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Processo n.º 606/07
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A Sociedade A., S.A., recorreu para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC (Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro), pretendendo ver apreciada a norma dos “artigos 14.º, n.º 1 e 16.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 324/03, de 27 de Dezembro, e a exclusão da aplicação do disposto no artigo 27.º do Código das Custas Judiciais aos processos pendentes anteriormente a 1 de Janeiro de 2004” (cf. requerimento de interposição de recurso), por violação dos princípios da igualdade, da proporcionalidade e da proibição do excesso, da justiça da imparcialidade e da boa fé, entendendo igualmente que “o estabelecimento de taxas de justiça apenas considerando o valor da acção respectiva e de modo totalmente desproporcionado com os custos e a natureza do serviço prestado em troca, produz igualmente um vício de inconstitucionalidade material por estabelecer um verdadeiro imposto sobre o valor das acções judiciais, sem que tal tenha observado os requisitos do n.º 2 do artigo 106.º e na alínea i) do n.º 1 do artigo 168.º” da Constituição.
Mas, na sequência de despacho-convite para que enunciasse de “forma clara o exacto sentido normativo cuja conformidade constitucional pretende questionar”, a recorrente, após ter feito referência à alteração do artigo 27.º do Código das Custas Judiciais prevista pelo Decreto-Lei n.º 324/2003, diz:
[...] 9 - Entende a recorrente que o citado artigo 14º nº 1 ao excluir a aplicação aos processos pendentes das alterações introduzidas pelo D.L. 324/2003 ao Código das Custas Judiciais, que estabelecem princípios de adequação entre o montante da taxa de justiça e a actividade do tribunal, viola os princípios constitucionais referidos.
Por outro lado
10 - O legislador definiu no citado diploma como um dos objectivos do mesmo a “adopção de critérios de tributação mais justos e objectivos”.
E tais critérios visavam, por exemplo, evitar que processos com o mesmo valor, mas de complexidade e carga de trabalho totalmente diferentes continuassem a ser tributados pelo mesmo valor.
Ou seja, o diploma em causa tem uma marca indelével que é a de pôr fim ao estabelecimento de taxas de justiça considerando o valor da acção respectiva, de modo totalmente desproporcionado com os custos e a natureza do serviço.
11 - Referiu a recorrente que o estabelecimento de valores de taxas de justiça tomando apenas em consideração o valor da acção respectiva e desconsiderando os custos e a natureza do serviço prestado em troca produzia um vício de inconstitucionalidade material dado se poder considerar que tal correspondia a um verdadeiro imposto sobre o valor das acções judiciais, sem prévia observância dos requisitos do nº 2 do artº 106º e da alínea i) do nº 1 do artº 168º, ambos da Constituição da República.
12 - O D.L. 324/2003 visou introduzir critérios mais objectivos e justos, conforme se referiu atrás, não fazendo sentido que as contas elaboradas após 1 de Janeiro de 2004 o sejam ou não sob tais critérios consoante a data de propositura da acção em que tal elaboração ocorre, independentemente da data desta ou sequer da data do facto determinativo da mesma (as partes devem esperar menos objectividade e justiça do sistema de tributação em causa apenas em razão da data da propositura-...).
13 - Entende assim a recorrente que a desconformidade constitucional em causa se estabelece entre o dispositivo do artº 14º nº 1 do D.L. 324/2003 que limita a aplicação das alterações ao Código das Custas Judiciais aos processos instaurados após a entrada em vigor do respectivo diploma – 1 de Janeiro de 2004 – e os princípios constitucionais consagrados nos artigos da Constituição da República Portuguesa citados. [...]
