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Processo n.º 446/07
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que são
recorrentes A. e Outros e recorridos, B. (Massa Falida), Banco C., S.A. (D.,
S.A., na qualidade de cessionária), E. PLC e Outros foi interposto recurso de
fiscalização concreta de constitucionalidade, ao abrigo das alíneas a) e b) do
n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele
Tribunal, de 01.03.2007, para apreciação:
− Ao abrigo da alínea a), da recusa de aplicação, por inconstitucionalidade, da
norma do artigo 12.º da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho (e não Decreto-Lei n.º
17/86, como, por lapso, se refere nos autos), na interpretação segundo a qual “o
privilégio imobiliário geral que nele era concedido preferiria à hipoteca”;
− Ao abrigo da alínea b), da inconstitucionalidade das normas do artigo 12.º da
Lei n.º 17/86, do artigo 4.º da Lei n.º 96/2001, de 20 de Agosto, e do artigo
751.º do Código Civil (na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de
Março) na interpretação segundo a qual “os privilégios imobiliários gerais
conferidos por aquelas normas aos créditos dos trabalhadores emergentes do
contrato individual de trabalho não prevalecem, nos termos do disposto no artigo
751.º do Código Civil, sobre a hipoteca”.
2. Resulta dos autos que, na sequência de declaração de falência de B.,
S.A.R.L., o 2º Juízo Cível dos Juízos Cíveis de Coimbra procedeu à graduação de
créditos, em relação aos imóveis integrados na massa falida, graduando em
primeiro lugar os créditos emergentes de contrato individual de trabalho, com
base em privilégio imobiliário geral, e só depois os créditos hipotecários.
Interposto recurso desta decisão, o Tribunal da Relação de Coimbra alterou a
decisão recorrida e passou a graduar primeiro os créditos dos recorrentes
garantidos por hipoteca e só depois os créditos dos trabalhadores e do Fundo de
Garantia Salarial.
Do acórdão do Tribunal da Relação foi interposto recurso de revista para o
Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 01.03.2007, confirmou o acórdão
recorrido.
3. Neste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, ora recorrido, lê-se o
seguinte, na parte que agora releva:
«Em causa está saber se deve ser dada preferência, na graduação dos créditos
reconhecidos, em relação aos imóveis integrados na massa falida, aos dos
trabalhadores recorrentes, com base em privilégio imobiliário geral, ou aos dos
Bancos recorridos, com base em hipoteca.
Os créditos dos trabalhadores e o crédito do Fundo de Garantia Salarial foram
graduados, na sentença da 1ª instância, primeiro do que os créditos daqueles
Bancos, não obstante estes estarem garantidos por hipoteca constituída e
registada sobre alguns imóveis.
O acórdão recorrido, pelo contrário, graduou em primeiro lugar, em relação a
tais imóveis, os créditos desses Bancos.
A hipoteca, nos termos do art.° 686°, n°1, do Cód. Civil, confere ao credor o
direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas,
pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores
que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.
Por sua vez, o privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa
do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem
pagos com preferência a outros (art.° 733° do mesmo Código). Trata-se de uma
garantia que visa assegurar dívidas que, pela sua natureza, se encontram
especialmente relacionadas com determinados bens do devedor, justificando-se por
isso que sejam pagas de preferência a quaisquer outras, até ao valor dos mesmos
bens.
Os privilégios creditórios podem ser, como se vê do disposto no art.° 735°, n.°
1, do Cód. Civil, de duas espécies: mobiliários ou imobiliários. Os mobiliários
são gerais, se abrangem o valor de todos os bens móveis existentes no património
do devedor à data da penhora ou acto equivalente, ou especiais, quando
compreendem só o valor de determinados bens móveis (n.° 2 do citado art.° 735°).
Já os privilégios imobiliários, segundo o n.° 3 do mesmo artigo, eram sempre
especiais.
Apesar do disposto neste n.° 3, alguns diplomas avulsos posteriores à publicação
do Cód. Civil vieram criar privilégios que designaram por imobiliários gerais.
É o caso do Dec.-Lei n.° 512/76, de 3/7, que é de considerar revogado pelo
Dec.-Lei n.° 103/80, de 9/5, mas cujo art.° 2° (substituído pelo art.° 11°
deste) dispunha que os créditos pelas contribuições do regime geral de
Previdência e respectivos juros de mora gozavam de privilégio imobiliário sobre
os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da
instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos
no art.° 748° do Cód. Civil.
É também o caso da Lei n.° 17/86, de 14/6, que no seu art.° 12° dispõe que os
créditos emergentes de contrato individual de trabalho, regulados por essa Lei,
gozam de privilégio imobiliário geral (n.° 1, al. b), graduando-se antes dos
créditos referidos no art.° 748° do Cód. Civil e ainda antes dos créditos por
contribuições devidas à Segurança Social (n.° 3, al. b).
Também a Lei n.° 96/2001, de 20/8, estabeleceu no seu art.° 4° que os créditos
emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação não abrangidos pela Lei
n.° 17/86 gozam de privilégio imobiliário geral (n.° 1, al. b), graduando-se
antes dos créditos referidos naquele art.° 748° e ainda dos créditos da
Segurança Social (n.° 4, al. b).
Ora, quanto à eficácia dos privilégios creditórios em relação a terceiros, ou
seja, ao conflito entre direitos dos credores e direitos de terceiro
estabelecidos sobre os bens que constituem objecto do privilégio, há que
distinguir entre privilégios mobiliários e imobiliários.
[…]
Entende-se, assim, que o referido art.° 751° do Cód. Civil, mesmo antes da
redacção que lhe foi dada pelo Dec.-Lei n.° 38/03, de 8/3, continha e contém um
princípio geral insusceptível de aplicação ao privilégio imobiliário geral, por
este não incidir sobre bens certos e determinados e pelo facto de os privilégios
imobiliários gerais não serem conhecidos aquando do início da vigência do actual
Código Civil, o que implicava que, dizendo o n.° 3 do art.° 735° que os
privilégios imobiliários eram sempre especiais, só a privilégios imobiliários
especiais o dito art.° 751° se podia referir, só estes, portanto, preferindo,
quer à consignação de rendimentos, quer à hipoteca, quer ao direito de retenção.
Não se compreenderia sequer que o legislador, perante a delicadeza da questão e
as dúvidas suscitadas, se pretendesse integrar os privilégios imobiliários
gerais no regime do art.° 751°, não procedesse de forma expressa à alteração
radical de regime que tal determinaria no que respeita àquele n.° 3 do art.°
735° e, designadamente, ao n.° 1 do art.° 686° do mesmo Código, que determina
que a preferência resultante da hipoteca apenas cede perante privilégio especial
(fora casos de prioridade de registo), deixando subsistir enormes dúvidas
susceptíveis de provocar grave insegurança no comércio jurídico e concorrendo
para defraudar legítimas expectativas dos credores hipotecários ou titulares de
direito de retenção, por ele próprio criadas. Logo, se não produziu tal
alteração, só pode ser porque não quis integrar os privilégios imobiliários
gerais no regime do citado art.° 751°.
Acresce que, entretanto, embora com fundamentação distinta, o Tribunal
Constitucional, por razões idênticas às invocadas no seu Acórdão n.° 362/02, de
17/9/02, publicado no D.R., I Série-A, de 16/10/02, que declarou a
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do princípio da
confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no
art.° 2° da Constituição da República, da norma constante, na versão primitiva,
do art.° 104° do Cód. do I.R.S., e hoje do seu art.° 111°. na interpretação
segundo a qual o privilégio imobiliário geral nele conferido à Fazenda Pública
prefere à hipoteca, nos termos do art.° 751° do Cód. Civil, emitiu o seu Acórdão
n.° 363/02, com a mesma data e publicado no mesmo D.R., declarando a
inconstitucionalidade, também com força obrigatória geral, das normas constantes
do art.° 11° do mencionado Dec-Lei n.° 103/80, de 9/5, - que é aquele onde
presentemente se reconhece aos créditos pelas contribuições à Segurança Social e
respectivos juros de mora privilégio imobiliário sobre os bens imóveis
existentes no património das entidades patronais à data da instauração do
processo executivo -, e, para evitar a sua eventual repristinação, do citado
art.° 2° do Dec. Lei n.° 512/76, de 3/7, na interpretação segundo a qual o
privilégio imobiliário geral nelas conferido à Segurança Social prefere à
hipoteca, nos termos do art.° 751° do Cód. Civil.
