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Processo n.º 869/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência no Tribunal Constitucional
Relatório
No âmbito do processo de impugnação judicial de liquidação de tributos n.º
313/04.2 BEBJA, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja, mediante sentença
proferida em 28 de Março de 2007, manteve a liquidação da contribuição
autárquica impugnada pela sociedade impugnante BANCO A., S.A..
Após interposição de recurso, tal decisão viria a ser confirmada pela Secção de
Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo mediante acórdão
proferido em 16 de Janeiro de 2008.
A sociedade impugnante interpôs então recurso desta decisão para o Pleno da
Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo
do disposto no artigo 284.º, do Código de Procedimento e Processo Tributário
(CPPT), e no artigo 27.º, n.º 1, alínea b), do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais (ETAF), na redacção da Lei n.º 13/2002, de 19 de
Fevereiro, com fundamento em alegada oposição de julgados.
Após este recurso ter sido liminarmente admitido pelo Juiz Conselheiro Relator
do referido acórdão, a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal
Administrativo veio a proferir decisão, datada de 10 de Setembro de 2008, nos
termos da qual concluiu que o recurso em questão não era admissível e não tomou
conhecimento do mesmo, apresentando para o efeito a seguinte fundamentação:
“(…) O Exmo. Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido de o
recurso ser dado por findo, dada a sua inadmissibilidade, uma vez que o novo
ETAF apenas prevê a competência do Plenário do STA para conhecer dos conflitos
de jurisdição entre os tribunais administrativos de círculo e tribunais
tributários.
Ouvido o recorrente, veio, em síntese, sustentar a “manifesta improcedência
deste entendimento” pois que, sempre em síntese e por um lado, a perfilhada
interpretação restritiva não tem um mínimo de correspondência na letra da lei e,
por outro, contraria frontalmente o direito de acesso aos tribunais,
impossibilitando o recorrente de obter a tutela jurisdicional efectiva
consagrada na Constituição.
Pelo que há que apreciar, desde já, a admissibilidade do recurso.
O presente processo iniciou-se depois de 1 de Janeiro de 2004 pelo que lhe é
aplicável o novo ETAF de 2002, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, e 4.º, n.º 2,
da Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção da Lei n.º 107-D/2003, de 31
de Dezembro.
E o seu artigo 27.º, n.º 1, alínea b), dispõe que cabe, ao Pleno da Secção do
Contencioso Tributário do STA, conhecer de “recursos para uniformização de
jurisprudência”.
Actualmente, a lei prevê dois tipos de recursos para o efeito: no artigo 152.º
do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, sob a epígrafe “recurso
para uniformização de jurisprudência”, e no artigo 284.º do Código de
Procedimento e de Processo Tributário, versando “oposição de acórdãos”.
E, embora sob diversa epígrafe, não pode duvidar-se que este último normativo
visa aquela uniformização, como logo resulta do respectivo conteúdo legal.
Não elenca, todavia, os respectivos pressupostos substanciais, por modo que logo
surge a questão de saber quais eles sejam ou em que consistem.
Ora, a resposta é justamente dada por aquele artigo 152.º, a que devemos
recorrer, face ao disposto no artigo 2.º do dito CPPT, de acordo, aliás, com a
natureza do caso omisso – alínea c).
Por outro lado, o artigo 29.º do mesmo ETAF estabelece a competência do
Plenário: “conhecer dos conflitos de jurisdição entre tribunais administrativos
de círculo e tribunais tributários ou entre as secções de contencioso
administrativo e do contencioso tributário”.
Temos, assim, que o novo ETAF não prevê qualquer competência para conhecer de
recursos, por oposição de acórdãos, das secções do contencioso tributário e
administrativo, do STA.
Na verdade, estando em causa acórdãos das duas secções, a respectiva oposição só
podia ser equacionada por uma formação mista, integrando elementos das secções
tributária e administrativa já que, na circunstância, o tribunal se pronuncia
“sobre a mesma questão fundamental de direito” pelo que a respectiva competência
só podia ser do plenário – cfr. artigo 28.º do ETAF.
