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Processo nº 514/2008
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. Em 16 de Julho de 2008 foi proferida decisão sumária, nos termos do n.º 1 do
artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal
Constitucional), por se entender que a questão de constitucionalidade suscitada
havia sido já objecto de decisão anterior do Tribunal Constitucional.
Esta decisão assentou nos seguintes fundamentos essenciais:
(…)
2. Analisados os autos – e sendo a norma questionada a norma dos artigos 800.º
e 678.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, “quando não se permite o recurso de
uma sentença condenatória, baseada apenas em valores estritamente económicos”,
nos termos vistos –, conclui-se que é de proferir decisão sumária ao abrigo do
disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional.
Decorre de uma já vasta e firme jurisprudência deste Tribunal quanto ao sentido
da garantia de acesso ao direito e aos tribunais, que a Constituição não impõe
ao legislador ordinário que permita sempre aos interessados o acesso a
diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos; fora do domínio do
processo penal, o legislador dispõe, com efeito, de liberdade no estabelecimento
dos requisitos de admissibilidade dos recursos, designadamente quando reportados
ao valor da acção ou da sucumbência, como sucede com o estabelecimento de
alçadas.
Pode ler-se, por exemplo, no Acórdão n.º 431/2002 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt):
De facto, é jurisprudência firme deste Tribunal que a Constituição, maxime, o
direito de acesso aos tribunais, não impõe ao legislador ordinário que garanta
sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa
dos seus direitos, destacando-se os Pareceres da Comissão Constitucional nºs.
8/78 (5º vol.) e 9/82 (19º vol.) e o Acórdão nº. 65/88, de 23 de Março, in
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., págs. 653 a 670.
Mais recentemente, ilustram esse entendimento, entre muitos outros, o Acórdão
nº. 149/99, de 9 de Março, de que se transcreve:
De resto e já em termos gerais, na interpretação do disposto no artigo 20º, nº 1
da C.R.P., o Tribunal Constitucional vem reiteradamente entendendo que a
Constituição não consagra um direito geral de recurso das decisões judiciais,
afora aquelas de natureza criminal condenatória e, aqui, por força do artigo
32º, nº 1 da Lei Fundamental (cfr., por todos, Acórdão nº 673/95 in DR, II
Série, de 20/3/96); e no mesmo sentido aponta a maioria da doutrina (cfr.
Ribeiro Mendes “Direito Processual Civil” AAFDL, vol. III pp. 124 e 125 e Vieira
de Andrade “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976” pp. 332
e 333).
Também no Acórdão nº. 239/97, de 12 de Março, se disse:
A existência de limitações de recorribilidade, designadamente através do
estabelecimento de alçadas (de limites de valor até ao qual um determinado
tribunal decide sem recurso), funciona como mecanismo de racionalização do
sistema judiciário, permitindo que o acesso à justiça não seja, na prática,
posto em causa pelo colapso do sistema, decorrente da chegada de todas (ou da
esmagadora maioria) das acções aos diversos ‘patamares’ de recurso.
Na situação aqui em causa, do que se trata, essencialmente, é do funcionamento
da regra das alçadas: as acções que nunca chegariam ao Supremo Tribunal, e
consequentemente ao pleno, por não disporem de alçada, são subtraídas – ou dito
de outra forma, não são abrangidas – pela legitimação especial de recurso
contida no artigo 764º.
Ora, sendo certo que as alçadas, bem como todos os mecanismos de ‘filtragem’ de
recursos, originam desigualdades (partes há que podem recorrer e outras não),
estas não se configuram como discriminatórias, já que todas as acções contidas
no espaço de determinada alçada são, em matéria de recurso, tratadas da mesma
forma.
Significa isto que a regra básica de igualdade, traduzida numa exigência de
tratamento igual do que é igual e diferente do que é diferente, proibindo,
designadamente a chamada ‘discriminação intolerável’ ...., não é afectada pelo
específico aspecto do recurso para o pleno dos acórdãos da Relação, questionado
pelo recorrente.