Admitido o recurso, a recorrente alegou e concluiu:
A) Vem o presente recurso interposto do douto acórdão da Relação de Lisboa, em conformidade com o qual nenhuma inconstitucionalidade foi determinada às disposições do Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro, em especial no que concerne às disposições conjugadas dos artigo 14.º, e 16.º, n.º 1, daquele Diploma, e da nova redacção introduzida ao artigo 27.º, do Código das Custas Judiciais, cuja entrada em vigor foi determinada para processos instaurados a partir de 1 de Janeiro de 2004;
B) Segundo a nova redacção introduzida pelo citado Decreto — Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro, ao artigo 27.º, do Código das Custas Judiciais, nas causas de valor superior a 250.000,00 €, não é considerado o excesso para efeito de cálculo do montante de taxa de justiça inicial e subsequente, e o remanescente também não é considerado na conta final quando o processo termine antes de concluída a fase de discussão e julgamento da causa, caso em que deixa de haver lugar ao pagamento do remanescente apenas por efeito da verificação desta situação;
C) Não obstante o presente processo ter terminado antes de concluída a fase de discussão e julgamento da causa e já após o início de vigência do referido Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro, não beneficiam as partes, inclusive a ora recorrente, da possibilidade de não ser considerado o remanescente de taxa de justiça na conta final, uma vez que se criou, na interpretação das instâncias, uma situação jurídica de desigualdade de tratamento entre processos instaurados até 31 de Dezembro de 2003, e processos instaurados após essa data;
D) A nova redacção do artigo 27.º, do Código das Custas Judiciais, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro, veio prever um evento modificativo/extintivo da relação tributária, não previsto na sua redacção original, e que se traduz em não ser considerado o remanescente de taxa de justiça na conta final no caso do processo terminar antes de concluída a fase de discussão e julgamento da causa;
E) Assim, a irrelevância desse facto do ponto de vista tributário, quanto a factos que se verifiquem após o início de vigência do Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro, 1 de Janeiro de 2004, só pode significar a aplicabilidade da Lei Revogada, porque só face a esta se encontrava cominada tal ausência de efeitos tributários, pelo que pode justamente falar-se de postactividade ou ultractividade da Lei Revogada, com referência a factos novos modificativos/extintivos que já se verificam sob o império da Lei Nova, isto é, a partir daquela data de 1 de Janeiro de 2004;
F) Ora, efectivamente, os cidadãos podem ser colocados numa situação desvantajosa quer quando a Lei Nova cria novos deveres não previstos na Lei Revogada quanto a factos constitutivos verificados no império temporal desta última (retroactividade da Lei Nova), ou ainda quando a Lei Nova faz cessar deveres do cidadão face ao Estado que se encontravam previstos na Lei Revogada prolongando a aplicabilidade desta e dos deveres nesta impostos a factos constitutivos novos já verificados no império temporal da primeira (ultractividade da Lei Revogada);
G) Esta ultractividade da Lei Revogada, traduz-se num arbitrário e desigual tratamento dos mesmos factos constitutivos (modificativos e extintivos) da relação tributária e dos cidadãos, porque quer para as acções instauradas até 31 de Dezembro de 2003, quer para as acções instauradas a partir de 1 de Janeiro de 2004, se não modificaram as solicitações e direitos dos cidadãos à administração judiciária face à lei processual civil até ao encerramento da discussão e julgamento da causa, que justifiquem a aludida desigualdade de tratamento, tudo se resumindo à data de propositura do processo;
H) Por último, ao novo regime presidiu um critério que se pretendeu mais adequado e afinado de justiça e de proporcionalidade entre o valor da taxa de justiça e o serviço efectivamente prestado pela administração judiciária, mitigando o critério forfetário que tradicionalmente se vinha estabelecendo entre o valor das custas e o valor da causa, aproximando o montante das custas devidas por acções de valor superior às devidas por acções de valor inferior, em que porventura nas primeiras tenha sido igual ou até menor a solicitação das partes ao sistema judicial;
I) Efectivamente, e no que sobretudo respeita ao respectivo remanescente para as acções de valor superior a 250.000,00€, em que nenhuma matéria de facto ou de direito chega a ser apreciada e decidida pelo Tribunal, já nenhuma relação existe entre o serviço efectivamente prestado por aquele ao cidadão, traduzindo-se num milionário locupletamento do Estado, num imposto sobre o valor das acções judiciais, sem prévia observância dos requisitos do n.º 2 do artigo 106.º e da alínea i) do artigo 168.º, da Constituição da República Portuguesa, e numa discriminação arbitrária entre os cidadãos, porque apenas dependente de uma data e independente do serviço que lhe é efectivamente prestado, com violação das disposições e princípios constitucionais consagrados nos artigos 12.º, 13.º, n.º 2, e 266.º, n.º 2, todos da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos e nos melhores de Direito, com o douto suprimento de V. Ex.a , deverá ser dado provimento ao recurso, e, entre outras consequências, determinar-se inconstitucional a interpretação das instâncias segundo a qual a redacção conferida ao artigo 27.º, do Código das Custas Judiciais, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro, não tem aplicação na contagem das custas devidas por este processo.
