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Processo n.º 478/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores, adiante designada LTC), nos seguinte termos:
«A., recorrente nos autos à margem referenciados, não se conformando com o acórdão proferido, vem dele interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o que faz nos termos do artigo 70.º n.° 1 al. b) da Lei do Tribunal Constitucional».
2. Ocorrida mudança de relator, por o primitivo relator ter cessado funções neste Tribunal, foi proferido convite ao aperfeiçoamento do requerimento de interposição do recurso.
Em resposta, veio o recorrente dizer o seguinte:
«Nos autos supra referenciados vem o recorrente A., aperfeiçoar o seu requerimento de interposição de recurso, o
O recorrente não se conformando com o douto acórdão do STJ de 19 de Maio transacto vem dele interpor recurso nos termos do disposto no art.° 70.º n.°1 al. b) da LTC.
O recurso vem interposto da interpretação que se extraiu no acórdão recorrido do artigo 40.° alínea d) do Código de Processo Penal no sentido de que o Juiz que tenha participado na deliberação de acórdão que conheceu do mérito da causa em recurso, mas declarado nulo por inobservância de formalismos processuais, não fica impedido para a prolação de novo acórdão destinado a conhecer do mérito da causa, por se entender que tal interpretação é inconstitucional por violação do disposto os artigos 1.°, 2.°, 8.°, 16.°, 32.° n.°1 e 2 e 204.° da Constituição da República Portuguesa e 6.°, n.°1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
A questão de constitucionalidade foi suscitada na motivação e conclusões de recurso para o S.T.J. que versou sobre o impedimento dos Srs. Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães para a decisão do recurso para esse Tribunal interposto.
Termos em que se requer seja recebido o recurso, seguindo-se os demais termos.»
3. O recorrente apresentou alegações onde conclui o seguinte:
«1.ª O art.° 40.° do Código de Processo Penal na versão que lhe foi dada pela Lei 48/07 ampliou o âmbito de aplicação do instituto do impedimento, uma vez que, na redacção anterior, o juiz só estaria impedido de intervir em recurso de decisão que tivesse proferido (como juiz singular ou presidente do Colectivo, se tivesse posteriormente sido colocado no Tribunal da Relação ou no STJ) ou em que tivesse participado (como “asa” em Tribunal Colectivo, se tivesse posteriormente sido colocado no Tribunal da Relação ou no STJ).
2.ª Na versão actual, a norma em causa, no plano do direito ordinário, aplica-se a qualquer juiz que tenha participado em julgamento anterior ou em decisão de recurso anterior, independentemente de ter sido em fase anterior do processo ou não.
3.ª Quer isto dizer que se o julgamento é anulado, independentemente do motivo que subjaz a tal anulação e de qual é o Tribunal que anula a decisão, o juiz fica impedido de intervir em novo julgamento.
4.ª Assim, o legislador quis alargar o âmbito de aplicação de tal norma, por forma a que esta se conformasse com os comandos constitucionais dos art.°s 2.°, 8.°, 16.°, 32.°, n.° 1 e 2, 202.° n.°1 e 2 e 203.° da Constituição, por violação do direito a um processo equitativo, do princípio da independência e imparcialidade dos tribunais, do princípio da presunção da inocência e dos direitos de defesa e do recurso.
5.ª Com efeito, não se pode interpretar a al. d) do art.° 40.º do Código de Processo Penal como se se reportasse apenas ao juiz que interveio em decisão de recurso anterior interposto no mesmo processo.
6.ª Essa é uma visão redutora e inconstitucional do princípio da imparcialidade dos juízes, porquanto a questão da imparcialidade do juiz coloca-se com tanta mais acuidade, quanto maior é a intensidade da sua participação no processo, conhecimento da causa e julgamento prévio de culpabilidade.
7.ª Ora, no caso dos autos o Juiz Desembargador Relator conheceu do mérito do recurso julgando o mesmo totalmente improcedente, no entanto, tendo em conta que o Tribunal da Relação não efectuou a audiência de recurso requerida, tal decisão foi declarada nula, pelo que se encontra impedido de participar em novo julgamento e nova decisão do recurso.
