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Processo n.º 467/08
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
I. Relatório
1. Em acção de investigação de paternidade proposta por A., em que se suscitou a questão da caducidade da propositura da acção por incumprimento do prazo previsto nos n.ºs 1 e 4 do artigo 1817.º do Código Civil, a 4ª Vara Cível da Comarca do Porto julgou inconstitucionais essas normas, recusando a sua aplicação no caso concreto, pois considerou que o prazo de caducidade nelas previsto põe em causa os direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família.
O despacho recorrido sustenta-se, essencialmente, na declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil tirada no Acórdão n.º 23/06, por violação dos artigos 26.º n.º 1, 36.º n.º 1 e 18.º n.º 2 da Constituição. Diz a sentença:
“(…)
Nos presentes autos o Autor (…), nascido a 21-06-1957 e registado apenas como filho de (…), intentou em 2007.07.27, acção declarativa com processo comum sob a forma ordinária para investigação de paternidade (…), pedindo no essencial que se decida que o Autor é filho do falecido (…).
A acção de investigação de paternidade de que ora se cuida apresenta-se apoiada em presunções legais de paternidade – a posse de estado a que se refere a al. a) do n.º 1 do art. 1871.º do CPC e na existência de relações sexuais do pretenso progenitor com sua mãe durante o período legal de concepção a que se refere a al. e) do n.º 1 da mesma norma.
Citados os Réus, veio a co-Ré (…) contestar a acção, excepcionou a caducidade da acção e impugna os factos alegados na petição inicial.
Para o efeito da caducidade da acção entende a co-Ré que, apesar do Tribunal Constitucional se ter já pronunciado sobre a inconstitucionalidade do n.º 1 do art. 1817.º (com força obrigatória geral) tal declaração não aproveita ao Autor porquanto tal declaração abrange apenas os casos em que o fundamento da maternidade/ paternidade a investigar assenta em critérios biológicos, o que, não é o caso dos autos.
(…)
Diferentemente do que sucede com as acções apenas baseadas na paternidade biológica, relativamente às quais a lei estabelece que só podem ser propostas durante a menoridade do investigante ou nos dois anos posteriores à sua maioridade ou emancipação, fixando-se, assim, um prazo geral de caducidade, – art 1817.º, n.º 1, do C. Civil - quando, entre outras situações que agora não interessa considerar, a acção se funde na presunção de paternidade a que se refere a al. c) do n.º 1, do art. 1871º do CC , como é o caso dos autos, a mesma lei admite um regime especial de caducidade, de sorte que, se o investigante for tratado como filho pelo pretenso pai, a acção pode ser proposta até um ano posterior à data da morte do pretenso pai ou dentro de um ano a contar da data em que cessar o tratamento - arts. 1871º e 181 7º-1 e 4 do C. Civil.
(…)
Para poder beneficiar desse alargamento do prazo, terá o autor de demonstrar o tratamento como filho, como consta da hipótese das normas substantivas que conferem o direito.
- Ora, no caso dos autos, resulta que acção foi proposta a 27 de Julho de 2007 e que o pretenso pai do Autor faleceu a 16 de Março de 2006.
Deste modo e independentemente da averiguação dos factos susceptíveis de preencher o conceito de” posse de estado” resulta desde logo que o Autor não pode beneficiar do prazo de propositura da acção a que alude o n.º 4 do art. 1817.º do C.Civil, porquanto aquando da propositura da acção já estava esgotado o prazo de um ano contado a partir da data da morte do pretenso pai.
Logo, em última análise, não concorrendo no caso dos autos o prazo especial do n.º 4 do art 1817.º do CC, é manifesto também que o prazo – geral do n.º 1 do art. 1817.º do CCivil também está exaurido porquanto o Autor nasceu a 21 de Junho de 1957 e a acção foi proposta a 27 de Julho de 2007.
- Acontece, porém, que, entretanto, foi declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do n.º 1 do art. 1817º C. Civil, “na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos arts. 26º, n.º 1, 36º, n.º 1, e 18º, n.º 2, da CRP” - Ac. do T. C. n.º 23/2006, de 10/01/06.
Se bem interpretamos, a declaração de inconstitucionalidade, não contendo nem prevendo qualquer restrição nem aludindo a cláusulas de salvaguarda, elimina completamente a norma no que respeita à subsistência do termo estabelecido no prazo-regra para o exercício do direito de investigar.
É esse também o sentido que se colhe da “declaração de voto” nele proferida.
