|
Processo n.º 133/10
Plenário
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional
Relatório
1. Por apenso aos autos de execução fiscal que lhe foram instaurados, na qualidade de responsável subsidiário da sociedade comercial por quotas A., Lda., B. veio deduzir oposição à execução, excepcionando a prescrição da dívida exequenda e a caducidade da notificação da liquidação.
Contestada a petição de oposição, pela credora exequente Fazenda Pública, decidiu o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, por sentença de 6 de Março de 2009, julgar a oposição improcedente e, em consequência, ordenar o prosseguimento da execução.
O executado/oponente, inconformado, interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, que, por acórdão de 9 de Dezembro de 2009, concedeu provimento ao recurso e, em consequência, julgou prescrita a dívida tributária exequenda e extinta a execução.
Considerou-se, no acórdão, que, sendo organicamente inconstitucional a norma do artigo 5º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 124/96, de 10 de Agosto, que determina a suspensão do prazo de prescrição das dívidas durante o período de pagamento em prestações nele previsto, por consagrar uma «inovadora» causa de suspensão da prescrição, sem a necessária autorização legislativa, seria de recusar, por tal motivo, a sua aplicação ao caso concreto, continuando o prazo prescricional a decorrer como se a mesma não existisse, com a consequente extinção, por prescrição, da dívida tributária em execução.
O Ministério Público e a exequente Fazenda Púbica interpuseram, então, recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), os quais foram admitidos pelo Tribunal recorrido.
A recorrente Fazenda Pública não alegou, pelo que o recurso deve considerar-se deserto, prosseguindo o processo quanto ao recurso interposto pelo Ministério Público, que concluiu as suas alegações do seguinte modo:
“1.1. A tese, perfilhada per relationem no acórdão recorrido, propugna que a norma extraída do art. 5.º, n.º 5, do DL n.º 124/96, de 10 de Agosto, cria causas de suspensão da prescrição da obrigação tributária, que são de subsumir no conceito constitucional de “garantias do contribuinte” e, por conseguinte, deviam ter sido reguladas por lei ou decreto-lei autorizado (reserva relativa de lei).
1.2. Uma vez que a matéria foi regulada por decreto-lei, a descoberto de credencial parlamentar, logo, concorreria inconstitucionalidade orgânica.
2.1. Esta tese, porém, não é pacífica na jurisdição tributária.
2.2. Nos autos, o Ministério Público emitiu parecer sustentando não concorrer inconstitucionalidade orgânica, sendo que o acórdão recorrido foi tirado com um voto de vencido, no mesmo sentido, pois, do propugnado pelo Ministério Público.
2.3. Noutro aresto da suprema jurisdição tributária, a tese da inconstitucionalidade orgânica, com boas razões, é refutada.
3.1. Mesmo concedendo ser a correcta em tese geral, esta doutrina não consagra a melhor interpretação da disposição em apreço, pois assenta na leitura descontextualizada do diploma onde está integrada e não atende ao seu sentido sistemático.
3.2. Para captar o genuíno alcance e sentido desta disposição é imprescindível considerar, em particular, as causas (circunstâncias excepcionais, de incumprimento acumulado de dívidas fiscais e à segurança social), nexos (entre os benefícios concedidos e a suspensão da prescrição) e finalidades (criar um regime excepcional de recuperação da dívida, por via consensual) do diploma.
4.1. O diploma em apreço não elide qualquer direito ou garantia, decorrente do estatuto de “contribuinte” de que o devedor relapso (DL n.º 124/96, cit., art. 1.º, n.º 1) estivesse investido.
4.2. Antes lhe confere um novo direito (ou faculdade) de requerer uma autorização administrativa, cujo deferimento lhe permitirá obter a redução dos juros de mora vencidos e vincendos e, ainda, pagar a dívida exequenda até ao máximo de 150 prestações mensais iguais - distribuídas, portanto, por mais de 12 anos.
4.3. Acresce, que a apresentação do requerimento tem a virtualidade de sustar, até prolação de decisão, a venda de bens e, em caso de deferimento do requerimento, reunidas certas condições, a suspensão dos processos de execução fiscal em curso “bem como após a instauração de novos processos”.
5.1. A autorização administrativa, que defere a redução dos juros de mora, vencidos e vincendos e o pagamento em prestações é uma “medida excepcional” e decorre de uma “intervenção extraordinária”, exorbitando assim dos quadros típicos da relação jurídica tributária, com o seu cunho unilateral e coactivo.
