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Processo n.º 204/2010
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., S.A., impugnou judicialmente a liquidação do IRC relativa ao ano de 2008, no que respeita à tributação autónoma incidente sobre as despesas de representação e encargos com viaturas ligeiras de passageiros, invocando a inconstitucionalidade da norma do artigo 5.º da Lei n.° 64/2008, de 5 de Dezembro, por violação do princípio da não retroactividade da lei fiscal consagrado no artigo 103.°, n.º 3, da Constituição da República e ainda por violação do princípio da protecção da confiança, na medida em que essa disposição determinou que o agravamento da taxa de 5% para 10% sobre essas despesas e encargos, resultante da nova redacção dada ao artigo 8l.°, n.º 3, alínea a), do CIRC, produzisse efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2008.
Por sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga foi declarada materialmente inconstitucional a norma do artigo 5.º da Lei n.° 64/2008, de 5 de Dezembro, na parte em que faz retroagir a 1 de Janeiro de 2008 a aplicação do novo regime resultante do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do CIRC, por violação do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, e, em consequência, anulada parcialmente a liquidação impugnada e condenada a Administração Tributária a reembolsar a impugnante da diferença entre o montante pago e o que resulta da tributação à taxa de 5%.
Tendo havido recusa de aplicação de norma, com fundamento em inconstitucionalidade, o magistrado do Ministério Público interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional.
Nada tendo obstado ao prosseguimento do recurso, o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional apresentou alegações em que formulou as seguintes conclusões:
1. A lei fundamental, na Quarta revisão constitucional, operada pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro) estabeleceu a seguinte proibição:
“Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos (…) que tenham natureza retroactiva (…)” (CRP, art. 103.º, n.º 3).
2. Segundo o precedente jurisprudencial relevante, a noção de “retroactividade” ali mencionada é em sentido “próprio” ou “autêntico”, pois “proíbe-se a aplicação de uma lei fiscal nova, desvantajosa, a um facto tributário ocorrido no âmbito de vigência da lei fiscal revogada (a lei antiga) e mais favorável” (Acórdão do TC, n.º 128/2009, Proc.º n.º 772/2007, de 12 de Março).
3. A Lei n.º 55-B/2004, de 30 de Dezembro (Orçamento de Estado para 2005) conferiu a seguinte redacção art. 81.º, n.º 3, al. a), do CIRC:
“São tributados autonomamente, à taxa de 5 %, os encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e os relacionados com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, motos ou motociclos, efectuados ou suportados por sujeitos passivos não isentos subjectivamente e que exerçam, a título principal, actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola” (art. 29.º).
4. Ulteriormente, a Lei n.º 64/2008, de 5 de Dezembro, alterou a redacção da dita disposição fiscal nos seguintes termos:
“3 — São tributados autonomamente, excluindo os veículos movidos exclusivamente a energia eléctrica:
a) À taxa de 10 %, os encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e os relacionados com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, motos ou motociclos, efectuados ou suportados por sujeitos passivos não isentos subjectivamente e que exerçam, a título principal, actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola” (art. 1.º-A).
5. A dita lei entregou em vigor em 6 de Dezembro de 2008 (art. 6.º) mas, nesta parte, determinou a produção dos seus efeitos desde 1 de Janeiro de 2008” (art. 5.º, n.º 1).
6. A lei nova (redacção da Lei n.º 64/2008, cit.) agravou em 5% a taxa de tributação da lei antiga (Lei n.º 55-B/2004, cit.), relativamente aos mesmos factos tributários (no caso, encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e a viaturas ligeiras de passageiros).
7. A lei nova instituiu, pois, nesta sede de IRC, um “conteúdo jurídico desfavorável”, mercê do agravamento em 5% da taxa aplicável ao mesmo “facto tributário” previsto na lei antiga, sendo que a taxa é um “elemento essencial” da noção de imposto.
8. Por outra parte, o acto aplicativo da lei acatou a prescrição da lei nova, de modo que a autoliquidação foi feita com base na taxa de 10% (fls. 82, n.ºs 8 e 9, e 131, n.ºs 2 e 4).