Como acontecia com o ETAF de 1984, na redacção do Decreto-Lei n.º 229/96, de 29
de Novembro, pois que o seu artigo 22.º, alínea a), justamente previa recurso
para o Plenário, nomeadamente de acórdãos das secções, proferidos ao abrigo das
alíneas a) dos artigos 24.º e 30.º, isto é, das secções do contencioso
administrativo e tributário.
Verifica-se, assim, não ser admissível recurso por oposição de julgados da
secção do contencioso tributário e do contencioso administrativo do STA, como é
o caso em que é interposto recurso do aresto de fls. 218, daquela primeira
secção, por oposição com dois acórdãos da secção do contencioso administrativo.
À tese exposta, objecta, porém, o recorrente com duas ordens de considerações.
Desde logo, que a apontada interpretação restritiva não tem, na letra da lei, a
mínima correspondência.
Mas nem o podia ter, logo por definição conceitual.
Ali, o intérprete chega à conclusão que o legislador minus dixit quam voluit: o
texto atraiçoa o seu pensamento pois que diz mais do que aquilo que pretendia
dizer. Aí, deverá o intérprete restringir o alcance aparente do texto, de modo a
torná-lo compatível com a ratio legis, pois que cessante ratione legis, ejus
disposito cessat (onde termina a razão de ser da lei, assim termina o seu
alcance) (Cfr. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso
Legitimador, p. 186.)
Em tal circunstancialismo, pois, a operação que o intérprete faz é justamente
introduzir um elemento restritivo, colocando o texto de acordo com a ratio do
preceito; se este dali constasse, estaria em causa uma interpretação
declarativa, não restritiva (Cfr. artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil).
E, “por outro lado, é também manifesto que a interpretação da referência a
“acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo”, feita na alínea b) do n.º 1 do
artigo 152.º do CPTA, como reportando-se, no contencioso administrativo, a
“acórdão proferido pela secção do contencioso administrativo do STA” e, na
adaptação ao direito tributário, como significando “acórdão proferido pela
secção do contencioso tributário do STA” tem, no texto daquela norma, muito mais
do que um mínimo de correspondência verbal: na verdade, é inquestionável que os
acórdãos proferidos pela secção do contencioso administrativo e pela secção do
contencioso tributário do STA são “acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo”,
como se refere naquela alínea b) do n.º 1 do artigo 152.º e são “acórdãos”, como
se exige no artigo 284.º do CPPT” (Cfr. o recente acórdão do STA de 14 de Julho
de 2008 – recurso n.º 764/07, versando a mesma problemática e em relação, aliás,
ao mesmo impugnante, ora recorrente).
E pretende este, bem assim, que a predita interpretação, sem qualquer apoio na
letra lei, constitui restrição sem qualquer fundamento válido do direito de
acesso aos tribunais, de consagração constitucional, com prejuízo da tutela
judicial efectiva constitucionalmente prevista – artigo 20.º e 268.º, n.º 4, da
Constituição.
Não é, todavia, o que mostram os autos.
Na verdade, o recorrente deduziu impugnação judicial e, inconformado com a
respectiva sentença, recorreu para o STA onde viu novamente apreciada a sua
pretensão.
Viu assim materializado o seu direito à pretendida tutela.
Na verdade, a Constituição não consagra, hic et semper, a existência, sequer, de
um segundo grau de jurisdição, quanto mais de um terceiro.
Mesmo aquele apenas aparece consagrado em determinadas matérias de natureza
penal e processual penal, como é jurisprudência constante do Tribunal
Constitucional: sentenças condenatórias e outros actos que tenham como efeito a
privação ou restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais (Cfr., por
todos, os acórdãos de 7 de Novembro de 2007 – recurso n.º 549/07, e de 23 de
Janeiro de 2008 – recurso n.º 40/08).
