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Processo n.º 783/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é recorrente A., Llc., e recorrida B., S.A., o relator proferiu a Decisão Sumária n.º 32/2011 de não conhecimento do objecto do recurso, com os seguintes fundamentos:
«(…) 2. A recorrente pretende que o Tribunal se pronuncie sobre as seguintes normas, cuja inconstitucionalidade afirma ter suscitado durante o processo:
- artigo 606.º do Código Civil;
- artigo 287.º, alínea e), do Código de Processo Civil (CPC);
- artigo 2.º, n.º 1, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE);
- e artigos 501.º e 503.º do Código das Sociedades Comerciais.
Nas alegações do recurso que apresentou junto do Tribunal da Relação de Coimbra, a recorrente invocou o seguinte a respeito da inconstitucionalidade de tais normas:
- as «normas contidas nos artigos 606.° do CC, 501.° a 504.°, 78.°, n.°s 1 e 2, e 141.°, n.°1, alínea e), do CSC, na interpretação defendida pelo Tribunal a quo, no sentido de que a embargante não se poderia sub-rogar à sua devedora para deduzir os embargos à insolvência nestes autos, por não se verificar uma inacção do devedor e por não admitir a sub-rogação com fundamento numa acção futura da sub-rogante cuja análise não foi pedida, por violação do princípio do acesso ao Direito e aos Tribunais consagrado no artigo 20.°, n.° 1, da CRP e, ainda, por violação do artigo 62.° da CRP» (conclusão 52.º, a fls. 331 dos autos);
- as normas «dos artigos 501.° a 504.° do CSC e ainda o artigo 287.°, alínea e), do CPC, e os artigos 2.° e 40.° do CIRE», quando «interpretadas no sentido de ser admissível que uma sociedade totalmente dependente de outra, representativa de apenas uma parcela de uma única empresa, seja declarada insolvente independentemente da declaração de insolvência da sociedade totalmente dominante e das restantes sociedades do grupo que compõem essa empresa, com a liquidação e distribuição separada dos patrimónios, deixando desprotegidos os credores da sociedade dominante, com beneficio exclusivo dos credores da sociedade dependente, por violação do princípio da livre iniciativa económica privada, consagrado no artigo 61.º da CRP, limitando gravemente essa iniciativa, pela situação de intolerável desprotecção dos credores que assim seria gerada» (conclusões 75.º e 76.º);
- tais normas «na citada interpretação, são ainda inconstitucionais por violarem também o artigo 62.° da CRP, por permitirem a expropriação de um crédito sem qualquer compensação, uma vez que impedem a ora Recorrente de reaver o seu crédito, e de reagir contra esta estratégia de favorecimento de credores» (conclusão 77.º);
- e são «inconstitucionais, na dita interpretação, ao impedirem toda e qualquer reacção da ora Recorrente contra o devedor, por violarem o principio constitucional de acesso ao Direito, vertido no artigo 20.° da CRP» (conclusão 78.º).
Resulta do exposto que a recorrente não suscitou adequadamente, perante o tribunal recorrido, uma qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
Na verdade, a recorrente, ou se limita a suscitar a inconstitucionalidade de uma “interpretação defendida pelo tribunal a quo”, sem, no entanto, enunciar qual seja (cfr. o alegado na referida conclusão 52.º); ou refere a inconstitucionalidade de uma dada interpretação que, por não ser autonomizável do caso concreto, não tem carácter normativo (cfr. conclusões 75.º e 76.º); ou limita-se a concluir pela inconstitucionalidade de determinadas interpretações, que continua a não identificar quais sejam (conclusões 77.º e 78.º, acima referidas).
Como este Tribunal Constitucional tem reiteradamente salientado, incumbe ao recorrente identificar com precisão o sentido da norma que considera inconstitucional e que pretende submeter a julgamento, de modo a que o Tribunal a possa enunciar na sua decisão, assim permitindo, caso a venha a julgar inconstitucional, que os destinatários saibam qual o sentido da norma que não pode valer por incompatível com a Constituição.
Por outro lado, o recurso de constitucionalidade tem natureza normativa, não podendo incidir sobre o juízo de subsunção da norma ao caso concreto.
Não pode, assim, o presente recurso ser admitido.
3. Pelo exposto, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, decide-se não conhecer do objecto do recurso. (…)»
2. Notificado da decisão, a recorrente veio reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, nos seguintes termos:
«A A., LLC, Recorrente nos autos à margem referenciados, tendo sido notificada da decisão sumária n.° 32/2011, proferida pelo Exmo. Juiz Conselheiro Relator, nos termos do n.° 1 do artigo 78.°-A da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), que decidiu não conhecer do objecto do recurso, dela vem
RECLAMAR PARA A CONFERÊNCIA,
ao abrigo do disposto no artigo 78.°-A, n.° 3, da LTC, o que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:
1.º
A decisão sumária de que se reclama decidiu não conhecer do objecto do recurso, por entender que:
«[…] a recorrente não suscitou adequadamente, perante o tribunal recorrido, uma qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
Na verdade, a recorrente, ou se limita a suscitar a inconstitucionalidade de uma “interpretação defendida pelo tribunal a quo”, sem, no entanto, enunciar qual seja (cfr. o alegado na referida conclusão 52.º), ou refere a inconstitucionalidade de uma dada interpretação que, por não ser autonomizável do caso concreto, não tem carácter normativo (cfr. conclusões 75.º e 76.º ou limita-se a concluir pela inconstitucionalidade de determinadas interpretações, que continua a não identificar quais sejam (conclusões 77.º e 78.º, acima referidas).».
a) A questão de inconstitucionalidade suscitada na conclusão 52.° da alegação, referente à inacção do devedor
2.°
Entendeu a decisão sumária de que ora se reclama que a Recorrente não suscitou adequadamente a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 606.° do CC, 501.° a 504.°, 78.°, n.°s 1 e 2, e 141.°, n.° 1, alínea e), do CSC, por não ter enunciado o sentido normativo com que as mesmas foram interpretadas pelo Tribunal.
3.º
Ora, para o que a esta questão interessa, devemos deter-nos apenas nas normas extraídas do artigo 606.° do CC, uma vez que, com a interpretação aqui em causa, apenas foi aplicado pelo Tribunal da Relação de Coimbra este artigo 606.° do CC.
4.º
Por isso, é apenas quanto a estas normas que a Recorrente, nos pontos 13. e 14. do seu requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, afirma que:
«13. O Acórdão de 7 de Setembro de 2010, ora recorrido, veio aplicar aquelas normas com o sentido normativo que a apelante havia reputado de inconstitucional.
14. Designadamente, interpretou e aplicou as normas contidas no artigo 606.° do CC no sentido de ) não contemplarem a possibilidade de sub-rogação, por um credor da sociedade-mãe (e por sua vez também credora) da sociedade insolvente, na dedução de embargos à sentença declaratória da insolvência, por falta de verificação do requisito da inércia ou inactividade do devedor, porquanto só se estaria na presença desta inércia caso tivesse sido omitida a reclamação de créditos (mesmo que subordinados) por parte da referida sociedade-mãe no processo de insolvência da sociedade filha.».
5.º
Ora, foi esta a interpretação que, já na alegação do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra, a Recorrente havia reputado de inconstitucional. Senão vejamos:
6.°
Nas páginas 11 e seguintes da sua alegação (e também, em forma conclusiva, nas conclusões 16.° a 31.º), a Recorrente refere, quanto à inacção do devedor:
«Começa por sustentar a sentença recorrida que não há qualquer inactividade por parte do devedor, porquanto este reclamou os seus créditos nos presentes autos sendo que, dessa forma, exerceu os direitos de conteúdo patrimonial que lhe competem, não existindo qualquer inacção do mesmo que justifique o procedimento sub-rogatório da embargante e ora Recorrente.