5.2. De modo que, ao requerer tal autorização, o devedor relapso exerce um novo direito ou faculdade e, ao ver deferida a pretensão, ficava investido num direito, com base consensual, extraordinário e assaz favorável, ao pagamento das dívidas fiscais em prestações e com redução de juros de mora, vencidos e vincendos.
6.1. A finalidade da norma expressa pelo art. 5.º, n.º 5, cit., não é, pois, a “garantia dos contribuintes” - que mantêm todos os direitos e garantias que a lei, de modo geral e abstracto, lhes reconhece.
6.2. Antes tal norma tem uma função acessória, no quadro da economia do regime jurídico em preço, qual seja a de garantir a boa-fé e seriedade de propósitos do devedor relapso (desincentiva o incumprimento pois, atentos os seus antecedentes de inadimplência, o risco de entrar em falha é agravado) e, sobretudo, o justo equilíbrio dos interesses ajustados (proporcionalidade entre o benefício do devedor relapso e a garantia da arrecadação do crédito em falha).
7.1. Portanto, a norma em apreço não opera ablação ou ingerência nas “garantias dos contribuintes”, no sentido constitucionalmente adequado da expressão, pelo que não há qualquer exacção arbitrária ou excessiva, não havendo fundamento para protecção do devedor relapso “contra pretensões de cobrança de tributos fora das condições previstas na lei”.
7.2. Assim, nestas circunstâncias excepcionais, a própria teleologia subjacente à norma constante do n.º 5 do art. 5.º do DL n.º 124/96, cit., proscreve a respectiva subsunção no conceito de “garantias dos contribuintes” (CRP92, art. 106.º, n.º 2).
8. Em suma, não concorre inconstitucionalidade orgânica, não é caso de usurpação de poderes legislativos do Parlamento, compreendidos no âmbito da respectiva reserva relativa de competência.
Antes, ao emanar tal disposição, o Governo fez uso legítimo da sua competência para emanar decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da República [CRP92, arts. 106.º, n.º 2, e 201.º, n.º 1, al. a)].”.
O recorrido contra-alegou pugnando pela manutenção do julgado.
Cabe apreciar e decidir.
Fundamentação
2. Dos elementos dos autos decorre a seguinte factualidade relevante:
a) Em 22 de Fevereiro de 1995, foi instaurado contra B., na qualidade de responsável subsidiário da sociedade “A., Lda.”, o processo de execução fiscal n. 03531199401008005, por dívidas provenientes de IVA do ano de 1993, no valor total € 3.075,82;
b) Em 10 de Janeiro de 1997, o devedor originário aderiu ao plano de pagamento em prestações, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 124/96, de 10 de Agosto, tendo sido excluído em 18 de Julho de 2001, por incumprimento prolongado.
Entendeu o Tribunal recorrido, na apreciação dos descritos factos, desconsiderar, para efeitos de contagem do prazo de prescrição julgado aplicável (o previsto no artigo 34º do Código de Processo Tributário: 10 anos), o preceituado no artigo 5º, n.º 5, do referido Decreto-Lei n.º 124/96, acolhendo para tanto o entendimento pelo qual, não tendo o Governo legislado ao abrigo de autorização legislativa e sendo inovadora a causa de suspensão prevista no n.º 5 do art. 5º do Decreto-Lei n.º 124/96, verificava-se a inconstitucionalidade orgânica da norma, por violação da reserva de competência da Assembleia da República, em atenção ao disposto no artigo 165º, n.º 1, alínea i), interpretado conjugadamente com o n.º 2 do artigo 103º da Constituição.
É, pois, esta a questão que cabe dilucidar.
O Decreto-Lei n.º 124/96 pretendeu, como se explicita no respectivo preâmbulo, instituir um conjunto de remédios extraordinários para regularização das dívidas fiscais e à segurança social, resultantes de situações de incumprimento acumuladas, implementando dois grandes grupos de medidas: por um lado, relativamente à generalidade dos devedores foi previsto um regime geral de pagamento em prestações mensais iguais, até um máximo de 150, com redução, nos casos normais, de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa média de juros praticada na colocação da dívida pública interna; por outro lado, estabeleceu-se, em desenvolvimento do regime jurídico definido pelo artigo 59.º da Lei n.º 10-B/96, de 23 de Março, e concretizando também a previsão do n.º 2 do artigo 55.º da mesma lei, em relação aos casos que envolvam processos especiais de recuperação de empresas ou contratos de consolidação financeira e reestruturação empresarial, um regime extraordinário de mobilização de activos e de recuperação de créditos.
