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Processo n.º 291/11
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A., inconformado com a decisão sumária proferida a 27 de Abril de 2011, vem dela reclamar, concluindo do seguinte modo:
“A) No âmbito dos presentes autos, o Reclamante interpôs recurso da douta Sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Alcanena, de 06 de Outubro de 2010, proferida nos autos do processo n.° 80190.3TAACN, a qual julgou procedente a acusação deduzida contra o ora Reclamante, A., ali Arguido, condenando-o pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido no n.° 1, alínea a), n.° 2 e n.° 5, do artigo 152.°, do Código Penal (CP).
B) Nessa sequência, em 16 de Fevereiro de 2011, foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação de Coimbra, o qual negou provimento ao recurso deduzido pelo aqui Reclamante.
C) Em 03 de Março de 2011, o ora Reclamante deduziu nos termos e para os efeitos previstos na alínea b), do n.° 1, do artigo 70°, da LTC, recurso para o Tribunal Constitucional, por entender que aquele Acórdão (do Tribunal da Relação de Coimbra) aplicou normas que padecem de inconstitucionalidade, atenta a interpretação que delas foi feita.
D) Para tanto, fundamentou o Reclamante a interposição do seu recurso para o Tribunal Constitucional, o que fez no requerimento apresentado em 03 de Março de 2011, com os argumentos ali expostos e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
E) Nestes termos, vem a presente reclamação deduzida na sequência da notificação, ao ora Reclamante, A., da Decisão sumária n.° 255/2011, proferida pelo Exmo. Juiz Conselheiro Relator, em 27 de Abril de 2011, através da qual se decidiu não tomar conhecimento do recurso por si deduzido para o Tribunal Constitucional (em 03 de Março de 2011).
F) Decisão essa que teve como fundamento o facto de alegadamente não se encontrarem reunidos os pressupostos necessários ao conhecimento do referido recurso.
G) Sucede, porém, que não pode o ora Reclamante, conformar-se com a Decisão sumária proferida nos termos supra indicados e com os fundamentos ali aduzidos, uma vez que é seu entendimento, salvo o devido respeito, que há na Decisão sumária reclamada uma errada interpretação do disposto na alínea b), do n.° 1, do artigo 70.°, da LTC, impondo essa norma (se correctamente interpretada) outra decisão.
H) Pese embora a Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), limite o recurso a interpor perante o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto na alínea b), do n.° 1, do artigo 70°, às situações em que se aplique ‘norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo’,
I) No caso dos presentes autos, as inconstitucionalidades apenas surgiram com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 16 de Fevereiro de 2011.
J) Sem que antes deste, tivesse o Reclamante condições para prever que essas inconstitucionalidade se iriam verificar e por essa razão, sem que até àquele momento tivesse o Reclamante motivos para suscitar durante o decurso do processo as inconstitucionalidades que agora pretende que sejam apreciadas pelo Tribunal Constitucional.
K) Trata-se esta de uma situação excepcional e que por essa razão impõe uma apreciação casuística face ao disposto na alínea b), do n.° 1, do artigo 70.°, da LTC.
L) A interpretação a fazer daquela norma terá, pois, que ser extensiva, integrando situações que numa abordagem mais estrita não encontrariam consagração naquela disposição normativa.
M) Outra interpretação não faria sentido, já que impediria que nas situações como a dos presentes autos, em que apenas com o Acórdão do Tribunal da Relação se observa uma interpretação inconstitucional de várias disposições, a parte ficasse privada de alegar as mesmas,
N) Até porque, a interposição dos recursos ao abrigo da alínea b), do n.° 1, do artigo 70.°, da LTC, tem como pressuposto, que se encontre esgotada a possibilidade de deduzir recurso ordinário, conforme melhor decorre do artigo 70°, n.° 2 a n.° 6, da LTC.