8.ª Aos “olhos” do cidadão comum e do recorrente, objectivamente, os juízes que julgaram o recurso interposto, sem a realização da audiência, voltá-lo-ão a julgar da mesma forma. Isto porque, foi realizado um juízo sobre os factos consubstanciadores da prática do crime, sobre o grau da culpa e, ao confirmar na integra a sentença prolatada em primeira instância, sobre as exigências de prevenção que ao caso se fazem sentir, ficando com uma convicção de tal modo arreigada quanto à sua culpabilidade que, objectivamente — e sem prejuízo da independência interior que os magistrados sejam capazes de preservar —, fica inexoravelmente comprometida a independência e imparcialidade desses magistrados no novo julgamento do mesmo recurso.
9.ª A imparcialidade objectiva, como exigência específica de uma verdadeira decisão judicial, define-se, por via de regra, como ausência de qualquer prejuízo ou preconceito em relação à matéria a decidir ou às pessoas afectadas pela decisão, pelo que não está, de modo nenhum em causa, a imparcialidade subjectiva do julgador que importava o conhecimento do seu pensamento no seu foro íntimo nas circunstâncias dadas e que, aliás, se presume até prova em contrário, mas uma objectividade que a afirmação da Justiça reclama.
10.ª Neste sentido, como refere Ireneu Barreto (Notas para um processo equitativo, análise do artigo 6.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, à luz da jurisprudência da Comissão e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, in Documentação e Direito Comparado, n.°s 49-50, pp. 114 e 115) — “esta garantia é insuficiente; necessita-se de uma imparcialidade objectiva que dissipe todas as dúvidas ou reservas, porquanto mesmo as aparências podem ter importância de acordo com o adágio do direito inglês justice must not only be done; it must also be seen to be done.
11.ª Acresce que, a decisão a tomar, em novo acórdão, será já a decisão final do recurso — por no caso não caber recurso para o STJ - e não qualquer decisão interlocutória, ou seja, não é, como se diz no acórdão n.° 423/00 do TC uma intervenção do juiz no inquérito, “numa fase bastante embrionária do processo”, em que “carece ostensivamente de sentido sustentar que o juiz formulou logo aí uma convicção segura sobre a culpabilidade da arguida”, pelo que não permite “que se formule uma dúvida séria sobre as suas condições de imparcialidade e isenção ou a gerar uma desconfiança geral sobre essa mesma imparcialidade e independência”. Trata-se aqui de uma tomada de posição sobre toda a matéria de facto e de direito constante do processo.
12.ª A imparcialidade do juiz é uma exigência do processo justo, mas também um direito dos cidadãos enquanto destinatários da justiça e os cidadãos temeriam pela parcialidade do juiz no caso de ter julgado um determinado arguido e, por qualquer razão, tivesse de o julgar novamente pelos mesmos factos, enquadramento jurídico e circunstancialismo.
13.ª Como dizem Jorge Miranda e Rui Medeiros na sua Constituição Portuguesa Anotada, corolário do princípio da separação de poderes, a independência dos tribunais constitui uma exigência indeclinável do Estado de Direito acolhido constitucionalmente (cfr. expressamente no sentido de que sem a independência dos tribunais a existência do Estado de Direito sairia posta em crise, Acórdão do TC no 518/00. —cfr. Constituição Portuguesa Anotada de Jorge Miranda e Rui Medeiros, tomo III, pág. 37.
14.ª Nessa sequência, dizem-nos ainda Jorge Miranda e Rui Medeiros, citando Castanheira Neves, “a independência é — deve ser — o status essencial de um verdadeiro tribunal e de um autêntico juiz, pois só no pressuposto dela e através dela a intenção à verdade e à justiça que é estruturalmente inerente à actividade
O dos tribunais — de cada tribunal — é susceptível de ser alcançada. Só no pressuposto dela e através dela existe a garantia de que a sentença judicial pode valer como emanação do direito e não simplesmente como acto decisionista do Estado. Daí que a al. m) do art.° 288.° configure a independência dos tribunais como limite material de revisão constitucional.”
