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Processo n.º 911/09
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorridos o Ministério Público,
B. e C., a Relatora proferiu a seguinte decisão sumária:
«I ? RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorridos o Ministério Público,
B. e C., foi interposto recurso, ao abrigo do artigo 280º, n.º 1, alínea b), da
CRP e do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da LTC, do acórdão proferido, em
conferência, pela 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, em 23 de
Janeiro de 2008 (fls. 3359 a 3365), que procedeu à reformulação de acórdão
proferido pelo mesmo Tribunal e Secção, em 15 de Março de 2006, em cumprimento
de acórdão proferido pela 2ª Secção do Tribunal Constitucional, em 11 de Julho
de 2007 (fls. 3266 a 3295).
O recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a
constitucionalidade das seguintes interpretações normativas:
i) ?ARTIGOS 127.º, 428.º, n.º 1 E 431.º, als. a) e b) DO CÓDIGO DE PROCESSO
PENAL quando interpretadas no sentido de que, apesar de não dispor da totalidade
das gravações dos depoimentos prestados em audiência e, portanto, apesar de não
dispor dos mesmos elementos de prova de que pôde dispor a Primeira Instância ?
por não haver depoimentos imperceptíveis na respectiva gravação ? ainda assim,
pode o Tribunal da Relação considerar-se habilitado a julgar o interposto
recurso sobre matéria de facto? (fls. 4206);
ii) ?ARTIGOS 127.º, 363.º, 412.º, n.º 4, 428.º, n.º 1 e 431.º, als. a) e b), do
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, quando interpretadas no sentido de que, apesar de o
tribunal de recurso não dispor dos mesmos elementos de prova de que pôde dispor
a primeira instância ? por haver depoimentos, agora, imperceptíveis na
respectiva gravação ?, ainda assim pode o mesmo tribunal de recurso considerar-se
habilitado a aplicar o princípio constitucional da presunção de inocência,
decidindo que os agora incompletos elementos probatórios disponíveis são
suficientes para instalar no espírito do julgador uma dúvida razoável que
imponha a conclusão da inocência dos arguidos e, em consequência, a respectiva
absolvição? (fls. 4207).
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II ? FUNDAMENTAÇÃO
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal ?a quo? (cfr.
fls. 4244), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não
vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito
legal, pelo que se deve começar por apreciar se estão preenchidos todos os
pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº
2, da LTC.
Se o Relator verificar que algum, ou alguns deles, não foram preenchidos, pode
proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do
artigo 78º-A da LTC.
3. Através do presente recurso apenas é passível de impugnar jurisdicionalmente
a decisão constante do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em
23 de Janeiro de 2008. Ora, o referido acórdão limitou-se, em estrito
cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 80º da LTC, a reformar a decisão
decorrente do pretérito acórdão de 15 de Março de 2006, em função do juízo de
inconstitucionalidade proferido no Acórdão n.º 408/2007, pela 2ª Secção do
Tribunal Constitucional, relativamente às normas extraídas dos artigos 374º, n.º
2 e 425º, n.º 4, ambas do Código de Processo Penal, ?quando interpretadas no
sentido de que é desnecessária a discriminação dos factos provados e não
provados em acórdão proferido em recurso, que altera a decisão sobre a matéria
de facto, quando se refere que todos os factos que tinham sido provados na 1ª
instância, relacionados com o elemento subjectivo do crime, passam a integrar a
matéria de facto dada como não provada? (fls. 3295).
Assim, a decisão ora alvo de recurso não aplica quaisquer normas para além
destas que já foram alvo de decisão pelo Tribunal Constitucional e, obviamente,
para além da norma que se extrai do n.º 2 do artigo 80º da LTC. Aliás, a própria
decisão ora recorrida afirma expressamente:
?Isto quer dizer que, e cumprindo o decidido no Tribunal Constitucional far-se-á
a descriminação dos factos provados e não provados, mantendo-se imodificável a
fundamentação fáctica produzida no aresto desta Relação bem como a convicção
gerada no conjunto de prova produzida quer testemunhal quer documental.
(?)