E, assim sendo, perante o acolhimento da ideia da inconstitucionalidade de qualquer prazo, assente na ideia da imprescritibilidade do direito de investigar, essencialmente fundada na “diminuição do alcance do conteúdo essencial dos direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família” e na desproporcionalidade de restrições, afigura-se-nos que não podem deixar de estar abrangidas pela mesma declaração de inconstitucionalidade as normas que, como a do n.º 4, se limitam a alargar prazos em razão do concurso de pressupostos que a norma geral dispensa.
Não se encontram razões que aconselhem ou sugiram a desaplicação da fundamentação do Acórdão à norma do n.º 4 do art. 1817º, cujo conteúdo, perante os termos da declaração de inconstitucionalidade, fica por ela consumido. Quem se baseou num fundamento mais forte, como a posse de estado, não deve ficar numa situação mais gravosa que outrem que nada invocou.
Consequentemente, ante a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, impõe-se, no termos do art. 204.º da CRP, recusar no caso dos autos a aplicação dos preceitos dos n.ºs 1 e 4 do C. Civil ao caso ajuizado, na medida em que, indirecta ou directamente, estabelecem o prazo de caducidade de dois anos para a caducidade do direito de investigar, o que se declara para todos os efeitos legais, improcedendo, assim, a excepção da caducidade invocada. (…)”
2. É desta decisão que o Ministério Público interpõe recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 70.º n.º 1 alínea a) e 72.º n.º 1 alínea a) e n.º 3 da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC). Admitido o recurso, o Ministério Público alegou e concluiu:
“(…) 1.º A declaração de inconstitucionalidade, operada pelo acórdão nº 23/2006, não pode ser interpretada como implicando um regime de irremediável imprescritibilidade das acções de investigação de paternidade, mesmo quando intentadas após o óbito do investigado, conduzindo à inconstitucionalidade “consequencial” do prazo previsto no n.º 4 do artigo 1817º do Código Civil, aplicável a tais causas por remissão legal.
2.º O prazo de um ano, posterior à morte do investigado, para a propositura da acção de investigação, no caso de se invocar a “posse de estado”, é suficiente e adequado para o investigante mover a acção contra os familiares e herdeiros que detêm legitimidade passiva, não se perspectivando qualquer obstáculo, objectivo ou subjectivo, relevante a que o autor, com 50 anos de idade, a pudesse ter instaurado tempestivamente. (…)”
II. Fundamentos
3. Em primeiro lugar, impõe-se analisar o objecto do presente recurso, uma vez que o recurso de inconstitucionalidade previsto no artigo 70.º n.º 1 alínea a) da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional) pressupõe que a decisão recorrida haja recusado efectivamente a aplicação de certa norma relevante para a solução do caso e que tal desaplicação normativa se fundamenta num juízo de inconstitucionalidade do regime jurídico nela estabelecido. A decisão recorrida entendeu que as normas do artigo 1817.º n.ºs 1 e 4 do Código Civil são inconstitucionais na medida em que estabelecem «prazos de caducidade» para investigar a paternidade pelo pretenso filho.
Conforme jurisprudência consolidada neste Tribunal, apenas pode conhecer-se das normas que hajam sido efectivamente aplicadas ou desaplicadas – como é o caso – por parte do tribunal a quo. Da fundamentação da decisão recorrida, resulta que a questão normativa que foi apreciada pelo tribunal a quo, apesar de a decisão recorrida não o afirmar expressamente, teve como referência os artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1 e 18.º, n.º 2 da Constituição, já que se invoca, em abono da decisão, o Acórdão n.º 23/2006 deste Tribunal.
Tendo em conta a situação em apreço nos autos, haverá, no entanto, que apreciar se as normas são inconstitucionais na medida em que fixam os concretos prazos de caducidade previstos nas normas desaplicadas. Constituem, por isso, objecto do recurso as normas retiradas do artigo 1817.º n.ºs 1 e 4 do Código Civil na medida em que estabelecem os seguintes prazos de caducidade para a acção de investigação de paternidade pelo pretenso filho: os dois primeiros anos posteriores à maioridade (n.º 1 do artigo1817.º); o de um ano depois da morte do pretenso pai, havendo posse de estado (n.º 4 do citado preceito).
Serão, portanto, estas as normas do artigo 1817.º n.ºs 1 e 4 do Código Civil que constituem objecto de recurso.
4. Cumpre agora apreciar a utilidade do recurso, com o âmbito acima definido, por força da superveniente entrada em vigor da Lei n.º 14/2009 de 1 de Abril, conforme se preveniu já através do despacho do relator a fls. 173.
O recurso foi interposto ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da LTC, para apreciação de duas normas contidas no artigo 1817.º nº 1 e n.º 4 do Código Civil, cuja redacção era, à data da prolação do despacho recorrido, conferida pela Lei n.º 21/98 de 12 de Maio, a seguinte:
«1. A acção de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.