15.ª Aliás, a independência é pedra basilar dos tribunais no plano jurídico constitucional português, porquanto “Do art.° 203.° resulta outrossim, que, “para que determinado órgão possa ser qualificado como tribunal não basta, nem pode bastar que haja sido cometida uma competência materialmente incluída na função jurisdicional” (Acs. N° 71/84 e 104/85), sendo fundamental para a sua adequada qualificação como tribunal a característica da independência como se lê no acórdão n.° 171/92 “há que concluir que os tribunais hão-de ser visualizados como sendo só aqueles órgãos de soberania que, exercendo funções jurisdicionais sejam suportados por juízes que desfrutem totalmente da independência funcional e estatutária” — Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda, tomo III, pag. 40.
16.ª Por outro lado, independência e imparcialidade são também indissociáveis do órgão de soberania tribunal, porquanto essa exigência dimana do direito de acesso aos tribunais, do direito a um processo equitativo e do princípio das garantias de defesa (cfr. o art.° 10.º da DUDH, 14.º do PIDCP e 6.° da CEDH).
17.ª Pelo exposto, sendo Portugal uma República soberana baseada na vontade popular, sendo um Estado de Direito Democrático não se pode compadecer com a visão de que um juiz pode julgar a mesma causa duas vezes.
18.ª Daí que se entenda que a interpretação da al. d) do art.° 40.° do Código de Processo Penal no sentido de que tendo participado um juiz em julgamento de recurso, vindo a proferir acórdão confirmando a sentença recorrida conhecendo do mérito desse mesmo recurso, sendo julgado totalmente nulo tal acórdão, pode intervir novamente no julgamento do mesmo recurso, é inconstitucional por violação dos artigos 1.º, 2.°, 8.°, 16.°, 32.°, n.° 1 e 2, 202.° n.°1 e 2 e 203.° da Constituição, por violação do direito a um processo equitativo, do princípio da independência e imparcialidade dos tribunais, do princípio da presunção da inocência e dos direitos de defesa e do recurso e ainda o art.° 6.° da CEDH.
Termos em que deve ser julgada inconstitucional a interpretação da al. d) do art° 40° do Código de Processo Penal no sentido de que tendo participado um juiz em julgamento de recurso, vindo a proferir acórdão confirmando a sentença recorrida conhecendo do mérito desse mesmo recurso, sendo julgado totalmente nulo tal acórdão, pode intervir novamente no julgamento do mesmo recurso, é inconstitucional por violação dos artigos 1.0, 2.°, 8°, 16°, 32.°, n.° 1 e 2, 202.° n.°1 e 2 e 203.° da Constituição, por violação do direito a um processo equitativo, do princípio da independência e imparcialidade dos tribunais, do princípio da presunção da inocência e dos direitos de defesa e do recurso e ainda o art.° 6.° da CEDH, ordenando-se que as instâncias se conformem com tal juízo de inconstitucionalidade, por só assim se fazer
JUSTIÇA! (…)»
4. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional contra-alegou, concluindo o seguinte:
«1.º
Em conferência foi, pela Relação, proferido Acórdão que julgou improcedente o recurso interposto pelo arguido da decisão condenatória, proferida em primeira instância.
2.°
Arguida a sua nulidade, consistente em o recurso ter sido julgado em conferência quando, nos termos do artigo 411.°, n.° 5, do CPP, tinha sido requerida a realização de audiência, foi, em conferência, integrada por um juiz que participara na conferência anterior, deferida a pretensão, declarando-se inválido o acórdão anteriormente proferido.
3.º
Nestas circunstâncias, a interpretação do artigo 40.°, alínea d), do CPP, que considera que o juiz que participe na conferência que proferiu acórdão a negar provimento ao recurso (n.° 1), não está impedido de participar na audiência que irá julgar esse mesmo recurso, não é inconstitucional.
4.º
Termos em que deverá negar-se provimento ao recurso.»