Quanto às alegadas inconstitucionalidades referenciadas no requerimento do
assistente de fls. 3329 a 3338, nenhuma delas se vislumbra sendo certo que o
Tribunal Constitucional em parte já respondeu às mesmas e o único labor deste
Tribunal da Relação é reformular o acórdão de acordo com o juízo de
inconstitucionalidade apontado na al. b) no acórdão do TC.? (fls. 3361 e 3363)
Da formulação da decisão recorrida decorre que aquela nunca procedeu à aplicação
das interpretações normativas que o recorrente pretende ver apreciadas pelo
Tribunal Constitucional, tendo-se limitado a cumprir o juízo de
inconstitucionalidade deste Tribunal. Aliás, o tribunal recorrido afirmou,
expressamente, que manteria inalterada a fundamentação constante do acórdão alvo
de reformulação.
Na medida, em que o Tribunal Constitucional apenas pode conhecer da
constitucionalidade de normas (ou interpretações normativas) efectivamente
aplicadas pelos tribunais recorridos, conforme imposto pelo artigo 79º-C da LTC
? e não se tendo verificado essa aplicação na decisão recorrida ? mais não resta
do que concluir pela impossibilidade de conhecimento das questões de
inconstitucionalidade ora deduzidas pelo recorrente.
III ? DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A
da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º
13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se não conhecer do objecto do presente
recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos
termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.»
2. Inconformado com a referida decisão, o recorrente deduziu a seguinte
reclamação, que ora se resume:
«(?)
4.º
Como já tínhamos dito naquele requerimento de fls. 3313 e seguintes, A GRANDE E
PRINCIPAL QUESTÃO que aqui se coloca é a de saber se, após a prolação daquele
acórdão do Tribunal Constitucional de fls. 3266 e seguintes, o Tribunal da
Relação do Porto podia ou não, se quisesse e se assim o entendesse, decidir de
forma diametralmente aposta à que havia decidido no seu anterior acórdão, de 15/3/2006,
mantendo a decisão proferida pela 1ª Instância nestes autos, ou decidindo em
qualquer outro sentido que julgasse adequado;
(?)
15.°
Na verdade, o que veio dizer o Tribunal Constitucional foi que a decisão de 15/3/2006
do Tribunal da Relação do Porto não observou os procedimentos adequados a uma
ponderada e consciente decisão.
Não discriminando os factos provados e os factos não provados, com efeito, o
Tribunal da Relação do Porto, não analisou criticamente a decisão, nem se
autocontrolou, impedindo-se a si próprio de proceder a um raciocínio crítico,
analítico, ponderado e concreto.
16.°
Ora, se o Tribunal da Relação do Porto não agiu adequadamente no processo de
busca de uma correcta decisão, obviamente que, quando posteriormente, corrigindo-se,
procedeu de forma adequada, poderia ter alcançado uma solução/decisão totalmente
diversa da primeira.
17.°
E, por isso, dizemos nós que se RENOVOU O PODER JURISDICIONAL do Tribunal da
Relação do Porto depois da prolação do acórdão do Tribunal Constitucional (de
fls. 3266 e segs) e antes de aquela Relação proferir o acórdão aqui em causa (de
23/1/2008).
18.°
A não se entender assim, as determinações do Tribunal Constitucional (constantes
daquele acórdão de fls. 3266 e segs) cairiam em «saco roto».
(?)
22.°
Assim, é absolutamente correcto dizer-se, como se disse na decisão sumária ora
reclamada que, através do presente recurso, só pode impugnar-se a decisão do
Tribunal da Relação do Porto de 23/1/2008;
23.°
Só que na perspectiva de que esse acórdão de 23/1/08 podia ter decidido como
entendesse adequado: ou como decidiu, ou num qualquer outro sentido; porque se
RENOVOU O SEU PODER JURISDICIONAL.
24.º
Em consequência o Tribunal da Relação do Porto devia ter conhecido da questão da
inconstitucionalidade suscitada pelo ora recorrente no seu requerimento de fls.
3313 e segs. Porque a tal estava obrigado (cfr. 2, do art. 72. ° do LTC). Já que
se renovara o seu poder jurisdicional.
25.°
O que significa que, ao decidir como decidiu, o Tribunal da Relação do Porto
procedeu à aplicação das interpretações normativas que o ora recorrente suscitou
no presente recurso. Porque este acórdão de 23/01/2008, passou a integrar o de
15/03/2006. Um sem o outro é incompreensível.
