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Processo n.º 1133/07
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
1. Inconformado com o acórdão proferido em 20 de Setembro de 2007 no
Supremo Tribunal de Justiça, o interessado ora reclamante interpôs recurso para
o Tribunal Constitucional, invocando:
A., recorrente nos autos à margem identificados, não se conformando com o douto
acórdão que julgou improcedente o recurso de revista, vem dele interpor recurso
para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no art. 75º-A da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro e suas alterações, nos seguintes termos:
1º - o recurso é interposto com base no disposto na alínea b) do nº 1 do art.
70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro;
2º - a norma jurídica cuja inconstitucionalidade se pretende seja apreciada é o
art. 690º-A do CPC, com a redacção que lhe foi dada pelo Dec.-Lei 39/95 de 15 de
Fevereiro, quando confrontada com a interpretação que foi feita pelo Venerando
Tribunal a quo, que a toma completamente inútil;
3º - os princípios e normas constitucionais violados são os seguintes:
- princípio da segurança consagrado no art. 2º da CRP;
- o princípio da segurança e da certeza jurídica contido nos arts. 20º e 280º da
CRP
4º - a inconstitucionalidade foi suscitada na alegação de recurso de revista do
ora recorrente, quando referiu que a interpretação que o Venerando Tribunal a
quo faz do conteúdo do Dec.-Lei 39/95, reduz de forma significativa senão mesmo
em absoluto a garantia que o cidadão tem de alcançar um segundo grau de
jurisdição na apreciação da matéria de facto, real, concreto e efectivo.
E, ao fazê-lo, viola o princípio da segurança, consagrado no art. 2º da C.R.P.,
o que é proibido pelo seu artigo 204º.
Nos termos expostos, deve ser admitido o presente recurso, seguindo-se a demais
tramitação legal.
Todavia, o recurso não foi admitido. Com efeito, por despacho de 11 de Outubro
de 2007, decidiu-se, no Supremo Tribunal de Justiça, o seguinte:
I-
A folhas 563, veio o recorrente A., ao abrigo do disposto no art. 70.º, n.º 1 b)
da Lei n.º 28/82, de 15.11, interpor recurso do nosso acórdão para o Tribunal
Constitucional.
Pretende que se declare a inconstitucionalidade — por violação dos artigos 2.º,
20.º e 280.º da Constituição — do artigo 690.ºA do Código de Processo Civil, na
interpretação de que o Tribunal da Relação, na reapreciação da matéria de facto
impugnada nos termos de tal preceito, deve atender aos elementos probatórios que
serviram de fundamento à decisão sobre tal matéria e que não foram referidos,
quer pelo recorrente, quer pelo recorrido.
II-
Esta interpretação resulta expressamente do artigo 712.º, n.º 2 do referido
código e emerge, com evidência, da ideia de que a decisão factual deve assentar
em toda a prova produzida sobre o que se decide.
Se fosse para outra interpretação, estar-se-ia a colocar nas mãos das partes a
possibilidade de reduzirem, em recurso, a base em que assentou a decisão factual
de primeira instância. Verdadeiramente, não estaríamos, então, numa situação de
reapreciação do que vinha decidido, mas de decisão com outros dados. O que
levantaria mesmo a questão da natureza dos recursos.
Cremos, então, que, não só se justifica plenamente aquela redacção do n.º 2 do
artigo 712.º e, com ela, a interpretação que perfilhámos, como a mesma
corresponde, manifestamente a todas as exigências constitucionais, mormente as
respeitantes ao acesso ao direito e à consagração do direito ao recurso.
III-
Nestes termos e dado o disposto no artigo 76.º, n.º 2, parte final, da referida
Lei n.º 28/82, não admito o recurso.