Por seu turno, contra-alega o Ministério Público:
1. Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada
O presente recurso vem interposto por A., SA, da decisão, proferida no julgamento de agravo pela Relação de Lisboa, que considerou não inconstitucional a norma de direito transitório constantes do artigo 14º, nº 1, do Decreto-Lei nº 324/03, enquanto prescreve que as alterações introduzidas por este diploma legal no Código das Custas Judiciais apenas se aplicam aos processos instaurados após 01/01/2004 – continuando o regime precedente a ter plena aplicação às custas originadas em processos já pendentes nessa data.
Face ao modo como a entidade recorrente entendeu delimitar o objecto do recurso, a p. 129, resulta claro que este apenas abrange a norma de direito transitório que consta do citado artigo 14º, nº 1, do Decreto-Lei nº 324/03 – não incidindo, deste modo, o recurso sobre a norma que constava do artigo 27º do Código das Custas Judiciais, na versão anterior a tal diploma legal.
Ora, com este objecto, definitivamente delimitado pelo recorrente em função do princípio dispositivo, é evidente a improcedência do recurso.
Na verdade, tal norma de direito transitório especial – que constitui excepção ao principio da imediata aplicação das regras de natureza procedimental às causas pendentes – não afronta qualquer princípio ou preceito constitucional.
Desde logo, e como é evidente, o referido princípio-regra da imediata aplicação da nova lei de processo não tem tutela constitucional, nada impedindo que o legislador, no exercício da sua livre discricionariedade, estabeleça pontualmente regimes diversos, mantendo a tramitação das causas sujeita à lei que vigorava no momento da sua pendência inicial, impedindo que a “lei nova” lhes seja aplicável (em matéria de custas, não vigora naturalmente o princípio da aplicação retroactiva da lei mais favorável à parte devedora…).
Não é, por outro lado, exacto que a tributação, operada através da aplicação do regime que constava do “velho” artigo 27º do Código das Custas Judiciais, traduza um “imposto sobre o valor das acções judiciais”: como é pacífico na jurisprudência constitucional, a matéria atinente à definição dos montantes devidos a título de custas – nomeadamente a fixação dos valores da taxa de justiça – nada tem a ver com “impostos” ou com as exigências da “Constituição Fiscal”.
Finalmente, não operando, como é sabido, o princípio da igualdade em termos diacrónicos, não é admissível que se pretenda realizar uma comparação entre a posição dos interessados face a normas ou regimes legais que se sucederam no tempo.
2. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1º– A norma de direito transitório especial, constante do artigo 14º, nº 1, do Decreto-Lei nº 324/03, enquanto prescreve a não aplicação imediata, às causas pendentes, do novo regime de custas, emergente de tal diploma legal, não afronta qualquer preceito ou princípio constitucional.
2º – Termos em que deverá improceder o presente recurso.
II - Fundamentação
2. O Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro, alterou, entre outros diplomas, o Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro.
No seu artigo 14.º, sob a epígrafe “Aplicação no tempo”, dispõe-se:
“1 – Sem prejuízo do disposto no número seguinte, as alterações ao Código das Custas Judiciais constantes deste diploma só se aplicam aos processos instaurados após a sua entrada em vigor [1 de Janeiro de 2004, de acordo com o n.º 1 do artigo 16.º].
2 – Após a entrada em vigor do presente diploma, o montante dos pagamentos prévios de taxa de justiça inicial e subsequente a efectuar nos processos pendentes é determinado de acordo com a tabela do anexo I.
3 – Os pagamentos e depósitos a efectuar nos processos pendentes à data da entrada em vigor do presente diploma são efectuados de acordo com o disposto no mesmo”.
Por seu lado, o artigo 27.º do citado diploma na redacção original dispunha o seguinte:
“Artigo 27.º
Pagamento conjunto das taxas de justiça inicial e subsequente e os seus limites
1 – Nas acções e nos recursos cuja taxa de justiça não exceda 1 UC e nas acções de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens, a taxa de justiça subsequente é paga conjuntamente com a taxa de justiça inicial.