“De um modo geral pode afirmar-se que, fora do domínio penal, o princípio da
efectividade do direito ao recurso, a implicar duplo grau de recurso, não
constitui garantia constitucional, tendo apenas (…) o alcance de uma proibição
ao legislador de eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e
qualquer caso ou de a inviabilizar na prática”.
Pelo que se não mostra violado o direito de acesso aos tribunais (…)”.
A sociedade impugnante recorreu desta última decisão para o Tribunal
Constitucional, nos seguintes termos:
“(...) BANCO A.. S.A. (...) vem, ao abrigo do disposto nos arts. 70º/1/b) e
70º/2/3/4 e 6 da Lei 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações introduzidas
pela Lei 143/85, de 26 de Novembro, pela Lei 85/89, de 7 de Setembro, pela Lei
88/95, de 1 de Setembro e pela Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro, recorrer do
referido acórdão para o Venerando Tribunal Constitucional (v. Ac. TC n.º
331/2005, Proc. 396/05 in www.tribunalconstitucional.pt), com fundamento na
inconstitucionalidade da norma do art. 152º do CPTA, face às normas e princípios
constitucionais consagrados nos arts. 20.º e 268.º da CRP, quando interpretada e
aplicada com a dimensão e sentido normativo que lhe foi atribuído, na parte em
que se considerou que, aplicando-se “aquele artigo 152º, a que devemos recorrer,
face ao disposto no artigo 2º do dito CPPT, de acordo, aliás, com a natureza do
caso omisso – alínea c) (...) não (é) admissível recurso por oposição de
julgados da Secção do Contencioso Tributário e do Contencioso Administrativo do
STA, como é o caso em que é interposto recurso do aresto de fls. 218, daquela 1ª
Secção, por oposição com dois acórdãos da Secção do Contencioso Administrativo”.
Em 25 de Novembro de 2008 foi proferida decisão sumária de não conhecimento do
recurso com a seguinte fundamentação:
“O presente recurso versa a matéria do direito de acesso dos cidadãos aos
tribunais para defesa dos seus direitos, em especial o acesso ao Pleno da Secção
de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo mediante
interposição de recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência.
A sociedade recorrente interpôs recurso para uniformização de jurisprudência de
um acórdão proferido pela Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal
Administrativo com fundamento na oposição de julgados existente entre esse mesmo
acórdão e dois outros acórdãos anteriormente proferidos pela Secção de
Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, tudo ao abrigo do
disposto no artigo 284.º, do Código de Procedimento e Processo Tributário
(CPPT), e no art. 27.º, n.º 1, alínea b), do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais (ETAF), na redacção da Lei n.º 13/2002, de 19 de
Fevereiro.
Porém, o tribunal recorrido viria a rejeitar esse recurso ao abrigo da aplicação
subsidiária da norma contida no artigo 152.º, n.º 1, al. b), do Código de
Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aprovado pela Lei n.º 15/2002, de
22 de Fevereiro, na interpretação segundo a qual não é admissível recurso para
uniformização de jurisprudência fundado em contradição existente entre um
acórdão da Secção de Contencioso Tributário do STA e um acórdão da Secção de
Contencioso Administrativo do STA.
A sociedade recorrente entende que tal interpretação normativa viola as normas e
os princípios constitucionais consagrados nos artigos 20.º e 268.º da
Constituição.
O n.º 1 do art. 20.º da Constituição prescreve, com relevância para o caso
concreto, que “a todos é assegurado o acesso ao Direito e aos tribunais para
defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (...)”,
especificando o n.º 4 do art. 268.º, por referência à justiça administrativa e
tributária, que “é garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos
seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o
reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos
administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da
prática de actos administrativos devidos e a adopção de medidas cautelares
adequadas”.
A sociedade recorrente entende que a referida interpretação normativa viola o
direito constitucional de acesso aos tribunais e o princípio da plenitude da
garantia jurisdicional administrativa.
