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Processo n.º 87/10
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos da 4.ª Vara Cível do Porto, a Cooperativa de A., C.R.L., pessoa colectiva sem fins lucrativos, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
Inconformada com o indeferimento do pedido de apoio judiciário apresentado junto do Instituto da Segurança Social, IP, a ora reclamante apresentou impugnação judicial, que foi julgada improcedente.
Nessa sequência, a reclamante interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, que não foi admitido, com fundamento na irrecorribilidade da decisão, de acordo com o disposto no artigo 28.º, n.º 5, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho.
A reclamante reagiu à decisão de não admissão do recurso, dirigindo reclamação ao Presidente do Tribunal da Relação do Porto. Na respectiva peça processual, invocou a inconstitucionalidade da norma que fundamentou a decisão reclamada, fixando a sua irrecorribilidade, sustentando que a mesma violaria as normas dos artigos 13.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, 20.º, n.ºs 1, 4 e 5, 202.º, n.ºs 1 e 2, 204.º e 208.º, todos da CRP.
A reclamação foi indeferida, tendo, então, a reclamante interposto recurso para o Tribunal Constitucional.
Foi proferida decisão sumária, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não julgando inconstitucional a norma constante do n.º 5 do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, na redacção dada pela Lei 47/2007, de 28 de Agosto, com o sentido de que não é passível de recurso a decisão do tribunal de comarca que aprecie a impugnação judicial de indeferimento do pedido de apoio judiciário pela Segurança Social, negando-lhe provimento.
2. Inconformada, veio então a reclamante apresentar a presente reclamação, aduzindo a seguinte fundamentação:
“1-Salvo melhor entendimento a Exma Sra Relatora não ponderou as especificidades dos fundamentos do presente recurso, já que os fundamentos dos recursos para cujos acórdãos remeteu a sua fundamentação não são os mesmos em que se funda o presente recurso.
2-Sendo certo que a priori está em causa a constitucionalidade da irrecorribilidade da decisão, nos termos do nº 5 do artigo 28° da Lei nº 34/2004 de 29 de Julho coloca-se neste recurso em causa a própria boa fé do Estado no procedimento que leva à irrecorribilidade da decisão.
3-Entende a Recorrente que os fundamentos infra explanados devem merecer a apreciação do Tribunal Constitucional, tomando este conhecimento das alegações a produzir, e a sua pronúncia sobre a constitucionalidade da norma em causa à luz dos fundamentos aduzidos e não apenas numa decisão genérica que não aprecie os fundamentos invocados.
São fundamentos:
4-A norma do nº 5 do artigo 28° da Lei nº 34/2004 de 29 de Julho, impedindo o recurso da decisão em causa, viola as normas dos artigos 13°; 18°, nºs. 2 e 3; 20°, nºs.1, 4 e 5; 202, nºs.1 e 2; 204° e 208º da Constituição da República Portuguesa.
5- Em primeiro lugar, a apreciação de petição do instituto de Protecção Jurídica não configura bagatela jurídica, antes se apresenta como questão essencial por, a montante da questão principal trazida a juízo, poder cercear ou impedir o acesso ao direito e aos tribunais pelo cidadão economicamente carenciado.
6- O recurso da decisão judicial tirada sobre a impugnação do acto administrativo que tenha indeferido a concessão desse instituto é, na realidade, a primeira e única decisão jurisdicional.
7- Por outro lado, até à decisão que este Tribunal de primeira instância apreciou como irrecorrível, informa o Estado que não é necessária a constituição de advogado.
8- Esta informação, patente designadamente na notificação de indeferimento «A impugnação judicial pode ser intentada directamente pelo interessado, não carecendo de constituição de advogado, e deve ser entregue no serviço de segurança social que apreciou o pedido de protecção jurídica (. . .}»), leva a que o cidadão só se aperceba da irrecorribilidade da decisão do tribunal quando, segundo a norma em causa, já é tarde demais.