Ao caso em análise interessa o regime prestacional, a que o executado/oponente aderiu, e que se encontra regulado nos artigos 4º e seguintes do Decreto-Lei n.º 124/96 e, especialmente, no seu artigo 5º, que, sob a epígrafe «Diferimento do pagamento dos créditos», dispõe o seguinte:
1 - O diferimento do pagamento dos créditos, incluindo os créditos por juros vencidos e vincendos, assumirá a forma de pagamento em prestações mensais iguais, no máximo de 150.
2 - O número de prestações concedido para o pagamento dependerá de:
a) Capacidade financeira do devedor;
b) Montante da dívida, não podendo cada prestação ter valor inferior a metade do salário mínimo nacional mais elevado;
c) Risco financeiro envolvido;
d) Circunstâncias determinantes da origem das dívidas.
3 - O pagamento de cada prestação será efectuado até ao final do mês a que diga respeito.
4 - Quando, por motivo não imputável ao devedor, o pagamento não tenha sido efectuado no prazo previsto no número anterior, poderá ser requerida a relevação do atraso, desde que o pagamento se efectue nos primeiros cinco dias úteis do mês seguinte.
5 - O prazo de prescrição das dívidas suspende-se durante o período de pagamento em prestações.
O referido diploma foi publicado pelo Governo com invocação das alíneas a) e c) do artigo 201.º da Constituição (que corresponde ao actual artigo 198.º) e no desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pelo artigo 59.º da Lei n.º 10-B/96, de 23 de Março.
A Lei n.º 10-B/96, que aprovou o orçamento do Estado para 1996, autorizava o Governo, através do Ministro das Finanças, com a faculdade de delegação, a proceder a operações de mobilização de créditos, incluindo créditos de natureza fiscal e outros activos financeiros do Estado, em termos a definir por decreto-lei (n.º1), bem como a proceder a operações de permuta, redução e anulação de determinados activos financeiros (n.º 5). Não há em todo o texto legal qualquer referência ao regime de prescrição das dívidas fiscais e à segurança social às quais venha a ser autorizado o pagamento em prestações.
Por seu turno, o Decreto-Lei n.º 124/96 não invoca a existência de qualquer autorização legislativa sobre essa matéria, como seria exigível, nos termos do n.º 3 do artigo 201.º da Constituição, na redacção então vigente, se de um decreto-lei autorizado se tratasse, e, ao aludir, como fonte habilitadora, ao artigo 59º da Lei n.º 10-B/96, pretende unicamente reportar-se aos instrumentos de «mobilização de activos e recuperação de créditos», que se encontram regulamentados no Capítulo III desse diploma, e não aos chamados «regimes prestacionais», que constam do Capítulo II, em que se insere a referida norma do artigo 5º.
Assim sendo, poderá dar-se como assente que não houve, no caso, autorização legislativa destinada a cobrir a aprovação da norma em causa e, por outro lado, o Governo não poderia, a pretexto do desenvolvimento de uma norma que se circunscreva às bases gerais de um regime jurídico – como seja a do artigo 59.º da Lei 10-B/96 – entrar no domínio de competência legislativa reservada.
A questão que interessa seguidamente averiguar é a de saber se estamos, na verdade, perante matéria de reserva parlamentar.
O artigo 165º, n.º 1, alínea i), da CRP (que corresponde, na sua primeira parte, ao artigo 168º, n.º 1, alínea i), na redacção anterior à Lei Constitucional n.º 1/97, vigente à data da publicação do Decreto-Lei n.º 124/96), integra na reserva relativa da competência da Assembleia da República a «criação de impostos e sistema fiscal»; ao passo que o artigo 103º (que, por sua vez, corresponde ao artigo 106º da Lei Fundamental, na mesma redacção), sob a epígrafe «sistema fiscal», no seu n.º 2, consigna o seguinte: «os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes».
Entende-se que este n.º 2, introduzindo um princípio de legalidade fiscal, traduz a regra da reserva de lei para a criação e definição dos elementos essenciais dos impostos, nela abrangendo não somente os elementos intrusivos ou agressivos do imposto (criação, incidência, taxa), mas também os seus elementos favoráveis, como os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4ª edição, Coimbra, págs. 1090-1091).