O Tribunal Constitucional já se debruçou amiúde sobre o fulcro da questão da
inconstitucionalidade dos presentes autos – direito ao terceiro grau de
jurisdição – e concluiu invariavelmente que o direito de acesso à justiça não
comporta um irrestrito direito a aceder ao Supremo Tribunal de Justiça, muito
menos por via de recurso extraordinário.
Fê-lo, por exemplo, através do acórdão n.º 247/97, quando emitiu um juízo
negativo de inconstitucionalidade a respeito da interpretação normativa que,
mesmo em sede de processo criminal, vedava ao arguido o direito ao recurso
extraordinário de fixação de jurisprudência em caso de oposição de julgados
existente entre um acórdão do Tribunal da Relação e um acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça (DR II Série, 17-5-1997).
Foi então avançado que o princípio constitucional da plenitude das garantias de
defesa do arguido, ainda que esteja em causa arguido condenado com uma pena
privativa de liberdade, se basta com a garantia de um segundo grau de
jurisdição, e que a mera oposição de julgados relativamente à mesma questão de
direito não constitui motivo suficiente para impor ao legislador a previsão de
um recurso extraordinário para a fixação de jurisprudência em todas as hipóteses
possíveis, a nível de tribunais superiores, de oposição de decisões.
Esse juízo negativo de inconstitucionalidade foi reiterado pelo Tribunal
Constitucional a respeito de outras situações de inadmissibilidade de recurso
extraordinário para a uniformização de jurisprudência, nomeadamente, nos
acórdãos n.º 571/98 (DR II Série, 26-11-1999) e 168/2003 (DR II Série,
26-5-2003).
Esta orientação do Tribunal Constitucional sobre a extensão do direito
de acesso aos tribunais e do direito de recurso em processo criminal não sofreu
alterações até aos nossos dias, conforme se alcança da leitura do seu recente
acórdão n.º 40/2008 (DR II Série, 28-2-2008), em especial da parte em que se
reiterou que:
«Ora, relativamente ao direito de acesso aos tribunais, constitui
reiterado entendimento deste Tribunal o de que do artigo 20.º, n.º 1, da CRP
não decorre um direito geral a um duplo grau de jurisdição, como já se
explicitou nos atrás parcialmente transcritos Acórdãos n.ºs 489/95 e 1124/96.
Como se referiu no Acórdão n.º 638/98 (na senda do já exposto, entre outros, nos
Acórdãos n.ºs 210/92, 346/92, 403/94, 475/94, 95/95, 270/95, 336/95, 715/96,
328/97, 234/98 e 276/98, e explicitando orientação posteriormente reiterada em
numerosos arestos, designadamente nos Acórdãos n.ºs 202/99, 373/99, 415/2001,
261/2002, 302/2005, 689/2005, 399/2007 e 500/2007):
“7. O artigo 20.º, n.º 1, da Constituição assegura a todos «o acesso
ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente
protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios
económicos».
Tal direito consiste no direito a ver solucionados os conflitos,
segundo a lei aplicável, por um órgão que ofereça garantias de imparcialidade e
independência, e face ao qual as partes se encontrem em condições de plena
igualdade no que diz respeito à defesa dos respectivos pontos de vista
(designadamente sem que a insuficiência de meios económicos possa prejudicar tal
possibilidade). Ao fim e ao cabo, este direito é ele próprio uma garantia geral
de todos os restantes direitos e interesses legalmente protegidos.
Mas terá de ser assegurado em mais de um grau de jurisdição,
incluindo‑se nele também a garantia de recurso? Ou bastará um grau de
jurisdição?