9- Ora estabelecendo a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 208°, que o patrocínio forense é «elemento essencial à administração da justiça» e o Código de Processo Civil no seu artigo 32°, nº 1, alínea c), que «é obrigatória a constituição de advogado» «nos recursos», o facto de não ser exigida a constituição de advogado na impugnação do indeferimento da concessão de apoio judiciário leva a concluir que: ou não constitui esta impugnação recurso ou que deveria o Tribunal de cuja decisão se recorre, ao abrigo do artigo 33° do Código de Processo Civil, notificar a Requerente para constituir advogado.
10- Sendo constitucionalmente assegurado o acesso aos tribunais contra quaisquer actos lesivos dos direitos dos cidadãos (maxime dos direitos, liberdades e garantias), sejam esses actos provenientes de particulares ou de órgãos do Estado, forçoso é que se garanta o direito à impugnação judicial de actos dos tribunais (sejam eles decisões judiciais ou actuações materiais) que constituam a causa primeira e directa da afectação de tais direitos. Considera-se, pois, que quando uma actuação de um tribunal, por si mesma, afecta, de forma directa, um direito fundamental de um cidadão, mesmo fora da área penal, a este deve ser reconhecido o direito à apreciação judicial dessa situação.
11- Quando o tribunal aprecia a decisão de indeferimento pelos serviços da segurança social do pedido de reconhecimento do direito ao apoio judiciário, que é um direito fundamental, está a proferir uma decisão que por si mesma, afecta, de forma directa, um direito fundamental de um cidadão.
12- E essa decisão, que impõe restrições a direitos, liberdades e garantias (maxime o acesso ao direito), deve permitir o recurso da mesma.
13- A interpretação legislativa da norma arguida plasmada na decisão de não aceitar o recurso viola o direito do cidadão carenciado a aceder de forma célere e equitativa ao Direito e aos tribunais, sindicando as decisões judiciais que se lhe afigurem de erradas e/ou ilegais, competindo aos tribunais, em primeira linha, tutelar tais direitos, assegurando o seu exercício, em submissão à Lei e à Constituição, seja qual for a posição desse cidadão na acção a dirimir.
14- Assim a violação do Direito Fundamental à obtenção de apoio judiciário resulta de acto do tribunal, já que este, se perante um recurso, deveria obedecer ao disposto nos artigos 32° e 33° do Código de Processo Civil ou, caso contrário, decidindo directamente sob matéria que corresponde a um Direito Fundamental deverá permitir à Recorrente o controlo por um Tribunal hierarquicamente superior da decisão que lhe nega o pedido de apoio judiciário.”
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
3. A reclamante invoca que os fundamentos do recurso que interpôs não são os mesmos dos Acórdãos deste Tribunal Constitucional, para os quais a Decisão sumária, ora reclamada, remete.
Não tem, porém, razão.
Na verdade, os argumentos de constitucionalidade utilizados pela reclamante são analisados – ainda que perante uma redacção legislativa diferente – nos diversos acórdãos referenciados, com um grau de completude e clareza, que torna desnecessárias outras considerações.
Analisemos alguns excertos, a título exemplificativo.
A propósito da alegada violação da norma do artigo 20.º da CRP – no contexto da qual terá de ser entendida a conexa invocação da violação do artigo 18.º da mesma Lei Fundamental – refere o Acórdão n.º 43/2008:
“Tendo-se concluído pela qualificação constitucional do direito ao apoio judiciário como direito fundamental, importa agora verificar se essa qualificação exige o recurso da decisão judicial que confirma o indeferimento pelos serviços da segurança social do pedido de reconhecimento desse direito.