Como também tem sido afirmado, a reserva de lei para a criação e definição dos elementos essenciais dos impostos, mesmo nos aspectos favoráveis aos contribuintes, justifica-se em nome dos princípios da igualdade, da justiça e da transparência fiscal. Pretende-se que o imposto, quanto aos seus principais elementos, seja desenhado na lei de forma suficientemente determinada, sem margem para desenvolvimento regulamentar, nem para a discricionariedade administrativa (ibidem). Uma tal determinação constitucional funciona assim como uma garantia dos contribuintes, no ponto em que procura criar um quadro legal rigoroso, colocando os sujeitos passivos do imposto a coberto de uma interpretação administrativa variável e porventura menos publicitada. A justificação para a inclusão na reserva de lei dos benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes parece residir, por outro lado, na circunstância de esses serem elementos essenciais para a caracterização do sistema fiscal, o qual deverá ser objecto de uma apreciação global por parte dos representantes dos contribuintes (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo II, 2006, Coimbra, págs. 220-221).
Aceites estas considerações gerais quanto ao âmbito e razão de ser da reserva de lei em matéria fiscal, importa ter presente que a Constituição, fora dos casos de possível interferência com outras garantias em matéria penal, processual penal ou administrativa (tal como as consagradas nos artigos 29º, 32º e 268º), não define expressamente o conteúdo da garantia dos contribuintes, nem estabelece um elenco taxativo de institutos que possam considerar-se incluídos nesse conceito, pelo que a caracterização de um determinado regime legal para efeito de incidência na reserva parlamentar constituirá sempre um problema de interpretação da lei que terá de ser analisado à luz dos critérios gerais de hermenêutica jurídica (cfr. Ana Paula Dourado, O Princípio da Legalidade Fiscal – Tipicidade, conceitos jurídicos indeterminados e margem de livre apreciação, Coimbra, pág. 138).
Partindo da ideia de que a prescrição extingue o direito de exigir o pagamento da dívida e faz nascer para o contribuinte o direito de recusar a correspondente prestação, e incide, portanto, sobre um aspecto essencial da relação jurídica tributária, consubstanciando uma garantia material ou não meramente procedimental, poderá entender-se, como vem sendo aceite pela doutrina, que integra uma garantia dos contribuintes (Benjamim Silva Rodrigues, A Prescrição no Direito Tributário, in «Problemas Fundamentais do Direito Tributário», Lisboa, 1999, págs. 261 e segs.; Casalta Nabais, Direito Fiscal, 5ª edição, Coimbra, pág. 347).
Nada permite concluir, porém, que a norma do artigo 5º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 124/96, aqui em análise, tenha vindo a restringir ou condicionar o regime que se encontra estabelecido, em geral, nessa matéria, e possa assim ter posto em causa a função garantística da reserva de lei fiscal.
O regime de prescrição das dívidas tributárias, antes consagrado no artigo 34º do Código de Processo Tributário, encontra-se actualmente regulado, em termos gerais, nos artigos 48 e 49º da Lei Geral Tributária, incluindo no que se refere às causas interruptivas e suspensivas do respectivo prazo, e manteve plenamente a sua vigência, não obstante a publicação do Decreto-Lei n.º 124/96.
Este diploma, por seu lado, teve em vista permitir a regularização de dívidas de natureza fiscal e à segurança social cujo prazo de cobrança voluntária tenha já terminado, através de medidas excepcionais de diferimento do pagamento em prestações mensais, até ao máximo de 150, implicando, como necessária decorrência, a suspensão do prazo de prescrição das dívidas durante o período de pagamento em prestações (artigo 5º, n.º 5) e a suspensão dos processos de execução fiscal em curso ou daqueles que entretanto tenham sido instaurados contra os contribuintes devedores (artigo 14º, n.º 10).
Note-se, em todo o caso, que a sujeição ao regime previsto no diploma depende de apresentação de requerimento, por parte do devedor, e não é, por isso, coactivamente imposta aos interessados (artigo 3º, n.º 1), e as dívidas que tiverem sido abrangidas pelo procedimento tornam-se exigíveis, nos termos gerais da lei tributária, em qualquer das circunstâncias referidas no n.º 2 do artigo 3º, e, designadamente, quando deixe de ser efectuado o pagamento integral e pontual das prestações ou seja revogada a autorização concedida pela administração fiscal.
