 147º do CPP.
8.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.”
II – Fundamentação
4. Não versando o objecto do presente recurso sobre uma qualquer interpretação normativa extraída do artigo 147 º do CPP, por exclusiva vontade do recorrente, que o delimitou, não existe qualquer paralelismo relevante entre a questão apreciada pelo Acórdão n.º 137/2001 e a dos presentes autos. Com efeito, enquanto que naquele acórdão se apreciava uma interpretação normativa que consistia na formação da convicção do julgador com base em reconhecimento efectuado ao arrepio das formalidades previstas no artigo 147º do CPP, nestes autos, a decisão aqui recorrida considera expressamente que as referidas formalidades foram integralmente cumpridas.
Por outro lado, a forma como o recorrente concebeu o objecto do presente recurso também não corresponde à dimensão normativa julgada inconstitucional pelo Acórdão n.º 137/2001, visto que, enquanto naquela tomou o artigo 127º do CPP interpretado “no sentido de admitir que o princípio da livre apreciação da prova permite a valoração, em julgamento, de um reconhecimento do arguido realizado sem a observância de nenhuma das regras definidas pelo artigo 147º do Código de Processo Penal”, nestes autos, o recorrente não conferiu qualquer dimensão normativa ao objecto seu recurso, limitando-se a manifestar a sua discordância quanto ao método de produção da prova por reconhecimento. Ao ligar o objecto do presente recurso às específicas circunstâncias fácticas verificadas no momento da prova por reconhecimento - “vale como prova o reconhecimento presencial, realizado nos termos do artigo 147º do CPP, de arguido estrangeiro colocado ao lado de dois figurantes que são agentes de autoridade da Polícia local, há mais de dez anos exercendo funções, na respectiva localidade onde ocorreram os factos indiciados, observando-se que tal circunstância, de per si, excluiria, sem qualquer sombra de dúvida, que tal facto pudesse perturbar a capacidade de memória ou avaliação da testemunha que participe da respectiva diligência” –, o recorrente condena ao fracasso o recurso interposto, pois subtrai-lhe a respectiva dimensão normativa.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Fixam-se as custas devidas pelo recorrente em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 9 de Junho de 2011. – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão.
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