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Processo nº 1219/2007
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. A Magistrada do Ministério Público junto do 2.º Juízo do Tribunal de Pequena
Instância Criminal do Porto vem reclamar para este Tribunal Constitucional, ao
abrigo das disposições conjugadas dos artigos 77.º e 78.º-A, n.ºs 3 e 4, ambos
da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei Tribunal Constitucional), do despacho
da Juiz daquele 2.º Juízo, de 12 de Novembro de 2007, que não lhe admitiu o
recurso, interposto para este Tribunal ao abrigo do disposto no artigo “70.º,
n.º 1, alíneas a) e/ou c)” da Lei Tribunal Constitucional, do despacho da mesma
Juiz, de 29 de Outubro de 2007, com fundamento em que “(…) da análise dos
preceitos em causa, não se vislumbra que a decisão em causa nos autos admita
recurso para o Tribunal Constitucional, atendendo a que não se subsume a
qualquer das alíneas supra referidas. Requisitos de admissibilidade do recurso,
nos termos do art.º 70.º, al. a), é a existência de recusa de aplicação de uma
norma com fundamento na sua inconstitucionalidade. Ora, isso não acontece, nem
explicita nem implicitamente, no despacho em causa nos autos; no mesmo sentido
Acórdãos do Tribunal Constitucional disponíveis na página/site do Tribunal
Constitucional, com o n.º convencional ACT00000118, ACT00004871 e ACT00000019.”
O despacho pretendido recorrer para este Tribunal Constitucional tem o seguinte
conteúdo:
Do auto de notícia elaborado pela autoridade policial resulta que o arguido foi
detido em flagrante delito e depois restituído à liberdade, tendo sido
notificado para comparecer perante o M.P. junto do Tribunal de turno.
Resulta também dos autos que não foi deduzida verdadeira acusação escrita contra
o arguido.
O M.P. apresentou apenas o expediente ao juiz de turno para os efeitos do art°
387°, nº 2 ali. a) C.P.P., pretensão que foi deferida, adiando-se simplesmente o
início da audiência do julgamento.
Aberta vista à Digna Magistrada do M.P., pela mesma foi referido que aguardará o
início da audiência, para aí requerer a substituição da apresentação da acusação
pela leitura do auto de notícia da autoridade que procedeu à detenção.
É certo que no auto de notícia constam alguns factos.
Todavia, tais factos, por si só, não constituem qualquer crime.
É de ter em conta que a consciência e a vontade de praticar tais factos típicos,
bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei – o dolo – constitui
elemento típico dos ilícitos criminais, e designadamente do perfunctoriamente
indiciado no auto de notícia.
O mesmo sucede quanto à negligência, nos termos do disposto nos art°s.13° e 15°
do C.P.
Tal elemento subjectivo deverá constar da acusação e/ou do auto de notícia — cfr
os art°s 243º e 283°, n° 3 ali. b) do C.P.P., e ainda sobre o tema, entre
outros, o AC do TRG de 7/04/2003, in CJ, tomo II, pg. 291-294.
Qualquer acusação em que se omita este facto – falta dos factos integradores do
dolo ou da negligência – deve ser rejeitada, por se encontrar manifestamente
infundada, com base no art° 311°, n° 3, ali. d) do C.P.P. – quando os demais
elementos típicos do crime se encontrarem nela descritos.
Do expediente ora em análise não consta qualquer um desses elementos (dolo ou
neg1igência).
De tal expediente também não se retira a indicação das disposições legais
aplicáveis, a chamada qualificação jurídica dos factos, o que é relevante e
implica até a rejeição da acusação, nos termos do citado art° 311, n° 3 ali. e)
do C.P.P.
Dado o teor do auto de notícia, mesmo com sua leitura em audiência nada mais se
acrescenta ao que aí consta.