Trata-se, no entanto, e com o devido respeito, de uma visão bastante redutora e que, como bem se percebe à luz do enquadramento acima exposto, leva a resultados aberrantes.
[...]
Ora, é evidente que os Administradores da sociedade-mãe, a C. Comercial, bem sabem que os créditos que detêm sobre as suas filhas são créditos de suprimentos e, portanto. créditos subordinados, uma vez que as sociedades-filhas são detidas a 100% pela sociedade- mãe.
Bem sabem, por isso, que as sociedades-filhas nunca pagarão a sua dívida para com a sociedade-mãe (primeiro, porque têm grande parte do seu património hipotecado a favor de instituições bancárias e, segundo, porque mesmo o pouco que restar será para pagar aos restantes credores comuns).
Dessa forma, sustentar que ao reclamar créditos nos autos, o devedor da ora Recorrente está a actuar de forma diligente e a procurar salvaguardar os seus direitos patrimoniais e os direitos patrimoniais dos seus credores é, no mínimo, olhar para o lado de forma a não ver o plano que efectivamente está em curso.
Isto porque a C. Comercial, se quisesse efectivamente exercer os seus direitos e salvaguardar os direitos dos seus credores, poderia — e acrescente-se: deveria — impedir a declaração de insolvência […]» (sublinhado nosso).
7º
Ora, é expressamente aqui referida a interpretação (que a Recorrente reputa de inconstitucional), quanto à inacção do devedor, enquanto requisito da sub-rogação, no sentido de que, num caso de sub-rogação, pelo credor do credor do insolvente, na apresentação de embargos à sentença de insolvência, essa inacção é afastada quando o credor do insolvente (devedor do embargante) reclama os seus créditos na insolvência.
8.°
É também expressamente referido que, nessa interpretação, esses créditos são subordinados, porquanto a insolvente é sociedade-filha da sua credora, detida por ela a 100%.
9.º
E é também salientado que tal interpretação vai no sentido de que a mencionada reclamação de créditos, subordinados, na insolvência consubstancia uma actuação diligente no exercício dos direitos de conteúdo patrimonial que competem ao sub-rogado.
10.º
Ora, uma peça processual, como qualquer outro texto, deve ser lida de forma integrada, no seu todo, não podendo ser descontextualizada nem isolados pedaços, sob pena de estes conterem parcelas imperceptíveis e incompletas da declaração transmitida através do texto escrito.
11.º
Ora, as normas contidas nos artigos 606.° do CC, 501.° a 504.°, 78.°, n.°s 1 e 2, e 141.°, n.° 1, alínea e), do CSC — mas, para o que aqui interessa, o artigo 606.° do CC — foram, todas elas, referidas repetidas vezes ao longo de todo o texto, para se explicar qual a interpretação que o Tribunal erradamente delas tinha feito e para se sustentar qual a interpretação correcta das mesmas.
12.°
A conclusão 52.°, em que é expressamente suscitada a questão da inconstitucionalidade daquelas normas, não pode deixar de ser lida por referência a todo o texto anterior, sobretudo, e no que se refere à aí mencionada “inacção do devedor”, a tudo quanto sob essa matéria se disse nas páginas 11 e seguintes da alegação (e, em forma conclusiva, nas conclusões 16.° a 31.°), com expressa referência a esse assunto — até porque expressamente submetidas ao título “a) Da inacção do devedor”.
13.º
O parágrafo contido na conclusão 52.° surge no seguimento de todo um texto que está para trás e o seu sentido deve ser integrado com a alegação traçada até aí se chegar. Não pode ser lido isoladamente, antes devendo ser lido por referência e com a integração do texto antes escrito, a que, aliás, pertence e do dual não pode ser indissociado.
14.º
Ora, quando diz, na conclusão 52.°, que são inconstitucionais as referidas normas quando interpretadas «no sentido de que a embargante não se poderia sub-rogar à sua devedora para deduzir os embargos à inso1véncia nestes autos, por não se verificar uma inacção do devedor [...]», a Recorrente está a referir-se à interpretação que já enunciara atrás: a interpretação no sentido de que, em caso de sub-rogação na apresentação, por um credor do insolvente que é também a sua sociedade totalmente dominante, de embargos à insolvência, não há inacção do devedor (credor do insolvente) quando este haja reclamado créditos, ainda que subordinados, na insolvência.
15.º
Quem ler todo o texto da alegação da Recorrente — e só assim se pode ler este e qualquer outro documento — facilmente constatará ser esta a interpretação das citadas normas a que a Recorrente se refere.
16.°
Isolar o parágrafo contido na conclusão 52.° da alegação, para concluir que nele não é enunciada a interpretação reputada de inconstitucional, sem atentar no restante teor do texto, é adoptar uma leitura parcelar e formal que não se compadece com o acesso ao Direito e aos Tribunais a todos garantido pelo artigo 20.° da CRP.
17.º
Ora, dúvidas não há de que foi pela Recorrente referido que o artigo 606.° do CC era inconstitucional, dando-se assim por cumprido o requisito da alínea a) do n.° 1 do artigo 70.° da LTC.
18.°
Quanto ao modo pelo qual a inconstitucionalidade deve ser suscitada, exige o artigo 72.°, n.° 2, da LTC que a questão da inconstitucionalidade seja suscitada “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.”. Esta é a formulação legal relativa ao modo de suscitação da inconstitucionalidade, devendo dela fazer-se uma interpretação que, embora recorrendo ao pensamento legislativo, tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal.
19.º
Não havendo dúvidas quanto à tempestividade da suscitação da questão da inconstitucionalidade, nem quanto à norma que está em causa — entre outras, a do artigo 606.°, n.° 1, do CC — por tudo quanto atrás se disse deve considerar-se correcto o modo pelo qual foi suscitada a questão.
20.°
Com efeito, a questão foi suscitada em termos de o Tribunal a quo estar obrigado a dela conhecer. E tanto assim foi que o Tribunal efectivamente conheceu, expressamente, da questão. E este facto não pode deixar de ter relevância.
21.º
Isso mesmo já foi reconhecido por esse Venerando Tribunal, no acórdão n.° 172/88, ao decidir que: “Apesar do modo dubitativo e hesitante como foram abordadas, nas alegações produzidas pelo Ministério Público perante a 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo e para o Pleno do mesmo Tribunal, as questões de constitucionalidade, deve considerar-se verificado o pressuposto da admissibilidade do recurso (e da legitimidade do recorrente) previsto nos artigos 70.º, n.° 1, alínea b), e 72.º,n.º 2, da citada Lei, atenta a circunstância de tais questões haverem sido efectivamente apreciadas e resolvidas pelo acórdão recorrido, em razão e em consequência do que, a propósito, alegou o Ministério Público.” (realce nosso).
22.°
Lendo esse citado acórdão, com mais detalhe (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), percebe-se que, não obstante não ter sido suscitada, de modo adequado, a questão da inconstitucionalidade, é decisivo e suficiente a circunstância de o tribunal a quo dela ter conhecido:
«E que, se a questão da constitucionalidade do art.º 5.º do Decreto-Lei n.° 3/80 é realmente abordada logo na alegação produzida por aquela entidade perante a 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, não pode dizer-se, face ao tratamento que aí lhe é dado, que o M° P° haja então positivamente “ invocado” (no sentido de “sustentado” a inconstitucionalidade do preceito; e, quanto ao art.º 25.° do mesmo diploma, não se encontra sequer na referida alegação a menor referência. Por outro lado, é de modo igualmente dubitativo e hesitante, e (como no Acórdão recorrido não deixou, de resto, de salientar-se) abstendo-se “de especificar concretas razões de discordância” do julgado pela Secção, que a entidade recorrente aludiu à questão na alegação para o Pleno — mas agora, é certo, focando já os dois preceitos (cfr. as transcrições n.°s 1 e 3).