2 – Sempre que a taxa de justiça devida a final seja igual ou inferior a metade de 1 UC, o cálculo da taxa de justiça inicial e subsequente realizar-se-á com base nesse valor.
3 – Nas causas de valor superior a 40 milhões de escudos [€199.519, 16] não é considerado o excesso para efeito do cálculo da taxa de justiça inicial e subsequente.”
O preceito foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 324/2003 que lhe fixou a seguinte redacção:
“Artigo 27.º
Limite das taxas de justiça inicial e subsequente
1 – Nas causas de valor superior a € 250 000 não é considerado o excesso para efeito do cálculo do montante da taxa de justiça inicial e subsequente.
2 – Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, o remanescente é considerado na conta a final.
3 – Se a especificidade da situação o justificar, pode o juiz, de forma fundamentada e atendendo, designadamente, à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento do remanescente.
4 – Quando o processo termine antes de concluída a fase de discussão e julgamento da causa não há lugar ao pagamento do remanescente.”
3. O Tribunal tem entendido que a delimitação do âmbito do recurso é tarefa dos recorrentes, pois é a eles que cabe definir a questão de inconstitucionalidade que o Tribunal deverá julgar, mediante a indicação da alínea do n.º 1 do artigo 70º ao abrigo da qual o recurso é interposto, a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie, e a indicação da norma ou princípio constitucional que se considera violado (artigo 75º-A da LTC).
Sustenta o Ministério Público, nas suas alegações, que “face ao modo como a entidade recorrente entendeu delimitar o objecto do recurso, resulta claro que este apenas abrange a norma de direito transitório que consta do citado artigo 14.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 324/03 – não incidindo, deste modo, o recurso sobre a norma que constava do artigo 27.º do Código das Custas Judiciais”, concluindo que a questão decidenda se refere apenas à norma de direito transitório especial, constante do artigo 14.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 324/03, enquanto prescreve a não aplicação imediata, às causas pendentes, do novo regime de custas emergente de tal diploma legal. Importa, assim, delimitar o objecto do presente recurso.
Na tarefa de identificação do objecto do recurso, o recorrente está vinculado à imposição legal radicada na própria alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC quanto ao carácter normativo do recurso, que apenas permite discutir a conformidade constitucional da norma aplicada como ratio decidendi da decisão recorrida. É certo que o Tribunal tem conhecido das normas aplicadas nas decisões sob recurso quer elas resultem da simples aplicação literal do preceito normativo, quer elas apresentem uma feição própria que de algum modo as particularizam no universo dos diversos sentidos que é possível extrair do preceito aplicado. Todavia, este particular sentido deve continuar a ter natureza normativa, isto é, deve representar um critério abstractizante radicado numa disposição jurídica real e concreta que, aplicado ao caso, condicionou decisivamente a solução encontrada. Confrontado com a necessidade de especificar com rigor a norma que pretendia submeter ao julgamento do Tribunal, a recorrente salientou:
9 - Entende a recorrente que o citado artigo 14º nº 1 ao excluir a aplicação aos processos pendentes das alterações introduzidas pelo D.L. 324/2003 ao Código das Custas Judiciais, que estabelecem princípios de adequação entre o montante da taxa de justiça e a actividade do tribunal, viola os princípios constitucionais referidos. [...]
13 - Entende assim a recorrente que a desconformidade constitucional em causa se estabelece entre o dispositivo do artº 14º nº 1 do D.L. 324/2003 que limita a aplicação das alterações ao Código das Custas Judiciais aos processos instaurados após a entrada em vigor do respectivo diploma – 1 de Janeiro de 2004 – e os princípios constitucionais consagrados...[...].
Este texto revela que a norma impugnada se contém, apenas, no já citado n.º 1 do artigo 14º do Decreto-Lei n.º 324/2003 de 27 de Dezembro, norma que foi aplicada ao caso tratado na decisão recorrida, pois através dela o tribunal recorrido decidiu aplicar o regime de custas previsto no artigo 27º do Código das Custas Judiciais, na sua anterior redacção.