É condição da realização de julgamento em processo sumário e desta forma de
processo especial a existência de um crime concreto e devidamente identificado,
com indicação dos respectivos factos integradores (objectivos e subjectivos) e
de todas as disposições legais aplicáveis. Só assim se podem apreciar os
apertados requisitos de admissibilidade do processo sumário, bem como a
competência do tribunal.
Está em causa a natureza acusatória do processo penal, além das garantias de
defesa do arguido e o princípio da vinculação temática do tribunal.
Afigura-se-nos, pois, que não se verificam os requisitos que justificam o
julgamento em processo sumário, nos termos do disposto no art° 381° do C.P.P.,
na redacção da Lei n° 48/07, de 29/08.
Assim sendo, e por razões de economia processual, e ainda nos termos dos art°s.
381°, e 390º, ali. a) do C.P.P., na actual redacção, determino a remessa dos
presentes autos ao Ministério Público para tramitação sob outra forma
processual.
Na reclamação ora em apreço expende a recorrente as seguintes razões:
Alega o/a Mmo/a Juiz a quo no douto despacho ora reclamado, por referência ao
anteriormente citado art°. 70°, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, além do mais
que infra se analisará “Ora da análise dos preceitos em causa, não se vislumbra
que a decisão em causa nos autos, admita recurso para o tribunal Constitucional,
atendendo a que não se subsume a qualquer das alíneas supra referidas.” (sic).
Salvo o devido respeito, conforme aliás expressamente consta do requerimento de
interposição de recurso ora indeferido, a situação sub judice subsume-se à
previsão das al.s a) e/ou c), do citado art°. 70°, se bem que nas respectivas
actuais redacções e não nas citadas pelo/a Mmo/a Juiz a quo, sendo a redacção
actual daquela ai. c) “Que recusem a aplicação de norma constante de acto
legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor
reforçado;”.
Com efeito, da leitura integral do douto despacho judicial recorrido e da
respectiva integração na antecedente tramitação processual que conduziu à
prolacção do mesmo, parece-nos inegável que consubstancia este, de facto, a
recusa de aplicação da norma constante do no. 2, do art°. 389°, do CPP, –
constante de acto legislativo (L. 48/2007, de 29 de Agosto – 15ª Alteração ao
Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n°. 78/87, de 17 de
Fevereiro) –, por inconstitucionalidade e/ou ilegalidade.
De facto, tendo o MP, nos termos do douto despacho exarado a fls. 8, verificados
que se mostravam os pressupostos dos art°.s 381º, n°. 1, al. a), e 387°, n°. 1,
do CPP, determinado, nos termos do disposto na 2ª parte, do n°. 2, do art°.
382°, do CPP, a apresentação do “.../... expediente, ao M°. Juiz de Turno para
os efeitos do art°. 387, n° 2, alínea a) do Código de Processo Penal, …/...“
(sic) e tendo este – Mmo/a Juiz de turno –, com os fundamentos de facto e de
direito que constam do douto despacho judicial de fls. 9 determinado “.../...
que o arguido seja notificado para comparecer no próximo dia 29/10/2007, pelas
10 horas, no Tribunal competente afim de aí ser julgado em processo sumário,
art. 387 n° 2, alínea a) do C.P.P.” (sic) e tendo ainda o MP, entretanto e
atento o despacho judicial de fls. 12 – “Atento a promoção e o despacho
meramente formal de adiamento proferido no TJC, (art° 387°, n°2, alínea a) do
C.P.P.) vão os autos ao M.P. para os fins tidos por convenientes,
respectivamente apresentação da acusação.” (sic) –, nos termos consignados a
fls. 13, reservado para o início da audiência de discussão e julgamento, o
eventual uso da faculdade prevista no n°. 2, do art°. 389°, do CPP, a decisão
judicial entretanto recorrida, ao decidir “.../..., determino a remessa dos
presentes autos ao Ministério Público para tramitação sob outra forma
processual” (sic), não só nega a aplicação daquela disposição legal,
expressamente invocada pelo MP, (ou antes, a possibilidade do exercício, pelo
MP, da faculdade p. na mesma), como fundamenta tal posição, alegando, além do
mais que, “E certo que no auto de notícia constam alguns factos.