5. Dos autos emergem os seguintes elementos, relevantes para a presente decisão:
- Em primeira instância o arguido A. foi condenado pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 90 dias de prisão substituída pelo mesmo número de dias de multa.
- Desta sentença o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães.
- Em conferência, composta pelos Juízes Desembargadores Anselmo Lopes (Relator) e António Sobrinho, o recurso foi julgado improcedente (acórdão de 17.08.2009, constante de fls. 24/40 dos autos).
- Inconformado, veio o arguido arguir a nulidade deste acórdão, por tal decisão ter sido proferida em conferência, quando requereu que o recurso fosse julgado em audiência.
- Em novo acórdão, subscrito pelos Juízes Desembargadores Anselmo Lopes e Nazaré Saraiva, julgou-se verificada a invocada nulidade, ordenando-se a conclusão dos autos ao Presidente da Secção (acórdão de 12.10.2009, a fls. 46/48 dos autos).
- Notificado desta decisão, veio o arguido invocar o impedimento do Juízes Desembargadores Anselmo Lopes e Nazaré Saraiva, por estarem impedidos de intervir no julgamento, entretanto agendado, por terem participado no julgamento do recurso que veio depois a ser declarado nulo.
- Por despachos, constantes de fls. 53/54 e 56 dos autos, foi decidido não reconhecer os impedimentos deduzidos.
- Inconformado com estes despachos, o arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando, além do mais, a inconstitucionalidade da norma do artigo 40.º, alínea d), do CPP, quando interpretada no sentido de que o juiz que tenha participado em acórdão que conheceu do mérito da causa, mas declarado nulo por inobservância de formalismo processual, não fica impedido na prolação de novo acórdão destinado a conhecer do mérito da causa.
- Por acórdão, ora recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
6. A alínea d) do artigo 40.º do CPP prevê que «nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo» em que tiver «proferido ou participado em decisão de recurso ou pedido de revisão anteriores».
O presente recurso tem por objecto a constitucionalidade desta norma, quando interpretada no sentido de que o juiz que tenha participado em acórdão que conheceu do mérito da causa, mas declarado nulo por inobservância de formalismos processuais, não fica impedido na prolação de um novo acórdão destinado a conhecer do mérito da causa.
Estava em causa a intervenção de um juiz (como se salienta na decisão sob recurso, tratava-se apenas da intervenção do Desembargador Anselmo Lopes, uma vez que a Desembargadora Nazaré Saraiva não interveio no acórdão de 17.08.2009), que relatou o acórdão, proferido em conferência, em 17.08.2009, que negou provimento ao recurso, o qual veio depois a ser declarado nulo, por acórdão, igualmente por ele relatado e o seu eventual impedimento para participar no julgamento do recurso a realizar na sequência dessa invalidação.
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, agora recorrido, entendeu que a situação descrita não se enquadra no impedimento previsto na alínea d) do artigo 40.º do CPP, designadamente, porque este impedimento – como todos os demais – tem pressuposto que o juiz tenha intervindo em “fase anterior do processo” e, no caso dos autos, “a fase processual é a mesma”, além de que «ao acto de anulação está subjacente motivação de índole meramente processual».
Não cabendo a este Tribunal pronunciar-se sobre a correcção desta interpretação do direito infra-constitucional, importa apenas aferir se a mesma é compatível com a Constituição.
Sustenta o recorrente que a interpretação em causa viola o direito a um processo equitativo, o princípio da independência e imparcialidade dos tribunais, o princípio da presunção da inocência e os direitos de defesa e do recurso (artigos 1.º, 2.º, 8.º, 16.º, 32.º, n.º 1 e 2, 202.º, n.º 1 e 2, e 203.º, da Constituição) e o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Embora a propósito de casos não exactamente idênticos ao presente, o Tribunal Constitucional já várias vezes se pronunciou sobre diversas dimensões normativas do artigo 40.º do CPP.
