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Processo n.º 900/10
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional – LTC), do despacho do Tribunal da Comarca de Mértola “que recusou a aplicação da norma constante do artigo 814.º do Código de Processo Civil, por violação das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que a interpretação e aplicação literal e imediata do aludido inciso legal, sem um regime transitório ou de salvaguarda aplicável às injunções a que foi conferida força executiva anteriormente à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 226/2008, permite obstar e fazer precludir o exercício do direito de defesa que até então era, maioritariamente, admitido.”
2. No despacho recorrido, na parte que agora releva, decidiu-se que:
“ (…) No entanto, compulsados os autos de execução, constata-se que o título executivo constante do mesmo é uma injunção à qual foi conferida força executiva em 17-12-2008 e bem assim, que a presente execução de que a posição é apenso, foi intentada em 22-09-2009.
Concluímos assim, que a lei processual a aplicar é a que resultou do Decreto-Lei n.° 226/2008, aplicável a todos os processos iniciados após 31 de Março de 2009.
Com a alteração à reforma executiva operada pelo Decreto-Lei n.° 226/2008, de 20 de Novembro, as injunções foram equiparadas às sentenças, pelos que os fundamentos admissíveis na oposição à execução terão necessariamente de se circunscrever aos fundamentos previstos no artigo 814° do Código de Processo Civil, ou seja, para o que no caso releva, factos extintivos ou modificativos, desde que posteriores ao encerramento da discussão no processo em que foi aposta a força executiva (realizando in casu, uma interpretação adaptada da alínea g), do n.° 1, do citado inciso legal. Ora, nos presentes autos de oposição, pretende o executado vir discutir a existência da dívida, invocando, em síntese, factos relativos ao cumprimento do contrato e a eficácia da resolução que realizou por escrito datado de 9-10-2007 dirigido à ora exequente. Impunha-se assim, rejeitar a oposição à execução por inadmissibilidade do fundamento — cfr. artigo 817°, n.° 1, alínea b) do Código de Processo Civil. Contudo, julgamos que a questão não se pode colocar desta forma.
Não obstante com base em legislação diversa, atenta as sucessivas alterações, o Tribunal Constitucional já foi chamado a pronunciar-se quanto à admissibilidade dos fundamentos passíveis de sustentar uma oposição quando a execução tenha por base uma injunção (vd. Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 658/2006, relatado pelo Exmo. Senhor Conselheiro Mota Pinto).
Discutia-se à data a redacção conferida ao artigo 14° do Decreto-Lei n.° 269/89, de 1 de Setembro e concluiu aquele douto tribunal que ‘Julgar inconstitucional, por violação do princípio da proibição da indefesa ínsito no direito de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da Constituição, a norma do artigo 14.º do Regime anexo ao Decreto-Lei n.° 269/98, de 1 de Setembro, na interpretação segundo a qual, na execução baseada em título que resulta da aposição da fórmula executória a um requerimento de injunção, o executado apenas pode fundar a sua oposição na alegação e prova, que lhe incumbe, de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pelo exequente, o qual se tem por demonstrado’.
Acontece que, no nosso entender, e não obstante a alteração da redacção ao artigo 814° do Código de Processo Civil, mediante o qual se equiparou a injunção a uma decisão judicial para efeitos dos fundamentos invocados em sede de oposição à execução, os fundamentos utilizados na douta fundamentação do já citado aresto se mantém (ao que acresceremos um outro).
Com efeito, entendemos que não é a alteração de uma norma processual que altera a natureza substantiva da injunção.