Posto isto, não será realmente descabido e ilegítimo questionar que a inconstitucionalidade haja sido, em rigor, “suscitada” no processo - nos termos em que o art.º 70.º, n.° 1, alínea b), o exige, e o art.º 7.2°, n.°2, da Lei do Tribunal Constitucional, o pressupõe.
Sejam quais forem as dúvidas que, a esse respeito, a situação possa ocasionar e justificar, entende o Tribunal, no entanto, dever concluir que na hipótese em apreço se acha verificado, de todo o modo, o dito pressuposto da admissibilidade do recurso (e da legitimidade do recorrente). Decisiva e suficiente será, para tanto, a circunstância de as questões de constitucionalidade em análise haverem sido efectivamente apreciadas e resolvidas pelo Acórdão recorrido (e, já antes, pelo Acórdão da Secção) - e isso, fosse como fosse, em razão e em consequência do que, a propósito, alegou o Mº Pº»
23.°
Como se vê por este acórdão, tal circunstância é de tal modo determinante e suficiente, que dispensa e prejudica quaisquer outras indagações sobre se o ónus de suscitação adequada foi, ou não, cumprido.
24.°
Razão pela qual deve o presente recurso ser admitido, sem necessidade de mais considerações. Mas, ainda assim, note-se que, no caso presente, a questão da inconstitucionalidade foi efectivamente suscitada, e de forma clara.
25.º
A jurisprudência constitucional tem, efectivamente, sustentado que deve ser claramente enunciada a interpretação que o Tribunal conferiu à norma reputada de inconstitucional, entendendo que formulações do género “interpretadas as normas legais referidas nas conclusões anteriores, de modo a, isolada ou conjugadamente, permitirem o resultado alcançado pelo acórdão recorrido, elas violam os artigos [...] da Constituição” (cfr. Acórdão n.° 106/99 do Tribunal Constitucional) não respeitam tal requisito de clareza na enunciação.
26.°
Embora de todo o teor da alegação em causa neste citado acórdão — se lida de forma integrada — fosse eventualmente possível aferir qual o sentido normativo reputado de inconstitucional, a Recorrente compreende que uma formulação tão dependente da decisão tomada no caso concreto não seja adequada a abrir a via para o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade.
27.°
Mas, como se vê do acima exposto, resulta claro, da alegação da Recorrente, que a referência à inexistência de inacção do devedor, para os efeitos impostos pelo artigo 606.°, n.° 1, do CC, se refere ao sentido explicitado na parte “b) Da inacção do devedor”: um devedor do credor sub-rogante que (detém a 100% a insolvente, e que é por sua vez credor desta, reclamando os seus créditos na insolvência. Resulta claro da alegação da Recorrente que o sentido normativo adoptado para requisito da inacção do devedor é o de que tal requisito não está verificado, num caso de sub-rogação no direito de embargar a sentença de insolvência, se o devedor, embora não exercendo o direito de embargar a sentença, tiver reclamado créditos na insolvência.
28.°
Como se vê, a questão de inconstitucionalidade foi adequadamente suscitada perante o Tribunal recorrido. A interpretação reputada de inconstitucional foi claramente enunciada.
29.°
A questão foi, também suscitada de forma abstracta, reportando-se a um critério normativo e não se reduzindo a uma apreciação sobre a subsunção das normas ao caso concreto: a questão é a de saber se ofende ou não a Constituição o entendimento do artigo 606.°, n.° 1, do CC (conjugado com os artigos 501.° a 504.°, 78.°, n.°s 1 e 2, e 141.°, n.° 1, alínea e), do CSC) no sentido de que, para afastar o requisito da inacção do devedor num caso de sub-rogação na apresentação de embargos à insolvência, é suficiente que o devedor (credor e sociedade-mãe do insolvente) tenha reclamado créditos na insolvência, sendo esses créditos subordinados.
30.°
A questão não se reconduz a este caso concreto, sendo geral e abstracta, prendendo-se com a definição do conceito de inacção do devedor que surge no artigo 606.° do CC como requisito da sub-rogação aí prevista, com relevância e aplicabilidade neste ou em qualquer outro processo em que a questão se coloque.
31.º
Deve assim ser conhecida a invocada questão de inconstitucionalidade.
b) A questão de inconstitucionalidade suscitada na conclusão 52.° da alegação, referente à não admissão da sub-rogação com fundamento numa acção futura
32.°
Também quanto ao segundo sentido normativo que a Recorrente reputou de inconstitucional na sua alegação, quanto às normas referidas na sua conclusão 52.°, entendeu a decisão sumária que a Recorrente não suscitou adequadamente a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 606.° do CC, 501.° a 504.°, 78.°, n.°s 1 e 2, e 141.°, n.° 1, alínea e), do CSC, por não ter enunciado o sentido normativo com que as mesmas foram interpretadas pelo Tribunal.
33.º
Vejamos como foi suscitada a questão de inconstitucionalidade em causa:
34.º
Nas conclusões 32.° a 51.° da alegação da Recorrente, é dito:
«[...]
Violando também o número 2 do artigo 606.° do CC. ao julgar que a sub-rogação não era essencial nem suficiente para a garantia do crédito da Recorrente.
[...] na visão do Tribunal, mesmo que os embargos fossem procedentes e a declaração de insolvência fosse revogada, a Recorrente não poderia substituir-se aos administradores da C. Comercial e ordenar a transferência, para si. dos bens da B., uma vez que tal configuraria um acto de gestão discricionário do devedor, ao qual o credor não se pode sub-rogar. Nestes termos, a manutenção da declaração de insolvência não implicaria, de per si, um aumento do patrim6nio da C. Comercial. Não seria suficiente para atingir o resultado pretendido pela embargante.
[...]
Ao contrário do que é afirmado na sentença recorrida — numa errada interpretação do disposto no artigo 606.°, n.° 1. do CC, dos artigos 488.° e 489.° do CSC e até das normas constantes 508.°-A e seguintes do CSC —, a procedência destes embargos seria, só por si. apta a gerar um aumento do activo da sociedade dominante (a devedora da embargante).
Quando foi declarada a insolvência da B., esta foi imediatamente dissolvida, por efeito do disposto no artigo 141.°. n.° 1. alínea e). do CSC. [...].
[...] A C. Comercial SGPS, S.A., deixa, assim, de contabilizar no seu activo o valor de toda uma sociedade. E tal leva a que a C. Comercial SGPS. S.A.. deixe de poder dispor. no seu interesse, como lhe era permitido pelo artigo 503.° do CSC. de qualquer dos activos da B.. (Ao não compreender tal consequência, o Tribunal interpretou erradamente as normas contidas nos artigos 141.° n.° 1. alínea e), do CSC e 234.°, n.° 3, do CIRE.
A revogação da declaração de insolvência da B. conduzirá. necessária e automaticamente, ao aumento do activo da C. Comercial SGPS. S.A.. sociedade esta que, aliás, e como bem sabia o Tribunal a quo, consolidava nas suas contas as contas da B. (como as de todo o grupo).
[…]
Sendo que emerge para os administradores da sociedade dominante um verdadeiro dever legal (e não apenas um poder) de direcção do conjunto das sociedades dependentes. directa e indirectamente, no interesse do grupo unitariamente considerado. tal como directamente decorre do artigo 504.° do CSC. E é hoje muito claro que a referência a “interesse do grupo” mais não exprime do que o interesse da sociedade-mãe.
Ora, havendo activos nas sociedades filhas e mantendo-se inertes os administradores da sociedade mãe, abstendo-se de chamar esses activos para garantir a sua solvabilidade, são os administradores responsáveis perante a sociedade que administram (a sociedade-mãe).
