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Processo n.º 747/10
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O relator proferiu a seguinte decisão, nos termos do n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC):
“1. O recorrente interpôs recurso do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Outubro de 2010, mediante requerimento do seguinte teor:
«A., arguido nos autos supra identificados, tendo sido notificado do douto Ac. que indeferiu a sua pretensão, e não se conformando com ele, vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional.
O recurso é interposto ao abrigo da al. a) do nº 1 do artigo 70 da L. n.º 28/82 de 15 de Novembro na redacção dada pela Lei nº 85/89 de 7 de Setembro.
O arguido pretende ver apreciada o entendimento perfilhado pelo STJ, no que se refere à não aplicação do limite de € 7.500.00 previsto no artigo 105 do RGIT (crime de abuso de confiança fiscal) – por aplicação da L. 64-A/2008 – ao artigo 107 desse mesmo diploma (crime de abuso de confiança fiscal contra a Segurança Social), por entender que a remissão do artigo 107º para o 105º, não deve ser feita no que concerne a essa condição de punibilidade, mas tão só à moldura penal aplicável.
Sendo certo que os diversos Tribunais Intermédios (Tribunais da Relação) bem como o Tribunal Superior (STJ) têm proferido Ac. contraditórios por fazerem interpretações diferentes desses artigos supra invocados, a verdade é que existem neste momento arguidos que perderam esse estatuto processual por terem sido absolvidos, e outros que o perderam, mas apenas por terem sido condenados.
Assim, o entendimento do STJ, no douto Ac. em crise, contradiz outro do mesmo Tribunal, e mais grave do que isso, viola, no modesto entendimento do arguido, o Principio da Igualdade previsto no artigo 13º da CRP.
Na verdade, com a mesma Lei, duas interpretações ocorrem que manifestamente desigualam os cidadãos, uma vez que como supra se disse, num entendimento foram absolvidos e consequentemente não viram afectados os seus direitos fundamentais, nomeadamente o Direito liberdade, e outros cidadãos estão a ser condenados e na sequencia da mesma irão ter de cumprir penas privativas da liberdade.
Ora, esta situação não cumpre o artigo 13 nº 1 da CRP, que refere “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a Lei.”, acabando por violar também os direitos correlacionados com este, nomeadamente o direito à liberdade.
Outro entendimento poderia ocorrer se porventura a interpretação da Lei ocorresse para o futuro no sentido de que, os eventuais procedimentos que a infringissem, a partir daquele momento, vissem-na aplicada segundo essa interpretação. Agora, a interpretação de que a Lei se aplica a casos já ocorridos é que manifestamente desiguala os cidadãos e viola o artigo 13º da CRP.
O recorrente por entender ocorrer violação do artigo 13 da CRP, suscitou-a no seu recurso apresentado para o STJ no titulo “Da entrada em vigor da L. 64-A/2008 e da sua não aplicação no crime de abuso de confiança contra a segurança social (art. 107 do RGIT)” a fls 10, paragrafo 10º, constando também do pedido formulado no recurso interposto, bem como na al. X das conclusões formuladas.
De facto, decisões diferentes, com base na mesma Lei, têm sido proferidas, tendo mesmo muitos dos arguido levados a julgamento por esse mesmo crime, sido absolvidos.
Ora não se tratando de uma Lei intermédia, nem de uma lei repristinada, mas sim de uma interpretação de uma Lei inalterada, terá de ser igual na sua aplicação para todos os cidadãos, até pela implicação que tem nos direitos fundamentais dos cidadãos, nomeadamente no seu direito à liberdade.
Nestes termos, requer a V. Exa. se digne admitir o presente recurso e feito o mesmo subir de imediato e com efeito suspensivo, seguindo-se os demais termos legais.»
2. O recurso não pode prosseguir.
Com efeito, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC) – é deste tipo o recurso interposto – cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões dos demais tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade. Ora, não se vislumbra no acórdão recorrido qualquer recusa de aplicação de norma.
Na verdade, o acórdão limitou-se a considerar, com exclusivos argumentos de interpretação do direito infra-consitucional, que:
“[…] tendo o arguido sido condenado pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social , não está descriminalizada a sua conduta , deixando o art.º 113 da Lei n.º 64.°-A/2008, de 31/12, que posteriormente à sua prática, alterou o RGIT, intocado o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto no art.º 107.º daquele e punível com as penas previstas no art.° 105.º, não sendo alvo de tácita revogação pelo art.º 113.º, no aspecto de assimilar o quantitativo da entrega imposto enquanto elemento objectivo do crime de abuso de confiança relativamente à Segurança Social ao correspondente de 7.500 € estabelecido para o ilícito fiscal
Nenhuma compressão excessiva de direitos, em termos de violação do princípio da igualdade em ofensa ao preceituado no art.º 13.º, da CRP, face a uma diferença justificada, como acima se fez questão de demonstrar, de tratamento jurídico entre os dois tipos legais, dispensada pelo legislador
É óbvio que este recurso não é o meio processual adequado a uniformizar jurisprudência, que obedece a um ritual específico com tradução no CPP – art.ºs 437.º e segs.