Estamos, por conseguinte, perante um regime específico de regularização de dívidas, instituído também no interesse do próprio contribuinte, que, por essa via, beneficia da possibilidade de pagamento faseado das dívidas e de redução dos juros que fossem devidos pela cobrança coerciva. Acresce que a suspensão do prazo de prescrição das dívidas durante o período de pagamento em prestações, como determina o citado artigo 5º, n.º 5, desse diploma é um pressuposto necessário do próprio regime legal assim instituído.
O prazo de prescrição dos impostos periódicos foi fixado pelo artigo 48º, n.º 1, da Lei Geral Tributária em oito anos a contar do termo do ano em que ocorreu o facto tributário (o artigo 34º do CPT fixava em 10 anos o respectivo prazo prescricional, com idêntico termo inicial), e o diferimento do pagamento das dívidas fiscais, por efeito da adesão ao regime definido no Decreto-Lei n.º 124/96, pode atingir 150 prestações mensais, que corresponde a uma dilação temporal de doze anos e meio.
Assim sendo, a suspensão do prazo de prescrição das dívidas durante o período de pagamento em prestações é uma condição de exequibilidade do próprio regime legal, pois que, de outro modo, a adesão dos contribuintes devedores ao plano faseado de pagamento implicaria inevitavelmente a própria extinção da dívida remanescente, caso se mantivesse em curso o prazo prescricional.
Em todo este condicionalismo, qualquer contribuinte que tenha aderido ao regime de regularização de dívidas fiscais através do pagamento em 150 prestações mensais, não poderia invocar qualquer expectativa legítima relativamente à possibilidade de o prazo prescricional continuar a decorrer enquanto se mantivesse em vigor o procedimento especial de pagamento em prestações.
Se a função garantística da reserva de lei fiscal, como se deixou esclarecido, visa assegurar a previsibilidade dos elementos essenciais do imposto (e da situação fiscal) e a tutela de confiança do contribuinte, torna-se claro que nenhum motivo existia para uma intervenção parlamentar, no caso vertente, quando o que estava em causa era apenas a definição de uma solução jurídica que era exigida pela lógica do sistema e que se encontrava justificada à luz dos princípios gerais em matéria tributária.
De facto, a regularização de dívidas fiscais que o Decreto-Lei n.º 124/96 pretendeu regulamentar, não se enquadra na reserva de lei fiscal, tal como esta está configurada nos artigos 103º, n.º 2, e 165º, n.º 1, alínea i), da Constituição, e constitui antes competência legislativa concorrente do Governo, que lhe era conferida pelo artigo 201º, n.º 1, alínea a), da Constituição, na redacção então vigente. A suspensão do prazo de prescrição das dívidas durante o período de pagamento em prestações, tal como previsto no artigo 5º, n.º 5, desse diploma, reporta-se a um aspecto lateral desse específico regime legal, que é inerente às soluções normativas nele contidas, não introduzindo qualquer alteração no regime geral dos impostos (incluindo em matéria de prescrição), nem qualquer alteração que não fosse esperada pelos contribuintes.
A referida disposição legal não se encontra, por isso, contrariamente ao sustentado no acórdão recorrido, ferida de inconstitucionalidade orgânica.
III. Decisão
Termos em que se decide conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada de acordo com o presente juízo sobre a questão de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 5 de Julho de 2010. – Carlos Fernandes Cadilha – Maria João Antunes – Carlos Pamplona de Oliveira – Joaquim de Sousa Ribeiro – Gil Galvão – Maria Lúcia Amaral – Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano (com declaração de voto que junto) – Vítor Gomes (vencido, conforme declaração anexa) – Ana Maria Guerra Martins (vencida, nos termos da declaração do Exmo. Senhor Conselheiro Vítor Gomes). – José Borges Soeiro (vencido fundamentalmente pelas razões aduzidas pelo Exmo. Conselheiro Vítor Gomes, para que, com a devida vénia, remeto). – Rui Manuel Moura Ramos.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei o presente acórdão pelas razões que passo a expor.
A decisão recorrida tinha recusado a aplicação da norma contida no n.º 5 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 124/96, de 10 de Agosto, por considerar que a mesma sofria de inconstitucionalidade orgânica, por ter sido emitida pelo Governo sem a necessária autorização da Assembleia da República.