O) A não se fazer uma interpretação extensiva daquela norma (artigo 70°, n.° 1, alínea b), da LTC), a parte que se encontre nas condições supra descritas, ficaria privada de ver apreciada pelo Tribunal Constitucional a interpretação de normas legais feita pelo Tribunal a quo e que no seu entendimento consubstancia a violação de disposições constitucionais.
P) Muito embora a jurisprudência do Tribunal Constitucional tenha vindo a exigir que, no caso da alínea b), do n.° 1, do artigo 70°, da LTC, as questões de inconstitucionalidade hajam sido suscitadas durante o processo e não em sede de requerimento de interposição do recurso, é de concluir que esta regra admite excepções, designadamente, nas situações em que o interessado não disponha de oportunidade processual para levantar a questão de inconstitucionalidade antes de proferida a decisão.
Q) Por outro lado, não assiste razão ao Conselheiro Relator quando na fundamentação da sua Decisão, e a respeito da interpretação dada pelo Tribunal a quo relativamente ao artigo 400.°, n.° 2, do Código de Processo Penal (CPP), refere que ‘(C)ompetia ao Recorrente antecipar a aplicação de tal preceito naquele sentido’.
R) A antecipação do sentido em que o Tribunal aplica uma determinada norma não deve, nem pode, ser um ónus que recaia sobre as partes em juízo.
S) Face ao exposto, não era pois exigível ao Reclamante que, em momento anterior, tivesse alegado as inconstitucionalidades (só) agora verificadas, por não lhe ser possível representar que iria ser adoptada uma interpretação inconstitucional das normas em questão.
T) Designadamente, do alcance da livre apreciação da prova, consagrada no artigo 127.°, do Código de Processo Penal (CPP).
U) Ora, salvo o devido respeito, o Tribunal da Relação de Coimbra ao confirmar a decisão da Primeira Instância, mediante a reafirmação puramente subjectiva da prova, mediante ‘juízos lógico-dedutivos’ fez uma aplicação inconstitucional do artigo 127.°, do CPP, violando, em consequência, o disposto nos artigos 2.°, 13°, 18.°, 20.° e 32.°, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP).
V) É, também, essa interpretação inconstitucional que o aqui Reclamante pretender ver apreciada por este Tribunal Constitucional.
W) Razão pela qual, o Reclamante suscitou no Tribunal ad quem a apreciação da constitucionalidade da interpretação do artigo 127.°, do CPP, quando entendido no sentido de que a livre apreciação da prova pode ir para além dos factos que são apresentados ao Tribunal, assentando em juízos lógico-dedutivos.
X) Conforme já alegado pelo aqui Reclamante no seu requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional — e ao contrário do decidido pelo Tribunal da Relação de Coimbra —, a livre apreciação de prova não se confunde com a apreciação arbitrária da mesma, nem (sequer) com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova.
Y) O Reclamante considera, pois, que a interpretação feita no Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 16 de Fevereiro de 2011, relativamente ao princípio da livre apreciação da prova, é manifestamente inconstitucional, violando (para mais) as garantias de defesa consagradas no artigo 32.°, n.° 1, da CRP.
Z) Por outro lado, não pode — como aconteceu no caso concreto — o Reclamante ser prejudicado ou ver afectado o seu direito de presunção de inocência pelo simples facto de ter sofrido uma condenação anterior, o que (também) é passível de violar o disposto no artigo 32°, da CRP.
AA) Dos autos resulta, que o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, ao manter a decisão (inicialmente) proferida pelo Tribunal Judicial de Alcanena, violou o equilíbrio que sempre se deverá verificar entre o princípio da presunção da inocência e o princípio da livre apreciação da prova.
BB) Aliás, de uma condenação penal não podem resultar, como consequência automática, a perda de direitos civis, sem necessidade de se efectuar um juízo que pondere, na situação concreta, a adequação e necessidade da produção desses efeitos, por violação da proibição contida no artigo 30.°, n.° 4, da CRP.