Atento o circunstancialismo do presente caso, pouco releva aqui a jurisprudência do Tribunal sobre casos em que estava em causa a própria estrutura acusatória do processo penal, por a intervenção do juiz ter ocorrido, inicialmente, numa fase diferente do processo (nomeadamente, numa fase preliminar, como a fase do inquérito), e questionar-se o seu impedimento para intervir no posterior julgamento (cfr., por todos, o Acórdão n.º 186/98 – que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 40.º do Código de Processo Penal, na parte em que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido – e que conduziu a alterações da redacção do próprio preceito).
Importa, essencialmente, relembrar a jurisprudência deste Tribunal que, a propósito de outras dimensões normativas do artigo 40.º do CPP, versa sobre a possibilidade de um juiz, que participou em julgamento ou decisão que apreciou o mérito da causa e posteriormente foi declarada nula ou anulada, vir a intervir no julgamento ou decisão que houver que realizar na sequência dessa invalidação.
Destacam-se, a este respeito os seguintes arestos:
No Acórdão n.º 399/2003, o Tribunal não julgou inconstitucionais as normas dos artigos 40.º e 43.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, na interpretação que não abrange o impedimento do juiz de julgamento por ter participado em anterior julgamento no mesmo processo, o qual foi anulado por não ter sido efectuada a gravação da prova prestada oralmente em audiência.
No Acórdão n.º 393/2004, decidiu-se não julgar inconstitucionais as normas dos n.ºs 1 e 2 do artigo 43.º do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de não constituir, por si só, motivo de recusa da intervenção de juízes em novo julgamento a sua participação em anterior julgamento, que veio a ser considerado consequentemente inválido por força da revogação, em recurso, de despacho que determinara o desentranhamento da contestação e do requerimento de produção de prova apresentados pelo arguido.
No Acórdão n.º 324/2006, julgou-se não inconstitucional a norma contida na alínea c) do n.º 1 do artigo 122.º do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de não considerar impedido de intervir na repetição do julgamento o juiz que decidiu a matéria de facto por decisão parcialmente anulada e proferiu a sentença consequentemente julgada sem efeito.
Finalmente, embora a propósito de outro preceito legal, decidiu-se no Acórdão n.º 167/2007 não julgar inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 426.º-A do Código de Processo Penal, enquanto interpretada 'no sentido de que é permitida a intervenção, no tribunal do reenvio do processo, de um dos juízes que já interviera no anterior e anulado julgamento' quando a anulação apenas teve por objectivo que se apurasse a situação económica e os encargos pessoais do arguido, de forma a ser possível tomar tais elementos em consideração para efeitos da fixação do montante da multa a aplicar.
Em todos estes arestos, como no presente caso, está em causa o impedimento de o juiz intervir em novo julgamento quando participou no anterior julgamento que, tendo conhecido do mérito da causa, veio a ser considerado inválido por razões distintas da apreciação desse mérito. Em todos estes casos – em que a anulação do primitivo julgamento era devida a falta de gravação da prova na audiência (Acórdão n.º 399/2003), revogação do despacho que desentranhara a contestação e o requerimento de prova do arguido (Acórdão n.º 393/2004), anulação parcial da decisão sobre a matéria de facto (Acórdão n.º 324/2006) e necessidade de apuramento da situação económica e encargos pessoais do arguido (Acórdão n.º 167/2007) – o Tribunal considerou que o entendimento segundo o qual o juiz que participara no primeiro julgamento não estava impedido de participar no novo julgamento não violava a Constituição.
No caso dos autos, a anulação do acórdão proferido em 17.08.2009, que julgou improcedente o recurso do arguido, ficou igualmente a dever-se exclusivamente ao desrespeito de regras processuais (o acórdão fora proferido em conferência, quando o arguido havia requerido que o recurso fosse julgado em audiência).