É este despacho que o interessado agora impugna, em reclamação que dirige ao
Tribunal Constitucional, dizendo:
A., recorrente nos autos à margem identificados em que são recorridos B. e
outros vem, ao abrigo do disposto no artº 76º nº 6 da LTC, na redacção que lhe
foi dada pela Lei nº 13-A/98 de 26 de Fevereiro, reclamar do douto despacho que
indeferiu o recurso interposto para esse Venerando Tribunal nos termos e com os
fundamentos seguintes:
1- Por douto despacho de fls. 577 e seguintes foi recusada a admissão do recurso
para decidir da constitucionalidade do n.º 5 do art. 690-A do CPC, na
interpretação que lhe foi dada quer pelo Tribunal da Relação de Coimbra, quer
pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Fundamentou-se a inadmissibilidade do recurso interposto no nº 2 do art 712º do
CPC do qual “emerge, com evidência, da ideia de que a decisão factual deve
assentar em toda a prova produzida sobre o que se decide”.
Salvo o devido respeito entende o recorrente que o problema não foi devidamente
equacionado na medida em que não levou em conta o disposto no artº 690-A nº 5 do
CPC, que apenas determina que o Tribunal de recurso proceda à audição ou
visualização dos depoimentos indicados pelas partes, excepto se o juiz relator
considerar necessária a sua transcrição, a qual será realizada por entidade
externa para tanto contratada pelo Tribunal, situação excepcional que no caso em
apreço não aconteceu.
Para melhor entendimento da posição assumida pelo reclamante torna-se
indispensável recordar os fundamentos do douto acórdão proferido pelo Venerando
Tribunal da Relação de Coimbra.
2- Reconhece-se, nessa decisão, que o DL 39/95 de 15 de Fevereiro introduziu no
nosso ordenamento a possibilidade de documentação da prova para assegurar a
criação de um verdadeiro e efectivo 2º grau de jurisdição na apreciação da
matéria de facto.
Adianta, de seguida que:
“a garantia do duplo grau de jurisprudência em sede de matéria de facto nunca
poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e
global de toda a prova produzida em audiência de julgamento — visando apenas a
detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de
julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto que o
recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta
de recurso”
Sendo este o entendimento adoptado — apreciação de pontos concretos, visando a
detecção de erros de julgamento que nunca poderá envolver a reapreciação
sistemática e global de toda a prova produzida, - o Tribunal da Relação de
Coimbra acabou por reapreciar de forma sistemática e global os depoimentos das
testemunhas Manuel Gonçalves Gomes, Orlando Duarte Comes e Deolinda Maria Dias
Ribeiro.
É a conclusão que forçosamente se extrai, quando o Tribunal da Relação
escalpeliza o depoimento da primeira testemunha, e descreve a forma hesitante
mas que vai ganhando consistência à medida que a memória é estimulada (e às
vezes apoiada), como terá deposto a 2.ª testemunha.
Em suma:
— o recorrente deve, sob pena de rejeição, delimitar com toda a precisão os
pontos concretos da decisão que pretende questionar, motivar o seu recurso
através da transcrição das passagens da gravação que reproduzam os meios de
prova que, em seu entender, impunham uma decisão diversa sobre a matéria de
facto, tudo em estrita obediência ao disposto no artº 690º-A, que teve em vista
assegurar um verdadeiro e efectivo 2º grau de jurisdição na apreciação da
matéria de facto;
— mas o Tribunal ad quem, ao abrigo do disposto no principio da livre apreciação
da prova reserva-se o direito de proceder à audição da globalidade dos
depoimentos indicados pelo recorrente, mesmo sem ter considerado, previamente,
necessária a sua transcrição, como excepcionalmente é consentido pela 2.ª parte
do nº 5 do art.º 690-A do CPC.
3- Interpretar-se nestes termos o disposto no artº 690º-A do CPC é o mesmo que
negar às partes o 2º grau de jurisdição efectiva no julgamento da matéria de
facto.
De nada serve a quem recorre cumprir o ónus de delimitar com toda a precisão os
pontos de facto concretos que considera mal julgados.
O recorrente indica, sob pena de rejeição do recurso, os pontos concretos de
facto em que fundamenta o seu recurso, mas o Tribunal procede à audição
sistemática e global dos depoimentos e, nesse contexto, decide que improcedem as
razões do recorrente.
Não há como lutar contra esta desigualdade de tratamento.