É certo que é aos créditos da Fazenda Pública e aos da Segurança Social que
estes acórdãos expressamente se referem, negando prevalência ao privilégio
imobiliário geral de que gozam sobre a hipoteca, mas, por identidade de razões,
na medida em que se trata de casos paralelos de confronto entre aquele
privilégio e a hipoteca, em que o mencionado princípio da confiança impõe
solução idêntica, entende-se que a sua doutrina é extensiva aos créditos
laborais, implicando a inconstitucionalidade também do art.° 12° do citado
Dec.-Lei n.° 17/86 na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário
geral que nele era concedido preferiria à hipoteca.
Invocam os ora recorrentes que a interpretação contrária é que é
inconstitucional por violação do disposto nos art.°s 59°, n.°s 1, al. a), e 3, e
53°, da Constituição da República Portuguesa.
Não se verifica, porém, uma tal inconstitucionalidade.
É que os direitos constitucionalmente consagrados, ─ inclusive os da segurança
no emprego e da retribuição do trabalho, reconhecidos naqueles dispositivos -,
têm de ser objecto de regulamentação pelo legislador ordinário, a que o julgador
não se pode substituir, e que antes da aprovação do actual Código do Trabalho
entendeu por bem, com o objectivo de conceder protecção àqueles direitos,
conferir aos créditos laborais, no tocante aos imóveis da entidade patronal,
apenas a protecção resultante de privilégios imobiliários gerais, a qual não
consiste senão na atribuição da preferência acima indicada.
E tanto é de entender que o legislador não quis integrar os privilégios
imobiliários gerais no regime daquele artigo 751°, que, entretanto, o já citado
Dec.−Lei n.° 38/03 lhe veio dar nova redacção, passando ele a referir apenas, de
forma expressa, os privilégios imobiliários especiais: ou seja, apenas estes, e
não os gerais, é que preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca, e ao
direito de retenção.
É certo que o n.° 3 do dito art.° 735° passou então a dispor que “os privilégios
imobiliários estabelecidos neste Código são sempre especiais”, o que implica que
reconhece a existência de privilégios imobiliários gerais, não previstos no Cód.
Civil. Mas certo é também que, apesar disso, o legislador limitou a eficácia do
disposto na nova redacção do dito art.° 751° aos privilégios imobiliários
especiais, do que se conclui pretender a aplicação do respectivo regime apenas a
esses privilégios, portanto com exclusão dos privilégios imobiliários gerais
apesar de não previstos nesse Código.
Tal diploma veio, pois, decidir a questão já então controvertida de saber quais
dos créditos assim garantidos ou protegidos deviam ser pagos em primeiro lugar,
questão essa forçosamente conhecida do legislador e que este quis resolver
excluindo de forma explícita do art.° 751° os privilégios imobiliários gerais.
Assim, constitui esta nova formulação desse dispositivo uma norma de natureza
interpretativa, que, nos termos do art° 13°, n.° 1, do Cód. Civil, se integra no
mesmo dispositivo e, consequentemente, nos diplomas legais que atribuíram aos
créditos laborais e da Segurança Social privilégio imobiliário geral, pelo que a
sua aplicação aos créditos anteriores não constitui aplicação retroactiva.
Só com a aprovação do Código do Trabalho pela Lei n.° 99/2003, de 27/8, entrado
em vigor, nos termos do art.° 3°, n.° 1, da mesma Lei, em 1 de Dezembro de 2003,
é que os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou
cessação, pertencentes ao trabalhador, passaram a gozar de privilégio
imobiliário especial, sobre os bens imóveis do empregador nos quais o
trabalhador preste a sua actividade, segundo se dispõe no seu art.° 377º, n.° 1.
Ou seja, só então o legislador se decidiu a conceder aos créditos laborais tal
privilégio, reconhecendo implicitamente que o privilégio imobiliário geral antes
concedido não dispunha de tal eficácia.
Desse dispositivo, porém, não podem beneficiar os recorrentes.
Isto porque, entrado o Código do Trabalho em vigor apenas em 1 de Dezembro de
2003, a falência da entidade empregadora dos ora recorrentes fôra já decretada
por sentença de 25/7/02, logo produzindo os seus efeitos, como resulta do
disposto nos art.°s 147º e segs. do C.P.E.R.E.F., então em vigor, pelo que os
créditos laborais em causa não ficaram a beneficiar desse privilégio, então
inexistente, dele também não podendo ficar posteriormente a beneficiar por
aquele Código só dispor para o futuro, e portanto para os créditos laborais
formados só posteriormente à sua entrada em vigor, face ao disposto nos art.°s
12° do Cód. Civil e 8°, n.° 1, parte final, daquela Lei n.° 99/2003. Ao que
acresce que, não podendo aquele art.° 377° ser considerado como uma norma de
natureza interpretativa por ser inovador ao criar um privilégio imobiliário
especial antes inexistente, - o que, à luz do art.° 13º, n.° 1, do Cód. Civil,
impede a sua integração no art.° 12° da citada Lei n.° 1 7/86, que o art.° 21°,
n.° 2, al. e), da mesma Lei n.° 99/2003, até visa revogar, se ignora qual o
imóvel em que cada um dos ora recorrentes exercia a sua actividade.
Conclui-se, pois, que os créditos laborais dos ora recorrentes apenas beneficiam
de privilégios imobiliários gerais, que se traduzem em meras preferências de
pagamento, só susceptíveis de prevalecer em relação a titulares de créditos
comuns, pois, não incidindo esses privilégios sobre bens determinados — pelo que
não estão envolvidos de sequela -, o regime aplicável tem de ser o dos
privilégios mobiliários gerais a que se reporta o art.° 749° do Cód. Civil,
cedendo os direitos de crédito por eles protegidos perante os direitos de
crédito garantidos por consignação de rendimentos, hipoteca, ou direito de
retenção.
Daí que os créditos dos ora recorridos, encontrando-se garantidos por hipoteca,
hão-de gozar de prioridade, na sua graduação, sobre os créditos laborais, que
beneficiam de privilégio imobiliário apenas geral nos termos acima indicados.
Entende-se, por isso, não assistir razão aos recorrentes, devendo, em
consequência do exposto, na graduação dos créditos em concurso, e relativamente
aos imóveis apreendidos sob as verbas n.°s 1, 2 e 3 do auto de arrolamento, ser
graduados primeiro os créditos dos F., em primeiro lugar, só em relação ao
imóvel da verba n.° 1) e só depois os créditos dos trabalhadores e do Fundo de
Garantia Salarial, mantendo-se, em tudo o mais, a graduação efectuada na
sentença recorrida, como decidido no acórdão em crise.».
4. Por despacho de fls. 805/806, foi suscitada, pelo anterior Relator, a questão
prévia da inutilidade da apreciação do objecto do recurso interposto ao abrigo
da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, face à apreciação do objecto do
recurso interposto ao abrigo da alínea a) dos mesmos número e artigo, e foram os
recorrentes notificados para produzirem alegações no recurso interposto ao
abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Os recorrentes sustentaram a improcedência da questão prévia suscitada e
requereram a sua notificação para alegar ao abrigo do recurso interposto pela
alínea b), invocando o seguinte:
«[…] importa ter presente que “o juízo a formular pelo Tribunal Constitucional
sobre a norma desaplicada, seja, pelo contrário, de não inconstitucionalidade”
(2° parágrafo, página 2 do douto despacho de 7 de Maio de 2007) apenas tornaria
inútil a apreciação do objecto do recurso interposto ao abrigo da alínea b) se —
como é afirmado no douto despacho —, dessa forma, fosse “revogado o único
fundamento da não aplicação da norma, no contexto da decisão recorrida, pelo que
o tribunal recorrido, aplicando a norma em questão, concederá provimento à
pretensão dos recorrentes.”
Só que, tal como resulta do requerimento de interposição de recurso, o argumento
da inconstitucionalidade não parece ser “único fundamento da não aplicação da
norma no contexto da decisão recorrida”.
Até porque pode o tribunal a quo, embora procedendo o recurso interposto ao
abrigo da aliena a), limitar-se a alterar os fundamentos da sua decisão deixando
a decisão inalterada...
E, por isso, se entende deverem os ora recorrentes ser notificados, também, para
produzirem alegações no recurso interposto ao abrigo da alínea b), ainda que o
conhecimento destas fique subsidiariamente dependente da não confirmação do
juízo de inconstitucionalidade subjacente ao recurso interposto ao abrigo da
alínea a).»
5. No recurso interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º, os
recorrentes concluíram da seguinte forma as suas alegações:
«1. O direito à retribuição do trabalho — onde se incluem os “créditos
indemnizatórios emergentes do despedimento” — está intimamente relacionado com o
direito a uma vida digna e como tal — mais que uma natureza patrimonial — tem
uma natureza alimentar (essencial à vida e subsistência pessoal do trabalhador).