9. Portanto, o art. 5.º da Lei n.º 64/2008, cit., na parte em que faz retroagir a 1 de Janeiro de 2008 a alteração ao artigo 81.º, n.º 3, al. a), do CIRC, consagrada no artigo 1.º-A do aludido diploma legal, infringe a proibição constitucional em matéria de impostos com natureza retroactiva e, portanto, deve ser ajuizado como materialmente inconstitucional (CRP, arts. 103.º, n.º 3, e 277.º, n.º 1).
Não houve contra-alegações.
Cabe apreciar e decidir.
II. Fundamentação
2. O presente recurso de constitucionalidade prende-se com a possível violação do princípio da proibição da retroactividade fiscal em resultado da aplicação de um agravamento da taxa de tributação, operada pela nova redacção dada pela Lei n.º 64/2008, de 5 de Dezembro, ao artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do CIRC, a factos tributários já ocorridos em momento anterior à publicação e entrada em vigor da lei.
O artigo 81.º do CIRC, sob a epígrafe «Taxas de tributação autónoma», na redacção dada pela Lei nº 55-B/2004, de 30 de Dezembro, entretanto alterada pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, determinava, na parte relevante, o seguinte:
1 — As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como custo nos termos do artigo 23.º
2 – A taxa referida no número anterior é elevada para 70% nos casos em que tais despesas sejam efectuadas por sujeitos passivos total ou parcialmente isentos, ou que não exerçam, a título principal, actividades de natureza comercial, industrial ou agrícola.
3 - São tributados autonomamente, à taxa de 5% os encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e os relacionados com viaturas ligeiras ou mistas, motos ou motociclos, efectuados ou suportados por sujeitos passivos não isentos subjectivamente e que exerçam, a título principal, actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola.
4 — São tributados autonomamente, à taxa de 15 %, os encargos dedutíveis respeitantes a viaturas ligeiras de passageiros ou mistas cujo custo de aquisição seja superior a € 40 000, quando suportados pelos sujeitos passivos mencionados no número anterior que apresentem prejuízos fiscais nos dois exercícios anteriores àquele a que os referidos encargos digam respeito.
(…)
Por efeito da redacção introduzida pela Lei n.º 64/2008, de 5 de Dezembro, os n.ºs 3 e 4 do mesmo preceito passaram a dispor do seguinte modo:
3 - São tributados autonomamente, excluindo os veículos movidos exclusivamente a energia eléctrica:
a) À taxa de 10 %, os encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e os relacionados com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, motos ou motociclos, efectuados ou suportados por sujeitos passivos não isentos subjectivamente e que exerçam, a título principal, actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola;
b) À taxa de 5 %, os encargos dedutíveis, suportados pelos sujeitos passivos mencionados no número anterior, respeitantes a viaturas ligeiras de passageiros ou mistas cujos níveis homologados de emissão de CO2 sejam inferiores a 120 g/km, no caso de serem movidos a gasolina, e inferiores a 90 g/km, no caso de serem movidos a gasóleo, desde que, em ambos os casos, tenha sido emitido certificado de conformidade.
4 — São tributados autonomamente, à taxa de 20 %, os encargos dedutíveis, suportados pelos sujeitos passivos mencionados no número anterior, respeitantes a viaturas ligeiras de passageiros ou mistas cujo custo de aquisição seja superior a € 40 000, quando os sujeitos passivos apresentem prejuízos fiscais nos dois exercícios anteriores àquele a que os referidos encargos digam respeito.
A Lei n.º 64/2008 entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, conforme prevê o seu artigo 6º, mas a produção de efeitos retroage a 1 de Janeiro de 2008, em função do que estabelece o artigo 5º do mesmo diploma.
Deste modo, a Lei n.º 64/2008, através da nova redacção dada à alínea a) do n.º 3 do artigo 81.º do CIRC, operou um agravamento da taxa de tributação aplicável aos encargos mencionados no anterior n.º 3 dessa disposição, que se torna aplicável, por virtude da retroacção de efeitos, aos encargos e despesas já realizados pelos contribuintes no decurso do ano de 2008 e até à data em que a lei iniciou a sua vigência.
Neste contexto, o tribunal recorrido considerou que houve uma directa violação do princípio da proibição da retroactividade fiscal consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, que dispõe: «[n]inguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei».