Dispondo a norma recusada sobre a suspensão do prazo de prescrição de dívidas fiscais e à segurança social, está em causa o âmbito do princípio da legalidade fiscal na dimensão de exigência de reserva de lei parlamentar.
Na verdade, na época da aprovação daquele diploma governamental o artigo 168.º, n.º 1, alínea i), da Constituição da República Portuguesa (CRP), determinava que era da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, a definição do sistema fiscal, aí se incluindo, conforme resultava do artigo 106.º, n.º 2, da CRP, as garantias dos contribuintes, designadamente o regime da prescrição dos créditos tributários, abrangendo as causas de suspensão dos prazos de prescrição.
A aprovação pelo Governo do disposto no n.º 5 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 124/96, de 10 de Agosto, não foi autorizada pela Assembleia da República.
A exigência que o sistema fiscal deve ser definido pelo parlamento, não deixa de ter justificação no princípio dos ideais liberais “no taxation without representation”, correspondente à ideia de que, sendo o imposto um confisco da riqueza privada, a sua legitimidade tem de resultar duma aprovação dos representantes directos do povo, numa lógica de auto-tributação, auto-imposição e auto-consentimento, a qual permitirá a escolha de tributos bem acolhidos pelos contribuintes e, por isso, eficazes (sobre uma mais aprofundada justificação da reserva de lei fiscal, vide Ana Paula Dourado, na ob. cit., pp. 75-84, e Casalta Nabais, em Direito Fiscal, p. 136, da 5.ª ed., da Almedina).
Ora, estando a sujeição ao regime previsto no Decreto-Lei n.º 124/96, de 10 de Agosto, dependente de apresentação de requerimento por parte do devedor (artigo 3.º, n.º 1), o mesmo não é coactivamente imposto aos contribuintes, pelo que deixa de fazer sentido a exigência que esse regime emane da Assembleia da República. A auto-imposição e o auto-consentimento aqui resultam desde logo do pedido de adesão ao regime fiscal em causa do próprio contribuinte.
Além disso, a suspensão do prazo de prescrição imposto pelo n.º 5 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 124/96, de 10 de Agosto, não introduz qualquer alteração ao sistema fiscal instituído pelo legislador parlamentar ou por este autorizado, não constituindo qualquer medida inovatória, sempre que esteja pendente processo de execução fiscal, como sucedia no caso sub iudice.
Nestes casos, o disposto no artigo 5.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 124/96, de 10 de Agosto, limitava-se a aplicar o regime geral de contagem do prazo de prescrição das dívidas tributárias então vigente, à situação excepcional da cobrança prevista no Decreto-Lei n.º 124/96, de 10 de Agosto.
Na verdade, o n.º 3 do artigo 34.º do Código de Processo Tributário, na redacção vigente à data da aprovação do Decreto-Lei n.º 124/96, de 10 de Agosto, dispunha que a instauração da execução interrompia a prescrição, cessando porém, esse efeito se o processo estiver parado por facto não imputável ao contribuinte durante mais de um ano, somando-se, neste caso, o tempo que decorrer após este período, ao que tiver decorrido até à data da autuação.
Apesar da utilização do termo interromper, a propositura de execução para cobrança de dívida tributária, provocava uma verdadeira suspensão do prazo prescricional, o qual não corria enquanto a execução estivesse pendente, com excepção dos períodos de paragem do processo executivo não imputáveis ao contribuinte, superiores a um ano.
Ora, determinando, a sujeição ao regime previsto no Decreto-Lei n.º 124/96, de 10 de Agosto, a suspensão dos respectivos processos de execução fiscal (artigo 14.º, n.º 10), e tendo essa sujeição como causa o pedido do devedor de adesão a esse regime, a correspondente paragem do processo é imputável ao contribuinte, pelo que, nos termos do artigo 34.º, n.º 3, do Código de Processo Tributário sempre se manteria suspenso o decurso do prazo prescricional durante o período de pagamento da dívida em prestações, nas condições previstas no artigo 5.º, do Decreto-Lei n.º 124/96, de 10 de Agosto.
Assim, nestes casos, a solução contida no artigo 5.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 124/96, de 10 de Agosto, limita-se a replicar a solução que já resultava do artigo 34.º, n.º 3, do Código de Processo Tributário, em nada modificando o sistema fiscal implantado com autorização do legislador parlamentar, pelo que também por este motivo não estava afectada pelo vício de inconstitucionalidade orgânica.