Todavia, tais factos, por si só não constituem qualquer crime,
…/... – o dolo – constitui elemento típico dos ilícitos criminais, .../...
O mesmo sucede quanto à negligência, .../...
Tal elemento subjectivo deverá constar da acusação e/ou do auto de notícia –
.../...
Do expediente ora em análise não consta qualquer um desses elementos (dolo ou
negligência).
De tal expediente também não se retira a indicação das disposições legais
aplicáveis a chamada qualificação jurídica dos factos, .../…” (sic), concluindo
com a alegação de que “Está em causa a natureza acusatória do processo penal,
além das garafftias de defesa do arguido e o princípio da vinculação temática do
tribunal.” (sic).
Ora, não sendo obviamente de exigir fórmulas sacramentais para afirmar
princípios, parece-nos que outra coisa não fez o/a Mmo/a Juiz a quo que não
tenha sido recusar a aplicação, in casu, da norma legal expressamente invocada
pelo MP, (n°. 2, do art°. 389°, do CPP), por entender que tal aplicação,
faltando no auto de notícia, “o elemento subjectivo” e “a chamada qualificação
jurídica dos factos”, seria inconstitucional, por violação dos, aliás
expressamente citados e assim invocados, princípios constitucionais da
estrutura/natureza acusatória do processo penal e das garantias de defesa do
arguido – art°. 320, n°.s 1 e 5, da CRP – e/ou ilegal, por violação do,
igualmente expressamente citado e invocado, princípio da vinculação temática do
tribunal – art°.s 358°, 359° e 379°, n°. 1, al. b), do CPP.
Mais alega o/a Mmo/a Juiz a quo no douto despacho ora reclamado, “Requisito de
admissibilidade do recurso, nos termos do art° 70° al. a), é a da existência da
recusa de aplicação de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Ora, isso não acontece, nem explicita nem implicitamente no despacho em causa
nos autos, …/...
De facto, nos termos da citada al. a), do n°. 1, do art°. 70°, da Lei 28/82, de
15 de Novembro, ao abrigo da qual, também, mas não só, foi interposto o recurso
ora indeferido, o requisito de admissibilidade do recurso é efectivamente a
existência de recusa de aplicação de qualquer norma, com fundamento em
inconstitucionalidade.
Contudo, nos termos da al. c), do nº. 1, do mesmo preceito legal, ao abrigo da
qual foi ainda, interposto o recurso em causa, o requisito de admissibilidade do
recurso é a existência de recusa de aplicação de norma constante de acto
legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor
reforçado.
Ora, a expressa invocação, no despacho recorrido, dos supra referenciados
princípios constitucionais da estrutura/natureza acusatória do processo penal e
das garantias de defesa do arguido e do princípio legal da vinculação temática
do tribunal, resulta inequívoca e inegavelmente do respectivo texto, supra
transcrito, mormente do supra citado segmento da respectiva parte final – “Está
em causa a natureza acusatória do processo penal, além das garantias de defesa
do arguido e o princípio da vinculação temática do tribunal.” (sic, com
sublinhado nosso).
Face ao exposto, não pode naturalmente concordar-se com a, além de
infundamentada, estranha conclusão, constante do despacho em reclamação, no
sentido de que, no mesmo “.../... não acontece, nem explicita nem
implicitamente.../...” (sic) a recusa de aplicação de uma norma com fundamento
na sua inconstitucionalidade, pois que, manifestamente tal acontece,
relativamente à norma constante do nº. 2, do art°. 389°, do CPP, com fundamento,
aliás explícito, e portanto, claro e inegável, na respectiva
inconstitucionalidade e/ou, na respectiva ilegalidade, por violação dos
princípios citados, o que, sendo certo que a norma em referência consta de acto
legislativo, também pode fundamentar a admissibilidade do recurso, ora
indeferido.