Por seu turno, no Acórdão nº. 72/99, de 3 de Fevereiro de 1999, que acompanha
este último acabado de transcrever, destacam-se outros acórdãos demonstrativos
desta jurisprudência:
A limitação do recurso em função das alçadas não ofende também o princípio
constitucional de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no artigo 20º da
Constituição da República Portuguesa. Nesse sentido se tem pronunciado a
jurisprudência constante do Tribunal Constitucional. Assim, vejam-se, como mais
significativos, os acórdãos nºs 163/90 (publicado em Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 16º vol., p. 301 ss); 210/92 (publicado em Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 22º vol., p. 543 ss); 340/94 e 403/94 (não publicados); 95/95
(publicado no Diário da República, II Série, nº 93, de 20.4.1995); 377/96
(publicado no Diário da República, II Série, nº 160, de 12.7.1996).
É este entendimento que se impõe reiterar no presente recurso. Assim, pelos
fundamentos dos Acórdãos citados, reafirma-se que a norma questionada não padece
da inconstitucionalidade que lhe é apontada pelo recorrente.
2. Notificado desta decisão, A. veio reclamar para a conferência, dizendo o
seguinte:
1°
Existiu omissão de pronúncia na decisão sumária, ora reclamada, reiterando o
recorrente os seus fundamentos de recurso datados de 19.05.2008 (artigos 1° a
26°).
2°
A inconstitucionalidade alegada pelo recorrente, verifica-se, não apenas em
abstracto, mas no caso concreto.
3°
Estando em apreço o valor processual de uma causa, tem que se atender sempre ao
valor da sucumbência do recurso, nos termos do artigo 678°, n°1 do CPC, porém no
vertente caso, o valor encontra-se definido desde a prolação do despacho
saneador, conforme vem estatuído no artigo 315°. n° 1 e 2 do CPC e já indicado
no artigo 1° deste articulado.
4°
O recurso interposto em sede de 1ª instância pelo recorrente, tem que abranger o
valor da execução, bem como os honorários de solicitador de execução, sendo
neste caso superior à alçada de que se recorre.
5°
Assim, não está apenas em questão a inconstitucionalidade das normas referidas,
mas também o entendimento perfilhado pelo Tribunal da Relação de Coimbra de que
os “honorários do solicitador de execução, não são contabilizados para efeitos
de sucumbência do recurso”.
6°
Não são apenas inconstitucionais as normas citadas pelo recorrente, sendo
igualmente inconstitucional o entendimento perfilhado ao abrigo do artigo 678°,
n° 1 do CPC, sobre o somatório dos honorários de solicitador de execução.
7°
O que viola necessariamente o princípio da igualdade previsto no artigo 13° e
20º, n° 4 da CRP.
8°
Atenta a clara omissão de pronúncia, deverá ser admitido o recurso interposto
pelo recorrente, sendo o mesmo notificado para apresentar alegações.
Requer assim:
Que seja admitido o presente recurso, notificando-se o recorrente para
apresentar as respectivas alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentos
3. Adiante-se desde já que a presente reclamação não pode obter provimento, por
não abalar os fundamentos em que se baseou a decisão reclamada.
A. alega que a Decisão Sumária sob reclamação padece de omissão de pronúncia, na
medida em que a inconstitucionalidade suscitada pelo ora reclamante
“verifica-se, não apenas em abstracto, mas no caso concreto”, devendo, por isso,
o Tribunal Constitucional averiguar da constitucionalidade do entendimento do
Tribunal a quo “perfilhado ao abrigo do artigo 678.º, n.º 1, do CPC, sobre o
somatório dos honorários de solicitador de execução”.
O reclamante alega, porém, sem razão.
4. A argumentação expendida pelo reclamante funda-se numa premissa única e que
é a de que a Decisão Sumária proferida padece de omissão de pronúncia.
Ora, o objecto do recurso de constitucionalidade interposto pelo ora reclamante
prende-se, conforme explicitado no seu requerimento de recurso (pontos 27º a 39º
do requerimento de recurso a fls. 254 e ss), com a alegada inconstitucionalidade
dos artigos 800.º e 678.º, n.º 1, do CPC, por violação do direito ao recurso,
plasmado no artigo 13.º, n.º 2 e 20.º da Constituição da República Portuguesa.
Tendo sido, aliás, esta a questão de constitucionalidade apreciada pelo Tribunal
da Relação de Coimbra conforme se pode ler no seguinte trecho da respectiva
decisão (fls. 231 e verso):
Esclarecido isto, importa, agora, analisar o problema da admissibilidade do
último recurso interposto pelo Reclamante. E, no que a tal concerne, cabe
referir, desde logo, que a admissibilidade de recurso está condicionada, através
de limites objectivos fixados na lei derivados, nomeadamente, da natureza dos
interesses envolvidos, da menor relevância das causas ou da repercussão
económica para a parte vencida (art.° 678°, n.° 1 do Cód. Proc. Civil) […].