Ainda recentemente, porém, o Tribunal Constitucional, em plenário, e na linha de anterior jurisprudência, firmou o entendimento segundo o qual legislador da revisão constitucional de 1997, que introduziu a actual redacção do artigo 103.º, n.º 3, apenas pretendeu consagrar a proibição da retroactividade autêntica, ou própria, da lei fiscal, abrangendo apenas os casos em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga, excluindo do seu âmbito aplicativo as situações de retrospectividade ou de retroactividade imprópria, ou seja, aquelas situações em que a lei é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda perduram no presente, como sucede quando a lei é aprovada até ao final do ano a que corresponde o imposto (acórdão n.º 399/2010).
Em necessária decorrência, o Tribunal, em situação similar à dos presentes autos, não declarou a inconstitucionalidade de normas fiscais que produziram um agravamento da posição fiscal dos contribuintes em relação a factos tributários que não ocorreram totalmente no domínio da lei antiga e continuam a formar-se, ainda no decurso do mesmo ano fiscal, na vigência da nova lei, situação que se considerou ser correspondente à de retroactividade inautêntica, não coberta pela regra do artigo 103.º, n.º 3.
Assim, e em aplicação da doutrina do mencionado acórdão n.º 399/2010, que é inteiramente transponível para o caso vertente, entende-se não ocorrer a invocada inconstitucionalidade material por violação do disposto no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
3. Não havendo lugar à aplicação do princípio contido no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição, nada obsta, como se explicitou no acórdão n.º 128/2009, que a questão seja ainda analisada à luz do princípio da protecção da confiança.
Este aresto, seguindo jurisprudência anterior, que o citado acórdão 399/2010 também acolheu, referindo-se aos limites do princípio da protecção da confiança na ponderação da eventual inconstitucionalidade de normas dotadas de retroactividade inautêntica, considerou ser necessário, para que esse princípio seja tutelado, que se reúnam dois pressupostos essenciais:
a) a afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda;
b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).
Os dois critérios enunciados são, no fundo, reconduzíveis a quatro diferentes requisitos ou “testes”. Para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa (neste sentido, o acórdão n.º 128/2009).
Este princípio postula, pois, uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da actuação do Estado.
Não há, no entanto, como igualmente se afirmou, «um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou a manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados». Ou seja, o legislador não está impedido de alterar o sistema legal afectando relações jurídicas já constituídas e que ainda subsistam no momento em que é emitida a nova regulamentação, sendo essa uma necessária decorrência da autorevisibilidade das leis. O que se impõe determinar é se poderá haver por parte dos sujeitos de direito um investimento de confiança na manutenção do regime legal.
Quanto a este aspecto da questão, a decisão recorrida, por remissão para o parecer do Ministério Público, limita-se a considerar que a norma sindicada violou as legítimas expectativas do impugnante, porquanto o agravamento da taxa de tributação ocorreu já próximo do termo do ano fiscal, quando o interessado «não só já havia efectuado as suas opções em termos de despesas e encargos em causa, mas também já nada poderia fazer para alterar as opções tomadas».
Atentando, porém, nos pressupostos ou requisitos da protecção de confiança que se deixaram já enunciados, não pode afirmar-se, desde logo, que, no caso, tenha o Estado encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade da taxa de tributação mais favorável que vinha sendo aplicada. Não existia nenhuma indicação segura que permitisse concluir que o legislador haveria de abster-se de alterar o regime legal de tributação autónoma, e, pelo contrário, a alteração do regime legal, com base em razões de interesse público, seria sempre uma possibilidade com que os contribuintes poderiam contar; e, por outro lado, não é o simples facto de a alteração legislativa produzir um agravamento da posição fiscal do contribuinte que permite considerar que essa alteração deva sempre ocorrer no início de cada ano fiscal, e não já no seu decurso.
Ou seja, não existe uma expectativa constitucionalmente tutelada no sentido de considerar que qualquer agravamento fiscal é apenas aplicável a factos tributários futuros. De outro modo, por efeito da ponderação do princípio da protecção da confiança, tornar-se-ia inoperante o entendimento formulado pelo Tribunal Constitucional quanto ao âmbito da proibição constitucional da retroactividade, implicando que sempre que ocorresse uma situação de retrospectividade ou retroactividade inautêntica haveria de julgar-se verificada a inconstitucionalidade.
4. Por outro lado, não parece sequer que o impugnante pudesse invocar ter efectuado despesas durante grande parte do ano fiscal de 2008 que já não realizaria se tivesse previsto ou fosse já do seu conhecimento que a taxa de tributação iria ser agravada.