Em data recente a AR, pela emissão da Lei n.º 110/2009, de 19 de Setembro aprovando o Código do Regime Contributivo Previdencial para a Segurança Social fez questão de legislar no art.º 42 que, sem prejuízo do disposto no RGIT, a violação do disposto nos n.ºs 1 e 2, integra, consoante os casos, contra-ordenação leve ou grave, não retira campo de aplicação ao RGIT, em termos de uma não entrega não integrar crime, configurados que se mostrem os seus pressupostos à luz do RGIT, e que se não identificam, coincidindo pontualmente, com a contra-ordenação dolosa, exigindo-se adicionalmente, dissipação em prejuízo da Segurança Social.
A entrada em vigor desse diploma foi, mais tarde, diferida para um ano (com referência a 1.1 2011) pelo que a hesitação demonstrada pelo legislador num momento crucial como é a produção de efeitos jurídicos, face à oposição de todos os partidos, como excepção do que governa, bem podendo repetir-se nova dilação, face ao agravamento que representa para os seus destinatários e a dificuldades de praticabilidade, nem sequer ilumina, em termos consistentes, o pensamento do intérprete no binómio despenalização – não despenalização, devendo atender-se, e só, ao direito positivado.”
É, assim, manifesto que o recurso não cabe na previsão da alínea c) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC (recurso de decisão positiva de inconstitucionalidade).
3. De todo o modo, mesmo que se considerasse possível desvalorizar a indicação da alínea ao abrigo da qual o recurso é interposto (cfr. n.º 1 do artigo 75.º-A da LTC), nunca poderia tomar-se conhecimento do recurso uma vez que este não tem objecto idóneo, de acordo com o sistema de fiscalização instituído pelo nosso sistema jurídico. Com efeito, é à concreta decisão judicial, por estar em oposição com outras decisões sobre a mesma questão, que o recorrente imputa violação do princípio constitucional da igualdade. A desigualdade seria obra dos tribunais, não do legislador. Ora, como resulta da Constituição (artigo 280.º da CRP) e da LTC (artigo 70.º da LTC), o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade tem natureza normativa, incide sobre as normas aplicadas (ou desaplicadas por desconformes à Constituição) pelo tribunal que tenha proferido a decisão recorrida e não sobre a violação da Constituição directamente imputada a essa decisão, em sim mesma considerada.
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do recurso e condenar o recorrente nas custas, com sete unidades de taxa de justiça.
2. O recorrente reclama desta decisão, ao abrigo do n.º 3 do citado artigo 78.º-A, alegando, em síntese:
- Que houve lapso da sua parte na indicação da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, devendo entender-se ser a alínea b) do mesmo preceito legal como disposição ao abrigo da qual o recurso de constitucionalidade é interposto;
- Que a violação do artigo 13.º da Constituição é imputada à interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça aos artigos 105.º e 107.º do RGIT, por força da Lei n.º 64-A/2008, e não a uma decisão judicial em si mesma considerada, como na “decisão sumária” se considerou.
3. O Ministério Público sustenta que deve confirmar-se a decisão reclamada, salientando o seguinte:
“(…)
3º
No seu requerimento de reclamação para a conferência, admite o interessado ter-se equivocado (cfr. nº 7 do mesmo requerimento), uma vez que “por lapso o recorrente referiu a al. a) do nº 1 do art. 70, quando pretendia referir a al. b) desse mesmo artigo”, in casu, o art. 70 da LTC.
Mesmo, porém, que se admita ter havido lapso – e haveria, então, que averiguar se a “rectificação” não seria já extemporânea, equivalendo a uma alteração do recurso depois de o mesmo já ter sido apreciado -, julga-se que o ora reclamante não tem razão na sua argumentação.
4º
Refere, com efeito, o interessado no seu requerimento de reclamação para a conferência:
“12. Reitera-se que o que se pretende ver apreciado é a interpretação dada, pelo STJ, aos artigos 105 e 107 do RGIT, por força da Lei 64-A/2008 que, por geradora de desigualdade de tratamento para situações iguais, como amplamente se alega e demonstra na fundamentação do recurso, gera violação do artigo 13 da CRP, e consequentemente gera inconstitucionalidade.”
5º
Mais adiante, considera, igualmente, o reclamante:
“18. De facto, o entendimento perfilhado pelo douto Ac. do STJ no que se refere à não aplicação do limite de € 7.500,00 previsto no artigo 105 do RGIT (Crime de Abuso de Confiança Fiscal) – por aplicação da Lei 64-A/2008 – ao artigo 107 desse mesmo diploma (Crime de Abuso de Confiança Fiscal contra a Segurança Social) viola o princípio da igualdade tendo em conta as múltiplas decisões já transitadas em julgado de inúmeros cidadãos que viram procedimentos seus, exactamente iguais ao do recorrente, não penalizados por entendimento de que a remissão do supra citado artigo 107 para o artigo 105, deveria ser feita em toda a extensão desse artigo, e não somente no que concerne à moldura penal aplicável.”