Escreveu-se no acórdão hoje mesmo proferido por este Tribunal no processo n.º 651/07:
“…afigura-se que – para além dos casos em que este Tribunal tem tradicionalmente afirmado a imposição constitucional de um direito ao recurso jurisdicional (ou direito a um duplo grau de jurisdição), a saber: as decisões condenatórias em processo penal ou que impliquem a adopção de medidas restritivas da liberdade ou de outros direitos fundamentais do arguido (orientação reafirmada, por último, nos Acórdãos n.ºs 500/2007 e 588/2007, que justamente julgaram não inconstitucional a norma constante do artigo 28.º, n.º 1, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, quando interpretada no sentido de que não é admissível recurso da decisão judicial tirada sobre impugnação de decisão administrativa que indefere requerimento de apoio judiciário) – é sustentável que, sendo constitucionalmente assegurado o acesso aos tribunais contra quaisquer actos lesivos dos direitos dos cidadãos (maxime dos direitos, liberdades e garantias), sejam esses actos provenientes de particulares ou de órgãos do Estado, forçoso é que se garanta o direito à impugnação judicial de actos dos tribunais (sejam eles decisões judiciais ou actuações materiais) que constituam a causa primeira e directa da afectação de tais direitos. Considera-se, pois, que quando uma actuação de um tribunal, por si mesma, afecta, de forma directa, um direito fundamental de um cidadão, mesmo fora da área penal, a este deve ser reconhecido o direito à apreciação judicial dessa situação. Mas quando a afectação do direito fundamental do cidadão teve origem numa actuação da Administração ou de particulares e esta actuação já foi objecto de controlo jurisdicional, não é sempre constitucionalmente imposta uma reapreciação judicial dessa decisão.
O direito ora em causa – o direito ao apoio judiciário como condição de exercício efectivo do direito de acesso aos tribunais – comunga da fundamentalidade deste último direito (“o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (…) é, ele mesmo, um direito fundamental, constituindo uma garantia imprescindível da protecção de direitos fundamentais, sendo, por isso, inerente à ideia de Estado de direito” – J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição, vol. I, Coimbra, 2007, p. 408), salientando estes comentadores que “o facto de serem hoje os serviços de segurança social as entidades competentes para a apreciação de concessão de apoio judiciário não significa que estejamos aqui perante uma dimensão do direito à segurança social, mas sim perante uma dimensão prestacional de um direito, liberdade e garantia” (obra citada, p. 411). (…)
De acordo com o entendimento atrás exposto, compreende-se que quando a concessão do apoio (ou assistência) judiciário competia, em primeira linha, aos tribunais, o legislador tenha sempre assegurado recurso da decisão judicial que negasse essa concessão (cf. supra, 2.1.), porque então a afectação do direito de acesso aos tribunais era directamente imputável à actuação do tribunal.
Diferentemente, após a Lei n.º 30-E/2000, a afectação do direito de acesso aos tribunais deriva da prolação de um acto administrativo, contra o qual foi assegurado o acesso aos tribunais, através da possibilidade de impugnação judicial da decisão da Segurança Social. Não se trata de ressuscitar a concepção monista do contencioso administrativo, que via na fase judicial um mero prolongamento da fase graciosa e equiparava a decisão administrativa a uma decisão judicial. Do que se trata é de reconhecer que, neste contexto, mesmo que essa impugnação venha a ser julgada improcedente, a afectação do direito do cidadão de acesso aos tribunais não é directamente imputável à decisão judicial que julgue a impugnação, e o direito de reapreciação judicial das decisões (ou condutas) jurisdicionais só se deve considerar constitucionalmente imposto, de acordo com a tese avançada, se a afectação de direitos fundamentais tiver tido origem na actuação do tribunal.
Na verdade, não resultando nunca, nestes casos, a eventual violação do direito fundamental à obtenção de apoio judiciário, de acto do tribunal, o qual se limita a verificar a correcção do indeferimento proferido pelos serviços de segurança social do pedido de apoio deduzido, mesmo que o confirmem, a protecção constitucional aos direitos fundamentais não impõe um controlo por um tribunal hierarquicamente superior da decisão do tribunal que decidiu a impugnação daquele indeferimento.”