26.°
Daí que seja legítimo afirmar-se que, considerando-se habilitado a julgar o
recurso sobre matéria de facto e a absolver os arguidos por aplicação do
princípio in dúbio pro reo, apesar de não dispor da totalidade das gravações dos
depoimentos prestados em audiência (1ª Instância), o Tribunal da Relação do
Porto aplicou o disposto nos arts. 127°, 363. °, 412°, n.º 4, 428°, n.º 1, e 431.
° als. a) e b) do Código de Processo Penal, no sentido já mencionado no recurso
do ora recorrente, interpretação essa que é claramente inconstitucional como ali
também se referiu.
E é legítima esta afirmação porque aquelas duas decisões acabam por constituir
uma única decisão.
27.º
Assim, e entendendo-se que se renovou o poder jurisdicional do Tribunal da
Relação do Porto, que este podia ter decidido num qualquer outro sentido
diferente, que o ora recorrente, em tempo e adequadamente, suscitou a questão da
inconstitucionalidade (art. 72. °, n.º 2 de LTC), é forçosa a conclusão de que o
acórdão de 23/1/2008 do Tribunal da Relação do Porto, fazendo parte integrante
do de 15.03.2006, aplicou as interpretações normativas que o recorrente pretende
ver apreciadas pelo Tribunal Constitucional.
28.°
Consequentemente, nos termos do disposto no art. 79. °- C da LTC, este Tribunal
Constitucional podia e pode conhecer da Constitucionalidade daquelas
interpretações normativas invocadas pelo ora recorrente.» (fls. 4259 a 4268)
3. Devidamente notificado para o efeito, o Ministério Público respondeu nos
seguintes termos:
«1º
Pela Decisão Sumária de fls 4251 a 4254, não se conheceu do objecto do recurso
porque, limitando-se o acórdão recorrido, a reformar a anterior decisão, na
sequência do juízo de inconstitucionalidade proferido pelo Tribunal
Constitucional (Acórdão nº 408/2007), não tinha aplicado as normas, cuja
inconstitucionalidade, o recorrente pretendia, agora, ver apreciadas.
2º
O recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade de dois blocos
normativos: um formado pelos artigos 127º, 428º, nº 1 e 431º, alíneas a) e b) e
outro formado pelos artigos 127º, 136º, 412º, nº 4, 428º, nº 1 e 431º, alínea a)
e b), todos do Código Penal e numa determinada interpretação, que indica.
3º
A aplicação daquelas normas só poderia ter ocorrido no Acórdão da Relação do
Porto (complementado por aqueles que indeferiram o pedido de aclaração e a
arguição de nulidade), do qual foi interposto o primeiro recurso para este
Tribunal.
4º
No requerimento de interposição desse recurso, refere-se o primeiro bloco
normativo anteriormente indicado, nada se dizendo quanto ao segundo.
5º
No entanto, o já referido Acórdão nº 408/2007, que julgou inconstitucional as
normas dos artigos 374º, nº 2, e 425º, nº 2 e 425º, nº 4, do CPP, não conheceu,
naquela parte, do objecto do recurso, porque o recorrente não tinha comprido o
ónus de suscitação prévia de questão de inconstitucionalidade.
6º
Portanto, no momento processual próprio para colocar a questão de
constitucionalidade à apreciação do Tribunal Constitucional, o recorrente não o
fez, num caso, e não o fez adequadamente, no outro.
7º
Em síntese, o recorrente, na reclamação, argumenta com a conexão e
interdependência das diversas questões de inconstitucionalidade.
8º
Ora, tal só teria sentido se, por exemplo, o recorrente tivesse, no momento
próprio, colocado adequadamente as duas questões de constitucionalidade que
agora quer ver apreciadas e o Tribunal não tivesse delas conhecido,
exclusivamente por haver considerado esse conhecimento prejudicado, em
consequência do juízo de inconstitucionalidade que havia formulado sobre a outra
questão.
9º
Não foi essa, como se viu, a situação que ocorreu nos presentes autos.
10º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.» (fls. 4279 a 4281)
4. Por sua vez, notificado para responder ao teor da reclamação, o recorrido C.
veio expor o que se apresenta, resumidamente:
«5º A sentença reformada pelo Tribunal da Relação do Porto tem data de 23 de
Janeiro de 2008 e não aplica qualquer norma para além das que já foram objecto
de decisão pelo Tribunal Constitucional, para além da norma que consta do artigo
80º, n. °2 da LTC.