2. É um direito constitucionalmente incluído entre os direitos fundamentais dos
trabalhadores, que visa “garantir uma existência condigna”, conforme preceitua o
artigo 59°, n.° 1, alínea a), da Constituição, e que o Tribunal Constitucional
já expressamente considerou como direito de natureza análoga aos direitos,
liberdades e garantias.
3. É a própria dignidade da vida humana (base sobre a qual se funda a nossa
República, vide artigo 1° da CRP) que está em causa, pois também esta pressupõe
a autonomia vital de que emanam os direitos constitucionais à retribuição do
trabalho de forma a garantir uma existência digna (art. 59° n° 1, a)) e o
direito à segurança no emprego (art. 53°).
4. O privilégio imobiliário geral reconhecido aos créditos laborais pela norma
constante da alínea b) do n.° 1 do artigo 12° da Lei n.° 17/86, de 14 de Junho,
na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nela conferido
aos créditos emergentes do contrato individual de trabalho prefere à hipoteca,
nos termos do artigo 751° do Código Civil, visa atribuir uma protecção
necessária aos créditos laborais com fundamento nesta sua intrínseca natureza
alimentar.
5. “Nesta conformidade, deve entender-se que a restrição do princípio da
confiança operada pela norma impugnada não encontra obstáculo constitucional.”
(cfr. Ac. TC n° 498/2003)
6. Pelo que a norma constante do artigo 12°, n.° 1 da Lei n.° 17/86, de 14 de
Junho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nela
conferido aos créditos emergentes do contrato individual de trabalho prefere à
hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil não é inconstitucional.
(cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional de 498/2003 de 22 de Outubro de 2003 e
no 672/04 de 23 de Novembro de 2004).»
6. O recorrido Banco C., S.A. (D., S.A., na qualidade de cessionária) apresentou
contra-alegações, nas quais, para além de suscitar a questão prévia da não
verificação dos pressupostos do recurso previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo
70.º da LTC, concluiu o seguinte:
«1) O Acórdão proferido pelo STJ optou por aplicar o regime previsto no art°
749° do Código Civil, em vez do regime previsto no art° 751° do CC. Esta opção
decorreu de uma operação de interpretação jurídica em que não teve lugar
qualquer juízo de inconstitucionalidade da norma contida no art° 751° CC. Não
estão pois verificados os pressupostos deste tipo de recurso pelo que não deverá
ser conhecido o objecto do recurso.
2) O Código Civil apenas prevê a constituição de privilégios imobiliários
especiais, conforme se refere expressamente no n° 3 do art.° 735º desse Código.
3) Assim, o privilégio imobiliário geral para garantia dos créditos dos
trabalhadores, criado posteriormente pela Lei n° 17/86, de 14/06 (art.° 12°) e
pela Lei n° 96/2001, de 20/08 (art.° 4°), constitui uma derrogação ao princípio
geral consagrado no n° 3 do art.° 735º do Código Civil de que os privilégios
imobiliários são sempre especiais.
4) Como a citada Lei n° 17/86, de 14/06, não regula o concurso do privilégio
imobiliário geral que criou com outras garantias reais, no nosso caso, a
hipoteca, nem esclarece a sua relação com os direitos de terceiros, nem o Código
Civil prevê a regra relativa à graduação em caso de concurso entre privilégios
imobiliários gerais e garantias reais, há que enquadrar essa figura do
privilégio imobiliário geral face ao Código Civil.
5) Há que encarar os privilégios imobiliários gerais como meros direitos de
prioridade que prevalecem apenas sobre os créditos comuns e não como verdadeiras
garantias reais das obrigações.
6) No sentido acima exposto e também pelo facto de esses privilégios serem
gerais, dever-lhes-á ser aplicado o regime previsto no art.° 749° do Código
Civil, com o consequente afastamento do regime fixado no art.° 751° do mesmo
Código.
7) Ora, uma vez que os créditos dos trabalhadores da Falida, emergentes de
contratos individuais de trabalho não estão sujeitos a registo, o Recorrido que
registou o seu privilégio hipotecário, ver-se-ia (não fosse, designadamente, o
princípio geral estabelecido no já referido artigo 749° do Código Civil),
confrontado com o reconhecimento de créditos que frustraria a fiabilidade que o
registo predial merece, sendo certo, também, que aqueles credores têm também
outros meios, constitucionalmente garantidos em sede de segurança social e
solidariedade (artigo 63°, n°s. 1 e 3 da Constituição da República).
8) Acrescenta-se que, quando o legislador interveio nesta matéria, concretamente
quando foi alterada a redacção dos art.°s 735º n° 3 e 751° do Código Civil, pelo
DL n° 38/03, de 08/03, não fixou a respectiva eficácia dos privilégios
imobiliários gerais face a terceiros, tendo clarificado que “são sempre
especiais os privilégios imobiliários previstos no Código e que os privilégios
imobiliários oponíveis a terceiros nos termos do art.° 751° são os imobiliários
especiais”.
9) E, só com a posterior aprovação do Código do Trabalho é que os créditos
emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes
ao trabalhador passaram a gozar de privilégio imobiliário especial, sobre os
bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade. Só
então o legislador decidiu conceder aos créditos laborais tal privilégio,
reconhecendo implicitamente que o privilégio imobiliário geral antes concedido
não dispunha de tal eficácia.
10) E o disposto no art.° 377° do Código do Trabalho não se aplica aos presentes
autos, nos termos do art.° 12° n° 1 Código Civil.
11) Além do mais, se o art.° 12° da Lei no 17/86, de 14.06 fosse interpretado no
sentido de consagrar um privilégio creditório imobiliário oponível a terceiros
que adquiram um prédio ou direito real sobre ele, seria de declarar essa norma
inconstitucional por violação do princípio da confiança, ínsito no Estado de
Direito democrático, consagrado no art.° 2° da Constituição, conforme decidiu já
o Tribunal Constitucional no Acórdão n° 363/2002 para o caso paralelo do
privilégio imobiliário geral previsto no art.° 2° do DL n°512/76, de 03/07 e no
art.° 11 do DL n° 103/89 de 09/05.
12) O entendimento dos Recorrentes não pode ser admitido pois violaria o
disposto:
− no art.° 12° da Lei 17/86 e art.° 4° da Lei 96/2001, e nomeadamente os art°s
686, n° 1, 735°, n° 3, 748°, 749° e 751°, todos do Código Civil, na medida em
que a tais créditos, garantidos por privilégio imobiliário geral, se aplica no
disposto do art.° 749 do C. P. Civil e não o disposto no art.° 751 também do C.
Civil, pois, esta última norma é, apenas, aplicável aos privilégios imobiliários
especiais e não também aos privilégios imobiliários gerais. Não estando
abrangidos pelo art.° 751 do C. Civil, os créditos dos trabalhadores deverão
ficar graduados posteriormente ao crédito do Recorrido (que goza de garantia
hipotecária), nos termos do art.° 749 do C. Civil.
− no art.° 2° da Constituição da República Portuguesa, por violação dos
princípios constitucionais de confiança e de segurança jurídicas, verificando-se
inconstitucionalidade, quando interpretadas aquelas mesmas normas no sentido de
que os créditos dos trabalhadores que gozam do privilégio imobiliário geral
prevalecem sobre os créditos hipotecários e cuja hipoteca se encontra registada
desde 7.3.1997.
13) A decisão constante no Acórdão proferido pelo STJ não merece pois qualquer
censura, tendo aplicado correctamente as normas de Direito que se impunham e
observado os princípios constitucionais da segurança jurídica e da confiança do
cidadão emanados do princípio do Estado de Direito Democrático, consagrado no
artigo 2° da Constituição da República Portuguesa.
14) A interpretação da lei, nos presentes termos não põe em causa o direito dos
trabalhadores à remuneração do trabalho prestado. Mas, para a salvaguarda de tal
direito, foi criado o Fundo de Garantia Salarial e outros institutos pelo que
não deverão ser terceiras entidades privadas a assegurar o cumprimento dos
deveres públicos.
15) Aqueles credores têm também outros meios, constitucionalmente garantidos em
sede de solidariedade e segurança social (artigo 63°, n°s. 1 e 3 da Constituição
da República).»
7. O recorrido E. PLC contra-alegou, concluindo da forma seguinte:
«I. Vem o presente recurso da douta decisão do Supremo Tribunal de Justiça, que
considerou inconstitucional a aplicação da norma do artigo 12.° do Decreto-Lei
n.° 17/86, de 14 de Junho, na interpretação segundo a qual o privilégio
imobiliário geral que nele era concedido aos trabalhadores preferiria à
hipoteca, nos termos do artigo 751.º do Código Civil.