Nos termos do artigo 23.º, n.º 1, do CIRC aceita-se como custos ou perdas do exercício os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente os encargos relativos à produção e aquisição de quaisquer bens ou serviços.
No entanto, o artigo 81.º do mesmo Código, considerando a redacção anterior à Lei n.º 64/2008, estabelecia taxas de tributação autónoma, visando designadamente, por um lado, na situação prevista nos n.ºs 1 e 2, as despesas não documentadas, que são tributadas à taxa de 50 % (sem prejuízo da sua não consideração como custo nos termos do artigo 23.º), e, por outro lado, nas situações previstas nos n.ºs 3 e 4, os encargos dedutíveis como custos, que eram tributados a 5%, em geral, e a 15% quando se tratasse de despesas relativas a viaturas ligeiras ou mistas cujo custo de aquisição seja superior a € 40 000, quando suportados por sujeitos passivos que apresentem prejuízos fiscais nos dois exercícios anteriores.
No caso dos n.ºs 1 e 2, estamos perante despesas que são incluídas na contabilidade da empresa, e podem ter sido relevantes para a formação do rendimento, mas não estão documentadas e não podem ser consideradas como custos, e que, por isso, são penalizadas com uma tributação de 50%. A lógica fiscal do regime assenta na existência de um presumível prejuízo para a Fazenda Pública, por não ser possível comprovar, por falta de documentação, se houve lugar ao pagamento do IVA ou de outros tributos que fossem devidos em relação às transacções efectuadas, ou se foram declarados para efeitos de incidência do imposto sobre o rendimento os proventos que terceiros tenham vindo a auferir através das relações comerciais mantidas com o sujeito passivo do imposto. Para além disso, a tributação autónoma, não incidindo directamente sobre um lucro, terá ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afectar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de ilicitude penal ou de menor transparência fiscal.
Por sua vez, os n.ºs 3 e 4 do artigo 81.º referem-se a encargos dedutíveis como custos para efeitos de IRC, isto é, a encargos que comprovadamente foram indispensáveis à realização dos proveitos, à luz do que estabelece o artigo 23.º, n.º 1, do CIRC, sendo a tributação prevista nesses preceitos explicada por uma intenção legislativa de incentivar as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afectem negativamente a receita fiscal.
A nova redacção dada aos n.ºs 3 e 4 do artigo 81.º pela Lei n.º 60/2008 veio reforçar esta perspectiva, diferenciando diversas situações possíveis, que são tributadas, consoante os casos, à taxa de 5%, 10% ou 20%, com o que se pretende não só desincentivar a realização de despesa como estimular as empresas a optarem por soluções que sejam mais vantajosas do ponto de vista do interesse público. Assim se compreende a exclusão da tributação em relação à aquisição de veículos exclusivamente movidos a energia eléctrica, como consta da 2.ª parte do corpo do n.º 3, e a previsão de um tratamento mais favorável para encargos suportados com a aquisição de veículos menos poluentes (alínea b) do n.º 3), e um tratamento mais gravoso para as despesas mais avultadas, a que se refere o n.º 4 deste artigo 81.º.
Neste contexto, estando em causa encargos que, por natureza, são indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos que estão sujeitos a imposto, não é aceitável a alegação de que o impugnante teria incorrido em despesas, na perspectiva da continuidade do regime legal anteriormente existente, que já não efectuaria caso pudesse contar entretanto com um agravamento da taxa de tributação.
Se essas despesas eram efectivamente necessárias ao desenvolvimento da actividade da empresa e à obtenção do lucro, elas não deixariam de ser realizadas mesmo que fosse já conhecida ou previsível uma alteração da taxa de tributação aplicável; além de que o regime legal, mesmo antes da entrada em vigor da Lei n.º 60/2008, tinha já em vista estabelecer limitações para os encargos de exploração que pudessem figurar como custos ou perdas de exercício.
Certo é que a nova redacção do nº 3 do artigo 81.º do CIRC flexibiliza o regime legal, dando oportunidade aos contribuintes de adoptarem decisões na gestão do parque automóvel que permita a diminuição da carga fiscal, por via do enquadramento em qualquer das situações previstas na 2ª parte do proémio do n.º 3 e na sua alínea b), que contemplam critérios mais favoráveis de tributação. E tendo havido uma retroacção de efeitos com referência a 1 de Janeiro 2008, os interessados, quando entrou em vigor a nova lei, não puderam já beneficiar dessas novas vantagens fiscais, em relação a todo o período de tempo entretanto já decorrido.