Na verdade, a garantia decorrente do acesso ao direito e aos tribunais,
consagrada no art.° 20°, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa, não
implica a generalização do duplo grau de jurisdição em matéria cível, dispondo o
legislador ordinário de ampla liberdade de conformação no estabelecimento de
requisitos de admissibilidade dos recursos […]. Esta depende, segundo o art.°
678°, n.° 1 do Cód. Proc. Civil, da verificação cumulativa de um duplo
requisito: a) que a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se
recorre; b) que a decisão impugnada seja desfavorável para o respectivo
recorrente (sucumbência) em valor superior a metade da alçada do tribunal que
proferiu a decisão de que se recorre.
O último dos apontados requisitos (o atinente à sucumbência do Reclamante) não
se questiona, pois a oposição à execução foi julgada totalmente improcedente e,
independentemente do valor que se atribua àquela, a sucumbência do Reclamante
será sempre superior a metade da alçada do tribunal de primeira instância.
Resta, assim, apenas a apreciação do primeiro. E, quanto a este, parece-me óbvio
que não se verifica.
Na verdade, o valor da alçada do tribunal recorrido é de 3.740,98 euros (art.°
24°, n.° 1 da Lei 3/99, de 13 de Janeiro, e DL 323/01, de 17 de Dezembro) e o
valor da execução não é o que o Reclamante indica, mas sim o que resulta da soma
da obrigação exequenda fixada na sentença dada à execução, da qual faz parte
integrante a respectiva rectificação (art.° 670°, n.° 2, parte final, do Cód.
Proc. Civil), e dos juros vencidos até à propositura da execução (art.° 306°,
n.° 2, parte final, do Cód. Proc. Civil). Para a determinação desse valor não há
que contar, ao invés do que refere o Reclamante, com os honorários do
solicitador de execução. Estes não constituem obrigação exequenda, mas sim
encargos com a cobrança da mesma. Para este efeito, assume relevo apenas o que
foi fixado no título executivo (a sentença e a subsequente rectificação) bem
como os juros moratórios vencidos, E, efectuado o cômputo dessas parcelas, vê-se
que a sua soma é inferior a 3.740,98 euros, o valor da alçada do tribunal
recorrido, pelo que da decisão que julgou improcedente a oposição à execução não
cabe recurso, como bem ajuizou o despacho reclamado.
Uma última nota ainda, para dizer que a inadmissibilidade desse recurso derivada
do disposto no art.° 678°, n.° 1 do Cód. Proc. Civil não viola, como o Tribunal
Constitucional repetidamente tem afirmado […], quaisquer preceitos
constitucionais, nomeadamente os indicados pelo Reclamante.
Sendo esta a questão de constitucionalidade suscitada pelo ora reclamante no
recurso de constitucionalidade, é a esta questão que o Tribunal Constitucional é
chamado a responder.
O que fez, de forma cabal, na Decisão Sumária objecto de reclamação.
Com efeito, e quanto à questão de constitucionalidade suscitada, o Tribunal
Constitucional, tomou posição no sentido de que a norma dos artigos 800.º e
678.º, n.º 1, do Código de Processo Civil não padecia da inconstitucionalidade
apontada pelo ora reclamante.
Sendo certo que a Decisão Sumária reclamada confirma-se, integralmente, quanto a
este fundamento pois, conforme expresso na respectiva fundamentação, é
jurisprudência firme do Tribunal Constitucional que o direito de acesso aos
tribunais, consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa,
bem como o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º também da lei
fundamental, não impõem, por um lado, ao legislador ordinário, sempre e em
qualquer situação, a previsão do acesso a diferentes graus de jurisdição e não
impedem, por outro lado, que o critério do valor das alçadas dos tribunais seja
o critério a atender para distinguir, em alguns casos, as decisões recorríveis
das decisões não recorríveis (Cfr., neste sentido, por exemplo, dos Acórdãos n.º
239/97, de 12 de Março, 72/99, de 3 de Fevereiro, 149/99, de 9 de Março
431/2002, disponíveis para consulta em www.tribunalconstitucional.pt, n.º 65/88,
de 23 de Março, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., págs. 653 a
670).
Assim sendo, não avulta na Decisão Sumária em análise qualquer omissão de
pronúncia.