Quanto a esta e vertendo aqui os ensinamentos explanados no aresto que se tem vindo a citar, a generalidade da doutrina tem considerado que a aposição, pelo secretário judicial, da fórmula executória no requerimento de injunção integra um título executivo distinto das sentenças, sendo admissível que, na oposição à execução nele fundada, o executado invoque, para além dos fundamentos invocáveis na oposição à execução fundada em sentença, ‘quaisquer outros que seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração’. (…)
Sobre tal matéria e face às sucessivas alterações legislativas, a doutrina (aqui se incluindo alguns dos citados autores) e a jurisprudência, já com a redacção resultante do Decreto-Lei n.° 38/2003, não eram unânimes na afirmação do tipo de oposição que o executado podia opor à execução baseada em injunção. Uns consideravam que era aplicável o disposto no art. 814° (neste sentido, Acórdãos da Relação de Lisboa de 28/10/2004, e de 10/12/2009, ambos disponíveis in www.dqsi.pt e Salvador da Costa, in ‘A Injunção e as Conexas Acção e Execução’, 6.ª ed., 2008, pgs. 324- 326); outros sustentavam que o executado pode fundamentar a sua oposição em qualquer causa permitida pelo art. 816° (assim, Acórdãos da Relação do Porto de 10/01/2006 e de 05/07/2006, da Relação de Coimbra de 05/05/2009, todos disponíveis in www.dqsi.pt, e Prof. Remédio Marques, in ‘Curso de Processo Executivo Comum à face do Código Revisto’, 1998, pg. 79).
Pertencíamos, na redacção conferida ao artigo 814° do Código de Processo Civil pelo Decreto-Lei n.° 38/2003, aos que defendiam a segunda tese aqui explanada. Actualmente, julgamos a redacção do artigo 814° do Código de Processo Civil inconstitucional por violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva e do princípio da confiança no estado de direito, uma vez que a interpretação e aplicação literal e imediata do aludido inciso legal, sem um regime transitório ou de salvaguarda aplicável às injunções a que foi conferida força executiva anteriormente à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.° 226/2008, permite obstar e fazer precludir o exercício do direito de defesa que até então era, maioritariamente, admitido.”
3. Notificado para alegar, o Exmo. Magistrado do Ministério Público, junto deste Tribunal, concluiu do seguinte modo:
“ (…) 3. Objecto do presente recurso de inconstitucionalidade é a ‘interpretação normativa’ extraída das disposições dos n.°s 1 e 2 do art. 814.°, cit., conjugadamente com o regime transitório do Decreto-Lei n.° 226/2008, cit., na medida em que não salvaguarda a aplicação da lei antiga quanto aos fundamentos de oposição à execução baseada nas injunções a que foi conferida força executiva anteriormente à data da entrada em vigor desse diploma legal.
b) Protecção da confiança
4. Por força da dita ‘interpretação normativa’, a aplicação da lei nova, sem mais, aos efeitos jurídicos determinados no âmbito da lei antiga, e ainda subsistentes, lesaria os ‘direitos adquiridos’ do executado, na medida em que, assim, será denegado fazer uso dos fundamentos que lhe teria sido ‘lícito deduzir como defesa no processo de declaração’ (matéria de impugnação), frustrando a confiança legítima que sedimentara à sombra da lei antiga.
5. E bem assim, a aplicação da lei nova não realiza um interesse constitucionalmente protegido, que deva prevalecer sobre o direito à tutela judicial, plena e sem lacunas, garantida pela lei antiga, ao facultar, ainda, os meios de defesa dedutíveis em processo declarativo, solução legal que era passível de compensar eventuais assimetrias entre as partes (tipicamente, ‘grandes litigantes’ pleiteando contra consumidores) no processo de formação do requerimento de injunção como título executivo.
6. Finalmente, o DL n.° 226/2008, cit., não consagrou, como razoavelmente poderia fazer, qualquer regime transitório que salvaguardasse este ‘direito adquirido’ à plenitude da defesa judicial, em sede de execução movida com base em injunção constituída nos referidos termos.
7. Portanto, a ‘interpretação normativa’ em causa infringe o princípio da protecção da confiança, inerente à cláusula do ‘Estado de direito democrático’ (CRP, art. 2.°).
c) Tutela judicial plena e efectiva
8. Por força da dita ‘interpretação normativa’ em causa, ao executado será agora denegado fazer uso dos fundamentos que lhe teria sido ‘lícito deduzir como defesa no processo de declaração’ (matéria de impugnação), em sede da acção executiva baseada nos requerimentos de injunção, a que foi conferida força executiva anteriormente à data da entrada em vigor do Decreto- Lei n.° 226/2008, cit..
9. Ora, como demonstram os doutos argumentos aduzidos no Acórdão n.° 658/2006, deste Tribunal Constitucional, essa restrição dos meios de defesa judicial consubstancia ‘violação do princípio da proibição da indefesa ínsito no direito de acesso ao direito e aos tribunais’ (CRP, art. 20.°, n.° 1).