CC) Ora, no caso, entendeu o Tribunal da Relação de Coimbra, que a condenação anterior é factor a ponderar não só no que concerne à manutenção da pena aplicada ao ora Reclamante, como também na manutenção da pena acessória.
DD) Com este entendimento, o Acórdão interpretou o artigo 32°, n.° 2, da CRP, de forma restritiva, comprimindo, de forma injustificada, o direito, constitucionalmente consagrado, que lhe é inerente.
EE) Tudo isto, enquanto (por outro lado) interpretou o artigo 127.°, do CPP de forma extensiva, restringindo o princípio da presunção da inocência.
FF) Finalmente, entende o Reclamante que o disposto no artigo 400.°, n.° 2, do CPP, padece de inconstitucionalidade quando ali se determina que ‘(...) o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.’
GG) A irrecorribilidade estabelecida naquele normativo viola o princípio da igualdade e do acesso ao direito e tutela jurisdicional, conforme melhor decorre dos artigos 2.°, 13°, e 20°, CRP.
HH) É que a ser assim, poderá cair-se na situação juridicamente aberrante de o Arguido ser absolvido (em sede de recurso penal) pela prática de um crime, e ainda assim, se manter a decisão proferida quanto à indemnização civil determinada em 1.ª instância,
II) Tudo quando, o facto que determinou a obrigação de indemnizar — a prática do crime em concreto — deixou de se verificar com a absolvição do Arguido.
JJ) Face ao exposto, não assiste razão aos argumentos aduzidos pelo Conselheiro Relator, uma vez que como aqui se demonstrou a questão da interpretação inconstitucional se encontra perfeitamente delimitada e identificada no requerimento de interposição de recurso.
KK) Com efeito, o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127.°, do CPP, foi utilizado, na decisão recorrida, com total e absoluta arbitrariedade, pondo em causa as garantias do Reclamante, designadamente a que se encontra consagrada no artigo 32.°, n.° 2, da CRP e que impõe que, em caso de dúvida, se absolva o Réu.
LL) Por outro lado, ainda, é inconstitucional a interpretação feita no Acórdão recorrido, no sentido de valorar a condenação anteriormente sofrida pelo aqui Reclamante, por violação do artigo 32.°, da CRP.
MM) Designadamente, baseando o Tribunal da Relação de Coimbra, in casu, a manutenção da aplicação das penas acessórias com o facto de se ter verificado condenação anterior.
NN) Finalmente e no que respeita à irrecorribilidade determinada pelo n.° 2, do artigo 400°, do CPP, pelos motivos supra expostos, padece a mesma de inconstitucionalidade por violação dos normativos constitucionais consagrados nos artigos 2.°, 13.° e 20.°, todos da CRP.
00) Pelo exposto, impõe-se concluir que se encontram reunidas as condições legais para o conhecimento do recurso deduzido pelo aqui Reclamante.
IV — Do Pedido:
Termos em que se requer que seja a presente Reclamação julgada procedente, por provada, determinando-se, em consequência, a apreciação do mérito do Recurso deduzido, tudo com as necessárias consequências legais.”
2. A decisão reclamada, e no que ora importa, tem o seguinte teor:
“1. A., foi condenado pelo Tribunal Judicial de Alcanena pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com subordinação a certas e determinadas obrigações e regras de conduta. Foi ainda condenado, na procedência parcial do pedido cível, a pagar à aqui recorrida, B., uma indemnização no valor de €1700,00.
2. Inconformado, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, que manteve a decisão recorrida.
3. Vem agora recorrer para este Tribunal, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), dizendo o seguinte:
‘1. No âmbito dos presentes autos, o Recorrente interpôs recurso da douta Sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Alcanena, de 06 de Outubro de 2010, proferida nos autos do processo n.° 80/90.3TAACN, a qual julgou procedente a acusação deduzida contra o ora Recorrente, A., ali Arguido, condenando-o pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido no n.° 1, alínea a), n.° 2 e n.° 5, do artigo 152.°, do Código Penal (CP).