A Constituição não contém preceito expresso que consagre o direito ao
recurso para um outro tribunal, nem em processo administrativo, nem em processo
civil; e, em processo penal, só após a última revisão constitucional (constante
da Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro), passou a incluir, no artigo
32.º, a menção expressa ao recurso, incluído nas garantias de defesa, assim
consagrando, aliás, a jurisprudência constitucional anterior a esta revisão, e
segundo a qual a Constituição consagra o duplo grau de jurisdição em matéria
penal, na medida (mas só na medida) em que o direito ao recurso integra esse
núcleo essencial das garantias de defesa previstas naquele artigo 32.º
Para além disso, algumas vozes têm considerado como
constitucionalmente incluído no princípio do Estado de direito democrático o
direito ao recurso de decisões que afectem direitos, liberdades e garantias
constitucionalmente garantidos, mesmo fora do âmbito penal (ver, a este
respeito, as declarações de voto dos Conselheiros Vital Moreira e António
Vitorino, respectivamente no Acórdão n.º 65/88, Acórdãos do Tribunal
Constitucional, vol. 11.º, p. 653, e no Acórdão n.º 202/90, id., vol. 16.º, p.
505).
Em relação aos restantes casos, todavia, o legislador apenas não
poderá suprimir ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer.
Na verdade, este Tribunal tem entendido, e continua a entender, com A.
Ribeiro Mendes (Direito Processual Civil, III – Recursos, AAFDL, Lisboa, 1982,
p. 126), que, impondo a Constituição uma hierarquia dos tribunais judiciais
(com o Supremo Tribunal de Justiça no topo, sem prejuízo da competência própria
do Tribunal Constitucional – artigo 210.º), terá de admitir‑se que «o legislador
ordinário não poderá suprimir em bloco os tribunais de recurso e os próprios
recursos» (cf., a este propósito, Acórdãos n.º 31/87, Acórdãos do Tribunal
Constitucional, vol. 9.º, p. 463, e n.º 340/90, id., vol. 17.º, p. 349).
Como a Lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso,
pode concluir‑se que o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente
a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na
prática. Já não está, porém, impedido de regular, com larga margem de
liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões (cf. os
citados Acórdãos n.ºs 31/87 e 65/88, e ainda n.º 178/88 (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, vol.. 12.º, p. 569); sobre o direito à tutela jurisdicional,
ainda Acórdãos n.º 359/86 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 8.º, p.
605), n.º 24/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11.º, p. 525) e n.º
450/89 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 13.º, p. 1307).
O legislador ordinário terá, pois, de assegurar o recurso das decisões
penais condenatórias e ainda, segundo certo entendimento, de quaisquer decisões
que tenham como efeito afectar direitos, liberdades e garantias
constitucionalmente reconhecidos. Quanto aos restantes casos, goza de ampla
margem de manobra na conformação concreta do direito ao recurso, desde que não
suprima em globo a faculdade de recorrer.”
Não se vislumbra nenhuma razão para abandonar aqui a referida jurisprudência,
mesmo que esteja em causa um alegado caso de oposição de julgados existente
entre acórdãos proferidos pela Secção de Contencioso Administrativo e pela
Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.
Mesmo na jurisdição administrativa e tributária, até por força de um argumento a
fortiori, o direito de acesso aos tribunais e a garantia jurisdicional
administrativa não vão além de um segundo grau de jurisdição, conforme já foi
reconhecido pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 520/2007 (DR II Série,
5-12-2007).
No caso concreto, a sociedade recorrente viu a sua pretensão de impugnação de
liquidação tributária ser sucessivamente apreciada e julgada pelo Tribunal
Administrativo e Fiscal de Beja e pela Secção de Contencioso Tributário do
Supremo Tribunal Administrativo.
É assim possível concluir que o direito de acesso aos tribunais e o princípio da
plenitude da garantia jurisdicional administrativa foram adequadamente
assegurados pelo legislador ordinário e efectivamente gozados pela sociedade
recorrente para defesa dos seus direitos.
Deste modo, por ser manifesta a falta de razão da sociedade recorrente, deve o
presente recurso de constitucionalidade ser julgado improcedente proferindo-se
decisão sumária nesse sentido, nos termos do n.º 1 do art.º 78.º - A, da LTC.”