Salientou-se, a este respeito, no Acórdão n.º 393/2004: primeiro, que na aferição da garantia de imparcialidade, quando esteja em causa a intervenção em julgamento de juiz que interveio em anteriores fases do mesmo processo, há que atender ao tipo e frequência dessa intervenção e ao momento em que, dentro de cada fase, ela ocorreu: é da conjugação destes factores que há de resultar o juízo sobre a isenção, imparcialidade e objectividade do juiz, enquanto julgador; segundo, que no que concerne à anulação de julgamentos, há que distinguir entre as anulações decorrentes de vícios intrínsecos quanto ao conteúdo da decisão tomada sobre a matéria de facto ou de erros ostensivos na valoração da prova e as anulações reflexamente determinadas por via da anulação de outros actos em consequência do cometimento de nulidades processuais decorrentes da tramitação da causa. E concluiu-se que nestas últimas situações, não constitui forçosamente violação da garantia da imparcialidade do julgador a participação no novo julgamento de juízes que integraram o colectivo que efectuou o julgamento anulado.
A fundamentação dos arestos citados – para cuja versão integral remetemos e a que aderimos – deve ser reiterada no caso em apreço.
Acresce que, como salienta o Ministério Público, aqui está em causa a participação de juiz, que anteriormente interveio no acórdão proferido em conferência, na audiência, que, segundo o disposto no artigo 429.º do CPP, é composta pelo presidente da secção, pelo relator e por um juiz-adjunto (n.º 1) e onde, «sempre que possível, mantêm-se para a audiência juízes que tiverem intervindo na conferência». Precisamente a propósito da possibilidade de um Juiz Conselheiro do Tribunal Constitucional, que proferiu decisão sumária, participar na conferência que vai apreciar a reclamação dessa decisão, escreveu-se no Acórdão n.º 20/2007:
«É incontestável que a imparcialidade dos juízes é um princípio constitucional, quer se conceba como uma dimensão da independência dos tribunais (artigo 203.º da CRP), quer como elemento da garantia do “processo equitativo” (n.º 4 do artigo 20.º da CRP). Importa que o juiz que julga o faça com isenção e imparcialidade e, bem assim, que o seu julgamento, ou o julgamento para que contribui, surja aos olhos do público como um julgamento objectivo e imparcial. E também é certo que a intervenção decisória sucessiva do mesmo juiz integra o universo das hipóteses abstractamente susceptíveis de lesar esse princípio e, por isso, de configurar um impedimento objectivo.
(…)
Não há objectivamente razão para considerar que o relator não procede, na preparação dessa decisão e na subsequente deliberação, com a mesma disposição de aplicar o direito ao caso concreto que teria se estivesse a exercer a sua competência de apresentar um projecto para decisão primária pelo órgão colegial. Nem que os demais juízes que intervêm deixem de possuir a disposição ou capacidade necessárias para proceder a um exame autónomo das razões aduzidas pelo reclamante. Como todos os pedidos de reponderação, aí onde as disposições processuais a admitam (e note-se a tendência para o alargamento dessa via de realização da justiça – n.º 2, do artigo 669.º do CPC), a reclamação para a conferência repousa no pressuposto, indispensável ao funcionamento dos tribunais num Estado de Direito em que o estatuto dos juízes está dotado das necessárias garantias de independência e organização, de que o juiz possui em permanência a humildade e fortaleza de ânimo necessárias para examinar novos argumentos ou argumentos apresentados de modo mais convincente. Pode até dizer-se que, por esta via, o interessado sai beneficiado porque dispõe de uma oportunidade mais de convencer a formação de julgamento das suas razões. Aliás, no caso é suficiente que as razões do reclamante convençam um dos juízes que integram a conferência para intervir o pleno da secção.»
As mesmas razões se devem aplicar mutatis mutandis ao caso em apreço.
III - Decisão
Pelo exposto, decide-se:
Não julgar inconstitucional a norma da alínea d) do artigo 40.º do Código de Processo Penal (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, e alterado, por último, pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, rectificada, por último, pela Declaração de Rectificação n.º 105/2007, de 9 de Novembro), quando interpretada no sentido de que o juiz que tenha participado em acórdão que conheceu do mérito do recurso, mas declarado nulo por inobservância de regra processual, não fica impedido de intervir na audiência destinada a julgar o mérito desse recurso.
Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 22 de Março de 2011.- Joaquim de Sousa Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.
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