No entanto, a expectativa jurídica que, à luz do princípio da protecção da confiança, poderia justificar a inconstitucionalidade da norma sob juízo, não é a reportada ao novo regime legal, mas antes a que resultaria da continuidade do regime precedente. E, nesse plano, como vimos, não pode considerar-se como um investimento de confiança, juridicamente relevante, a realização de despesas que, por serem indispensáveis à própria actividade económica da empresa, sempre teriam sido, normalmente, efectuadas.
Nestes termos, por inverificação de dois dos requisitos da protecção da confiança, não há motivo para sustentar ser materialmente inconstitucional a falada norma do artigo 5.º da Lei n.º 68/2008, de 5 de Dezembro.
III. Decisão
Termos em que se decide conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida para ser reformada em conformidade com o juízo formulado quanto à questão de constitucionalidade.
Sem custas
Lisboa, 12 de Janeiro de 2011.- Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes (vencido, conforme declaração anexa) – Gil Galvão.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido.
Não considero que a aplicação da doutrina dos Acórdãos n.ºs 188/09 e n.º 399/10 permita concluir pela não inconstitucionalidade da norma em apreciação. Embora formalmente inserida no CIRC e o montante que permita arrecadar seja liquidado no seu âmbito e a título de IRC, a norma em causa respeita a uma imposição fiscal que é materialmente distinta da tributação nesta cédula, pelo que não podem ser invocados argumentos semelhantes àqueles que naquele segundo acórdão foram mobilizados no sentido de não se configurar um caso de retroactividade proibida pelo n.º 3 do artigo 103.º da Constituição. Com efeito, estamos perante uma tributação autónoma, como diz a própria letra do preceito. E isso faz toda a diferença. Não se trata de tributar um rendimento no fim do período tributário, mas determinado tipo de despesas em si mesmas, pelas compreensíveis razões de política fiscal que o acórdão aponta. A manifestação de riqueza sobre que vai incidir essa parcela da tributação (o facto revelador de capacidade tributária que se pretende alcançar) é a simples realização dessa despesa, num determinado momento. Cada despesa é, para este efeito, um facto tributário autónomo, a que o contribuinte fica sujeito, venha ou não a ter rendimento tributável em IRC no fim do período. Deste modo, o agravamento da taxa vai agravar a situação do sujeito passivo num momento em que o facto gerador é coisa do passado (as despesas de representação foram pagas ao seu beneficiários, os encargos com viaturas ligeiras foram suportados ou contraídos, etc.). É certo que esta parcela de imposto só vem a ser liquidada num momento posterior e conjuntamente com o IRC. Porém, a determinação do valor global da matéria colectável sujeita à incidência das taxas de tributação autónoma no fim do período tributário é o mero somatório das diversas despesas dessa natureza, a que se aplica a taxa agora agravada. Essa operação de apuramento do montante tributável a este título não espelha um facto tributário de formação sucessiva, mas a mera agregação dos valores sobre que incide a alíquota do imposto.
Assim, apesar de continuar a entender que só a retroactividade autêntica é qua tale (i.e. sem ponderações) proibida pelo n.º 3 do artigo 103.º da Constituição e que nos impostos sobre o rendimento não há retroactividade autêntica quando o agravamento das taxas ocorre antes do fim do período de tributação, considero que o caso se afasta totalmente do tipo de situação analisada no Acórdão n.º 399/10. O facto gerador de imposto em IRC determina-se por relação ao fim do período de tributação (n.º 9 do artigo 8.º do CIRC), mas a tributação autónoma agora em causa não comunga desse pressuposto, porque não atinge o rendimento (artigo 1.º do CIRC) mas a despesa enquanto tal.
Deste modo, votei no sentido da inconstitucionalidade da norma do artigo 5, da Lei n.º 64/2008, de 5 de Dezembro, na parte em que faz retroagir a 1 de Janeiro de 2008 a alteração do artigo 81.º, n.º 3, alínea a) do CIRC, consagrada no artigo 1.º-A do aludido diploma legal, por violação do n.º 3 do artigo 103.º da Constituição.- Vítor Gomes.
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