10. Em suma, a ‘interpretação normativa’ em causa enferma de inconstitucionalidade material, por infracção dos princípios e normas constitucionais da ‘protecção da confiança’ e da ‘tutela judicial efectiva e plena’ (CRP, arts. 2.° e 20.°, n.° 1).
Nestes termos, no entender deste Ministério Público, deverá ser confirmado o juízo de inconstitucionalidade formado na decisão recorrida e quanto à questão da inconstitucionalidade.”
4. O Recorrido não respondeu.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
a) Delimitação do objecto do recurso
5. No despacho recorrido e, consequentemente, no requerimento de interposição do recurso, a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie, é a “constante do artigo 814.° do Código de Processo Civil”.
O art. 814.° do Código de Processo Civil, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de Novembro, consubstancia os fundamentos de oposição à execução baseada em sentença ou injunção.
Assim, o objecto do recurso incide sobre “a interpretação e aplicação literal e imediata do aludido inciso legal, sem um regime transitório ou de salvaguarda aplicável às injunções a que foi conferida força executiva anteriormente à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.° 226/2008, permite obstar e fazer precludir o exercício do direito de defesa que até então era maioritariamente, admitido”.
Nestes termos, o que vem qualificado como questão de constitucionalidade é o bloco normativo constituído pelos preceitos dos n.°s 1 e 2 do art. 814.° do Código de Processo Civil, na redacção precedente do Decreto Lei n.° 226/2008, já referenciado, conjugado com o “regime transitório” deste diploma.
Equaciona-se, portanto, a extensão dos fundamentos de oposição à execução baseada em sentença “ao requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória, desde que o procedimento de formação desse título admita oposição pelo requerido”, na medida em que seja aplicado ao requerimento de injunção, onde tenha sido aposta fórmula executória “anteriormente à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.° 226/2008”, por não salvaguardar a aplicação da lei antiga, quanto aos fundamentos de oposição à execução baseada nas injunções a que foi conferida força executiva anteriormente à data da entrada em vigor desse diploma legal, fundamentos esses que eram mais amplos, pois que se integravam nos referidos fundamentos baseados noutro titulo que não a sentença (artigo 816.º da redacção coeva).
b) Do mérito do recurso
6. Toma-se pertinente encetar um breve enquadramento do processo de injunção que teve a sua origem no Decreto-Lei n.º 404/93, de 10 de Dezembro, aproveitando o ensinamento colhido no Acórdão n.º 669/2005 (publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Fevereiro), onde se exarou:
“A injunção, como providência destinada a conferir força executiva ao requerimento destinado a obter o cumprimento efectivo de obrigações pecuniárias decorrentes de contrato cujo valor não excedesse metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância, foi instituída pelo Decreto-Lei n.° 404/93, de 10 de Dezembro, prevendo-se que, na falta de oposição do requerido, o secretário judicial do tribunal aporia fórmula executória no requerimento de execução. Este diploma não continha qualquer disposição específica quanto às execuções fundadas nesse título, mas no respectivo preâmbulo esclareceu-se que: ‘A aposição da fórmula executória, não constituindo, de modo algum, um acto jurisdicional, permite indubitavelmente ao devedor defender-se em futura acção executiva, com a mesma amplitude com que o pode fazer no processo de declaração, nos termos do disposto no artigo 815.º do Código de Processo Civil.’