O recorrente reclamou desta decisão, apresentando as seguintes razões:
“1. Conforme resulta do requerimento apresentado, em 2008.09.23, a recorrente
interpôs recurso para este Venerando Tribunal Constitucional do douto acórdão do
STA de 2008.09.10, com fundamento na inconstitucionalidade da norma do art. 152º
do CPTA, face às normas e princípios constitucionais consagrados nos arts. 20° e
268° da CRP, quando interpretada e aplicada com a dimensão e sentido normativo
que lhe foi atribuído pela referida decisão, na parte em que se considerou que,
nos termos do 'artigo 152°, a que devemos recorrer, face ao disposto no artigo
2° do dito CPPT, de acordo, aliás, com a natureza do caso omisso - alínea c) (
... ) não (é) admissível recurso por oposição de julgados da Secção do
Contencioso Tributário e do Contencioso Administrativo do STA, como é o caso em
que é interposto recurso do aresto de fls. 218, daquela Secção, por oposição com
dois acórdãos da Secção do Contencioso Administrativo'.
A douta decisão sumária considerou que 'o direito de acesso aos tribunais e a
garantia jurisdicional administrativa não vão além de um segundo grau de
jurisdição ( ... ) efectivamente gozados pela sociedade recorrente para defesa
dos seus direitos', tendo concluído que 'por ser manifesta a falta de razão da
sociedade recorrente, deve o presente recurso de constitucionalidade ser julgado
improcedente' .
Salvo o devido respeito - e é verdadeiramente muito -, cremos que o recurso em
causa deverá ser admitido, pois não é admissível a interpretação restritiva do
art. 152° do CPTA, nos termos constantes das decisões em análise.
2. Em primeiro lugar, a interpretação perfilhada no douto despacho em análise
não tem um mínimo de correspondência verbal na letra da lei (v. art. 9°/2 do C.
Civil).
O art. 152° do CPTA dispõe o seguinte:
' 1 - As partes e o Ministério Público podem dirigir ao Supremo Tribunal
Administrativo, no prazo de 30 dias contado do trânsito em julgado do acórdão
impugnado, pedido de admissão de recurso para uniformização de jurisprudência,
quando, sobre a mesma questão fundamental de direito, exista contradição: ( ...
)
b) Entre dois acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo'.
Por seu turno, o art. 284°/1 do CPPT estatui:
'Caso o fundamento for a oposição de acórdãos, o requerimento da interposição do
recurso deve indicar com a necessária individualização os acórdãos anteriores
que estejam em oposição com o acórdão recorrido, bem com o lugar em que tenham
sido publicados ou estejam registados, sob pena de não ser admitido o recurso'.
Conforme bem se salientou no douto parecer da Procuradoria Geral da República
nº. 41/94, de 12 de Maio de 1994, na esteira de doutrina pacífica:
'O limite da interpretação é a letra, o texto de norma, cabendo-lhe desde logo
uma função negativa - a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer
apoio, ou pelo menos uma quaisquer correspondência ou «ressonância» nas palavras
da lei ( ... )
Como bem sublinha Oliveira Ascensão, 'a letra não é só o ponto de partida, é
também um elemento irremovível de toda a interpretação' (V. O Direito -
Introdução e Teoria Geral, 1978, p.p. 350; cfr. O Direito, 6ª ed., 1991, p.p.
3687), sendo certo que 'interpretar uma lei não é mais do que fzxar o seu
sentido e o alcance com que ela deve valer, ou seja, determinar o seu sentido e
alcance decisivos' (v. Manuel de Andrade, Ensaio sobre a Teoria da Interpretação
das Leis, p.p. 21 a 262), por forma a 'não só descobrir o sentido que está por
detrás da expressão, como também, dentro das várias significações que estão
cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva' (v. Pires de Lima e
Antunes Varela, Noções Fundamentais, II, 5ª ed., p.p. 130)'.
Ora, a interpretação restritiva do art. 152° do CPTA constante da douta decisão
sumária em análise, no sentido de que 'não é admissível recurso para
uniformização de jurisprudência fundado em contradição existente entre um
acórdão da Secção de Contencioso Tributário do STA e um acórdão da Secção de
Contencioso Administrativo do STA', não tem um mínimo de correspondência verbal
na letra do referido normativo, nem na letra do art. 284° do CPPT, que regula o
recurso por oposição de acórdãos no processo tributário (v. art. 9°/2 do C.