II. O crédito da ora Recorrida encontra-se garantido por hipoteca, devidamente
registada, relativamente ao imóvel descrito sob a verba 1 do auto de
arrolamento; por seu turno, o crédito dos Recorrentes encontra-se garantido por
um privilégio imobiliário geral, o qual lhes foi concedido através do artigo
12.° do Decreto-Lei n.° 17/86, de 14 de Junho.
III. Discute-se, assim, nos presentes autos qual dos dois créditos prevalece em
caso de concurso, se a hipoteca devidamente registada, se o privilégio
imobiliário geral que era concedido aos trabalhadores nos termos supra
referidos.
IV. Com efeito, anteriormente à alteração introduzida no Código Civil pelo
Decreto-Lei n.° 38/2003, de 8 de Março, aquele diploma apenas reconhecia e
regulava o regime legal aplicável aos privilégios mobiliários gerais e
especiais, assim como aos privilégios imobiliários especiais, desconhecendo por
completo os privilégios imobiliários gerais.
V. Esta última espécie de privilégios foi criada por diplomas avulsos
posteriores à publicação do Código Civil.
Assim, conclui o Tribunal que «não é constitucionalmente proibido que a lei
ordinária confira prevalência ao crédito garantido por uma hipoteca
anteriormente registada sobre os créditos laborais. Nesta conformidade, deve
entender-se que o princípio da confiança, assim defendido pela norma impugnada,
não encontra obstáculo constitucional.».
Refira-se, ainda, que se fosse intenção do legislador ordinário dar preferência
aos créditos laborais quando em conflito com outros direitos de terceiro,
aquando da alteração ao Código Civil (Decreto-Lei n.° 38/2003, de 8 de Março),
não teria alterado o artigo 751.° do Código Civil de modo a que este passasse a
referir expressa e especificamente que só os privi1égios imobiliários especiais
é que preferem à hipoteca.
Resta ainda dizer que o credor hipotecário é frequentemente um impulsionador do
emprego. Na verdade, é graças a este credor que o empregador consegue ter fundos
para investir na actividade e criar postos de trabalho. Se o seu crédito ficar
totalmente esvaziado em favor dos créditos salariais, o risco inerente ao
crédito será maior, o que tornará o próprio crédito mais oneroso. Sendo o
crédito mais caro, fica prejudicado o principal mecanismo de incentivo de
criação de emprego. Logo, em última análise, o que está em causa é um conflito
entre o direito ao salário ou o direito ao emprego. Numa lógica de justiça
social mais ampla, e tendo em conta que existem outros mecanismos eficazes de
assegurar o direito ao salário, devem prevalecer os princípios da confiança, da
iniciativa privada e, bem vistas as coisas, do emprego.
VI. No entanto, os diplomas que vieram criar os privilégios imobiliários gerais
não estabeleceram, desde logo, um regime aplicável aos mesmos quando em concurso
com outros direitos de terceiros, gerando uma lacuna na lei.
VII. Assim, a questão que se colocava na data de criação destes diplomas e até à
alteração do Código Civil pelo Decreto-Lei n.° 38/2003, de 8 de Março, era a de
saber qual o regime aplicável aos privilégios imobiliários gerais quando em
concurso com outros direitos de terceiros, se o regime dos privilégios
mobiliários gerais previsto no artigo 749.° do Código Civil, se o regime dos
privilégios imobiliários especiais previsto no artigo 751.º do Código Civil.
VIII. Entretanto, e com a redacção do artigo 751.º do Código Civil que lhe foi
dada pelo Decreto-Lei n.º38/2003, de 8 de Março, o legislador terá querido pôr
termo a esta controvérsia passando a referir expressamente que só os privilégios
imobiliários especiais é que preferem à hipoteca.
IX. De salientar que a norma do artigo 751.º do Código Civil tem uma natureza
interpretativa que, nos termos do artigo 13.º, nº 1 do Código Civil, se integra
no próprio dispositivo (e, necessariamente, nos próprios diplomas legais que
atribuíram aos créditos laborais privilégio imobiliário geral), pelo que a sua
aplicação aos créditos sub judice não constitui aplicação retroactiva.
X. Do exposto, resulta já que os privilégios imobiliários gerais concedidos aos
trabalhadores não preferem à hipoteca e, portanto, ao crédito da ora Recorrida.
XI. Por outro lado, discute-se, ainda, nos presentes autos, a conciliação entre
vários valores com dignidade constitucional - direito da retribuição ao trabalho
e o princípio da confiança, da certeza e da segurança jurídica - devendo esta
conciliação ser efectuada de modo a assegurar a menor compressão possível de
cada um desses bens jurídicos.
XII. A este respeito, a doutrina vertida nos Acórdãos do Tribunal Constitucional
n.° 362/2002 e 363/2002, ambos de 17 de Setembro, é perfeitamente extensível e
aplicável aos créditos laborais.
XIII. Com efeito, tal como nos casos apreciados pelos referidos Acórdãos, também
os créditos laborais dos ora Recorrentes não têm uma estreita conexão com o
imóvel arrolado sobre a verba 1 do auto de arrolamento, nem com qualquer outro
bem da respectiva entidade patronal, até porque tal ligação nem sequer é alegada
por aqueles.
XIV. Por seu turno, também os Recorrentes gozam de outros meios alternativos
para cobrança dos seus créditos, nomeadamente, de um privilégio mobiliário geral
relativamente aos bens móveis da entidade patronal, bem como do Fundo de
Garantia Salarial, através do qual podem ver satisfeitos os seus créditos por
dívidas emergentes do contrato de trabalho ou da sua cessação.
XV. Assim, ao se dar preferência a um crédito garantido por hipoteca não se
viola de modo algum os créditos laborais, nem qualquer direito dos trabalhadores
à retribuição do trabalho, já que estes sempre se poderão socorrer do referido
Fundo de Garantia Salarial ou mesmo do Fundo de Desemprego.
XVI. Refira-se, ainda, o facto de os créditos hipotecários serem frequentemente
os impulsionadores do emprego.
XVII. Assim, e caso o entendimento sufragado pelos Tribunais fosse o contrário
do que aqui se defende, ou seja, fosse a preferência do crédito laboral
relativamente ao crédito hipotecário, faria com que, em última análise,
estivesse em causa um conflito entre o direito ao salário e o direito ao
emprego, já que os bancos passariam a recusar empréstimos por falta de garantia
dos mesmos, e consequentemente, seriam criados menos postos de trabalho por
falta de financiamento das entidades patronais.»
8. Os recorrentes responderam à questão prévia suscitada nas contra-alegações do
recorrido Banco C., pugnando pela sua improcedência.
9. Por despacho de fls. 907, foram notificados para alegar no recurso interposto
ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Os recorrentes apresentaram alegações, rematadas pelas conclusões seguintes:
«1. As normas do artigo 12.° do Decreto-Lei n.° 17/86, de 14-06, do artigo 4.º
da Lei 96/2001, de 20-08, e do artigo 751.º do Código Civil, na interpretação e
aplicação que lhe foi dada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão
recorrido, segundo a qual os privilégios imobiliários gerais conferidos por
aquelas normas aos créditos dos trabalhadores emergentes do contrato individual
de trabalho não prevalecem sobre a hipoteca, são inconstitucionais.
2. Inconstitucionalidade resultante da violação dos artigos 1.º, 53.º, 59.º n.°
1 alínea a) e n.° 3 e 204.° da Constituição da República Portuguesa;
3. Os referidos normativos — art. 12.° da Lei n.° 17/86 e 4.° da Lei 4/2001
conjugados com o artigo 751.º — assim interpretados e aplicados são
inconstitucionais, na medida em que não garantem a efectividade da protecção à
retribuição do trabalho — direito fundamental dos trabalhadores que visa a
respectiva “sobrevivência condigna” — imposta pela CRP, nomeadamente, nos
artigos l.º e 59.º (especialmente os n.° 1 alinea a), n.° 2 e n.º 3);
4. É a própria Dignidade da vida humana (base sobre a qual se funda a nossa
República, vide artigo 1° da CRP) que está em causa, pois também esta pressupõe
a autonomia vital de que emanam os direitos constitucionais à retribuição do
trabalho de forma a garantir uma existência digna (art. 59.º n.° 1, a)) e o
direito à segurança no emprego (art. 53.°);
5. Sendo que a ratio legis subjacente aos referidos artigos 12.° e 4.° é a
intencionalidade jurídico-constitucionalmente imposta de protecção efectiva e
eficaz dos créditos laborais.
6. A protecção do direito à retribuição do trabalho enquanto direito
constitucional incluído entre os direitos fundamentais dos trabalhadores, que o
Tribunal Constitucional já considerou como direito de natureza análoga aos
direitos, liberdades e garantias, - sob pena de se verificar uma flagrante
violação dessa especial garantia constitucional - não pode deixar de ser
acrescida em relação (e no confronto) com qualquer outro tipo de crédito de
natureza meramente patrimonial.