Esse regime foi substituído pelo instituído pelo Decreto-Lei n.° 269/98, de 1 de Setembro, que alargou a aplicabilidade da providência aos contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª instância (artigo 7.º do Regime anexo), tendo posteriormente o Decreto-Lei n.° 32/2003, de 17 de Fevereiro, estendido essa aplicabilidade às obrigações comerciais abrangidas por esse diploma. No que concerne à execução fundada em requerimento de injunção, o artigo 21.°, n.° 1, do Regime aprovado pelo Decreto-Lei n.° 269/98 limitou-se a determinar que a mesma seguiria, com as necessárias adaptações, os termos do processo sumário para pagamento de quantia certa, ou os termos previstos no Decreto-Lei n.° 274/97, de 8 de Outubro, se se verificasse o requisito da alínea b) do artigo 1.º deste diploma; isto é, em termos práticos, o processo sumário de execução — em regra, utilizável apenas quando a execução se fundava em sentença judicial condenatória (artigo 465.°, n.° 2, do CPC) - passou a ser utilizável na execução fundada em requerimento de injunção a que fora aposta a fórmula executória, com a consequente atribuição exclusiva ao exequente do direito de nomear bens à penhora (artigo 924.º do CPC), e se o exequente nomeasse apenas bens móveis ou direitos que não tivessem sido dados de penhor, com excepção do estabelecimento comercial, não haveria lugar a reclamação de créditos na execução em causa (artigos 1.º, alínea b), e 2.º, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 274/97).
Mas, tirando estas duas especialidades, nenhuma alteração se introduziu nomeadamente quanto à extensão dos fundamentos invocáveis pelo executado na dedução de embargos à execução.
A generalidade da doutrina tem considerado que a aposição, pelo secretário judicial, da fórmula executória no requerimento de injunção integra um título executivo distinto das sentenças, sendo admissível que, na oposição à execução nele fundada, o executado invoque, para além dos fundamentos invocáveis na oposição à execução fundada em sentença, ‘quaisquer outros que seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração’ JOSÉ LEBRE DE FREITAS (A Acção Executiva — Depois da Reforma, 4.ª edição, Coimbra, 2004, págs. 64 e 182) refere que os títulos em causa, ‘formados num processo mas não resultantes de uma decisão judicial, têm sido classificados como judiciais impróprios’ e que o referido alargamento dos fundamentos da oposição à execução baseada em títulos diferentes das sentenças e das decisões arbitrais se compreende porque ‘o executado não teve ocasião de, em acção declarativa prévia, se defender amplamente da pretensão do requerente’. Também FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA (Curso de Processo de Execução, 6.ª edição, Coimbra, 2004, págs. 39-46 e 152-153) salienta a ausência, no sistema português do processo de injunção, da emanação por parte de um juiz de uma ordem de pagamento de determinada quantia ou de satisfação de outra prestação em curto prazo (como sucede nos direitos italiano, francês e espanhol), sendo a fórmula executória aposta por um oficial de justiça, reconhecendo que ‘não sendo o título executivo uma sentença, o executado está perante o requerimento executivo do exequente na mesma posição em que estaria perante a petição inicial da correspondente acção declarativa’, pelo que ‘consequentemente, pode alegar em oposição à execução tudo o que poderia alegar na contestação àquela acção’. J. P. REMÉDIO MARQUES (Curso de Processo Executivo Comum à Face do Código Revisto, Porto, 1998, págs. 79-80 e 153, nota 379) considera que a actividade conducente à aposição da fórmula executória — o ‘execute-se’ — pelo secretário judicial não se insere na função administrativa do Estado, visto que não visa a prossecução de interesses gerais da colectividade, ‘mas também não é um acto jurisdicional — equiparável’, parecendo-lhe tratar-se ‘de um acto meramente instrumental, análogo àqueles que se praticam no exercício de uma função, que tanto pode ocorrer em processos jurisdicionais como em procedimentos administrativos’; de qualquer forma, sempre que ‘não existe um processo declarativo prévio, o executado, nos embargos, pode impugnar ou excepcionar — mas nunca reconvir — a obrigação materializada pelo título extrajudicial’. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA (A Reforma da Acção Executiva, Lisboa, 2004, pág. 69) faz derivar da alteração da redacção do artigo 53.°, n.ºs 2 e 3, do CPC, operada pelo Decreto-Lei n.° 38/2003, de 8 de Março, o estabelecimento de uma tripartição dos títulos executivos: decisões judiciais (que são as sentenças condenatórias referidas no artigo 46.º, n.