Sendo que os credores sociais têm.,neste caso, ao abrigo do disposto no n.° 2 do artigo 78.° do CSC, direito a subrogar-se à sociedade na reclamação da indemnização a que esta teria direito.
[…]
Com efeito, estabelece o n.°1 do artigo 78.° do CSC que os administradores respondem para com os credores da sociedade quando. pela inobservância culposa das disposições legais destinadas à protecção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos.
E, por fim, com a procedência dos embargos (e manutenção. por essa via, da relação de grupo). os credores poderiam também, na acção que movessem contra a própria C. Comercial SGPS. S.A.. exigir que esta cumprisse o dever de determinar aquela transferência de bens, ao abrigo do disposto no artigo 503.° do CSC. É que o direito de dar instruções à sociedade dependente, assume, em certos casos, e como é generalizadamente aceite pela doutrina, a característica de verdadeiro dever da sociedade dominante. [...].
Não tivesse o Tribunal tamanha vontade de interpretar e julgar as intenções futuras da Recorrente, e de analisar quais os seus próximos passos — embora tal não lhe tenha sido pedido — e teria certamente concluído que a sub-rogação, no caso em apreço, é um meio essencial para a Recorrente ver satisfeito o seu crédito.
No entanto, e mesmo que não fosse essencial à satisfação do crédito do devedor, o que o artigo 606.° do CC exige é que a sub-rogação seja essencial à garantia do direito do credor. Ora por tudo o que já se demonstrou, esta sub-rogação é condição sine qua non para garantir do direito patrimonial da Recorrente.
E, como se viu, a procedência dos embargos — com a revogação da sentença — seria, só por si, suficiente para determinar, sem necessidade de qualquer outro acto, o imediato [aumento do] activo da C. Comercial.
Andou por isso mal o Tribunal a quo ao considerar que a sub-rogação não era essencial à satisfação do crédito da Recorrente [...].
Em conclusão, com a sentença recorrida, o Tribunal a quo violou, porque interpretou erradamente, as normas contidas nos artigos 606.° do CC. 501.° a 504.°. 78.°. n.°s 1 e 2. e 141°. n.° 1, alínea e’), do CSC.».
35.º
Ora, é expressamente aqui referida a interpretação, quanto ao requisito da essencialidade da sub- rogação, expresso no n.° 2 do artigo 606.° do CC, que vai no sentido de que, num caso de sub-rogação, pelo credor da sociedade-mãe da insolvente, na apresentação de embargos à sentença de insolvência, desses embargos não resulta automaticamente o aumento do património da sub-rogada, nem esse aumento se dá necessariamente, já que o sub-rogante não poderia, mesmo que procedessem os embargos, sub-rogar-se depois à administração da sub-rogada para determinar, nos termos do artigo 503.° do CSC, a transferência, para a sub-rogada, dos bens da insolvente, uma vez que tal configuraria um acto de gestão discricionário da sub-rogada, ao qual o credor não se pode sub-rogar.
36.°
É também referido que, com essa interpretação, são analisadas as intenções futuras e os próximos passos do sub-rogante, resultando claramente do alegado que, na mencionada interpretação, mesmo que a sub-rogação seja condição sine qua non do aumento do património da sub-rogada, ela não é essencial, nos termos do n.° 2 do artigo 606.° do CC, porque não é suficiente para que se dê o aumento do património do sub-rogado, dependendo de um futuro acto do subrogado.
37.º
As normas contidas nos artigos 606.° do CC, 501.° a 504.°, 78.°, n.°s 1 e 2, e 141.°, n.° 1, alínea e), do CSC, nesta interpretação reputadas de inconstitucionais, foram, todas elas, referidas repetidas vezes ao (longo de todo o texto, para se explicar qual a interpretação que o Tribunal erradamente delas tinha feito e para se sustentar qual a interpretação correcta das mesmas.
38.°
Ora, a conclusão 52.° da alegação da Recorrente, refere, neste aspecto, que «São inconstitucionais as normas contidas nos artigos 606.° do CC, 501.° a 504.°, 78.°, n.°s 1 e 2, e 141.°, n.° 1, alínea e), do CSC., na interpretação defendida pelo Tribunal a quo, no sentido de que a embargante não se poderia sub-rogar à sua devedora para deduzir os embargos à insolvência nestes autos, [...] por não admitir a sub-rogação com fundamento numa acção futura da sub-rogante cuja análise não foi pedida».
39.º
Embora dessa conclusão, se lida isoladamente, não se possa retirar o sentido normativo que aí se reputa de inconstitucional, a mesma não pode deixar de ser lida por referência a todo o texto anterior, nomeadamente, às conclusões 32.° a 51.º que imediatamente a precedem.
40.°
O parágrafo contido na conclusão 52.° surge no seguimento de todo um texto que está para trás e o seu sentido deve ser integrado com as conclusões traçadas até aí se chegar. Não pode ser lido isoladamente, antes devendo ser lido por referência e com a integração do texto antes escrito, a que, aliás, pertence e do qual não pode ser indissociado.
Ora, quando se refere, na conclusão 52.°, à “acção futura”, essa “acção” é a que vem identificada nos parágrafos imediatamente anteriores: a ordem de transferência, para a sub- rogada, dos bens da insolvente.
42.°
Da leitura integrada do texto da alegação da Recorrente resulta, pois, clara a interpretação em causa dos citados preceitos, e que já enunciara atrás: num caso de sub-rogação, pelo credor da sociedade-mãe da insolvente, na apresentação de embargos à sentença de insolvência, desses embargos não resulta automaticamente o aumento do património da sub-rogada, nem esse aumento se dá necessariamente, já que o sub-rogante não poderia, mesmo que procedessem os embargos, sub-rogar-se depois à administração da sub-rogada para determinar, nos termos do artigo 503.° do CSC, a transferência, para a sub-rogada, dos bens da insolvente, uma vez que tal configuraria um acto de gestão discricionário da sub-rogada, ao qual o credor não se pode sub-rogar,
43.º
interpretação essa que se prende com o requisito da essencialidade da sub-rogação e com o impacto que no património de uma sociedade tem a declaração de insolvência de uma sociedade dela totalmente dependente.
44.º
Decidiu já a jurisprudência do Tribunal Constitucional que «6 de considerar adequadamente suscitada a questão de inconstitucionalidade quando da actuação processual do recorrente resulte, com suficiente clareza, a norma cuja conformidade à Constituição foi questionada [...]» (cfr. Acórdão n.° 53/97).
45.º
Conclui-se, pois, que a questão da inconstitucionalidade de também este sentido normativo foi suscitada adequadamente e com a clareza necessária, resultando, quanto mais não seja, da actuação processual da Recorrente.
46.°
Aliás, o próprio Tribunal Constitucional aceitou já que «A inconstitucionalidade de uma norma pode ser suscitada por modos diversos, no decurso de um processo; poderá sê-lo através de uma menção expressa, como mediante a alusão ou referência que permita a sua identificação.» (cfr. Acórdão n.° 235/91).
47.º
Ora, por maioria de razão, se até a referência à norma pode não ser expressa, deve o recurso interposto pela Recorrente ser, nesta parte, conhecido, dado que pelo menos foram expressamente indicadas as normas cuja inconstitucionalidade se questionou.
48.°
Mas, mesmo que assim não se entenda, sempre terá de se concluir que a questão foi suscitada em termos de o Tribunal a quo estar obrigado a dela conhecer, que é o que, afinal, a LTC exige, no seu (artigo 72.°, n.° 2.