7. Daí que a protecção conferida aos créditos meramente patrimoniais, garantidos
por hipoteca, não possa prevalecer sobre a protecção conferida aos créditos dos
trabalhadores que têm uma natureza alimentar ao permitir a subsistência pessoal
do trabalhador.
8. Argumentação que não sai prejudicada pelo facto de se puder sustentar que,
“do lado” do credor hipotecário, se apresenta a tutela da confiança prosseguida
através do registo predial e constitucionalmente protegida pelo artigo 2.° da
Constituição.
9. Pois o direito à retribuição do trabalho, também ele ínsito num estado de
direito democrático subordinado ao princípio da democracia social, por contender
com o “indeclinável direito a uma vida digna”, tem um valor mais relevante e.
como tal, “deve prevalecer, numa hierarquia de normas constitucionais”.
10. E, se assim se poderia afirmar em geral, por maioria de razão se deve
afirmar na presente situação, já que o princípio da confiança surge, aqui,
enquanto “protector” de um crédito de natureza meramente patrimonial.
11. Princípio da confiança — aqui subjacente à tutela regista! — que não é neste
caso atingido de forma a justificar uma interpretação normativa que sustente uma
compressão da protecção (necessária e) imposta pela Constituição aos créditos
salariais.
12. No caso sub iudice está-se perante uma situação em que a quase totalidade
dos trabalhadores dedicaram toda uma vida de trabalho às B. e que, apesar de
toda essa dedicação, correm o risco de não receber aquilo a que por lei têm
direito.
13. Sendo pois a limitação à confiança, resultante do registo, um meio adequado
e necessário à salvaguarda do direito dos trabalhadores à retribuição.
14. No Acórdão recorrido, aquando da interpretação e aplicação das referidas
normas não se considerou a especifica natureza dos créditos laborais,
afirmando-se - pelo contrário - a identidade entre os privilégios imobiliários
de que gozam os créditos laborais e os conferidos aos créditos da Fazenda
Pública e da Segurança Social.
15. Da solução sufragada no Acórdão do STJ resultaria, no fundo, a subversão das
referidas normas constitucionais e da hierarquia de valores e princípios que
lhes está subjacente.
16. O respeito da Constituição e da ponderação/relevância/hierarquia dos
direitos e princípios no seu seio impõe-se ao legislador aguando da elaboração
das leis e ao Juiz ao aplicar essas mesmas leis (204.° CRP).
17. Aquela regulamentação dos direitos constitucionalmente consagrados não pode
subverter a relevância relativa (preponderância) que aos mesmos é atribuída na
Constituição.
18. Diferentemente do que se sustenta no Acórdão recorrido, o legislador
ordinário nunca pretendeu que os créditos laborais não preferissem à hipoteca
nos termos do artigo 751.º do Código Civil — o legislador, ao alterar o artigo
751.° CC., visou adequa-lo à jurisprudência do T.C vertida nos Acórdãos n.ºs
362/02 e 363/2002, mantendo no artigo 377.° CT a protecção conferida aos
créditos laborais.
19. Atendendo à especifica natureza do direito a retribuição e à protecção da
dignidade da pessoa humana que lhe está subjacente, é pois, constitucionalmente
proibido que uma lei ordinária confira prevalência/preferência a um crédito de
natureza meramente patrimonial sobre créditos laborais, unicamente por esse
crédito estar garantido por uma hipoteca anteriormente registada.
20. Por maioria de razão, não pode o julgador (art. 204.° CRP) socorrer-se da
margem de manobra que a Constituição concede ao legislador para — interpretando
as normas por este elaboradas — subverter a intencionalidade
normativo-constitucional que subjaz às mesmas. In casu, a protecção efectiva e
acrescida dos créditos laborais em relação a créditos com uma natureza meramente
patrimonial.»
O recorrido Banco C., S.A. (D., S.A., na qualidade de cessionária) deu por
reproduzidas as contra-alegações apresentadas.
O recorrido E. PLC contra-alegou, concluindo da forma seguinte:
«I. Vem o presente recurso da douta decisão do Supremo Tribunal de Justiça, que
recusou aplicar a norma do artigo 12.° do Decreto-Lei n.° 17/86, de 14 de Junho,
na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral que nele era
concedido aos trabalhadores preferiria à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do
Código Civil, por a considerar inconstitucional.
II. Ora, tendo sido o presente recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.°
1 do artigo 70.° da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional, deverá o mesmo ser rejeitado, na medida em que pressupõe a
aplicação de uma norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o
processo.
III. No caso sub judice, o que existiu foi uma recusa de aplicação do artigo
751.° do Código Civil e, consequentemente, a aplicação do artigo 749.° daquele
mesmo Código.
IV. Assim, e uma vez que o recurso é limitado ao objecto do pedido, não deverá o
Tribunal conhecer o mesmo, já que aquele pressupõe a aplicação do artigo 751.º
do Código Civil, que não aconteceu.
V. No entanto, e sem prescindir, sempre se dirá que o crédito da ora Recorrida
encontra-se garantido por hipoteca, devidamente registada, relativamente ao
imóvel descrito sob a verba 1 do auto de arrolamento; por seu turno, o crédito
dos Recorrentes encontra-se garantido por um privilégio imobiliário geral, o
qual lhes foi concedido através do artigo 12.° do Decreto-Lei n.° 17/86, de 14
de Junho.
VI. Discute-se, assim, nos presentes autos qual dos dois créditos prevalece em
caso de concurso, se a hipoteca devidamente registada, se o privilégio
imobiliário geral que era concedido aos trabalhadores nos termos supra
referidos.
VII. Com efeito, anteriormente à alteração introduzida no Código Civil pelo
Decreto-Lei n.° 38/2003, de 8 de Março, aquele diploma apenas reconhecia e
regulava o regime legal aplicável aos privilégios mobiliários gerais e
especiais, assim como aos privilégios imobiliários especiais, desconhecendo por
completo os privilégios imobiliários gerais.
VIII. Esta última espécie de privilégios foi criada por diplomas avulsos
posteriores à publicação do Código Civil.
IX. No entanto, os diplomas que vieram criar os privilégios imobiliários gerais
não estabeleceram, desde logo, um regime aplicável aos mesmos quando em concurso
com outros direitos de terceiros, gerando uma lacuna na lei.
X. Assim, a questão que se colocava na data de criação destes diplomas e até à
alteração do Código Civil pelo Decreto-Lei n.° 38/2003, de 8 de Março, era a de
saber qual o regime aplicável aos privilégios imobiliários gerais quando em
concurso com outros direitos de terceiros: se o regime dos privilégios
mobiliários gerais previsto no artigo 749.° do Código Civil, se o regime dos
privilégios imobiliários especiais previsto no artigo 751.º do Código Civil.
XI. Entretanto, e com a redacção do artigo 751.º do Código Civil que lhe foi
dada pelo Decreto-Lei n.° 38/2003, de 8 de Março, o legislador terá querido pôr
termo a esta controvérsia passando a referir expressamente que só os privilégios
imobiliários especiais é que preferem à hipoteca.
XII. De salientar que a norma do artigo 751.° do Código Civil tem uma natureza
interpretativa que, nos termos do artigo 13.°, n.º 1 do Código Civil, se integra
no próprio dispositivo (e, necessariamente, nos próprios diplomas legais que
atribuíram aos créditos laborais privilégio imobiliário geral), pelo que a sua
aplicação aos créditos sub judice não comporta qualquer aplicação retroactiva.
XIII. Do exposto, resulta já que os privilégios imobiliários gerais concedidos
aos trabalhadores não preferem à hipoteca e, portanto, ao crédito da ora
Recorrida.
XIV. Por outro lado, discute-se, ainda, nos presentes autos, a conciliação entre
vários valores com dignidade constitucional - direito da retribuição ao trabalho
e o princípio da confiança, da certeza e da segurança jurídica - devendo esta
conciliação ser efectuada de modo a assegurar a menor compressão possível de
cada um desses bens jurídicos.
XV. A este respeito, a doutrina vertida nos Acórdãos do Tribunal Constitucional
n.° 362/2002 e 363/2002, ambos de 17 de Setembro, é perfeitamente extensível e
aplicável aos créditos laborais.
XVI. Com efeito, tal como nos casos apreciados pelos referidos Acórdãos, também
os créditos laborais dos ora Recorrentes não têm uma estreita conexão com o
imóvel arrolado sobre a verba 1 do auto de arrolamento, nem com qualquer outro
bem da respectiva entidade patronal, até porque tal ligação nem sequer é alegada
por aqueles.