Assim sendo, parece-nos forçoso concluir que a decisão em referência não só
admite recurso, para o Tribunal Constitucional, nos termos das supra citadas
al.s a) e/ou c), do n°. 1, do art°. 70º, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, como é
o mesmo, aliás, para o MP, atento o prescrito no n°. 3, do art°. 72°, da citada
Lei, até obrigatório, por a norma cuja aplicação se mostra recusada, constar de
acto legislativo (L. 48/2007, de 29 de Agosto, conforme supra já referido).
Concluindo, o que o/a Mmo/a Juiz fez, no/a douto/a despacho/decisão recorrido/a,
ao decidir “.../..., determino a remessa dos presentes autos ao Ministério
Público para tramitação sob outra forma processual.” (sic), não realizando o
requerido pelo MP, nos termos legais e aliás, anteriormente, judicialmente
determinado, – tendo sido o/a arguido/a e o/a/s agente/s autuante/s de tal
despacho notificado/a/s (cfr. fls. 10) – julgamento do/a arguido/a, em processo
sumário e nem sequer iniciando a audiência, cujo início, note-se, havia sido,
oportuna e anteriormente, judicialmente adiado, nos termos do disposto na al.
a), do n°. 2, do art°. 387°, do CPP, – sem cuidar aqui sequer da questão da
eventual violação do princípio do caso julgado formal, na medida em que se
pronunciou o/a Mmo/a juiz a quo, sobre questão já ultrapassada processualmente
precludida e relativamente à qual se encontrava esgotado o poder jurisdicional
com a prolacção do anterior despacho judicial, supra citado, que procedeu ao
adiamento do início da audiência de julgamento em processo sumário – foi
manifestamente recusar a aplicação da norma constante do n°. 2, do art°. 389°,
do CPP, com fundamento em inconstitucionalidade e/ou na sua ilegalidade, por
permitir a realização do julgamento em processo sumário, nos casos em que o MP,
não tendo deduzido acusação, reserva para o início da audiência, a faculdade de
substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia da
autoridade que tiver procedido à detenção, quando deste “.../... não consta
qualquer um desse elementos (dolo ou negligência).” (sic) e .../... não se
retira a indicação das disposições legais aplicáveis, a chamada qualificação
jurídica dos factos, .../....“ (sic).
Notificado da apresentação desta reclamação, o arguido A. não respondeu.
Sobre a reclamação pronunciou-se o Magistrado Ministério Público em funções
neste Tribunal Constitucional, emitindo o seguinte parecer:
Importa notar liminarmente que – sendo o recurso, interposto pelo Ministério
Público e rejeitado no Tribunal a quo, – exclusivamente fundado na alínea a) do
n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, apenas poderá reportar-se à recusa de
aplicação da norma identificada no respectivo requerimento de interposição – e
não a quaisquer outros preceitos legais, eventualmente aplicados no despacho
reclamado, já que tal implicaria a ampliação do respectivo objecto de modo a
incluir estes últimos, bem como a invocação, como base recursória, da alínea b)
daquele artigo 70.º, n.º 1, o que se afigura inviável face à regra de que a
delimitação do objecto do recurso decorre irremediavelmente (no que se refere ao
seu máximo âmbito) do teor daquele requerimento.
A sorte da presente reclamação dependerá, deste modo, da determinação da
existência de uma «verdadeira» recusa de aplicação normativa, reportada ao
artigo 389.º, n.º 2, do Código de Processo Penal fundada em violação dos
princípios constitucionais da estrutura acusatória do processo penal e das
garantias de defesa.
Qual a interpretação normativa feita pelo juiz a quo de tal preceito legal?