Afinal o legislador não consagrou um 2º grau de jurisdição efectivo e verdadeiro
no julgamento da matéria de facto.
Apenas terá simulado essa concessão.
Será esta a conclusão a que inelutavelmente teremos de chegar se considerarmos
como exacto e indiscutível o sentido e alcance que o Tribunal a quo atribuiu ao
nº 5 do artº 690º-A do CPC.
A verdade é que o legislador não terá desejado essa solução.
Tanto assim é que, no Dec.Lei 303/2007 de 24 de Agosto, que introduziu a reforma
do processo civil no tocante à matéria de recursos, consagrou a possibilidade de
discussão oral do objecto do recurso de revista, oficiosamente ou a requerimento
fundamentado de alguma das partes – v. art.º 727º-A nº 1 do CPC.
Agora, quando o Tribunal do recurso se socorrer da globalidade da prova para
confirmar o valor probatório de pontos concretos dos depoimentos gravados,
sempre a parte poderá exercer o direito ao contraditório na sua alegação oral,
para fazer valer a sua razão.
4- O art. 712º nº2 do CPC não pode servir de fundamento à recusa do recurso para
o Tribunal Constitucional.
O que está em causa é o nº 5 do artº 690º-A do CPC com o sentido e alcance que
lhe foi dado.
As partes têm direito a um 2º grau de jurisdição sobre o julgamento da matéria
de facto. Assim o determina o legislador.
A interpretação dada ao art. 690º-A nº 5 do CPC retira-lhes na prática, esse
direito.
Ao fazê-lo viola o princípio da segurança consagrado no art. 2º da Constituição
da República Portuguesa.
Nestes termos, deverá julgar-se procedente a reclamação e, em consequência
admitir-se o recurso interposto.
No Tribunal Constitucional o representante do Ministério Público teve vista nos
autos, nos termos do n.º 3 do artigo 77º da LTC, lançando o seguinte parecer:
A presente reclamação é manifestamente improcedente – desde logo porque a ratio
decidendi do acórdão recorrido foi (cfr. fls. 548) a norma constante do artigo
712º n.º 2 do CPC, e não a que o recorrente especificou no respectivo
requerimento de interposição do recurso.
O reclamante foi ouvido sobre esta matéria, tendo respondido:
A., reclamante nos autos à margem identificados, tendo sido notificado do teor
do parecer emitido pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público, vem dizer:
1. Salvo o devido respeito pelo parecer emitido, crê o Reclamante que ele é
redutor porque não contempla a essência e a globalidade da questão suscitada nos
autos.
2. Embora a disposição invocada pelo Supremo Tribunal de Justiça, para julgar
improcedente o recurso de revista tenha sido o n.º 2 do art. 712.º CPC, o certo
é que para chegar à sua aplicação foi necessário percorrer longo caminho em que
assumiu relevância decisiva o disposto no art. 690.º-A, 2.ª parte do n.º 5 do
referido diploma legal.
Ou seja:
– o Tribunal da Relação deve reapreciar as provas em que assentou a decisão
recorrida;
– mas essa prova deve ter sido alcançada (quando impugnada) nos exactos termos
previstos no art. 690.º-A do CPC;
– este preceito legal tem de ser interpretado por forma a respeitar os
princípios fundamentais consagrados na Constituição da República Portuguesa sob
pena de inconstitucionalidade.
3. No caso sub judice a interpretação dada ao art. 690.º-A n.º 5 do CPC no
acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra tornou-o inoperante na
medida em que, na prática, a gravação da prova não permite alcançar um 2.º grau
de jurisdição da matéria de facto
4. O Reclamante, ao requerer a gravação da prova, abdicou da intervenção do
Tribunal Colectivo que, de algum modo, era garante do bom julgamento da matéria
de facto.
Em contrapartida nada recebeu, se o art. 690.º-A nº 5 do CPC tiver o sentido e
alcance que o Tribunal da Relação de Coimbra lhe deu.
Essa interpretação vicia o preceito em causa de inconstitucionalidade por
manifesta violação do princípio da segurança.
Termos em que se reitera o pedido de admissão do recurso interposto.