49.º
Tanto assim foi que o Tribunal efectivamente conheceu, expressamente, da questão. E tal circunstância, de acordo com a jurisprudência desse Tribunal, é decisiva e suficiente para considerar cumprido o requisito estabelecido na alínea b) do n.° 1 do artigo 70.° e desenvolvido no n.° 2 do artigo 72.° da LTC (cfr. o já citado acórdão n.° 172/88, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
50.°
Razão pela qual deve o presente recurso ser admitido e conhecido, também quanto a esta questão.
c) A questão de inconstitucionalidade suscitada nas conclusões 75.° e 76.° da alegação, referente à possibilidade de declaração de insolvência de uma sociedade totalmente dependente de outra
51.°
Neste ponto, a decisão recorrida entendeu, não que a Recorrente se absteve de enunciar a interpretação reputada de inconstitucional, mas que a interpretação enunciada não é autonomizável do caso concreto, não tendo carácter normativo.
52.°
Trata-se da enunciação que a Recorrente fez, na sua alegação de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, da interpretação dada às normas dos artigos 501.º a 504.° do CSC, 287.°, alínea e), do CPC e 2.° e 40.° do CIRE.
53.º
Para o que a esta questão interessa, devemos deter-nos apenas nas normas extraídas dos artigos 501.º e 503.° do CSC e 2.°, n.° 1, do CIRE, uma vez que, com a interpretação aqui em causa, apenas foram aplicadas pelo Tribunal da Relação de Coimbra estas normas.
54.º
Por isso, é apenas quanto a estas normas que a Recorrente, no ponto 18. do seu requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, afirma que:
18. O Acórdão ora recorrido interpretou e aplicou ainda as normas contidas nos artigos 2.°, n.° 1, do CIRE e 501.° e 503.° do CSC no sentido de que da sua interpretação conjugada não resulta a impossibilidade de declaração, em separado, de apenas uma ou várias das sociedades do grupo, sendo possível a apresentação e tramitação da insolvência de cada uma delas em separado e independentemente da insolvência das demais ou pelo menos da sociedade-mãe.
55.º
Ora, foi precisamente esta a interpretação que, já na alegação do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra, a Recorrente havia reputado de inconstitucional.
56.°
Com efeito, a Recorrente referiu expressamente, na conclusão 76.° da sua alegação (e por referência às normas contidas nos artigos referidos na conclusão 75.° anterior, que incluem as dos artigos 2.°, n.° 1, do CIRE e 501.° e 503.° do CSC):
«São inconstitucionais estas normas, quando interpretadas no sentido de ser admissível que uma sociedade totalmente dependente de outra, representativa de apenas uma parcela de uma única empresa, seja declarada insolvente independentemente da declaração de insolvência da sociedade totalmente dominante e das restantes sociedades do grupo que compõem essa empresa, com a liquidação e distribuição separada dos patrimónios, deixando desprotegidos os credores da sociedade dominante, com beneficio exclusivo dos credores da sociedade dependente, por violação do princípio da livre iniciativa económica privada, consagrado no artigo 61.º da CRP, limitando gravemente essa iniciativa, pela situação de intolerável desprotecção dos credores que assim seria gerada.» (realce nosso).
57.º
Entendeu-se na decisão sumária que esta interpretação não é autonomizável do caso concreto e que por isso não tem carácter normativo.
58.°
Lê-se também na decisão sumária que a Recorrente, nas conclusões 77.° e 78.° (as conclusões imediatamente seguintes à conclusão 76.° antes transcrita) “limita-se a concluir pela inconstitucionalidade de determinadas interpretações, que continua a não identificar quais sejam.
59.º
Ora, antes de vermos se a interpretação enunciada tem ou não carácter normativo, a Recorrente não pode deixar de estranhar que, depois de enunciar a interpretação que reputa de inconstitucional, ao explicar, nos parágrafos imediatamente seguintes quais os motivos dessa inconstitucionalidade — i.e., quais os princípios constitucionais violados — lhe fosse exigível que voltasse formular a interpretação reputada de inconstitucional.
60.°
Não parece que esse nível de formalismo repetitivo — que de nenhuma disposição legal resulta — seja minimamente razoável.
61.º
A Recorrente, nas conclusões 75.° e 76.°, indicou qual a interpretação normativa que reputava de inconstitucional.
62.°
Nas conclusões 77.° e 78.°, obviamente por referência a essa interpretação acabada de enunciar e que, por isso, se absteve de repetir, poupando o leitor de repetições desnecessárias, a Recorrente referiu apenas que, além de violarem o princípio constitucional já referido na anterior conclusão 76.° — o princípio vertido no artigo 61.º da CRP — essas normas, na citada interpretação, violavam ainda outros princípios constitucionais.
63.°
Salvo o devido respeito, é, assim, totalmente despropositado o reparo acerca da ausência de enunciação de qualquer interpretação normativa nas conclusões 77.° e 78.° da alegação da Recorrente no sentido de que a Recorrente “limita-se a concluir pela inconstitucionalidade de determinadas interpretações, que continua a não identificar quais sejam (conclusões 77.° e 78.º, acima referidas)».
64.°
Tal corresponde, mais uma vez, a uma leitura isolada e totalmente descontextualizada dos parágrafos contidos nas conclusões 77.° e 78.° da alegação da Recorrente.
65.°
Ultrapassada esta questão, vejamos agora se a interpretação dos artigos 501.° e 503.° do CSC e 2.°, n.° 1, do CIRE, enunciada pela Recorrente — no sentido de ser admissível que uma sociedade totalmente dependente de outra, representativa de apenas uma parcela de uma única empresa, seja declarada insolvente independentemente da declaração de insolvência da sociedade totalmente dominante e das restantes sociedades do grupo que compõem essa empresa, com a liquidação e distribuição separada dos patrimónios — tem ou não o carácter normativo necessário a que a questão seja conhecida pelo Tribunal Constitucional.
66.°
Tem carácter normativo a interpretação de dada norma se a mesma for autonomizável do caso concreto, valendo com carácter geral e abstracto.
67.°
Está em causa o sentido normativo resultante da conjugação das normas contidas nos artigos 501.° e 503.º do CSC — relativamente à material e substantiva unidade patrimonial das sociedades em relação de grupo, que ultrapassa a separação formal das respectivas personalidades jurídicas — com as normas contidas no artigo 2.°, n.° 1, do CIRE — relativamente a quem pode ser sujeito passivo de declaração de insolvência.
68.°
Da conjugação destes preceitos pode resultar (i) o sentido normativo de que sociedades em relação de grupo por domínio total são sujeitos passivos da declaração de insolvência de forma separada e independente umas das outras (e a isso não obsta o regime de confusão patrimonial e responsabilidade ilimitada resultante dos artigos 501.º e 503.° do CSC) ou (ii) o sentido normativo de que sociedades em ( relação de grupo por domínio total não são sujeitos passivos da declaração de insolvência de forma separada e independente umas das outras, mas são um único sujeito passivo (e a isso não obsta o regime constante do artigo 2.°, n.° 1, do CIRE, se lido isoladamente).
69.°
Trata-se de uma dimensão normativa daquelas normas destinada ao caso especial — mas ainda assim geral e abstracto — da insolvência de sociedades em relação de grupo, ou da insolvência do grupo de sociedades.
70.°
Trata-se da conjugação das normas que caracterizam a volatilidade patrimonial e a ilimitaçâo da responsabilidade das sociedades em relação de grupo com a norma que permite que qualquer pessoa singular ou colectiva seja declarada insolvente, mas também que qualquer património autónomo seja declarado insolvente,
71.º
para daí se extrair a norma especial — ou o sentido normativo da conjugação das normas antes referidas — que há-de regular a insolvência nos grupos de sociedades, nomeadamente sobre quem é o sujeito passivo da insolvência.
72.°
Esse sentido normativo — que determina que uma sociedade totalmente dependente de outra, representativa de apenas uma parcela de uma única empresa, possa ser declarada insolvente independentemente da declaração de insolvência da sociedade totalmente dominante e das restantes sociedades do grupo que compõem essa empresa — é autonomizável do caso concreto da ora Recorrente.