Civil).
3. Em segundo lugar, a interpretação restritiva do art. 152° do CPTA, nos termos
definidos pela douta decisão sumária em análise, sem qualquer apoio na letra da
lei, sempre constituiria uma restrição, sem qualquer fundamento, ao direito de
acesso aos Tribunais da ora reclamante. constitucionalmente consagrado,
impossibilitando-a de obter tutela judicial efectiva (v. arts. 20° e 268°/4 da
CRP). Com efeito, o artigo 20°/1 da CRP determina:
' A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus
direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por
insuficiência de meios económicos'.
A garantia da via judiciária impõe-se, como direito de natureza análoga aos
direitos, liberdades e garantias, a todas as entidades públicas e privadas (v.
arts. 17° e 18°/1 da CRP) e naturalmente, também aos Tribunais, sujeitos à
Constituição e à lei (v. arts. 203° e 204° da CRP; cfr. Gomes Canotilho e Vital
Moreira, CRP Anotada, 3ª ed., p.p. 161 e segs.; Jorge Miranda, Manual de Direito
Constitucional, 1988, IV/251 e segs.; Mário de Brito, Acesso ao Direito e aos
Tribunais, in O Direito, 1995, III - IV/351-353; Carlos Lopes do Rego, Acesso ao
Direito e aos Tribunais, in Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal
Constitucional, 1993, p.p. 45 e segs.).
Por seu turno, como bem escreveu Garcia de Enterria:
'La jurisprudência no puede emplearse en crear impedimentos o limitaciones a los
derechos fundamentales, y menos aún derecho a la tutela judicial efectiva, de
cuyo ejercicio resulta justamente la possibilidade misma de que las decisiones
judiciales se produzean' . . . 'y lo que es inconstitucional, en efecto, es
utilizar los poderes interpretativos y aplicativos de las leys para crear
impedimentos o limitaciones a los derechos fundamentales, y en particular al
derecho de libre acesso de los ciudadanos a la justicia para obtener de ella una
tutela efectiva a los derechos e intereses legítimos' (v. Revista Espanola de
Derecho Administrativo, nº 46, p.p. 177).
O reputado administrativista espanhol refere ainda que 'lo esencial es llegar al
fondo de los recursos, a lo que deben subordinarse las formalidades procesales,
evitando su sustantivización; que las excepciones a la admisión de los recursos
son de interpretación, no ya enunciativa o declarativa, sino positivamente
restrictiva, en cuanto reglas odiosas por contradecir o limitar esse derecho
fundamental y natural; que lo esencial es hacer posible el ejercicio de dicho
derecho, para lo cual debe buscarse siempre en toda cuestión disputada sobre la
materia la interpretación precisamente más favorable a este efecto' (v. Eduardo
Garcia de Enterria citado in Juán Maria Pemán Gavin, Algunas Manifestaciones dei
principio «Pro Actione» en la reciente Jurisprudencial dei Tribunal Supremo,
Revista de Administración Pública, Madrid, n.º 104, p.p. 252).
O referido ensinamento foi acolhido e já por diversas vezes reiterado pela
jurisprudência espanhola, referindo-se que 'la Sala no puede dejar de apuntar la
también reciente doctrina jurisprudencial ( ... ) que insiste en la necesidad de
mantener que en la materia de los requisitos o presupuestos procesales
(inadmisibilidad) los criterios informantes del sistema - art. 24.1 de la
Constitución y Exposición de Motivos de la Ley - son los de f1exibilidad y
apertura com la finalidad de lograr una completa o plena garantía jurisdiccional
por parte de todos los litigantes (ya sean personas físicas ou jurídicas) y que
sólo se logra si el Tribunal da una respuesta adecuada y congruente com la
temática planteada sin escudarse en razones formales que en la mayoría de los
casos - y por las especialidades del proceso contencioso - suponen auténticas
denegaciones de justicia (S. de febrero 1982, Arz. 931, Ponente: Martin Martín)'
(Juán María Pemán Gavín, obra citada, pág. 258).