Cumpre decidir.
Fundamentação
2. O recurso de inconstitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações introduzidas
pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro), como é aquele que o reclamante
pretende interpor, depende da verificação de requisitos específicos – artigos
280.º, n.º 4 da Constituição e 72.º n.º 2 da LTC – decorrentes da natureza
normativa da impugnação, ou resultantes do carácter instrumental do recurso.
Enquanto os primeiros exigem que a impugnação apresente, como objecto, uma regra
jurídica determinável com generalidade e abstracção, assim arredando do âmbito
do recurso as operações intelectuais que preenchem tipicamente o veredicto
jurisdicional, o segundo impõe que a regra impugnada constitua o verdadeiro e
efectivo pressuposto jurídico da solução consagrada no aresto recorrido, pois só
assim a eventual procedência do recurso terá repercussão no processo.
Ora, deixando de lado as razões apontadas no despacho que, no Supremo Tribunal
de Justiça, liminarmente não admitiu o recurso, a verdade é que se constata que
o acórdão de que pretende recorrer o ora reclamante, ou seja, o acórdão lavrado
em 20 de Setembro de 2007 naquele Supremo Tribunal, assenta, na parte que agora
interessa reter, numa única norma, a constante no n.º 2 do artigo 712º do
Código de Processo Civil, e não na norma que o recorrente elegeu para objecto do
recurso, a constante do 'artigo 690º-A do Código de Processo Civil', conforme
(de forma, aliás, totalmente imprecisa) o recorrente a identificou.
Tal é suficiente para que se não possa conhecer do recurso.
Na verdade, o Tribunal tem persistentemente sublinhado que é ao recorrente que
incumbe o ónus de identificar a norma que integra o objecto do recurso,
enunciando o sentido com que foi aplicada na decisão recorrida, e que o deve
fazer no requerimento de interposição do recurso.
Ora, se o recorrente é bem claro a identificar, no dito requerimento, como
objecto do recurso a dita 'norma', o certo é que o aresto recorrido é igualmente
bem claro a apontar, como norma em que assentou o seu julgamento, a constante no
n.º 2 do artigo 712º do Código de Processo Civil.
Com efeito, na parte que releva para o caso, o acórdão afirma:
VI –
A primeira das questões enumeradas em IV encontra resposta directa na redacção
do artigo 712º, n.º 2 do Código de Processo Civil: nos casos ali previstos – em
que o nosso se integra – a Relação “reaprecia as provas em que assentou a parte
impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e
recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos
probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria
de facto impugnada.”
A lei é, pois, clara e não precisamos de nos alongar por aqui.
Impõe-se, portanto, assentar em que nenhuma das normas constantes do artigo
690.º-A do Código de Processo Civil – preceito genericamente sindicado pelo
recorrente no dito requerimento – constituíram o fundamento normativo do
julgamento em causa.
É certo que, conforme diz o reclamante, 'embora a disposição invocada pelo
Supremo Tribunal de Justiça, para julgar improcedente o recurso de revista tenha
sido o n.º 2 do art. 712.º CPC, o certo é que para chegar à sua aplicação foi
necessário percorrer longo caminho em que assumiu relevância decisiva o disposto
no art. 690.º-A, 2.ª parte do n.º 5 do referido diploma legal'. Mas também é
certo que a particular natureza do recurso de inconstitucionalidade normativa
impede, como acima se afirmou, que se sindiquem os juízos jurisdicionais que
integram a solução jurídica em causa, assim como os argumentos de carácter
jurídico usados pelo Tribunal recorrido, neles se incluindo a normas cotejadas
nessa base.
Deve, por isso, concluir-se que a 'norma' impugnada pelo recorrente não
constituiu a ratio decidendi da decisão recorrida, o que, impedindo que se
conheça do recurso que o recorrente pretendia interpor, conduz à não verificação
deste requisito de que depende a admissibilidade do recurso.
Decisão
3. Nestes termos, e por este fundamento, indefere-se a reclamação
apresentada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 13 de Fevereiro de 2008
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Gil Galvão
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