73.º
É certo que o recurso de constitucionalidade só pode incidir sobre normas, e não sobre decisões.
74.º
Mas o Tribunal Constitucional tem acolhido a possibilidade de o recurso ter por objecto certa interpretação das normas reputadas de inconstitucionais. Isso mesmo é referido no Acórdão n.° 391/89, quando se diz que “esse controlo normativo compreende não só a norma jurídica como o que simplesmente se reporte a certa dimensão ou interpretação dada pelas instâncias à norma questionada.”.
75.º
E dúvidas não há de que a Recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade relativamente a normas, e não a uma decisão concreta. Disse a Recorrente, no recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra que «São inconstitucionais estas normas, quando interpretadas no sentido de ser admissível que uma sociedade totalmente dependente de outra, representativa de apenas uma parcela de uma única empresa, seja declarada insolvente independentemente da declaração de insolvência da sociedade totalmente dominante e das restantes sociedades do grupo que compõem essa empresa, com a liquidação e distribuição separada dos patrimónios» (realce agora acrescentado).
76.°
Com esta formulação a Recorrente não pôs em causa qualquer acto de julgamento, mas tão só suscitou o problema — como a lei lhe admite — de saber se é compatível com o texto constitucional, neste ou em qualquer caso a este semelhante, seja ou não a Recorrente dele parte, a enunciada interpretação normativa, geral e abstracta e claramente autonomizável do caso concreto.
77.º
E tanto assim é que a apreciação de tais questões dispensa completamente a apreciação específica do caso da Recorrente, tendo por isso completa dimensão normativa.
78.°
Mas ainda que assim não se entendesse, por se considerar que a interpretação enunciada ficou demasiadamente ligada ao caso concreto, não tendo autonomia fora dele — o que se coloca sem conceder — sempre se diga que a jurisprudência constitucional tem, mesmo nestes casos, admitido o recurso, aceitando que a interpretação normativa enunciada seja referida ao caso concreto e à decisão nele tomada.
79.º
É isso que com grande expressividade e clareza o Acórdão n.° 238/94 (BMJ, 435, pp. 392 e 393) vem (decidir. Diz-se nesse aresto:
“É que, como já se observou, a questão de inconstitucionalidade pode respeitar não apenas à norma, ou a uma sua dimensão parcelar, considerada «em si», mas também, e mais restritamente, à interpretação ou sentido com que ela foi tomada no caso concreto e aplicada na decisão recorrida, nem sempre se recortando nitidamente a fronteira entre «norma» e «decisão» (cfr. J.M. Cardoso da Costa, ob. cit., loc. cit.).
A jurisprudência deste Tribunal, fortemente sedimentada, distingue entre a directa estatuição de certa norma e uma determinada interpretação de que a mesma seja susceptível da impugnação de decisão propriamente dita, só neste último caso não abrindo via para o recurso previsto no artigo 70º., n.° 1, alínea b), da Lei n.° 28/82cfr, v.g., os arestos citados, a propósito, por aquele autor).
E, nesta perspectiva, se se reage quanto a uma decisão que se entende ter feito uma dada interpretação normativa restritiva, extensiva ou analógica — por exemplo —, admite-se ser objecto de recurso a inconstitucionalidade dessa norma enquanto assim interpretada na decisão (cfr., por todos, os n.°s 388/87 e 141/92, publicados no Diário, citado, II Sitie, de 15 de Dezembro de 1987 e de 21 de Agosto de 1992, respectivamente).
Ora, no caso sub júdice, a reclamante — ainda que, reconheça-se, deforma não muito feliz—, após invocar o seu inconformismo perante o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, por violação das normas dos artigos 36.º, n.º 4, e 13.º da Constituição da República, indicou as suas alegações para a relação e para o Supremo como sendo as peças processuais «em que foi suscitada a questão de inconstitucionalidade do artigo 1793.º do Código Civil», retirando-se da sua leitura que se pretendeu recorrer da interpretação restritiva dada a esta norma pelo acórdão, recusando a sua extensão por analogia.
[…]
Ou seja, considera-se que se verificam os pressupostos do recurso de constitucionalidade previstos na alínea b) do n.° 1 do artigo 70.º da Lei n.° 28/82, por estar em causa a constitucionalidade da interpretação dada pelo Supremo àquela norma, recusando-lhe uma extensão por analogia que, na óptica da recorrente e reclamante, será a interpretação conforme às normas dos artigos 36.º n.º 4, e 13.° da Constituição da Republica.
[…]
Em face do exposto, decide-se deferir a presente reclamação, determinando-se, em consequência, que o recurso interposto seja admitido.”.
80.°
É, assim, pacífico que o recurso pode ter por objecto determinada interpretação da norma, e que essa interpretação pode ser referida ao caso concreto: a interpretação ou sentido com que ela foi tomada no caso concreto e aplicada na decisão recorrida.
81.º
Ora, o critério já anteriormente adoptado pelo Tribunal Constitucional não pode deixar de ser acolhido no presente caso.
82.°
Como, de resto já se decidiu em três casos totalmente análogos ao presente, em que o recurso interposto por esta mesma Recorrente foi admitido, como sucedeu nos Autos de Recurso n.°s 577/10, 785/10 e 822/10.
d) A questão da inconstitucionalidade — suscitada apenas no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional — da norma contida no n.° 1 do artigo 606.° do CC, na interpretação imprevisivelmente restritiva do conceito de terceiro
83.°
Nos parágrafos 16. e 17. do seu requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, a Recorrente suscitou a seguinte questão de inconstitucionalidade:
«16. O Acórdão ora recorrido veio, ainda, e surpreendentemente, interpretar e aplicar o artigo 606.°, n.° 1, do CC, na parte referente ao exercício de direitos “contra terceiro”, no sentido de excluir desta categoria de “terceiro”, relativamente à sociedade-mãe, a sociedade-filha. Isto apesar de considerar que uma e outra são sociedades diferentes e autónomas que podem apresentar-se separadamente à insolvência
Esta interpretação é totalmente inesperada, por insólita, pelo que não era exigível à Requerente o cumprimento do ónus de suscitação da desconformidade constitucional da norma do n.° 1 do artigo 606.° do CC nesta interpretação.»
84.°
Esta interpretação normativa, nos cinco outro processos em tudo iguais que correram perante a mesma Relação de Coimbra, em que se colocava a mesma questão de admissibilidade de sub-rogação num direito (de embargar ou recorrer da sentença de insolvência) que uma sociedade detinha sobre outra que dominava a 1 00%, nunca havia sido sufragada. Nunca se havia dito que a sociedade-filha não pode ser considerada “terceiro” em relação à sociedade que a detém.
85.°
Antes vem sendo sufragada a interpretação de que uma sociedade e outra que seja pela primeira detida em domínio total são sociedades com personalidades jurídicas autónomas, que não se confundem nem na sua personalidade nem no seu património.
86.°
A própria decisão de primeira instância destes autos, e também o Acórdão da Relação ora recorrido vieram sufragar o entendimento, que vimos supra, de que uma sociedade totalmente dependente de outra, representativa de apenas uma parcela de uma única empresa, pode ser declarada insolvente independentemente da declaração de insolvência da sociedade totalmente dominante e das restantes sociedades do grupo que compõem essa empresa, com a liquidação e distribuição separada dos patrimónios.
87.°
E isto com base no critério da personalidade jurídica formalmente separada de cada sociedade, que tem sido o único critério atendido na apreciação da questão da insolvência das várias sociedades de um mesmo grupo societário.