6º
Ora, é fácil de perceber, da argumentação do reclamante, que não existe nenhuma dimensão normativa associada à (eventual) inconstitucionalidade assinalada, dimensão normativa essa, aliás, que nem sequer é claramente expressa, sendo sempre designada como a “interpretação dada pelo STJ”.
Por outro lado, a violação do princípio da igualdade é consequência, não de uma dimensão normativa, qua tale, constitucionalmente censurável, mas das “múltiplas decisões já transitadas em julgado de inúmeros cidadãos que viram procedimentos seus, exactamente iguais ao do recorrente, não penalizados por entendimento de que a remissão do supra citado artigo 107 para o artigo 105, deveria ser feita em toda a extensão desse artigo, e não somente no que concerne à moldura penal aplicável”.
7º
Julga-se, por esse motivo, não haver nenhuma censura a fazer à Decisão Sumária 492/10, anteriormente proferida.
(…).”
4. Mesmo para quem considere ter havido erro de escrita, discernível no contexto da peça processual, na indicação pelo recorrente da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC ao abrigo da qual o recurso é interposto e aceite que tal lapso é susceptível de correcção nesta fase processual – questões sobre as quais não é imperioso tomar aqui posição –, nunca a reclamação pode merecer acolhimento. Com efeito, o tratamento desigual dos cidadãos que o recorrente quer ver corrigido é resultante de os tribunais, inclusivamente o Supremo Tribunal de Justiça, proferirem decisões contraditórias por professarem diferentes interpretações dos preceitos legais invocados.
Aliás, foi como questão de divergência jurisprudencial lesiva da igualdade e não como questão de inconstitucionalidade normativa que o problema da violação do artigo 13.º da Constituição foi apresentado ao Supremo Tribunal de Justiça. Com efeito, disse o recorrente na motivação do recurso o seguinte:
“(…)
Perante tais Ac.. entender-se como entendeu o douto Ac. Aqui colocado em crise, não é mais do que criar dois pesos e duas medidas.
Uma vez que, em Lisboa aplicar-se-ia o artigo 105 por remissão do 107, sendo que no Porto, dependeria da secção criminal onde tal recurso desse entrada.
De facto, urge solucionar tal “imbróglio”, até para salvaguardar o princípio da igualdade plasmado no artigo 13 da C.R.P.
Entende ainda o arguido, que o facto de já existirem dois Ac. No sentido da descriminalização da conduta do artigo 107, por remissão para o 105, sendo que um deles pertence ao mesmo Tribunal que proferiu Ac. em sentido contrario, impõe uniformização jurisprudencial
Senão vejamos.
Se o S.T.J. entendesse que realmente não se poderia aplicar o artigo 105 nº 1 do RGIT ao crimes de abuso de confiança contra a Segurança social, uma vez que o artigo 107, apenas remete para a sanção e não para a tipicidade da norma do 105 em si, iria violar o artigo 13 da CRP.
Isto porque, actualmente, e já depois da L. 64-A/2008 ter entrado em vigor, já existiram arguidos que foram absolvidos, aliás como supra ficou demonstrado com a transcrição e junção dos Ac. Citados.
Realmente, entender agora que não se deveria ter absolvido, e uma vez que tais pessoas o foram já, fazendo tal decisão caso julgado material, irá colocá-las numa situação de privilégio perante todos os outros que tivesse agora de ser condenados.
Ou seja, a L. 64-A/2008, dependendo do ponto geográfico, condenaria ou absolveria os arguidos, sendo certo que os que já foram absolvidos nunca poderiam voltar a ser condenados, e o que poderiam ser absolvidos, pela aplicação dessa mesma Lei, seriam condenados.
Tal entendimento viola claramente, o artigo 13 da C.R.P.
Repare-se que a L 64-A/2008, está ainda em vigor e não foi revogada, pelo que produz ainda efeitos, e tem de os produzir de forma igual para todos os cidadãos.
Por todo o supra descrito, entende o arguido que o S.T.J. só deve ter uma posição,
Entender que a L. 64-A/2008 se aplica ao Crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, por remissão do artigo 107 para o artigo 105 nº 1, ambos do RGIT.
Entendo ainda como inconstitucional, por violar o artigo 13 da CRP, o entendimento, perfilhado pelo douto Ac. Em crise, uma vez que a não aplicação da L 64-A/2008 ao caso concreto levaria a condenações de arguidos num ponto do país, sendo que noutro essa mesma Lei com outra aplicação os absolveria.
(…).”
Mas, se assim é, não se vê como sair da conclusão de que a violação do artigo 13.º da Constituição é imputável, na argumentação do recorrente, à existência de interpretações divergentes do mesmo complexo normativo e não ao tratamento desigual de situações substancialmente idênticas por uma certa norma ou por um certo sentido normativo extraído dos preceitos legais referidos.
5. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar o recorrente nas custas, com vinte unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 10 de Janeiro de 2011.- Vítor Gomes – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.
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