Foram estas as razões que me conduziram à decisão do presente acórdão. – João Cura Mariano.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido. Negaria provimento ao recurso, julgando a norma em causa inconstitucional por violação da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, constante da alínea i) do n.º 1 do artigo 168.º com referência ao n.º 2 do artigo 106.º da Constituição, na versão anterior à Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro (actualmente, artigo n.º 165.º, n.º 1, alínea i) com referência ao n.º 2 do artigo 103.º), em síntese, pelo seguinte:
Como no acórdão se reconhece, a matéria das garantias dos contribuintes deve considerar-se sujeita à denominada «reserva de lei formal e parlamentar». Isto é, não só constitui matéria de reserva de lei (artigo 106.º, n.º 2 da CRP, na versão vigente ao tempo da aprovação do Decreto-Lei n.º 124/96, actualmente, artigo 103.º, n.º 2), como essa reserva de lei deve entender-se no sentido de reserva de acto legislativo do parlamento (ou decreto-lei autorizado), deste modo se integrando a norma competencial constante da alínea i) do n.º 1 do artigo 168.º (ao tempo, actual alínea i) do n.º 1, do artigo 165.º) com a norma material que consagra o princípio da legalidade fiscal (cfr., p. ex. os Acórdãos números 268/97, 504/98 e 63/00 e 168/02, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt; na doutrina, Cardoso da Costa, in O Enquadramento Constitucional do Direito dos Impostos em Portugal: A Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Perspectivas Constitucionais, Nos 20 anos da Constituição de 1976, 2º Vol., maxime, 409, Ana Paula Dourado, O Princípio da Legalidade Fiscal – Tipicidade, conceitos jurídicos indeterminados e margem de livre apreciação, pág. 103 e segs.).
E a prescrição das dívidas tributárias, que se explica por razões de certeza e segurança jurídicas relativamente ao sujeito passivo, é um instituto abrangido pelo conceito constitucional de “garantias dos contribuintes” e, portanto, por esta reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (Cfr., por todos, Benjamim Silva Rodrigues, “A Prescrição no Direito Tributário”, Problemas Fundamentais do Direito Tributário, p. 261 e segs.). Extinguindo o direito de exigir o pagamento da dívida de imposto, incide sobre um aspecto essencial da relação jurídica tributária, sendo generalizado o entendimento de que o respectivo regime consubstancia uma garantia material dos contribuintes (uma garantia não impugnatória, na classificação de Casalta nabais, Direito Fiscal, 5ª ed., pág. 376), relativamente à qual concorrem as razões que justificam a reserva de lei parlamentar em matéria de impostos. Aliás, o Tribunal já se pronunciou sobre a inclusão no âmbito da reserva de lei parlamentar de matéria que, para este efeito, pode dizer-se paralela porque os interesses em conflito são os mesmos, que é a respeitante à caducidade do direito à liquidação, no acórdão n.º 168/02, publicado no Diário da República, II Série, de 1 de Junho de 2002. Na verdade, ninguém podendo ser obrigado a pagar impostos cuja cobrança se não faça nos termos da lei (artigo 103.º, n.º 3 da CRP) e sendo a finalidade das garantias dos contribuintes, precisamente, protegê-los contra pretensões de liquidação e cobrança de tributos fora das condições previstas na lei, tem de concluir-se que respeitam às garantias dos contribuintes as normas de que resulte para o contribuinte a extinção do dever de pagamento de tributos e, consequentemente, de com esse fundamento se opor à pretensão de liquidação ou cobrança.
Os pressupostos materialmente relevantes de qualquer aspecto do regime de prescrição integram essa reserva, pelo que tem de ser enunciados em lei formal da Assembleia da República ou decreto-lei autorizado (Benjamim Rodrigues, loc. cit., p. 266, que expressamente refere as causas de interrupção ou suspensão como incluídas na reserva de lei). Com efeito, na regulação geral da prescrição das dívidas tributárias, não menos decisivo do que o estabelecimento do prazo de prescrição é a identificação das causas susceptíveis de interromper ou suspender a sua contagem. O decurso de um certo lapso de tempo sem que a dívida seja cobrada deixa de produzir o efeito extintivo inerente se tiver ocorrido algum facto a que a lei reconheça a virtualidade de inutilizar o tempo decorrido ou de suspender a respectiva contagem. A fixação de quais sejam esses eventos é um aspecto nuclear das relações entre o credor e devedor fiscal, no que respeita a este modo de extinção da dívida.