2. Nesta sequência, em 16 de Fevereiro de 2011, foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação de Coimbra, o qual negou provimento ao recurso deduzido pelo aqui Recorrente.
3. Sucede, no entanto, que aquele Acórdão aplicou normas que padecem de inconstitucionalidade, atenta a interpretação que delas foi feita por aquele Tribunal (da Relação de Coimbra), as quais trataremos sumariamente de enumerar infra.
4. Assim, e pese embora a Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional limite o recurso a interpor perante o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto na alínea b), do artigo 70.°, às situações em que se aplique ‘norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo’,
5. O certo é que, in casu, as inconstitucionalidades apenas surgem com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 16 de Fevereiro de 2011.
6. Sem que antes deste, tivesse o Recorrente condições para prever que essas inconstitucionalidade se iriam verificar e por essa razão, sem que até ao momento tivesse o Recorrente motivos para suscitar durante o decurso do processo as inconstitucionalidades que agora pretende que sejam apreciadas pelo Tribunal Constitucional,
7. Por só agora as mesmas se terem verificado.
8. Com efeito, foi apenas nesse Acórdão que julgou o recurso deduzido, que o Tribunal da Relação de Coimbra fez uma aplicação do sentido normativo de várias disposições legais, cuja constitucionalidade se pretende ver (agora) apreciada.
9. Face ao exposto, não era pois exigível ao Recorrente que, em momento anterior, tivesse alegado as inconstitucionalidades agora verificadas, por não lhe ser possível representar que iria ser adoptada uma interpretação inconstitucional das normas em questão.
10. Designadamente, do alcance da livre apreciação da prova, consagrada no artigo 127.°, do Código de Processo Penal (CPP).
11. Ora, salvo o devido respeito, o Tribunal da Relação de Coimbra ao confirmar a decisão da Primeira Instância, mediante a reafirmação puramente subjectiva da prova, mediante ‘juízos lógico-dedutivos’ fez uma aplicação inconstitucional do artigo 127.°, do CPP,
12. Violando, em consequência, o disposto nos artigos 2.°, 13.°, 18.°, 20.° e 32.°, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP).
13. Pelo exposto, é entendimento do aqui Recorrente só agora estarem reunidas as condições para arguir a inconstitucionalidade da interpretação feita pelo Acórdão da Relação de Coimbra, relativamente ao princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127.°, do CPP.
14. Razão pela qual, pretende, pois, o Recorrente suscitar no Tribunal ad quem a apreciação da constitucionalidade da interpretação do artigo 127.°, do CPP, quando entendido no sentido de que a livre apreciação da prova pode ir para além dos factos que são apresentados ao tribunal,
15. Assentando em juízos lógico-dedutivos.
16. Ao contrário do decidido, a livre apreciação de prova não se confunde com a apreciação arbitrária da prova, nem (sequer) com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova.
17. O Recorrente considera, pois, que a interpretação feita no Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 16 de Fevereiro de 2011, relativamente ao princípio da livre apreciação da prova, é manifestamente inconstitucional, violando (para mais) as garantias de defesa consagradas no artigo 32.°, n.° 1, da CRP.
18. Por outro lado, não pode — como aconteceu no caso concreto — o Recorrente ser prejudicado ou ver afectado o seu direito de presunção de inocência pelo simples facto de ter sofrido uma condenação anterior, o que (também) é passível de violar o disposto no artigo 32.°, da CRP.
19. Dos autos resulta, que o Acórdão, ao manter a decisão (inicialmente) proferida pelo Tribunal Judicial de Alcanena, violou o equilíbrio que sempre se deverá verificar entre o princípio da inocência e o princípio da livre apreciação da prova.
20. Aliás, de uma condenação penal não podem resultar, como consequência automática, a perda de direitos civis, sem necessidade de se efectuar um juízo que pondere, na situação concreta, a adequação e necessidade da produção desses efeitos, por violação da proibição contida no artigo 30.°, n.° 4, da CRP.