XVII. Por seu turno, também os Recorrentes gozam de outros meios alternativos
para cobrança dos seus créditos, nomeadamente, de um privilégio mobiliário geral
relativamente aos bens móveis da entidade patronal, bem como do Fundo de
Garantia Salarial, através do qual podem ver satisfeitos os seus créditos por
dívidas emergentes do contrato de trabalho ou da sua cessação.
XVIII. Assim, ao se dar preferência a um crédito garantido por hipoteca não se
viola de modo algum os créditos laborais, nem qualquer direito dos trabalhadores
à retribuição do trabalho, já que estes sempre se poderão socorrer do referido
Fundo de Garantia Salarial ou mesmo do Fundo de Desemprego.
XIX. Refira-se, ainda, o facto de os créditos hipotecários serem frequentemente
os impulsionadores do emprego.
XX. Assim, e caso o entendimento sufragado pelos Tribunais fosse o contrário do
que aqui se defende, ou seja, fosse a preferência do crédito laboral
relativamente ao crédito hipotecário, faria com que, em última análise,
estivesse em causa um conflito entre o direito ao salário e o direito ao
emprego, já que os bancos passariam a recusar empréstimos por falta de garantia
dos mesmos, e consequentemente, seriam criados menos postos de trabalho por
falta de financiamento das entidades patronais.
XXI. Termos em que deverá ser o negado provimento ao presente recurso e,
consequentemente, ser mantida a douta decisão recorrida.»
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II − Fundamentação
10. Importa, antes de mais, ter presente o teor das normas que são objecto dos
recursos em apreciação. O artigo 12.º da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, tem o
seguinte teor:
«Artigo 12.º
(Privilégios creditórios)
1 – Os créditos emergentes de contrato individual de trabalho regulados pela
presente lei gozam dos seguintes privilégios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário geral.
2 – Os privilégios dos créditos referidos no nº 1, ainda que resultantes de
retribuições em falta antes da entrada em vigor da presente lei, gozam de
preferência nos termos do número seguinte, incluindo os créditos respeitantes a
despesas de justiça, sem prejuízo, contudo, dos privilégios anteriormente
constituídos, com direito a ser graduados antes da entrada em vigor da presente
lei.
3 – A graduação dos créditos far-se-á pela ordem seguinte:
a) Quanto ao privilégio mobiliário geral, antes dos créditos referidos no nº 1
do artigo 747º do Código Civil, mas pela ordem dos créditos enunciados no artigo
737º do mesmo Código;
b) Quanto ao privilégio imobiliário geral, antes dos créditos referidos no
artigo 748º do Código Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas à
Segurança Social.
4 – Ao crédito de juros de mora é aplicável o regime previsto no número
anterior».
A Lei n.º 96/2001, de 20 de Agosto, deu nova redacção ao n.º 2 do artigo 12.º,
que passou a ter a seguinte formulação:
«Os privilégios dos créditos referidos no n.º 1, ainda que resultantes de
retribuições em falta antes da entrada em vigor da presente lei, gozam de
preferência nos termos do número seguinte, incluindo os créditos respeitantes a
despesas de justiça».
A mais disso, a referida Lei dispôs, no seu artigo 4.º, e para o que agora
releva:
«1 – Os créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação não
abrangidos pela Lei n.º 17/1986, de 14 de Junho, gozam dos seguintes
privilégios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário geral.
2 – Exceptuam-se do disposto no número anterior os créditos de carácter
excepcional, nomeadamente as gratificações extraordinárias e a participação nos
lucros das empresas».
Por força desta lei foi, assim, alargado o âmbito da garantia: para além dos
créditos retributivos (os “salários em atraso”), já cobertos pelo artigo 12.º da
Lei n.º 17/86, passaram a estar abrangidos os créditos indemnizatórios dos
trabalhadores, por força da cessação dos respectivos contratos.
O artigo 751.º do Código Civil, por último, na formulação anterior ao
Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, rezava assim:
«Os privilégios imobiliários são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou
um direito real sobre ele, e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca
ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores».
A) Questões prévias
A1) Pressupostos do recurso interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo
70.º da LTC
11. O recorrido C. sustentou a não verificação dos pressupostos do recurso
previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. Em seu entender, a decisão
do Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que o privilégio imobiliário geral
reconhecido no artigo 12.º da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, não beneficiava do
regime de oponibilidade a terceiros previsto no artigo 751.º do Código Civil
assentou numa “operação de interpretação jurídica”, em que não teve lugar
qualquer juízo de inconstitucionalidade.
E, na verdade, é bem certo que aquele Tribunal desenvolveu um extenso arrazoado
argumentativo, no puro plano da hermenêutica do direito ordinário, tendente a
demonstrar que o referido artigo 751.º é insusceptível de aplicação ao
privilégio imobiliário geral.
Nessa linha argumentativa, duas razões foram decisivas para considerar o
princípio geral contido no artigo 751.º do Código Civil insusceptível de
aplicação ao privilégio imobiliário geral: o facto de este «não incidir sobre
bens certos e determinados» e o facto de «os privilégios imobiliários gerais não
serem conhecidos aquando do início da vigência do actual Código Civil, o que
implicava que, dizendo o n.º 3 do art. 735.º que os privilégios imobiliários
eram sempre especiais, só a privilégios imobiliários especiais o dito 751.º se
podia referir (…)».
Como se vê, foi recorrendo exclusivamente, neste segmento da decisão, a cânones
hermenêuticos comuns, e, em especial, ao elemento sistemático da interpretação,
que o Supremo Tribunal de Justiça pôde concluir pela não integração dos
privilégios imobiliários gerais, e, em particular, do concedido pelo artigo 12.º
da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, no regime do artigo 751.º do Código Civil.
Mas, menos certo não é que o citado Tribunal não deixou de invocar, como uma
outra razão para fundamentar a decisão nesse sentido, a inconstitucionalidade da
interpretação oposta. De facto, abonando-se nos Acórdãos n.º 362/02, de 17.09.02
(DR, I Série-A, de 16.10.02), e n.º 363/02, da mesma data e com publicação no
mesmo número do DR, ambos do Tribunal Constitucional, cuja doutrina considerou
“extensiva aos créditos laborais”, a decisão recorrida pronunciou-se pela
«inconstitucionalidade também do art. 12.º do citado Dec.-Lei n.º 17/86 na
interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral que nele era
concedido preferiria à hipoteca». Por este trecho da decisão recorrida, é
patente que nela se recusou a aplicação dessa interpretação normativa também com
fundamento em inconstitucionalidade.
Estamos, pois, perante dois fundamentos distintos e autónomos, qualquer deles
bastante para sustentar, como ratio decidendi, a graduação prioritária do
crédito hipotecário. Aliás, os próprios recorrentes, para justificar, em
resposta ao despacho de fls. 805/806, a utilidade da apreciação do objecto do
recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, não
deixaram de reconhecer que «o argumento da inconstitucionalidade não parece ser
único fundamento da não aplicação da norma no contexto da decisão recorrida».
Se assim é, temos que concluir pela inutilidade do conhecimento do recurso
interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. De facto,
qualquer que seja a decisão quanto à constitucionalidade da norma do artigo 12.º
da Lei n.º 17/86, interpretada no sentido de que o privilégio imobiliário geral
nela concedido prefere à hipoteca, a decisão recorrida manter-se-á inalterada,
pois o outro fundamento em que ela se apoia não será minimamente afectado por
essa pronúncia do Tribunal Constitucional.
Uma eventual decisão de constitucionalidade daquela norma, contrariando a
decisão recorrida, significaria apenas que este Tribunal considera
constitucionalmente admissível a interpretação rejeitada, de prevalência dos
créditos referidos no citado artigo 12.º sobre os créditos garantidos por
hipoteca.
Mas não implicaria que o Tribunal entenda que a Constituição impõe essa
interpretação, como a única a ela conforme. Para isso, seria necessária uma
decisão no sentido da inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual o
privilégio imobiliário geral conferido por aquela norma não prevalece sobre a
hipoteca. Mas a aplicação da norma com esse alcance já é uma questão de
constitucionalidade que não cabe no âmbito do recurso pela alínea a), caindo no
âmbito do recurso da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Atendendo à natureza instrumental da fiscalização concreta da
constitucionalidade, como é jurisprudência uniforme deste Tribunal, a
insusceptibilidade de a decisão do recurso se repercutir utilmente na decisão
recorrida leva ao não conhecimento do recurso interposto ao abrigo da alínea a)
do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Termos em que procede a questão prévia suscitada pelo recorrido C..