5. A reclamação sub judice suscita, porém, uma nota adicional: a bem da
verdade, o que o reclamante questiona agora, sob a capa de uma alegada omissão
de pronúncia que na realidade não existiu, é a inconstitucionalidade da decisão
do tribunal a quo tomada no caso concreto.
Isso mesmo decorre da fundamentação da reclamação ora em análise quando o
reclamante refere, de forma expressa, que “não está apenas em questão a
inconstitucionalidade das normas referidas, mas também o entendimento perfilhado
pelo Tribunal da Relação de Coimbra de que os “honorários do solicitador de
execução, não são contabilizados para efeitos de sucumbência do recurso””.
6. Com efeito, o reclamante pretende deslocar a análise do problema de
constitucionalidade para a questão de, no caso concreto, a norma dos artigos
800.º e 678.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, não lhe facultar a
possibilidade de recorrer para o Tribunal da Relação de Coimbra, sendo que, em
seu entender, o cálculo do valor da acção – nos termos em que é feito pelo
tribunal a quo – não é o mais correcto.
Sendo este o recorte do objecto do recurso de constitucionalidade, conforme
pretende agora desenhar o reclamante, torna-se forçosa a conclusão de que, nos
presentes autos, não vem colocada uma questão de constitucionalidade normativa,
como exige a alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal
Constitucional, pois que o que o reclamante pretende é impugnar directamente a
decisão recorrida, e a sua aplicação da lei ordinária, mediante a invocação de
que esta (a decisão) se mostra desconforme com a Constituição.
7. A este respeito importa notar que o controlo de constitucionalidade em
direito português incide sempre sobre normas e nunca sobre decisões judiciais.
Como disse o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 44/85, “saber se a norma era
ou não aplicável ao caso, ou se foi ou não bem aplicada – isso é da competência
dos tribunais comuns, e não do Tribunal Constitucional” (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, vol. 5, 1985, p. 408).
Sendo ainda jurisprudência constante do Tribunal Constitucional a de que não
pode ser conhecida, por não estar consagrado entre nós um recurso de amparo, a
impugnação de constitucionalidade imputada à decisão proferida pelo tribunal a
quo (Cfr. entre outros, Acórdãos n.º 595/97, de 14 de Outubro; n.º 520/99, de 28
de Setembro e n.º 232/02, de 28 de Maio, todos disponíveis para consulta em
www.tribunalconstitucional.pt).
Semelhante jurisprudência não pode deixar de se manter intacta nos casos em que
se considera que o objecto do controlo de constitucionalidade não é tanto “a
norma” em si – ou seja, a regra de conduta ou o padrão de valoração de
comportamentos tomados independentemente do modo da sua aplicação ao caso
concreto – quanto a interpretação normativa de tal regra ou padrão – ou seja, o
modo como, nos processos de fiscalização concreta, a norma é interpretada pelo
julgador.
É evidente que, também em tais casos, terá o objecto do controlo de
constitucionalidade que ter natureza normativa, desde logo face ao disposto no
n.º 1 do artigo 277.º da Constituição.
Neste sentido, é uma tal natureza normativa que falta sempre que o pretenso
recurso de constitucionalidade for interposto, não tendo em conta o critério
normativo que orientou a decisão judicial – critério esse que há-de ser
identificado e enunciado sem necessidade de referência às circunstâncias únicas
e irrepetíveis do caso concreto –, mas tendo em conta, somente, a “concreta e
casuística valoração das circunstâncias próprias e específicas de um caso
concreto, em boa medida indissociáveis da matéria de facto e das «presunções
naturais» em que se alicerça a conclusão do tribunal” (Acórdão n.º 81/2001,
disponível em
www.tribunalconstitucional.pt).
8. O papel deste Tribunal não é, pois, o de averiguar da bondade de decisões
concretas dos Tribunais a quo. Na verdade, o Tribunal Constitucional é chamado a
decidir sobre a eventual inconstitucionalidade de normas e não da
“inconstitucionalidade” de decisões.
Assim sendo, a “inconstitucionalidade no caso concreto” nos termos em que agora
são colocados pelo reclamante, não pode ser conhecida pelo Tribunal
Constitucional.
Pelo exposto, tem a presente reclamação de ser desatendida, confirmando-se a
Decisão Sumária reclamada.
III
Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a
presente reclamação, confirmando a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 26 de Novembro de 2008
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão
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