A nosso ver, considerou-se ser inviável a substituição da apresentação de
acusação pelo Ministério Público em processo sumário pela simples leitura do
auto de notícia, no início da audiência, sem qualquer «aditamento», num caso em
que o referido auto omitiria elementos essenciais a qualquer acusação, nos
planos fáctico (estruturantes do elemento subjectivo do crime imputado ao
arguido), da qualificação jurídica (especificação das disposições legais
aplicáveis) e probatório (indicação das provas que fundamentam tal imputação ao
arguido).
É feita, no despacho reclamado, a seguinte leitura da norma constante do artigo
389.º, n.º 2, do Código de Processo Penal:
Em processo sumário, pode o Ministério Público substituir a apresentação da
acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à
detenção, salvo se de tal auto não constarem todos os elementos – fácticos, de
qualificação jurídica e probatório – que obrigatoriamente – por força das
disposições gerais – devem constar de qualquer acusação.
Ou seja: não se considerou inviável, de modo genérico, a actuação processual ali
consentida ao Ministério Público, procedendo-se antes a uma leitura conjugada de
tal preceito legal com as disposições que regulam os requisitos da acusação, só
consentindo a «substituição» da acusação pela leitura do auto quando este
satisfaça minimamente tais requisitos gerais.
Procedeu, deste modo, o despacho recorrido a uma leitura conjugada da norma que
integra o objecto do presente recurso (a do artigo 389.º, n.º 2, do Código de
Processo Penal) com outras disposições que regem sobre os requisitos da acusação
(artigos 283.º, n.º 3, e 311.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal) para
concluir que a possibilidade de mera leitura do auto de notícia, no início da
audiência, pressupõe a suficiência deste, na óptica das exigências formuladas
por aqueles preceitos legais.
Sendo duvidosa a definição da precisa «linha de fronteira» entre a verdadeira
«recusa de aplicação» normativa, enquadrável na alínea a) do n.º 1 do artigo
70.º da Lei do Tribunal Constitucional, e a mera interpretação de preceitos
legais «em conformidade com a Constituição» (cf., v. g., os Acórdãos n.ºs
170/85, 425/89, 137/89, 636/94 e 1020/96), afigura-se que – no caso dos autos –
o juízo de inaplicabilidade de certa interpretação que – a ser feito – violaria
determinados princípios constitucionais se não fundou «única ou primacialmente»
(para utilizar a expressão de Rui Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade,
pp. 331 e seguintes) no princípio da interpretação conforme à Lei Fundamental,
mais não desempenhando «o apelo à Constituição (princípio do acusatório e das
garantias de defesa) em sede hermenêutica, uma função de apoio ou de confirmação
de um sentido da norma já sugerido pelos restantes elementos de interpretação»
(cf. ainda o Acórdão n.º 285/2002).
Assim, por se afigurar que o Tribunal a quo, no despacho recorrido, se limitou a
proceder a uma leitura conjugada de diversos regimes processuais penais,
referentes aos requisitos da acusação, articulando-os com a possibilidade de
mera «leitura» pelo Ministério Público do auto de notícia no início da audiência
em processo sumário, não será a circunstância de se considerar que a
imperatividade de tal aplicação conjugada dos regimes legais decorre dos
princípios constitucionais do acusatório e das garantias de defesa que traduz a
ocorrência de uma verdadeira «recusa de aplicação normativa», enquadrável no
tipo recursório previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82.
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentos
2. Sobre reclamação muito semelhante à ora em análise recaiu o Acórdão
n.º 8/2008, de 10 de Janeiro de 2008 (disponível no sítio da Internet
www.tribunalconstitucional.pt), pelo qual o Tribunal Constitucional decidiu
manter despacho com argumentação muito próxima da do despacho ora pretendido
recorrer. Pode ler-se nesse aresto:
2. Face ao teor do requerimento de interposição de recurso, o respectivo objecto
era integrado por alegada decisão de recusa de aplicação da norma do artigo
389.º, n.º 2, do CPP, com fundamento em inconstitucionalidade.