A2) Utilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º da LTC
12. No que respeita ao recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC, entende-se o presente Relator, como já se infere do
anteriormente exposto, que a questão de constitucionalidade nele suscitada tem
autonomia em relação ao interposto ao abrigo da alínea a) da mesma norma, não
sendo inútil o seu conhecimento.
Na verdade, não proferindo este Tribunal uma decisão de fundo, quanto à
constitucionalidade da interpretação da norma do artigo 12.º da Lei n.º 17/86,
segundo a qual o privilégio imobiliário geral nela referido prefere à hipoteca,
fica em aberto a hipótese da inexistência de obstáculo constitucional a essa
eficácia preferencial.
Mas, um juízo de não inconstitucionalidade é apenas isso mesmo, a negação de uma
desconformidade da norma ou interpretação normativa com o disposto na
Constituição, não a afirmação de que essa norma ou interpretação corresponde a
um imperativo constitucional, sendo o único meio de lhe dar satisfação. Ora, com
o recurso interposto ao abrigo da citada alínea b), o que os recorrentes
pretendem, ao arguirem a inconstitucionalidade de uma interpretação que não
confira aos crédito laboral referido no artigo 12.º da Lei n.º 17/86 prevalência
sobre a hipoteca, é justamente uma decisão da qual se infira que uma tal
prevalência é constitucionalmente imposta, em termos de obstar à
constitucionalidade de qualquer outra que dela divirja.
Não pode, assim, contestar-se a utilidade, para o recorrente, de uma decisão de
provimento do pedido, formulado ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º
da LTC. Na verdade, em caso de êxito, ficará obstaculizada, no presente
processo, qualquer outra interpretação normativa do artigo 12.º da Lei n.º
17/86, do artigo 4.º da Lei n.º 96/2001 e do artigo 751.º do Código Civil que
não seja a da atribuição de preferência àquele privilégio sobre a hipoteca.
Nestes termos, tomar-se-á conhecimento do recurso interposto ao abrigo da alínea
b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
B) Apreciação do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º da LTC
13. A questão subjacente ao presente recurso é a de saber se, em concurso de
credores, deve ser dada preferência, na graduação dos créditos reconhecidos em
relação aos imóveis integrados na massa falida, aos dos trabalhadores
recorrentes, com base no privilégio imobiliário geral previsto naquela norma, ou
aos dos bancos recorridos, com base em hipoteca.
O artigo 12.º da Lei n.º 17/86 nada diz sobre esta questão, de forma que a
solução para ela tem que ser obtida conjugando-a com o regime dos privilégios
creditórios consagrado no Código Civil.
A preferência dos privilégios imobiliários sobre a hipoteca, ainda que
anteriormente registada, está consagrada, em excepção ao princípio prior in
tempore, potior in iure, no artigo 751.º do Código Civil. Sendo assim, perguntar
se o privilégio imobiliário geral concedido pelo artigo 12.º da Lei n.º 17/86 e
pelo artigo 4.º da Lei n.º 96/2001 prevalece sobre a hipoteca é o mesmo que
perguntar se este privilégio cai ou não dentro do âmbito de previsão do artigo
751.º
A questão, anteriormente à alteração do artigo 751.º do Código Civil operada
pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, e à aprovação do Código do
Trabalho, pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto (que veio conceder um privilégio
imobiliário especial aos créditos laborais), suscitava dúvidas fundas. Essas
dúvidas nasciam, além do mais, do facto de o artigo 751.º, na sua formulação
originária, referir os privilégios imobiliários, sem mais especificações, sendo
certo, todavia, que, dentro do sistema do Código Civil, os privilégios
imobiliários eram sempre especiais, como expressamente se estabelecia no artigo
735.º, n.º 3. Só a partir da alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 38/2003,
o artigo 751.º passou a referir os privilégios imobiliários especiais como o seu
âmbito de incidência.
Seja qual for a melhor solução, no plano infraconstitucional, para a presente
questão de constitucionalidade importa apenas averiguar se está ferida de
inconstitucionalidade uma interpretação das normas objecto do presente recurso
que não atribua aos créditos garantidos pelo privilégio imobiliário geral nele
previsto graduação prioritária perante créditos hipotecários.
Pronunciando-se sobre normas que consagram outros privilégios imobiliários
gerais − os atribuídos à Segurança Social e aos créditos do Estado por imposto
sobre o rendimento das pessoas singulares − o Tribunal Constitucional declarou a
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de tais normas, quando
interpretadas no sentido de que o privilégio imobiliário geral nelas conferido
prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do Código Civil (Acórdãos n.ºs
362/2002 e 363/2002, publicados no DR, I Série A, de 16.10.2002, que foram
antecedidos por vários acórdãos no mesmo sentido, proferidos em sede de
fiscalização concreta da constitucionalidade).
Nestes arestos considerou-se, em síntese, que aquela interpretação normativa
viola o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito
democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição.
A fundamentação desses acórdãos remete para considerações expendidas no Acórdão
n.º 160/2000, do seguinte teor:
«[…] a interpretação que o acórdão recorrido fez destas normas, mediante a
aplicação do regime do artigo 751º do Código Civil, confere a este privilégio a
natureza de verdadeiro direito real de garantia, munido de sequela sobre todos
os imóveis existentes no património da entidade devedora das contribuições para
a previdência, à data da instauração da execução, e, atribui-lhe preferência
sobre direitos reais de garantia - a consignação de rendimentos, a hipoteca e o
direito de retenção - ainda que anteriormente constituídos.
Este privilégio, com esta amplitude, funciona à margem do registo (já que a ele
não está sujeito) e sacrifica os demais direitos de garantia consignados no
artigo 751º, designadamente a hipoteca - que é o caso dos autos.
[…] o princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito
democrático, postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas
expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações
inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se
poderia moral e razoavelmente contar (cfr. inter alia, os acórdãos nºs. 303/90 e
625/98, publicados no Diário da República, II Série, de 26 de Dezembro de 1990 e
18 de Março de 1999, respectivamente).
A esta luz, pergunta-se – e os recorrentes fazem-no – que segurança jurídica,
constitucionalmente relevante, terá o cidadão, perante uma interpretação
normativa que lhe neutraliza a garantia real (hipoteca) por si registada,
independentemente de o ter sido em data posterior ao início da vigência das
normas em causa.
É que, por um lado, o registo predial tem uma finalidade prioritária que radica
essencialmente na ideia de segurança e protecção dos particulares, evitando ónus
ocultos que possam dificultar a constituição e circulação de direitos com
eficácia real sobre imóveis, bem como das respectivas relações jurídicas – que,
em certa perspectiva, possam afectar a segurança do comércio jurídico
imobiliário (cfr. Oliveira Ascensão, Direito Civil. Reais, Coimbra, 1993, pág.
333; Isabel Pereira Mendes, “Repercussão no Registo das Acções dos Princípios do
Direito Registral e da Função Qualificadora dos Conservadores do Registo
Predial” in – O Direito, ano 123, 1991, págs. 599 e segs., maxime, pág. 604;
Paula Costa e Silva, “Efeitos do Registo e Valores Mobiliários. A Protecção
Conferida ao Terceiro Adquirente”, in – Revista da Ordem dos Advogados, ano 58,
1998, II, págs. 859 e ss., maxime pág. 862).»
Todavia, nem a garantia decorrente do registo de uma hipoteca é
absoluta – comprova-o, além do mais, a preferência do direito de retenção
(também ele um direito não sujeito a registo), ainda que a hipoteca tenha sido
registada anteriormente (artigo 759.º, n.º 2, do Código Civil) – nem os créditos
laborais são inteiramente equiparáveis aos créditos em causa nestes acórdãos. Na
verdade, eles apresentam especificidades significativas, que, do ponto de vista
valorativo, os diferenciam destes.
Essas diferenças foram percucientemente apontadas no Acórdão n.º 498/2003
(seguido pelo Acórdão n.º 672/04), onde se salienta, em primeiro lugar, que «não
se pode dizer com a mesma intensidade que não exista, no caso dos créditos
abrangidos pelo n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 17/86 ‘qualquer conexão’ com os
imóveis onerados. É certo que não ocorre a conexão presente nos casos dos
privilégios imobiliários especiais constantes dos artigos 743.º e 744.º do
Código Civil; mas é igualmente certo que estão em causa privilégios incidentes
sobre os bens imóveis da empresa ao serviço da qual se encontram os
trabalhadores beneficiários, e que esta ligação necessária, no mínimo, atenua o
carácter oculto e imprevisível para o credor com garantia real registada da
possibilidade de virem a existir os referidos créditos.» Daí «parece poder
concluir-se que, no caso, não é tão intensamente atingido o princípio da
confiança, especialmente prosseguido pelo registo predial.»