E refere o Acórdão n.º 40/2008, a respeito da invocação da violação dos n.ºs 4 e 5 do mesmo artigo 20.º da Lei Fundamental e ainda dos n.ºs 1 e 2 do artigo 202.º do mesmo diploma:
“Tal como o recorrente consubstancia a questão de constitucionalidade que pretende ver apreciada – existência de um duplo grau de jurisdição em matéria de concessão de apoio judiciário –, ela prende-se fundamentalmente com o direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da CRP, surgindo como desajustada a invocação dos n.ºs 4 e 5 desse preceito (direito a decisão em prazo razoável mediante processo equitativo), (…) dos n.ºs 1 e 2 do artigo 202.º (reserva da função judicial) (…) da CRP.”
No Acórdão n.º 40/2008, pode ainda ler-se, quanto à alegada desconformidade da norma em apreciação com o artigo 13.º da CRP:
“(…) de igual modo não se vislumbra em que medida uma norma como a ora questionada viola o princípio constitucional da igualdade. De resto, nas respectivas alegações, também a recorrente não o diz, limitando-se a considerar como lesante daquele princípio a interpretação da norma em referência (…).
Ora, o princípio da igualdade não proíbe o legislador de estabelecer regimes diferenciados de recurso, o que impõe é que se dê tratamento igual ao que for necessariamente igual e se trate diferentemente o que diferente for. Só as diferenciações de tratamento carecidas de fundamento material bastante – logo, arbitrárias ou irrazoáveis – podem ser constitucionalmente censuráveis, por esta via: o princípio da igualdade identifica-se com uma proibição de medidas manifestamente desproporcionadas ou inadequadas à ordem constitucional de valores, por um lado, e, por outro, à situação fáctica que se pretende regulamentar ou ao problema que se deseja decidir, como se exprimiu este Tribunal, no Acórdão n.º 523/95, publicado no Diário da República, II Série, de 14 de Novembro de 1995, entre outros.
Não se surpreende, no caso concreto, violação a esse princípio.”
No tocante à alegada violação do artigo 208.º da CRP, a sua invocação não é directamente perceptível a partir da questão de constitucionalidade da norma em apreciação – que tem como suporte positivo o artigo 28.º, n.º 5, da Lei 34/2004 de 29 de Julho, na redacção dada pela Lei 47/2007, de 28 de Agosto – surgindo apenas compreensível no contexto do discurso argumentativo desenvolvido pelo reclamante.
A argumentação expendida, porém, tem como pressuposto uma visão da competência do Tribunal Constitucional, que não corresponde ao modelo do nosso sistema jurídico.
De facto, refere o reclamante que, nos termos do artigo 32.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, é “obrigatória a constituição de advogado” “nos recursos”, pelo que “o facto de não ser exigida a constituição de advogado na impugnação do indeferimento da concessão de apoio judiciário leva a concluir que: ou não constitui esta impugnação recurso ou que deveria o Tribunal de cuja decisão se recorre, ao abrigo do artigo 33.º do Código de Processo Civil, notificar a Requerente para constituir advogado.”
A exposição apresentada deixa claro que o reclamante tem a expectativa que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre qual a interpretação mais correcta das normas relativas à impugnação judicial da decisão de indeferimento de concessão do apoio judiciário, assumindo posição sobre se o tribunal deverá notificar o impugnante para constituir advogado, atenta a irrecorribilidade da decisão que venha a tomar. Porém, tal extravasa seguramente a competência deste Tribunal e o âmbito do presente recurso de constitucionalidade.
Face ao exposto, não se vislumbra violação do artigo 204.º da CRP.
Nestes termos, mantém-se a decisão reclamada, que não julgou inconstitucional a norma constante do n.º 5 do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, na redacção dada pela Lei 47/2007, de 28 de Agosto, com o sentido de que não é passível de recurso a decisão do tribunal de comarca que aprecie a impugnação judicial de indeferimento do pedido de apoio judiciário pela Segurança Social, negando-lhe provimento.
III - Decisão
4. Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a reclamação, mantendo a decisão reclamada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 6 de Outubro de 2010.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.
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