6º O Tribunal da Relação do Porto cumpriu integralmente o juízo de
inconstitucionalidade deste tribunal constitucional, reformando o Acórdão.
7° E disse esse mesmo Tribunal que manteria inalterada a fundamentação constante
do Acórdão alvo de reformulação.
8° Sendo destituída de sentido quer formal, quer substancial, a tese defendida
pelo recorrente, no sentido de que a reformulação da sentença de segunda
instância, nas condições acima descritas, pressuporia a reanálise critica de
todo o processo por aquele Tribunal da Relação, incluindo reavaliação da prova
gravada, que o recorrente pretende imperceptível, questão também já avaliada
pelo TC, com trânsito em julgado. E que aquela reanálise do TR poderia ou
deveria, na vontade expressa do recorrente, conduzir a uma pretendida renovação
do poder jurisdicional.
9° E, na linha do decidido por este Tribunal Constitucional, em 25/11/2009,
apenas pode este conhecer da constitucionalidade de normas ou de interpretações
normativas, efectivamente aplicadas pelos tribunais recorridos (artigo 79º - C
da LTC).
10º Não tendo sido verificada essa aplicação na decisão recorrida, não pode
realmente conhecer-se das questões de constitucionalidade deduzidas pelo
recorrente.» (fls. 4283 a 4286)
5. Igualmente notificado para o efeito, o recorrido B. veio autos declarar que
prescindia do prazo para resposta (fls. 4282).
Cumpre agora apreciar e decidir.
II ? FUNDAMENTAÇÃO
6. Antes de mais, deve realçar-se que o ora reclamante optou por uma leitura
fragmentada do Acórdão n.º 408/2007. É certo que o referido acórdão julgou
inconstitucional uma determinada interpretação normativa dos artigos 374º, n.º 2
e 425º, n.º 4, ambos do CPP, mas não é menos certo que esse mesmo acórdão ? há
muito transitado em julgado ? já havia proferido decisão sobre as questões de
inconstitucionalidade que o reclamante pretende agora ver, novamente, apreciadas
por este Tribunal. Em boa verdade, as interpretações normativas agora reputadas
de inconstitucionais já foram alvo de decisão de não conhecimento do objecto do
recurso, por parte do supra referido Acórdão n.º 408/2007.
Não pode, portanto, o reclamante pretender que a reformulação do acórdão
originariamente proferido a 15 de Março de 2006 constitui factor de criação de
um meio processual adequado para fazer renascer uma questão de
inconstitucionalidade normativa que já se encontra encerrada e alvo de decisão
do Tribunal Constitucional, há muito transitada em julgado.
Ora, como é bom de ver o acórdão de reformulação, proferido pelo Tribunal da
Relação do Porto, em 23 de Janeiro de 2008, não aplicou as normas constantes dos
artigos 127º, 363º, 412º, n.º 4, 428º, n.º 1 e 431º, alíneas a) e b), todos do
CPP, por se ter limitado a reformar o acórdão originariamente proferido em 15 de
Março de 2006, em estrito cumprimento do disposto no artigo 80º, n.º 2, da LTC.
É pois evidente que o acórdão proferido em 23 de Janeiro de 2008 não aplica, ?ex
novo?, as interpretações normativas reputadas de inconstitucionais nos presentes
autos de recurso.
Não o tendo feito, já julgou este Tribunal (através do Acórdão n.º 408/2007) que
essa questão não pode ser alvo de conhecimento.
A tese da pretensa renovação do poder jurisdicional do tribunal ?a quo? também
não colhe, na medida em que, no caso concreto dos autos, sendo a aferição de
quais foram as normas aplicadas pela decisão recorrida (conforme exigido pelo
artigo 79º-C da LTC) feita não num plano meramente hipotético, mas antes tendo
em atenção a concreta tramitação dos autos, é por demais evidente que a decisão
recorrida não aplicou efectivamente as normas reputadas de inconstitucionais
pelo reclamante.
Como tal, resta concluir pela improcedência da reclamação.
III ? DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no do n.º 3 do artigo
78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei
n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC?s, nos
termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 2 de Fevereiro de 2010
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Gil Galvão
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