Tem este Tribunal entendido que a recusa de aplicação de norma com fundamento em
inconstitucionalidade, para abrir via ao recurso previsto na alínea a) do n.º 1
do artigo 70.º da LTC, tanto pode consistir numa recusa explícita, como numa
recusa implícita, e que são equiparáveis a recusas determinadas decisões de
aplicação da norma interpretada em conformidade com a Constituição, “sempre que
se esteja perante uma clara rejeição de certa interpretação, mormente da
interpretação literal ou «natural», com fundamento na sua inconstitucionalidade”
(José Manuel M. Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, 3.ª
edição revista e actualizada, Coimbra, 2007, p. 73, nota 93). Necessário é
sempre, porém, que o juízo de inconstitucionalidade (ou de desconformidade
constitucional) constitua uma verdadeira ratio decidendi, e não um mero obiter
dictum, da decisão recorrida.
No presente caso, resulta da leitura da decisão recorrida que o elemento
primordial e determinante do entendimento da inadmissibilidade, no caso, de o
Ministério Público “substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto
de notícia da autoridade que tiver procedido à detenção”, prevista no n.º 2 do
artigo 389.º do CPP, resultou da leitura conjugada desse preceito com as
disposições dos artigos 283.º, n.º 3, alíneas b) a d), e 311.º, n.ºs 2, alínea
a), e 3, alíneas b), c) e d), do mesmo Código, que, respectivamente, determinam
que a acusação do Ministério Público, sob pena de nulidade, deve conter a
narração dos factos, a indicação das disposições legais aplicáveis e a prova, e
que o presidente do tribunal, se o processo tiver sido remetido para julgamento,
sem ter havido instrução, deve rejeitar a acusação se a considerar
manifestamente infundada, sendo tida como tal a acusação que não contenha a
narração dos factos, a indicação das disposições legais aplicáveis ou das provas
que a fundamentam, ou se os factos não constituírem crime.
Isto é: foi com base na interpretação do direito ordinário que a decisão
recorrida entendeu só ser admissível a substituição da acusação pela leitura do
auto de notícia quando este auto contenha todos os elementos legalmente
exigíveis para a validade de qualquer acusação.
A posterior referência a que violaria a estrutura acusatória do processo
criminal e poria em causa as garantias de defesa do arguido a realização da
audiência, em processo sumário, tendo por acusação apenas o que consta de um
auto de notícia, que não possibilitava ao arguido a conhecimento da totalidade
dos factos necessários ao preenchimento do tipo legal, a sua qualificação
jurídica e a prova, constituiu um mero argumento de conforto da justeza do
entendimento a que anteriormente se chegou quanto à interpretação tida por
correcta, ao nível da interpretação do direito ordinário aplicável, da
possibilidade de substituição da acusação pelo Ministério Público pela leitura
do auto de notícia.
Só existiria recusa de aplicação de norma com fundamento em
inconstitucionalidade se o tribunal tivesse interpretado o artigo 389.º, n.º 2,
do CPP no sentido de permitir essa substituição mesmo quando o auto de notícia
não contivesse os elementos exigidos para a validade da acusação, e, depois,
sustentasse que, assim interpretada, tal norma violaria princípios
constitucionais. Mas não foi esse, como se evidenciou, o caminho seguido pela
decisão recorrida.
Não encerrando esta, sequer implicitamente, uma recusa de aplicação de norma com
fundamento em inconstitucionalidade, o presente recurso surge como inadmissível,
sendo de todo irrelevante, para o efeito, a menção a eventual violação de caso
julgado.
Se é assim, sendo que nenhuma razão se vislumbra para divergir desta análise ou
acrescentar algo, conclui-se que também no presente caso não está preenchido o
pressuposto da citada alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal
Constitucional.
III
Decisão
Nestes termos, acordam em indeferir a presente reclamação. Sem custas.
Lisboa, 13 de Fevereiro de 2008
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão
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