4. Em caso próximo do presente, o Tribunal considerou que “a norma sujeita a apreciação em juízo de fiscalização concreta tem de restringir-se ao sentido normativo isolado dos preceitos expressamente mencionados pelo recorrente ao enunciar o objecto do recurso, numa operação que abstrai do contexto em que esses preceitos foram aplicados ao caso concreto e, portanto, do real sentido normativo questionado”. Fê-lo no Acórdão 708/2005, onde se apreciou a inconstitucionalidade da norma de direito transitório, constante do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, enquanto prescreve, como regra, a imediata aplicabilidade da lei nova sobre custas às acções pendentes. Decidiu-se, então, que o “objecto do recurso tem de cingir-se ao conteúdo normativo que pode extrair-se do artigo 4º, n.º 1, do Decreto-Lei nº 224-A/96, de 26 de Novembro, considerado isoladamente; ou seja, está limitado à questão de saber se a mera aplicação imediata aos processos pendentes da nova lei em matéria de custas viola, em si mesmo, os princípios constitucionais da segurança e confiança jurídicas”.
Na verdade, no caso sub judicio ocorre uma situação em que o conteúdo dispositivo de determinado preceito necessariamente desencadeia a aplicação de outras normas; em certa perspectiva, há uma relação de dependência normativa entre a norma de direito transitório e a norma aplicada pelo tribunal na sequência do que aí se estatui, podendo dizer-se que a norma do regime transitório, ao determinar a aplicação da lei revogada, acaba por transportar em si o regime legal nela contido.
No entanto, como resulta do exposto, apenas a dimensão normativa supra referida – o artigo 14.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 324/2003, enquanto prescreve a não aplicação imediata, às causas pendentes, do novo regime de custas, emergente desse diploma legal” – constitui o objecto do presente recurso.
5. Na jurisprudência do Tribunal, um dos acórdãos mais impressivos para o tratamento do tema é o já citado Acórdão n.º 708/2005, onde se apreciou a inconstitucionalidade da norma do artigo 14.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 324/2003, por violação do princípio da igualdade.
Outros arestos podem ser igualmente pertinentes, em função do objecto do recurso. Por exemplo, no Acórdão n.º 301/2009 o Tribunal decidiu não julgar inconstitucional a norma resultante dos artigos 13.º, n.º 1, 15.º, n.º 1, alínea o), e 18.º, n.º 2, do Código das Custas Judiciais (na versão emergente do Decreto-Lei nº 224-A/96, de 26 de Novembro), conjugada com a tabela anexa ao CCJ, quando os valores das custas a que a sua aplicação conduziu se mostram proporcionais, no caso dos autos, à especial complexidade do processo; no Acórdão n.º 375/2008 o Tribunal decidiu declarar, com força obrigatória geral, por violação do princípio da proporcionalidade ínsito no princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2º da Constituição, a inconstitucionalidade do artigo 13.º, n.º 2, do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo D.L. n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, na redacção introduzida pelo D.L. n.º 324/2003, de 27 de Dezembro, quando interpretado no sentido de que, no caso de transacção judicialmente homologada, segundo a qual as custas em dívida serão suportadas a meias, incumbe ao autor, que já suportou integralmente a taxa de justiça a seu cargo, garantir, ainda, o pagamento de metade do remanescente da taxa de justiça em dívida, com o ónus de subsequentemente reaver tal quantia do réu, a título de custas de parte; no Acórdão n.º 116/2008 julgou-se inconstitucional, por violação do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da Constituição, conjugado com o princípio da proporcionalidade, decorrente dos artigos 2.º e 18.º, n.º 2, segunda parte, da mesma Constituição, a norma que resulta dos artigos 13.º, n.º 1, e tabela anexa, 15.º, n.º 1, alínea m), e 18.º, n.º 2, todos do Código das Custas Judiciais, na versão de 1996, na interpretação segundo a qual o montante da taxa de justiça devida em procedimentos cautelares e recursos neles interpostos, cujo valor exceda 49.879,79 €, é definido em função do valor da acção sem qualquer limite máximo ao montante das custas, e na medida em que se não permite ao tribunal que limite o montante de taxa de justiça devido no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a natureza e complexidade do processo e o carácter manifestamente desproporcionado do montante em questão; no Acórdão n.º 470/2007 o Tribunal decidiu julgar inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 18.º, n.º 2, e 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 66.º, n.º 2, do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, interpretada por forma a permitir que as custas devidas pelo expropriado excedam de forma intolerável o montante da indemnização depositada, como flagrantemente ocorre em caso, como o presente, em que esse excesso é superior a € 100 000,00.