° 1, alínea a), do CPC), títulos extrajudiciais (que são os documentos mencionados nas alíneas b) e c) do mesmo preceito) e outros títulos de formação judicial, entendido como os que provêm de um ‘processo’ (e não de uma ‘acção’, como os títulos judiciais), categoria esta última que seria justamente utilizada para designar os títulos que resultam da aposição da fórmula executória a um requerimento de injunção ao qual o requerido não deduziu oposição. Também CARLOS LOPES DO REGO (obra citada, vol. 1, pág. 90) considera que por ‘título de formação judicial’ deve ser considerado o ‘título judicial impróprio, formado no âmbito de um procedimento cometido aos tribunais judiciais, mas sem qualquer intervenção jurisdicional, como ocorre, de forma paradigmática, no processo de injunção.’ Porém, esta autonomização dos ‘títulos de formação judicial’ relativamente aos títulos extrajudiciais apenas releva para efeitos de determinação do tribunal onde deve correr a acção executiva no caso de cumulação inicial de execuções, quer se trate de títulos homogéneos (n.ºs 2 e 4 do artigo 53.º do CPC), quer de títulos heterogéneos (n.° 3 do mesmo artigo), não extraindo os autores citados qualquer outra consequência dessa autonomização, designadamente no sentido de sequer questionarem a aplicação plena do regime do actual artigo 816.º (anterior artigo 815.°, n.° 5) às execuções fundadas em títulos que resultam da aposição da fórmula executória a um requerimento de injunção. Pode, pois, concluir-se que doutrinamente é pacífico o entendimento assim sintetizado por SALVADOR DA COSTA (A Injunção e as Conexas Acção e Execução, 2.ª edição, Coimbra, 2002, p. 172), em passagem já reproduzida no pedido de reforma da sentença apresentada pela ora reclamante:
«A aposição da fórmula executória não se traduz em acto jurisdicional de composição do litígio, consubstanciando-se a sua especificidade de título executivo extrajudicial no facto de derivar do reconhecimento implícito pelo devedor da existência da sua dívida por via da falta de oposição subsequente à sua notificação pessoal. Assim, a fórmula executória é insusceptível de assumir efeito de caso julgado ou preclusivo para o requerido que pode, na acção executiva, controverter a exigibilidade da obrigação exequenda, tal como o pode fazer qualquer executado em relação a qualquer título executivo extrajudicial propriamente dito».
Em consequência, pode o requerido utilizar, em embargos de executado, a sua defesa com a mesma amplitude com que o podia fazer na acção declarativa, nos termos do artigo 815.° do Código de Processo Civil.”
7. O Código de Processo Civil, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.° 38/2003, de 8 de Março, diferenciava os fundamentos invocáveis pelo executado para se opor à execução por embargos consoante o título executivo fosse uma sentença, (artigo 814.º), uma decisão arbitral em que aos fundamentos anteriores se aditavam os que podiam basear a anulação judicial da decisão arbitral — (artigo 815.º) ou outro título em que aos fundamentos invocáveis na execução fundada em sentença acresciam quaisquer outros que seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração — (artigo 816°).
Assim, até à entrada em vigor do Decreto-Lei n° 226/2008 o executado, cuja execução se fundava na formula executória aposta no requerimento de injunção, tinha a possibilidade de deduzir embargos de executado, nos termos do então artigo 816.º do Código de Processo Civil, ou seja, não circunscrito às situações de oposição à sentença, mas a “outros títulos”.
Ora, a aposição, no requerimento de injunção, da fórmula executória é um facto que produziu, imediatamente, o efeito de jurídico de fixar os fundamentos da oposição à execução nele fundada, nos termos previstos na lei processual vigente “anteriormente à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.° 226/2008” para os “outros títulos” (artigo 816.°), diversos da sentença e da decisão arbitral (artigos 814.° e 815.°).
8. Conforme bem acentua o Exmo. Procurador-geral Adjunto, na sua alegação de recurso para este Tribunal, “[o]s efeitos produzidos por tal facto, em matéria dos fundamentos passíveis de serem opostos à execução da pretensão subjacente ao requerimento de injunção, perduraram na vigência da lei (processual) nova”.
Sucede que a lei nova equiparando o requerimento de injunção, ao qual tenha sido aposta fórmula executória, à sentença, para efeitos de oposição à execução, desde que o procedimento de formação desse título admita oposição pelo requerido (artigo 814.°, n.° 2), constata-se que, desta forma, já não seria lícito ao executado usar, agora, os fundamentos que lhe teria sido “licito deduzir como defesa no processo de declaração” no âmbito da lei antiga (artigo 816.°).