Ora, conforme se refere na decisão sumária em análise 'o legislador está
impedido de eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e
qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática. Já não está, porém impedido de
regular, com larga margem de liberdade, a existência dos recursos e a
recorribilidade das decisões'.
No âmbito da 'larga margem de liberdade' na conformação concreta do direito ao
recurso, o legislador ordinário 'íntroduz(iu) um novo recurso para uniformização
de jurisprudência, dirigido ao Supremo Tribunal Administrativo, que, embora
estruturado em moldes claramente distintos daqueles que caracterizavam o
clássico recurso de oposição de acórdãos, vem suceder àquele na resolução de
conflitos resultantes da verificação da existência de contradições, sobre a
mesma questão fundamental de direito, entre dois acórdãos do Supremo Tribunal
Administrativo ou entre um acórdão do Tribunal Central Administrativo e um
acórdão anteriormente proferido pelo mesmo tribunal ou pelo Supremo Tribunal
Administrativo' (v. Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo nos
Tribunais Administrativos, 2.8 edição, 2003, p.p. 325).
É inquestionável que os acórdãos proferidos pela Secção do Contencioso
Administrativo e pela Secção do Contencioso Tributário do STA são acórdãos do
Supremo Tribunal Administrativo.
A tese perfilhada pelo STA e por este Venerando Tribunal Constitucional poderia
conduzir a hipóteses ad absurdum: imagine-se que o legislador, na sequência do
que vem sendo defendido por alguma doutrina (v.g. Vasco Pereira da Silva, Ventos
de Mudança no Contencioso Administrativo, Almedina, Coimbra, 2000, p.p. 15 e
104), criava tribunais especializados em função da matéria (Direito do Ambiente,
do Urbanismo, da Função Pública, etc.), de forma semelhante ao que ocorre na
'Sala Tercera de lo Contencioso-Administrativo' do Tribunal Supremo de Espanha,
dividida em 7 secções.
Nestas situações poderia ou não o particular lesado invocar contradição entre
acordãos de diferentes secções?
4. Do exposto resulta claramente que nunca poderia ser aplicável in casu o
disposto no art. 152° do CPTA, com a interpretação restritiva e desconforme à
Constituição que lhe foi atribuída pela douta decisão sumária em causa (v. arts.
20° e 268°/4 da CRP).
*
Fundamentação
Na reclamação apresentada questiona-se criticamente a bondade da interpretação
normativa que é objecto do presente recurso, pretendendo-se que o
alegado erro de interpretação corresponda a uma inconstitucionalidade.
Não cabe a este tribunal ajuizar da correcção da aplicação do direito
infraconstitucional, mas apenas verificar se a interpretação sustentada na
decisão recorrida viola algum parâmetro constitucional.
Ora, conforme a decisão reclamada bem explica, após a pretensão do recorrente já
ter sido apreciada por duas instâncias, a mera oposição de julgados
relativamente à mesma questão de direito, não constitui motivo suficiente para
que se considere que o direito ao acesso aos tribunais, nomeadamente o direito à
impugnação jurisdicional dos actos da Administração, imponha ao legislador a
previsão de um recurso extraordinário para a fixação de jurisprudência em todas
as hipóteses possíveis, a nível de tribunais superiores, de oposição de
decisões.
A possibilidade de previsão e conformação de um recurso deste tipo situa-se na
ampla margem de manobra que assiste ao legislador nesta temática processual,
pelo que a interpretação questionada não viola qualquer parâmetro
constitucional.
Por este motivo deve ser indeferida a reclamação apresentada.
*
Decisão
Pelo exposto indefere-se a reclamação apresentada pelo BANCO A., S.A., da
decisão sumária proferida nestes autos em 25 de Novembro de 2008.
*
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta,
ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º
303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 20 de Janeiro de 2009
João Cura Mariano
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos
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