Em todos estes arestos o Tribunal qualifica as custas judiciais como taxas, esclarece o sentido da discricionariedade normativo-constitutiva que é reconhecida ao legislador nesta matéria e confronta o seu regime legal com diversos parâmetros constitucionais, entre os quais se destacam o princípio da proporcionalidade em relação com o acesso ao direito e aos tribunais, justificando-se o controlo de evidência que o Tribunal foi chamado a realizar nessas decisões.
Mas é, para o nosso caso, particularmente relevante a doutrina do acórdão 708/2005, não apenas por ter equacionado a inconstitucionalidade da norma que constitui o objecto do recurso, mas também porque o acórdão abordou especificamente o problema da aplicação no tempo das normas relativas às custas judiciais a propósito do artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, que, ao invés, mandava aplicar imediatamente aos processos pendentes o Código das Custas Judiciais aprovado por esse diploma.
Especificamente sobre o artigo 14.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 324/2003, pode ler-se nesse Acórdão:
“Entende o recorrente que esta norma, “na parte em que determina que a alteração que este diploma introduziu no artigo 53° do CCJ, em concreto a revogação do seu n.º 4, só se aplica aos processos instaurados após 1 de Janeiro de 2005”, é inconstitucional, por alegada violação do princípio da igualdade. É que, no seu entendimento, “atentas as razões que levaram à revogação do n.º 4 do artigo 53° do CCJ, não poderia deixar de se aplicar a nova redacção do aludido preceito legal a todos os processos, sob pena de se estar, injustificadamente, a tratar de forma diferente o que é igual”.
Mais uma vez, porém, sem razão.
Com efeito, não operando o princípio da igualdade de modo diacrónico, conforme se acabou de explicitar, e não sendo inconstitucional, como já se demonstrou, a norma que constava do artigo 53º, n.º 4, do Código das Custas Judiciais, na redacção do Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, na parte em que mandava considerar para efeitos do valor tributário os juros vencidos na pendência da acção, nada impedia efectivamente o legislador ordinário, no uso da discricionariedade legislativa que supra se referiu em 8.1.1., de estabelecer que o novo regime só seria de aplicar aos processos iniciados depois da sua entrada em vigor”.
6. Resulta claro que a norma do artigo 14.º, n.º1, de direito transitório, na parte em que determina a não aplicação imediata do regime das custas dele constante, não afronta os princípios da proporcionalidade e da proibição do excesso, da justiça da imparcialidade e da boa fé, referidos pela recorrente. Na verdade, configurado o objecto do recurso nos termos já referidos, a questão de constitucionalidade relacionada a tais princípios constitucionais prefigura-se manifestamente improcedente porquanto tal norma não comporta, recta via, qualquer sentido jurídico autónomo que constranja esses parâmetros constitucionais.
E, no que concerne ao princípio da igualdade, haverá que recordar o que se refere no Acórdão n.º 708/2005, e foi acentuado no Parecer do Ministério Público, ou seja, que o princípio da igualdade não opera de modo diacrónico em termos de permitir realizar uma comparação entre a posição dos particulares face a regimes jurídicos que se sucedem no tempo. Na verdade, o legislador não está impedido de determinar alterações legislativas neste domínio, com o consequente reflexo na alteração dos valores pagos pelos particulares a título de taxa de justiça. É patente que a sucessão no tempo deste tipo de regimes jurídicos, à semelhança com o que sucede genericamente sempre que se alteram os valores das contrapartidas correspondentes a serviços públicos não gratuitos, determina uma diferença no modo como a Administração se relaciona com os cidadãos; mas essa diferença não é relevante para efeito da contabilização inerente à violação do princípio da igualdade tutelado no artigo 13º da Constituição, a menos que surja de forma arbitrária. Ora, é justamente neste domínio que interfere, a par dos limites de liberdade de conformação do legislador, a consideração daquilo que a recorrente deveria prever como custo que teria que suportar no momento em que tomou a decisão de litigar; ou, dito de outro modo, à expectativa que legitimamente a recorrente tinha de poder beneficiar do novo regime de custas, nesse momento em que tomou a decisão de litigar. A resposta a esta questão faz apelo à jurisprudência do Tribunal quanto à salvaguarda das expectativas tuteladas pelo principio da confiança. Decorre dessa jurisprudência que, para que o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança seja tutelado constitucionalmente é necessário, desde logo, que o Estado tenha provocado alterações súbitas e imprevisíveis no modelo jurídico que disciplina a situação concreta.