88.°
Ora, é totalmente contraditório atender-se exclusivamente, por um lado, à autonomia das personalidades jurídicas das sociedades em relação de grupo para permitir que cada uma seja separadamente declarada insolvente e desconsiderar-se, por outro lado, essa mesma autonomia das personalidades jurídicas das sociedades em relação de grupo para se sustentar que uma e outra são a mesma, que uma não é terceiro em relação à outra.
89.°
Esta a razão pela qual é totalmente imprevisível e surpreendente a interpretação do artigo 606.°, n.° 1, do CC, na parte referente ao exercício de direitos “contra terceiro”, de tal modo restritiva que exclui da categoria de “terceiro”, relativamente a uma sociedade, a sociedade que com esta esteja em relação de grupo.
90.°
Tendo em conta os antecedentes processuais e toda a jurisprudência emitida pela Relação de Coimbra sobre esta matéria, a Recorrente não podia razoavelmente contar com um tal interpretação restritiva.
91.º
Ora, segundo a jurisprudência reiterada do Tribunal Constitucional, o recurso, quanto a normas cuja inconstitucionalidade não foi suscitada deve ser admitido “em situações excepcionais ou anómalas, nas quais o interessado não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes proferida ou não era exigível que afizesse, designadamente por o tribunal a quo ter efectuado uma aplicação de todo insólita e imprevisível” (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional de 14.04.2010, proferido no Processo n.° 212/10, 2.ª Secção, Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues).
92.°
Isso mesmo vinha já sendo afirmado, nomeadamente, nos Acórdãos n.°s 479/89 (BMJ 389), 263/92 (BMJ 419), 232/94 (BMJ 435), 370/94 (BMJ 437), 569/95 (BMJ 451), 386/97 (BMJ 467), 74/2000 (BMJ494) e 210/2000 (BMJ 496).
93º
Não sendo exigível à Recorrente que suscitasse em momento anterior a inconstitucionalidade deste sentido normativo — por insólito e incoerente com a posição adoptada pelo mesmo Tribunal, na mesma decisão —, também esta questão deve ser conhecida no presente recurso.
Termos em que deve a presente Reclamação ser atendida, revogando-se a decisão sumária n.° 32/2011 e notificando-se a Recorrente para apresentar alegações.»
3. A recorrida não respondeu à reclamação.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A Decisão Sumária n.º 32/2011 pronunciou-se pelo não conhecimento do objecto do recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, com fundamento no incumprimento, pela recorrente do ónus de suscitação de questões de constitucionalidade normativa idóneas a constituir objecto de um recurso de constitucionalidade.
A extensa reclamação agora apresentada em nada abala esta conclusão.
5. A reclamante pretende ter suscitado adequadamente duas questões de constitucionalidade na conclusão 52.ª das alegações, uma referente à “inacção do devedor” e a outra “à não admissão da sub-rogação com fundamento numa acção futura”.
Na mencionada conclusão invocou-se o seguinte: «São inconstitucionais as normas contidas nos artigos 606.º do CC, 501.º a 504.º, 78.º, n.ºs 1 e 2, e 141.º, n.º 1, alínea e), do CSC, na interpretação defendida pelo Tribunal a quo, no sentido de que a embargante não se poderia sub-rogar à sua devedora para produzir embargos à insolvência nestes autos, por não se verificar uma inacção do devedor e por não admitir a sub-rogação com fundamento numa acção futura da sub-rogante cuja análise não foi pedida, por violação do princípio do acesso ao Direito e aos Tribunais consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da CRP e, ainda, por violação do artigo 62.º da CRP.»
Cumpre sublinhar, antes de mais, que obrigar a um “seccionamento” da alegação vertida na conclusão 52.ª, para se alcançar, por essa via, duas interpretações normativas, a integrar no objecto do recurso como distintas questões de constitucionalidade (não obstante se apontar como alvo a “interpretação defendida pelo Tribunal a quo”, no singular), provoca um inevitável “efeito de obscurecimento”, que contribui para a intransparência da suscitação. Tanto mais que são identificados numerosos preceitos como base normativa dessas interpretações, ficando por saber-se se todos eles são convocáveis para ambas as questões (designadamente, para a que incide sobre a inacção do devedor) e por definir a forma como se articulam entre si.
Que o entendimento pretendido pelo recorrente não resulta claro comprova-o o tratamento que o Tribunal recorrido deu às duas questões. De facto, depois de sublinhar que a embargante «pretende obstar à insolvência desta [da sociedade dependente], a fim de permitir que venha a ser efectuada a transferência de activos da B. para a C. Comercial, de quem a primeira é completamente subordinada, o que só será possível se não cessar a relação de grupo entre ambas e se não for declarada a insolvência da ora embargada», a decisão recorrida concluiu que não se pode «falar em inacção do devedor, uma vez que não estamos perante actos que possam ser exercidos pelos credores em sub-rogação». Ideia que sai reforçada, ao escrever-se, mais adiante: «Contudo, a ser verdadeira esta alegação, essa invocada inacção não consiste na omissão do exercício de direitos com as características exigidas pelo artigo 606.º (…)». Isto é, no contexto da apreciação do preenchimento dos requisitos do artigo 606.º (não só o do n.º 2, mas fundamentalmente os do n.º 1), considerou-se que a invocada inacção não releva, para efeito de legitimar uma iniciativa sub-rogatória do credor, pois a transferência de activos para a sociedade dominante é um direito que só pelo titular pode ser exercido.
Ou seja, o que a reclamante entende ter sido a formulação de duas questões de constitucionalidade, uma referida ao n.º 1 do artigo 606.º do Código Civil, a outra ao n.º 2 do mesmo artigo, foi perspectivado de modo interligado, retirando-se da natureza do direito a emitir instruções para transferência dos activos da sociedade dependente, como direito exercitável apenas pelo titular, consequências decisórias, tanto para o juízo sobre a inactividade do devedor, como para o juízo sobre a essencialidade da sub-rogação.
Resultado que não pode ser dissociado da inadequação da forma como essas questões foram suscitadas, sem enunciação expressa, completa e perfeitamente perceptível dos critérios normativos a sindicar, e sem relacionação directa com a base legal a que cada um deles se reporta.
6. No que respeita à primeira questão – identificada pela reclamante como a “questão de inconstitucionalidade suscitada na conclusão 52.º da alegação, referente à inacção do devedor” – saliente-se que o teor da presente reclamação apenas confirma a não suscitação, de forma adequada, da inconstitucionalidade de uma dada interpretação normativa deste preceito legal. Na verdade, e contrariamente ao que pretende a recorrente, a suscitação adequada de uma questão de constitucionalidade não consiste em referir as normas «ao longo de todo o texto, para se explicar qual a interpretação que o Tribunal erradamente delas tinha feito e para se sustentar qual a interpretação correcta das mesmas» (cfr. artigo 11.º da presente reclamação).
Como este Tribunal tem reiteradamente salientado, incumbe ao recorrente identificar com precisão o sentido da norma que considera inconstitucional e que pretende submeter a julgamento, de modo a que o Tribunal a possa enunciar na sua decisão, assim permitindo, caso a venha a julgar inconstitucional, que os destinatários saibam qual o sentido da norma que não pode ser utilizado por ser incompatível com a Constituição.
Alega a reclamante que «o parágrafo contido na conclusão 52.ª surge no seguimento de todo um texto que está por trás e o seu sentido deve ser integrado com a alegação traçada até aí chegar» (ponto 13.º da reclamação).
Simplesmente, o teor da referida conclusão exige do tribunal mais do que um esforço de compreensão da interpretação questionada, através das conexões de sentido que se podem colher numa leitura contextualizada, impondo-lhe antes uma verdadeira tarefa de “construção” da caracterização identificativa da dimensão normativa cuja constitucionalidade se pretende sindicar, a partir do que vem anteriormente alegado, de modo disperso. Ora, a utilização, pela instância decisória, de uma correcta metódica interpretativa não dispensa o recorrente da enunciação da regra, abstractamente formulada e compreensiva de todos os elementos normativos necessários para a definição acabada da dimensão que constitui objecto do recurso.