(...)
4. Se o investigante for tratado como filho pela pretensa mãe, sem que tenha cessado voluntariamente esse tratamento, a acção pode ser proposta até um ano posterior à data da morte daquela; tendo cessado voluntariamente o tratamento como filho, a acção pode ser proposta dentro do prazo de um ano a contar da data em que o tratamento tiver cessado.»
A Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril veio dar nova redacção ao n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, alterando o prazo dentro do qual pode ser intentada a acção de investigação da paternidade, que passou a ser de dez anos, aplicando-se aos processos pendentes em 2 de Abril de 2009 (artigos 1º, 2º e 3º) e, consequentemente, aos presentes autos.
Por outro lado, o anterior n.º 4 desapareceu, dando lugar ao actual n.º 3, alínea b) que permite a propositura da acção no prazo de três anos após a ocorrência de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação, designadamente quando cesse o tratamento como filho do pretenso progenitor.
A decisão do recurso de inconstitucionalidade apresenta, em sede de fiscalização concreta, uma “função instrumental”, sendo obrigatório que a decisão da questão de inconstitucionalidade deva “influir utilmente na decisão da questão de fundo”.
O artigo 1817.º, nº 1 e n.º 4 do Código Civil, à data da prolação do despacho recorrido, tinha a redacção conferida pela Lei n.º 21/98 de 12 de Maio, da qual resultava que a acção de investigação de maternidade (e de paternidade, por força do disposto no artigo 1873º do mesmo diploma) só podia ser proposta, no que agora interessa, «dentro do prazo de um ano a contar da data em que o tratamento tiver cessado». No seu julgamento, o tribunal recorrido entendeu que a norma era inconstitucional, por impor um tal prazo de caducidade, pelo que a desaplicou, não submetendo a acção à caducidade de qualquer prazo especial.
Entretanto, a Lei n.º 14/2009 de 1 de Abril, que deu nova redacção ao n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil e alterou o prazo dentro do qual pode ser intentada a acção de investigação da paternidade, aplica-se aos processos pendentes em 2 de Abril de 2009, nos termos dos seus artigos 1º, 2º e 3º, tendo a virtualidade de interferir directamente com o caso presente: na verdade, o actual n.º 3, alínea b) do preceito permite a propositura da acção no prazo de três anos, após a ocorrência de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação.
Ora, mesmo que se considere, agora, que tratando-se de acção de investigação de paternidade intentada pelo pretenso filho, seria de manter a jurisprudência do Tribunal Constitucional no sentido de não censurar a existência de limites temporais ao exercício do direito de instaurar acção de investigação (ao contrário do que refere a decisão recorrida), mas tão somente a consagração de limites temporais que dificultam seriamente ou inviabilizam a possibilidade de o interessado averiguar o vínculo de filiação natural, o certo é que tal pronúncia não teria aqui qualquer influência.
Com efeito, o tribunal recorrido apurou já que a acção foi proposta em 27 de Julho de 2007 e que o pretenso pai do autor falecera a 16 de Março de 2006, razão pela qual «o autor não pode beneficiar do prazo de propositura da acção a que alude o n.º 4 do artigo 1817.º do Código Civil, porquanto aquando da propositura da acção já estava esgotado o prazo de um ano contado a partir da data da morte do pretenso pai» e, que «o prazo geral do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil também está exaurido, porquanto o autor nasceu a 21 de Junho de 1957 e a acção foi proposta a 27 de Julho de 2007»; assim, mesmo que o Tribunal não julgue inconstitucional a norma desaplicada (a que fixara 1 ano para a propositura da acção), o certo é a imediata interferência do novo prazo de caducidade (3 anos), 'coloca' a acção intentada pelo pretenso filho dentro desse novo prazo, ao abrigo, portanto, da aludida caducidade. Em suma: se o Tribunal confirmar o juízo de inconstitucionalidade, nada, obviamente, se alterará; se o Tribunal não confirmar esse juízo, a imediata aplicabilidade da alteração legislativa retira a esse julgamento qualquer utilidade, conforme se acabou de ver, por se lhe aplicar um prazo de caducidade mais longo do que o prazo em que foi proposta a acção. Em síntese, verifica-se que não há utilidade relevante no conhecimento do recurso interposto.
III. Decisão
5. O Tribunal decide, em consequência, não conhecer do recurso, por inutilidade superveniente. Sem custas.
Lisboa, 5 de Julho de 2010. – Carlos Pamplona de Oliveira – José Borges Soeiro – Gil Galvão – Maria João Antunes – Rui Manuel Moura Ramos
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