21. Ora, no caso, entendeu o Tribunal da Relação de Coimbra, que a condenação anterior é factor a ponderar não só no que concerne à manutenção da pena aplicada ao Recorrente, como também na manutenção da pena acessória.
22. Com este entendimento, o Acórdão interpretou o artigo 32.°, n.° 2, da CRP, de forma restritiva, comprimindo, de forma injustificada, o direito, constitucionalmente consagrado, que lhe é inerente.
23. Tudo isto, enquanto (por outro lado) interpretou o artigo 127.°, do CPP de forma extensiva, restringindo o princípio da presunção da inocência.
24. In casu, verifica-se, assim, que (também) por esta via o Acórdão padece de inconstitucionalidade quanto à interpretação normativa ali feita.
25. Finalmente, entende o Recorrente que o disposto no artigo 400.°, n.° 2, do CPP, padece de inconstitucionalidade quando ali se determina que ‘(...) o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.’
26. A irrecorribilidade estabelecida naquele normativo viola o princípio da igualdade e do acesso ao direito e tutela jurisdicional, conforme melhor decorre dos artigos 2.°, 13.°, e 20.°, CRP.
27. É que a ser assim, poderá cair-se na situação juridicamente aberrante de o Arguido ser absolvido (em sede de recurso penal) pela prática de um crime, e ainda assim, se manter a decisão proferida quanto à indemnização civil determinada em 1.ª instância,
28. Tudo quando, o facto que determinou a obrigação de indemnizar — a prática do crime em concreto — deixou de se verificar com a absolvição do Arguido.
29. Face ao exposto, a questão da constitucionalidade normativa encontra-se perfeitamente delimitada e identificada.
30. Sendo que a questão da constitucionalidade, pelas razões aqui demonstradas, só poderia ter sido suscitada em sede de recurso, depois de conhecida quer a decisão (de cuja aplicação normativa é objecto do presente recurso), quer a sua fundamentação.
31. O princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127.°, do CPP, foi utilizado, na decisão recorrida, com total e absoluta arbitrariedade, pondo em causa as garantias do Arguido, designadamente a que se encontra consagrada no artigo 32.°, n.° 2, da CRP e que impõe que, em caso de dúvida, se absolva o Réu,
32. Por outro lado, ainda, é inconstitucional a interpretação feita no Acórdão recorrido, no sentido de valorar a condenação anteriormente sofrida pelo aqui Recorrente,
33. Por violação, uma vez mais, do artigo 32.°, da CRP.
34. Designadamente, baseando o Tribunal da Relação de Coimbra, in casu, a manutenção da aplicação das penas acessórias com o facto de se ter verificado condenação anterior.
35. Finalmente e no que respeita à irrecorribilidade determinada pelo n.° do artigo 400.°, do CPP, pelos motivos supra expostos, padece a mesma de inconstitucionalidade por violação dos normativos constitucionais consagrados nos artigos 2.°, 13.°, e 20.°, CRP.
36. Assim e em estrito cumprimento dos n.°s 1 e 2 do artigo 75.°-A, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, refere-se em suma:
a) Preceito constitucional violado — artigos 2.°, 13.°, 18.°, 23.°, 20.°, 30.° e 32.°, todos da CRP;
b) Legislação ordinária de que foi feita uma interpretação materialmente inconstitucional: artigos 127.° e 400.°, n.° 2, ambos do CPP;
c) Peça processual em que foi suscitada a questão da inconstitucionalidade: no presente requerimento de interposição de recurso, uma vez que, como já aqui supra referido, o Recorrente só agora foi notificado da decisão que, no seu entendimento, faz uma interpretação desconforme com a CRP de normas legais integradas em direito ordinário, pelo que atento o facto de só agora lhe ter sido dado conhecer, é este o momento processualmente adequado para suscitar tais inconstitucionalidades interpretativas.’
Cumpre decidir.