Estaremos, pelo exposto, perante uma situação de “retrospectividade”, ou “retroactividade inautêntica” que traz à situação que ora nos ocupa a problemática da protecção da confiança.
Ora, a aplicação da lei nova, sem mais, aos efeitos jurídicos determinados no âmbito da lei antiga e ainda subsistentes, tendo por efeito a restrição dos meios de defesa judicial do executado (privação da defesa por impugnação), infringe o conteúdo e sentido do princípio da protecção da confiança.
9. No que concerne a este princípio, a tutela constitucional da confiança emana do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.° da CRP. Ao apreciar a conformidade do bloco normativo em apreço com o princípio da protecção da confiança importa ter presente a reiterada jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre este tema.
Neste sentido, no Acórdão n.º 154/2010 (publicado no Diário da República, II Série, de 7 de Maio), exarou-se o seguinte:
“ (…) o Tribunal estabeleceu já os limites do princípio da protecção da confiança na ponderação da eventual inconstitucionalidade de normas dotadas de «retroactividade inautêntica, retrospectiva».
Neste caso, à semelhança do que sucede agora, tratava-se da aplicação de uma lei nova a factos novos havendo, todavia, um contexto anterior à ocorrência do facto que criava, eventualmente, expectativas jurídicas. Foi neste aresto ainda que o Tribunal procedeu à distinção entre o tratamento que deveria ser dado aos casos de «retroactividade autêntica» e o tratamento a conferir aos casos de «retroactividade inautêntica» que seriam, disse-se, tutelados apenas à luz do princípio da protecção da confiança enquanto decorrência do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.° da Constituição.
De acordo com essa jurisprudência sobre o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, para que esta última seja tutelada é necessário que se reúnam dois pressupostos essenciais:
a) a afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda
b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.° 2 do artigo 18.° da Constituição).
Como se disse no Acórdão n.° 188/2009 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) os dois critérios enunciados são finalmente reconduzíveis a quatro diferentes requisitos ou ‘testes’. Para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.
Este princípio postula, pois, uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da actuação do Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe atribui protecção.
Por isso, disse-se ainda no Acórdão n.° 287/90 – e importa ter este dito presente no caso – que, em princípio, e tendo em conta a autorevisibilidade das leis, ‘não há (...) um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou à manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados’.”
Na situação que ora nos ocupa, facilmente se verifica que a mencionada mutação legislativa lesa as legítimas expectativas do executado, que, confiadamente tinha por assente a sua posição jurídica já firmada. Na verdade, considerava, legitimamente, que se poderia defender em termos amplos, face ao facto de a execução ter sido intentada com base em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta a fórmula executória no âmbito da lei antiga e não tão-somente como se a oposição à execução se fundasse em situação equiparável à sentença.
Isto é, a lei nova, instituída pelo Decreto-Lei n.° 226/2008, veio limitar a mais ampla defesa judicial, em sede de execução movida com base em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta a fórmula executória no âmbito da lei antiga.
10. Acresce que a alteração legislativa em referência, restringindo os meios de oposição do executado, não realiza um interesse proeminente constitucionalmente protegido, que deva prevalecer sobre o direito à tutela judicial.
Ainda, e, conforme consta da decisão recorrida, o Decreto-Lei n.° 226/2008 não consagrou qualquer regime transitório que salvaguardasse as “legítimas expectativas” do mesmo executado à plenitude da defesa judicial, em sede de execução movida com base em injunção, o que também põe em crise o princípio da confiança.
Conclui-se, pois, pela violação do princípio da confiança, ínsito ao Estado de direito democrático (artigo 2.° da CRP).
11. Relativamente ao princípio da tutela judicial plena e efectiva, escreveu-se, no Acórdão n.º 658/2006 (publicado no Diário da República, II Série, de 9 de Janeiro), em que, como no caso em apreço, se deparou perante uma situação de privação de defesa por impugnação, o seguinte:
“ (...) a característica deste título judicial impróprio (injunção), que o afasta dos restantes títulos criados por força de disposição legal, resulta, aliás, do facto de a força executiva ser conferida apenas depois de se conceder ao devedor a possibilidade de, judicialmente, discutir a causa debendi, alegada. Ou seja, no processo de injunção, o requerido tem a possibilidade de, deduzindo oposição, impedir que seja aposta força executiva à acção.