Assim, não pode deixar de considerar-se o regime da suspensão do prazo de prescrição, designadamente a identificação dos eventos que a provocam e a sua duração, como integrando as garantias dos contribuintes. E, consequentemente, como exigindo a sua regulação por lei parlamentar ou decreto-lei autorizado. E isto quer se trate de estabelecer o regime geral, quer de regular para certas situações especiais esta causa de extinção da dívida tributária, respeite essa especialidade a um dado tributo ou a uma determinada situação típica.
E pode seguramente dar-se como assente que não houve autorização legislativa a cobrir a aprovação da norma em causa e que o Governo não poderia, a pretexto do desenvolvimento de uma norma que se circunscreva às bases gerais de um regime jurídico – como seja a do artigo 59.º da Lei n.º 10-B/96 –, entrar no domínio de competência legislativa reservada da Assembleia da República.
Até aqui não há substancial divergência entre o entendimento que professo e o que o acórdão aceita ou pressupõe.
Isto posto, estabelecendo a norma do n.º 5 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 124/96 uma causa de suspensão da prescrição das dívidas fiscais e à segurança social que não existia qua tale no ordenamento então vigente, parece-me forçoso concluir pela sua inconstitucionalidade orgânica. Na verdade, por esta via o Governo introduziu uma especialidade no complexo normativo respeitante à prescrição das dívidas tributárias, subtraindo as situações a que se aplica o Decreto-Lei n.º 124/96 ao regime geral que, na falta dessa norma, teria vocação para discipliná-las.
Com efeito, diversamente do que sucede na Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro, que regula a suspensão da prescrição – mas noutros termos e em diferente contexto e com evolução que não interessa aqui analisar (artigo 49.º da LGT) –, o Código de Processo Tributário (CPT), que era a sede da matéria no momento da entrada em vigor da norma questionada, não enunciava causas de suspensão da prescrição das obrigações tributárias. Embora a hipótese prevista na 2.ª parte do n.º 3 do artigo 34.º do CPT equivalesse materialmente a uma situação de suspensão da prescrição, o âmbito da norma agora em causa – sobretudo no sentido que consiste em considerar que a suspensão se mantém até à revogação da autorização do pagamento em prestações – não é coincidente com o que poderia resultar desse regime geral.
O que, obviamente, não significa que não seja possível equacionar o problema da suspensão do prazo de prescrição, em consequência da autorização do pagamento da dívida exequenda em prestações, face a outros lugares do sistema. Mas isso é tarefa que não compete ao Tribunal Constitucional empreender. A competência do Tribunal restringe-se à verificação de que o fundamento normativo específico do acórdão recorrido para concluir pela ocorrência de um evento suspensivo da prescrição não pode subsistir por ser inconstitucional (artigo 79.º-C da LTC). Ao tribunal da causa competirá depois decidir se outras normas ou outra causa conduzem à inutilização total ou parcial do período em que vigorou o “plano de pagamento em prestações” para efeito de prescrição da dívida.
O regime de prescrição das dívidas tributárias não deixa de ser matéria de garantia dos contribuintes pelo facto de a situação material não justificar que o devedor tributário beneficie da prescrição ou a invoque, ou de para certo tipo de situações se impor consagração de um regime diferenciado. A prescrição é “o instituto por via do qual os direitos subjectivos se extinguem quando não exercitados durante um certo tempo fixado na lei e que varia consoante os casos” (Manuel de Andrade, Teoria Geral, II, p. 445). Em matéria tributária, toda a modelação do instituto está subtraída à intervenção normativa do Governo, salvo autorização legislativa. Competente para estabelecer o prazo e eleger os “casos” em que o prazo deve variar é a Assembleia da República. E não é a circunstância de as medidas de regularização das dívidas fiscais e à segurança social que foram adoptadas se compreenderem na competência legislativa concorrente do Governo e a verificação de que, face ao modo ou extensão que o diploma legal lhes conferiu, a suspensão do prazo de prescrição das dívidas durante o período de pagamento em prestações constitui um pressuposto necessário do regime legal tal como foi instituído que podem justificar que o Decreto-Lei n.º 124/96 a tenha regulado. As razões que o presente acórdão põe em destaque justificam materialmente a solução normativa, mas não a sua adopção pelo Governo sem credencial legislativa. – Vítor Gomes.
|