II – Fundamentação
4. Entende-se ser de proferir decisão sumária ex vi artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, por não se encontrarem preenchidos os pressupostos necessários ao conhecimento do recurso, na medida em que o despacho de admissão do mesmo, proferido pelo tribunal a quo, não vincula este Tribunal (cfr. artigo 76.º, n.º 3, daquele diploma).
4.1. O recurso de constitucionalidade que o Recorrente pretendeu interpor pressupõe a suscitação de questão de constitucionalidade normativa durante o processo, nos termos dos artigos 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, e 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC. Significa isto que o recorrente deve lograr enunciar, durante o processo, o critério normativo extraído do preceito ou preceitos legal em causa, em termos de generalidade e abstracção de modo a que o mesmo se apresente totalmente destacado das particularidades e especificidades da concreta situação em causa. Tal suscitação deve ainda ter ocorrido de modo processualmente adequado (cfr. artigo 72.º, n.º 2, da LTC). Suscitar a questão de constitucionalidade normativa em moldes processualmente adequados implica que o recorrente enuncie o sentido atribuído ao preceito legal ou bloco normativo que reputa inconstitucional e que pretende ver apreciado no recurso de fiscalização concreta, e, adicionalmente, que aduza, de modo claro, ainda que sucinto, as razões que justificariam, in casu, um juízo de inconstitucionalidade.
5. Vejamos então em que moldes se constata a ausência dos pressupostos essenciais ao conhecimento do recurso:
5.1. Relativamente à questão suscitada a propósito do artigo 127.º do Código de Processo Penal, o Recorrente assenta o seu juízo de inconstitucionalidade na forma como o tribunal recorrido apreciou a matéria de facto. Não invoca, portanto, qualquer inconstitucionalidade normativa mas sim, e tão-somente, um juízo crítico à forma como foi apreciada a matéria fáctica, (de forma ‘arbitrária’, na sua opinião).
Por outro lado, no que se refere à pena que foi fixada, o juízo de inconstitucionalidade feito pelo recorrente assenta na lógica subsuntiva que leva a aferir da pena aplicável, nomeadamente nos antecedentes criminais. O que se traduz na ausência de norma sindicada, e sim num juízo inerente à própria decisão, com relevância particular para encontrar a adequada medida da pena.
5.2. Quanto à inconstitucionalidade do artigo 400.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, também aqui não assiste razão ao recorrente. Na verdade, não se pode dizer que a aplicação desse preceito, no sentido que lhe foi atribuído pela Relação (que se limitou a aplicar a letra da lei) configura uma decisão-supresa para efeitos de dispensa do ónus de suscitação atempada da questão de constitucionalidade. Para que uma decisão possa ser qualificada como ‘decisão-supresa’ de modo a considerar-se o recorrente constitucional dispensado do ónus de suscitação atempada (i.e. durante o processo) da questão de constitucionalidade, é necessário que a aplicação do preceito em causa – ou a aplicação do preceito numa determinada interpretação – surja como absolutamente inesperada e imprevisível de um ponto de vista objectivo. Competia ao Recorrente antecipar a aplicação de tal preceito naquele sentido na medida em que o mesmo resulta já de jurisprudência anterior cujo conteúdo não pode o mesmo desconhecer. Neste sentido se tem vindo a pronunciar, de modo reiterado, a jurisprudência constitucional. Como se afirmou, por exemplo, no Acórdão n.º 479/89, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 1992, ‘ (…) desde logo terá de ponderar-se que não pode deixar de recair sobre as partes em juízo o ónus de considerarem as várias possibilidades interpretativas das normas de que se pretendem socorrer, e de adoptarem, em face delas, as necessárias cautelas processuais (por outras palavras, o ónus de definirem e conduzirem uma estratégia processual adequada). E isso – acrescentar-se-á também logo mostra como a simples ‘surpresa’ com a interpretação dada judicialmente a certa norma não será de molde (ao menos, certamente, em princípio) a configurar uma dessas situações excepcionais (voltando agora à nossa questão) em que seria justificado dispensar os interessados da exigência de invocação ‘prévia’ da inconstitucionalidade perante o tribunal ‘a quo.’ (sublinhado nosso) Não pode, portanto, esta questão ser conhecida na medida em que a questão de constitucionalidade não foi suscitada durante o processo, pressuposto cujo preenchimento era exigível ao Recorrente.