No caso dos autos, a forma lacunar e pouco transparente como a reclamante enunciou a interpretação traduz uma incerteza na sua delimitação incompatível com a exigência de a recorrente enunciar a questão de constitucionalidade em termos de ser perfeitamente identificável a dimensão normativa que é reputada inconstitucional. Ora, não é possível identificar a norma que a reclamante considera inconstitucional se esta não foi enunciada e carece de ser extraída de um conjunto de alegações esparsas, sendo certo que este Tribunal não pode substituir-se aos recorrentes na enunciação da norma cuja constitucionalidade pretendem ver apreciada, ou seja, na delimitação do próprio objecto do recurso de constitucionalidade.
Nada do que até aqui se disse é contrariado pelo facto de o tribunal recorrido ter, segundo alega a reclamante, conhecido de uma tal questão.
Na curta referência que a sentença recorrida faz à alegação de inconstitucionalidade, apenas se afirma o seguinte, quanto ao seu objecto:
«Não se descortina a inconstitucionalidade também invocada pela recorrente dos artigos 606.º do CC, 501.º a 504.º, 78.º e 141.º, n.º 1, e), do CSC, interpretados no sentido de não ser possível a sub-rogação neste caso, por violação dos artigos 20.º e 62.º da CRP».
Como se vê, o acórdão recorrido não supriu as insuficiências da suscitação, clarificando, com maior precisão denotativa, o que consta da conclusão 52.ª das alegações, em termos de afastar qualquer dúvida sobre qual foi a interpretação sobre que recaiu a sua apreciação. Limitou-se a uma negação genérica da inconstitucionalidade de certos preceitos, “interpretados no sentido de não ser possível a sub-rogação neste caso”, o que, manifestamente, não constitui a delimitação precisa de uma questão de constitucionalidade normativa não suscitada em termos adequados.
7. No que respeita à segunda questão, que a reclamante identifica como “questão de inconstitucionalidade suscitada na conclusão 52.º da alegação, referente à não admissão da sub-rogação com fundamento numa acção futura”, as razões acima referidas a propósito da questão anterior também a desqualificam como apta para constituir objecto do recurso de constitucionalidade.
Não é, na verdade, possível obter, com o grau de certeza exigível, a “norma” que a própria recorrente não enunciou em termos minimamente precisos. Mas, ainda que assim não fosse, sempre o resultado seria o confronto entre a decisão do caso e a Constituição e não o confronto entre uma norma e a Constituição. Basta ler o “resumo” que a reclamante faz desta questão (cfr. artigo 42.º da reclamação): «(…) num caso de sub-rogação, pelo credor da sociedade-mãe da insolvente, na apresentação de embargos à sentença de insolvência, desses embargos não resulta automaticamente o aumento do património da sub-rogada, nem esse aumento se dá necessariamente, já que o sub-rogante não poderia, mesmo que procedessem os embargos, sub-rogar-se depois à administração da sub-rogada para determinar, nos termos do artigo 503.º do CSC, a transferência, para a sub-rogada, dos bens da insolvente, uma vez que tal configuraria um acto de gestão discricionário da sub-rogada, ao qual o credor não se pode sub-rogar.»
8. Quanto à questão que a reclamante diz ter suscitado «nas conclusões 75.º e 76.º da alegação, referente à possibilidade de declaração de insolvência de uma sociedade totalmente dependente de outra», assente nas normas dos artigos 501.º e 503.º do CSC e 2.º, n.º 1, do CIRE, vem a reclamante insistir na defesa do carácter normativo da seguinte interpretação destas normas: «são inconstitucionais estas normas, quando interpretadas no sentido de ser admissível que uma sociedade totalmente dependente de outra, representativa de apenas uma parcela de uma única empresa, seja declarada insolvente independentemente da declaração de insolvência da sociedade totalmente dominante e das restantes sociedades do grupo que compõem essa empresa, com a liquidação e distribuição separada dos patrimónios, deixando desprotegidos os credores da sociedade dominante, com benefício exclusivo dos credores da sociedade dependente» (artigo 56.º da reclamação).
Sem razão, porém.
A interpretação assim enunciada depende da verificação de um conjunto muito específico de circunstâncias que a tornam incidível do caso concreto. Não se descortina aqui a enunciação de uma qualquer regra abstracta susceptível de uma aplicação potencialmente genérica. Muito pelo contrário, a “interpretação” indicada confunde-se com a solução dada ao caso concreto (é este caso concreto que reúne todos os elementos, muitos deles de carácter fáctico, que formam o todo que a reclamante reputa inconstitucional: sociedade totalmente dependente de outra; representativa de apenas uma parcela de uma única empresa; sendo aquela primeira declarada insolvente com a liquidação e distribuição separada dos patrimónios e independentemente da declaração de insolvência da sociedade totalmente dominante e das restantes sociedades do grupo que compõem essa empresa).
É verdade que pode admitir-se a hipótese de encontrar outro caso idêntico ao da reclamante, mas essa hipótese não retira o cariz casuístico à interpretação enunciada. Esta só se mostraria apta a abarcar outro caso por este ser idêntico no planos dos factos e não por a interpretação, em si, ter um carácter de generalidade e abstracção que a vocacionasse a reger situações diversas.
Sendo patente a estruturação da referida questão em torno das particularidades do caso, reproduzindo uma série de elementos especificamente caracterizadores de uma dada situação concreta, mais do que identificando um critério normativo (ainda que perspectivado interpretativamente em função do caso), não se vê que dela se destaque, com um mínimo de “distanciamento” uma dimensão normativa, como seria indispensável para a pretensa interpretação não se fundir com o acto de aplicação. Falha tanto mais notória quanto é certo
que aquilo que é apresentado, na conclusão 76.ª das alegações, como um sentido normativo colhido da interpretação das normas referenciadas na conclusão anterior, não é uma inferência mais ou menos imediata do disposto nessas normas, em si mesmas consideradas, como facilmente se conclui das suas epígrafes e conteúdos. Nestas circunstâncias, só pela intermediação de uma regra que tenha presidido à decisão aplicativa, a qual ficou por enunciar, seria possível evitar que a questão tenha por objecto o próprio acto de julgamento, a forma como o tribunal valorou as circunstâncias do caso.
9. Por último, quanto à interpretação do artigo 606.º, n.º 1, do CC, «na parte referente ao exercício de direitos “contra terceiro”, no sentido de excluir desta categoria de “terceiro”, relativamente à sociedade-mãe, a sociedade-filha», alega a reclamante que se trata de uma interpretação inesperada e insólita, pelo que não lhe era exigível o cumprimento do ónus de suscitação da desconformidade constitucional de tal norma.
Independentemente da eventual falta de normatividade desta questão, a verdade é que a mesma não constitui uma interpretação inusitada ou imprevisível, uma vez que tem até apoio na doutrina especializada, como resulta bem claro das citações feitas na própria sentença (cfr. pág. 17, a fls. 544 dos autos). Cabia, por isso, à reclamante, antecipar este sentido interpretativo, caso pretendesse suscitar a respectiva inconstitucionalidade.
Acresce que esta “interpretação” se apresenta, mais uma vez, como uma mera segmentação de uma mesma questão, a da aplicabilidade ao caso do artigo 606.º do Código Civil, pelo que a sua apreciação isolada sempre se mostraria inútil, por se manterem intocados os demais fundamentos em que o tribunal recorrido se baseou para afastar esta norma da solução do caso.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 12 de Abril de 2011.- Joaquim de Sousa Ribeiro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.
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