Nesse sentido, precisamente a propósito do princípio da confiança, este Tribunal já afirmou, através do Acórdão n.º 287/90 (Diário da República, Iª Série, de 20 de Fevereiro de 1991):
«Nesta matéria, a jurisprudência constante deste Tribunal tem-se pronunciado no sentido de que ‘apenas uma retroactividade intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos, viola o princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático (cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 11/83, de 12 de Outubro de 1982, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1º vol., pp. 11 e segs.; no mesmo sentido se havia já pronunciado a Comissão Constitucional, no Acórdão n.º 463, de 13 de Janeiro de 1983, publicado no Apêndice ao Diário da República de 23 de Agosto de 1983, p. 133 e no Boletim do Ministério da Justiça, n. 314, p. 141, e se continuou a pronunciar o Tribunal Constitucional, designadamente através dos Acórdãos nºs. 17/84 e 86/84, publicados nos 2º e 4º vols. dos Acórdãos do Tribunal Constitucional, a pp. 375 e segs. e 81 e segs., respectivamente).”
(…)
Não há, com efeito, um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou à manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados. Ao legislador não está vedado alterar o regime de casamento, de arrendamento, do funcionalismo público ou das pensões, por exemplo, ou a lei por que se regem processos pendentes.»
A aplicação de determinadas normas a situações jurídicas pré-existentes – como é o caso das leis que se aplicam a processos pendentes – não pode ser integrada nos fenómenos de “retroactividade autêntica”, mas apenas na categoria de “mera retrospectividade” ou de “retroactividade inautêntica”. O n.º 3 do artigo 18.º da Constituição apenas proíbe as leis restritivas que produzam efeitos de “retroactividade autêntica”: “a proibição incide sobre a chamada retroactividade autêntica, em que as leis restritivas de direitos afectam posições jusfundamentais já estabelecidas no passado ou, mesmo, já esgotadas” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, vol. I, Coimbra Editora, 2007, p. 394).
A norma impugnada não ofende, em suma, a Constituição.
7. Em face do exposto, o Tribunal decide julgar improcedente o recurso. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 23 de Março de 2011.- Carlos Pamplona de Oliveira – Maria João Antunes – José Borges Soeiro – Gil Galvão – Rui Manuel Moura Ramos. Vencido, nos termos da declaração de voto junta.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido. Quanto à delimitação do objecto do recurso, na medida em que, e acompanhando inteiramente a declaração de voto do Senhor Cons. Vitor Gomes aposta ao acórdão n.º 708/2005, entendi que, sendo sindicada uma norma de direito transitório, a análise do Tribunal se deveria ter estendido igualmente às regras da tributação de custas que, apesar de revogadas, o artigo 14º, n.º 1º, do Decreto-Lei nº 324/2003 manteve aplicáveis ao caso decidido pela decisão recorrida, ou seja, o regime do Decreto-Lei nº 224-A/96, de 26 de Novembro, em particular, o seu artigo 27º.
E quanto à decisão, pois que considerei que, assim entendida, a norma aplicada na decisão recorrida afrontava os princípios da proporcionalidade e da proibição do excesso, ao prescrever que o montante das custas é definido em função do valor da acção, sem qualquer limite máximo ao montante das custas, e na medida em que se não permite ao tribunal que limite o seu montante tendo em conta, designadamente, a natureza e complexidade do processo e o carácter manifestamente desproporcionado do montante em questão. E isto pelas razões constantes dos acórdãos nos 227/2007, 470/2007 e 471/2007 (que subscrevi) e 116/08 cujos fundamentos considero transponíveis para o presente caso.- Rui Manuel Moura Ramos.
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