Face ao exposto, resta concluir pela impossibilidade de conhecimento do recurso.”
3. O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A reclamação deduzida carece manifestamente de fundamento na medida em que o ora Reclamante se limita a retomar a argumentação já anteriormente expendida e apreciada, sem aduzir nada de novo relativamente aos fundamentos da decisão contestada.
O conhecimento de recursos interpostos ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), como sucede nos autos, depende da prévia verificação de vários requisitos, nomeadamente a suscitação, pelo recorrente, de inconstitucionalidade de uma norma durante o processo, constituindo essa norma fundamento (ratio decidendi) da decisão recorrida, bem como o prévio esgotamento dos recursos ordinários. Para além disso, é imprescindível a utilidade de qualquer juízo que o Tribunal Constitucional venha a proferir.
5. Como foi referido na decisão sumária, verifica-se, nos autos, ausência de pressupostos essenciais ao conhecimento do recurso.
5.1. Relativamente à inconstitucionalidade do artigo 127.º do CPP, o que o recorrente logrou enunciar consubstancia apenas a impugnação do juízo de valoração da prova e não, como o sistema de fiscalização judicial da constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional impõe, uma interpretação normativa desenvolvida pela instância a quo a partir do referido preceito. O que se vislumbra, no recurso dirigido a este Tribunal, integra simplesmente uma discordância quanto ao julgamento da matéria de facto e à valoração da prova. E saliente-se que na reclamação apresentada, persiste-se na não enunciação de uma questão normativa quanto a este preceito, insistindo o Reclamante em aludir a uma “interpretação” do princípio da livre interpretação da prova eventualmente violadora de normas e princípios constitucionais, não se alcançando a especificação de qual seria tal interpretação sem cair no confronto directo com a decisão recorrida e o juízo judicial.
5.2. Quanto ao artigo 400.º, n.º 2 do CPP, decidiu-se pelo não conhecimento pelo facto de a questão não ter suscitada durante o processo quando tal era exigível ao recorrente. Logo pela aferição da exigibilidade de suscitação da inconstitucionalidade normativa durante o processo, ou seja, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo, se antecipa que não terão qualquer procedência as reivindicações do Reclamante nesta parte. O Reclamante vem pugnar por uma interpretação extensiva do artigo artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, indicando jurisprudência constitucional que se firmou nesta matéria e nos termos da qual este pressuposto pode ser afastado em situações excepcionais.
Não se ignora tal jurisprudência. O que se verifica, neste caso, é que nenhuma das excepções conceptualizáveis a propósito deste pressuposto, se veio a verificar. De facto, apenas se conceberia o afastamento do mesmo se se considerasse que, de todo, não era exigível ao recorrente que antecipasse a aplicação da norma, bem como o sentido dessa mesma aplicação. Tratando-se da interposição de um recurso e versando o preceito em causa regras aplicáveis a esse mesmo recurso, resulta óbvia a aplicabilidade do mesmo. Por outro lado, o preceito foi aplicado na sua literalidade pelo que, do mesmo modo, se pode concluir pela exigibilidade na antecipação, pelo recorrente, da questão de constitucionalidade.
Nada mais havendo a conhecer e a decidir, é de manter, nos seus precisos termos, a decisão sumária reclamada, assim improcedendo a reclamação deduzida.
III – Decisão
6. Deste modo acordam, em conferência, indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido de não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 7 de Junho de 2011. – José Borges Soeiro – Gil Galvão – Rui Manuel Moura Ramos.
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