Destaca o referido Acórdão, em segundo lugar, que os credores da remuneração
laboral «não têm à sua disposição os meios alternativos que, quer a Fazenda
Pública, quer a Segurança Social detêm, para cobrar os seus créditos».
Por último, o Acórdão n.º 498/2003 chama a atenção para a particular “natureza
do direito” aqui confrontado com o princípio da confiança.
E esta é, do nosso ponto de vista, uma diferença particularmente relevante. Na
verdade, a retribuição da prestação laboral, quer na sua causa, que na sua
destinação típica, está intimamente ligada à pessoa do trabalhador. Ela é a
contrapartida da disponibilização da sua energia laborativa, posta ao serviço da
entidade patronal. Ela é também, por outro lado, o único ou principal meio de
subsistência do trabalhador, que se encontra numa situação de dependência da
retribuição auferida na execução do contrato para satisfazer as suas
necessidades vivenciais.
É esta dimensão pessoal e existencial que qualifica diferenciadamente os
créditos laborais, justificando a tutela constitucional reforçada de que gozam,
para além da conferida, em geral, às posições patrimoniais activas.
É, na verdade, esta perspectiva valorativa que levou à consagração do direito à
retribuição do trabalho entre os direitos dos trabalhadores enumerados no n.º 1,
alínea a), do artigo 59.º da CRP, por forma a “garantir uma existência condigna”
– direito este já expressamente considerado pelo Tribunal Constitucional como um
direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (Acórdão n.º
379/91). Por outro lado, no n.º 3 do mesmo preceito estabelece-se que “os
salários gozam de garantias especiais, nos termos da lei”.
Esta previsão constitucional de garantias especiais para créditos salariais
seguramente que, não só justifica, como impõe, regimes consagradores da sua
discriminação positiva, em relação aos demais créditos sobre os empregadores
(cfr., neste sentido, GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República
Portuguesa anotada, I, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 777).
Afigura-se-nos, pois, por este conjunto de razões, que a situação de conflito
concursal que se nos depara nos presentes autos não estrutura um campo de
ponderação relativa valorativamente idêntico ao que se nos apresenta quando os
créditos contrapostos aos dos credores hipotecários não são de fonte laboral.
Assim sendo, há fundamento para que a sua solução obedeça a uma linha de
tratamento não coincidente com a seguida nesses casos. Há fundamento,
designadamente para «não julgar inconstitucional a norma constante da alínea b)
do n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, na interpretação
segundo a qual o privilégio imobiliário geral nela conferido aos créditos
emergentes do contrato individual de trabalho prefere à hipoteca, nos termos do
artigo 751.º do Código Civil», tal como decidiu o citado Acórdão n.º 498/2003.
Mas, afirmar a não contrariedade à Constituição desta interpretação normativa do
artigo 12.º não é, evidentemente, o mesmo que sustentar a inconstitucionalidade
da solução oposta, da solução que negue ao privilégio referido nesta norma
preferência em relação à hipoteca. Isso equivaleria a conferir automaticamente a
uma interpretação constitucionalmente admissível o alcance de uma solução
constitucionalmente imposta. Como se exprime o Acórdão n.º 284/2007:
«Só que destas considerações – suficientes para aceitar a conformidade
constitucional de uma solução legislativa que admita que os créditos laborais
preferem ao crédito que é garantido por hipoteca anteriormente registada —, não
decorre a obrigação constitucional de a lei ordinária conferir obrigatoriamente
aos créditos laborais uma prevalência sobre crédito garantido por uma hipoteca
anteriormente registada».
A questão de constitucionalidade que nos ocupa terá, pois, que ser apreciada em
si mesma, implicando um juízo autónomo quanto à necessidade ou não de um regime
de prevalência dos créditos laborais sobre os hipotecários para se efectivar um
nível de protecção constitucionalmente adequado daqueles créditos.
Nessa apreciação, não serve de parâmetro o disposto no artigo 53.º da CRP, cujo
âmbito de protecção, como bem se valorou no Acórdão n.º 284/2007, não cobre a
questão objecto do recurso. O ponto de partida e o quadro normativo de
referência primordial é-nos dado antes pelo direito à retribuição do trabalho,
consagrado na alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da CRP. Como a norma
expressamente acentua – nos seus próprios termos, tem-se em vista “garantir uma
existência condigna”—, o reconhecimento de tal direito exprime o valor básico da
dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP), constituindo, no seu específico
âmbito de protecção, um instrumento do preenchimento das condições materiais da
realização deste valor. E o relevo nuclear do direito à (justa) remuneração do
trabalho é atestado pela vinculação do legislador ao estabelecimento de
garantias especiais para os salários (n.º 3 do artigo 59.º).
É na correcta aplicação desta norma que reside a chave para a resposta à questão
da constitucionalidade da preferência dos créditos hipotecários sobre os
créditos retributivos dos trabalhadores. E o ponto decisivo está em saber se
esse regime desprotege intoleravelmente estes créditos, despojando-os de uma
tutela que seria constitucionalmente devida, ou, dito de forma inversa, se a
preferência absoluta dos créditos laborais é uma solução exigida para dar
satisfação ao mandato constitucional de garantias especiais para os créditos
salariais.
É sabido que a ordem jurídica dispõe de um conjunto muito diversificado de
mecanismos e instrumentos de tutela dos bens constitucionalmente protegidos.
Quer quanto à natureza do meio empregue, quer quanto ao grau de tutela, o
legislador ordinário é colocado perante um espectro extenso de medidas, a
utilizar de forma cumulativa ou optativa, para cumprir o encargo de uma
regulação especialmente protectora que o n.º 3 do artigo 59.º lhe fixou.
E o legislador tem lançado mão dessas possibilidades variadas de conformação,
configurando um sistema protector dos créditos laborais em que se inclui,
designadamente, entre outras soluções, e para além dos privilégios creditórios,
o Fundo de Garantia Salarial, criado pelo Decreto-Lei n.º 50/85, de 27 de
Fevereiro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 219/99, de 15 de Junho (e hoje previsto
no artigo 380.º do Código do Trabalho e nos artigos 316.º e seguintes da Lei n.º
35/2004, de 29 de Julho, que o regulamenta), a impenhorabilidade parcial dos
salários (artigo 824.º do Código de Processo Civil), a insusceptibilidade de
cessão em medida idêntica à da impenhorabilidade, limites à possibilidade de
compensação com créditos da entidade patronal, um regime favorável de
prescrição.
É tendo em conta o efectivo alcance tutelador deste conjunto de medidas que tem
que ser ponderado se a denegação do grau máximo de eficácia a uma delas – os
privilégios creditórios –, que levaria à atribuição de preferência aos créditos
garantidos mesmo perante créditos hipotecários, pode fundar o juízo de que o
legislador ficou aquém do que lhe era constitucionalmente exigido.
É nossa convicção de que uma tal conclusão se não justifica. Na verdade, estamos
perante uma expressa remissão para o legislador, sem predeterminação, a nível
constitucional, de um concreto grau de garantia. Uma solução que, concedendo aos
créditos laborais a garantia de um privilégio imobiliário geral, não lhes
reconheça, todavia, preferência em face de créditos garantidos por hipoteca,
flanqueada que está por outras medidas de protecção, acima enunciadas, cabe
ainda dentro do poder de conformação legislativa, representando uma legítima
opção concretizadora de uma manifestação parcial da tutela constitucionalmente
exigida.
E a não desrazoabilidade desta solução é ainda evidenciada pelo facto de ela
preservar a confiança institucional num mecanismo garantístico – a hipoteca ─
que desempenha um relevante papel no tráfico jurídico-económico, como
instrumento qualificado de tutela de interesses de segurança e certeza
jurídicas.
Acompanhando o decidido pelos acórdãos n.º 284/2007 e 287/2007, pode
concluir-se, em suma, que não é constitucionalmente proibido que a lei ordinária
confira prevalência ao crédito garantido por hipoteca sobre os créditos laborais
garantidos por um privilégio imobiliário geral.
III − Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Não tomar conhecimento do recurso interposto ao
abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, por inutilidade;
b) Não julgar inconstitucionais as normas do artigo
12.º da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, do artigo 4.º da Lei n.º 96/2001, de 20
de Agosto, e do artigo 751.º do Código Civil (na redacção anterior ao
Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março), na interpretação segundo a qual aos
privilégios imobiliários gerais conferidos por aquelas normas aos créditos dos
trabalhadores emergentes do contrato individual de trabalho não é aplicável o
regime do artigo 751.º do Código Civil, pelo que estes créditos não prevalecem
sobre os garantidos por hipoteca.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 30 de Abril de 2008
Joaquim de Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos
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