Pode talvez dizer-se que o título executivo não é uma sentença porque o devedor optou por, no procedimento de injunção, não se opor à pretensão do requerente. Mas, seja como for, a falta de oposição e a consequente aposição de fórmula executória ao requerimento de injunção não têm o condão de transformar a natureza (não sentencial) do título, tornando desnecessária, em sede de oposição à execução, a prova do direito invocado, deixando ao executado apenas a alegação e prova de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do exequente.
Tendo presente, por um lado, que a demonstração do direito do exequente não tem o mesmo grau de certeza relativamente a todos os títulos executivos, reconhecendo-se que o título executivo que resulte da aposição da fórmula executória a um requerimento de injunção demonstra a aparência do direito substancial do exequente, mas não uma sua existência considerada certa, e, por outro lado, que a actividade do secretário judicial não representa qualquer forma de composição de litígio ou de definição dos direitos de determinado credor de obrigação pecuniária, há que evitar a ‘indefesa’ do executado, entendendo-se por ‘indefesa’ a privação ou limitação do direito de defesa do executado que se opõe à execução perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito.
Nos termos do artigo 18.º, n.° 2, da Constituição, se uma limitação interfere com um direito, restringindo-o, necessário se torna encontrar na própria Constituição fundamentação para a limitação do direito em causa como que esta se limite ‘ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos’ — não podendo, por outro lado, nos termos do n.° 3 do mesmo artigo, ‘diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais’.
No caso, a possibilidade de se introduzir limites ao princípio da proibição de ‘indefesa’, ínsito na garantia de acesso ao direito e aos tribunais, consagrada no artigo 20.° da Constituição, existe apenas na medida necessária à salvaguarda do interesse geral de permitir ao credor de obrigação pecuniária a obtenção, «de forma célere e simplificada», de um título executivo” (9.º § do preâmbulo do Decreto-Lei n.° 269/98, de 1 de Setembro), assim se alcançando o justo equilíbrio entre esse interesse e o interesse do executado de, em sede de oposição à execução, se defender através dos mecanismos previstos na parte final do n.° 1 do artigo 815.° do Código de Processo Civil (correspondente hoje ao artigo 816.°, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.° 38/2003, de 8 de Março).
Ora a norma em causa, na interpretação perfilhada dos autos, segundo a qual a não oposição e a consequente aposição de fórmula executória ao requerimento de injunção determinam a não aplicação do regime da oposição à execução previsto nos artigos 813.º e segs. do Código de Processo Civil, designadamente o afastamento da oportunidade de, nos termos do actual artigo 816.º do mesmo Código, e (pela primeira vez) perante um juiz, o executado alegar ‘todos os fundamentos de oposição que seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração’, afecta desproporcionadamente a garantia de acesso ao direito e aos tribunais, consagrada no artigo 20.° da Constituição, na sua acepção de proibição de ‘indefesa’.”
Ponderadas as considerações referidas, apenas se justificando normas restritivas quando se revelem proporcionais, evidenciem uma justificação racional ou procurem garantir o adequado equilíbrio face a outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos, entende-se que a norma impugnada se encontra ferida de inconstitucionalidade, porque também viola o princípio da proibição da indefesa ínsito no direito de acesso ao direito e aos tribunais (artigo 20.º, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa). Há, assim, que confirmar a sentença recorrida quanto à questão de constitucionalidade.
III — Decisão
12. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 7 de Junho de 2011.- José Borges Soeiro – Gil Galvão – Maria João Antunes – Carlos Pamplona de Oliveira – com declaração – Rui Manuel Moura Ramos.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Acompanho a decisão com um distinto fundamento; na verdade, entendo que a norma que resulta da redacção dada ao n.º 2 do artigo 814.º do Código de Processo Civil pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 226/08 de 20 de Novembro – estendendo à execução do requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória, o regime de oposição que o corpo do preceito reserva à execução baseada em sentença – é inconstitucional por violação da reserva de juiz – artigo 202.º da Constituição. – Carlos Pamplona de Oliveira.
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