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Processo n.º 499/12
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O Ministério Público interpôs recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), da decisão proferida no Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (1.º juízo), em que é recorrente “A., Lda. e recorrida a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa – Departamento de Jogos, que recusou a aplicação do regime normativo decorrente do artigo 14.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 282/2003 de 3 de novembro, em conjugação da alínea n) do nº 3 do artigo 27.º dos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 235/2008, de 3 de dezembro, por inconstitucionalidade material e, em consequência, decidiu absolver a arguida da contra-ordenação que lhe era imputada.
A decisão recorrida, na parte que releva em sede de fiscalização concreta, considera: “há que concluir, em consonância com o mencionado acórdão da Relação do Porto [acórdão de 2/11/2011, P. 801/06.6TPPRT.P1] que tal coincidência [entre a entidade que explora e gere a atividade do jogo e a que detém as funções de fiscalização e sancionamento] importa a violação do princípio constitucional do direito ao processo equitativo, conforme previsto no artigo 20.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, no sentido único que decorre do artigo 47º da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais”. E conclui recusando a aplicação “do regime normativo 14.º, n.º 1 do Dec.-Lei nº 282/2003 de 03-11 em conjugação com a alínea n) do nº 3 do artigo 27º dos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, aprovado pelo Dec.-Lei 235/2008 de 03-12 de dezembro, com fundamento em inconstitucionalidade material (…)” (fls. 73).
2. Notificadas as partes para alegações, apenas alegou o Ministério Público, concluindo como segue:
«1.ª) O Ministério Público interpôs recurso, obrigatório, da decisão de “folhas 68 a 74 [de 28 de maio de 2012, proferida no processo n.º 362/12.7TFLSB (Recurso de contra-ordenação), do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão – 1.º juízo] que julgou procedente o recurso de contra-ordenação, recusando a aplicação do regime normativo decorrente do art.º 14.º, n.º 1 Dec. Lei nº 282/2003 de 3 de novembro, em conjugação da al N do nº 3 do art. 27 dos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa Aprovado pelo Dec.-Lei 235/2008 de 3 de dezembro, por inconstitucionalidade material”, decorrente da violação do princípio constitucional do direito ao processo equitativo, conforme previsto no artigo 20.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, no sentido único que decorre do artigo 47º da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais.
2.ª) Porém, o dito “regime normativo” é “constitucionalmente adequado” pois não infringe o princípio do “processo equitativo” e, mais, garante o direito fundamental de “acesso aos tribunais”.
3.ª) Com efeito, por definição, o “regime normativo” em apreço não infringe o direito (fundamental) ao “processo equitativo”, no sentido do artigo 20.º, n.º 4, da CRP, pois o âmbito subjetivo de proteção desta disposição respeita aos processos “judiciais” (e não aos processos de “contra-ordenação”) e, por outra parte, o seu âmbito objetivo de proteção tutela aspetos processuais (e não orgânicos, nomeadamente a composição da entidade decisória, como “independente e imparcial”).
4.ª) Finalmente, este “regime normativo” concretiza a garantia constitucional de acesso do arguido à via judicial, que corre termos no “tribunal” competente, sob a direção de um “juiz”, e assegura ao arguido “todas as garantias de defesa”, incluindo o “recurso” para o tribunal da Relação (CRP, arts. 32.º, n.º 1).»
Cumpre decidir.
II. Fundamentos
3. Nos termos do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 84/85, de 28 de março, alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 389/85, de 9 de outubro, 387/86, de 17 de novembro, 285/88, de 12 de agosto,371/90, de 27 de novembro, 174/92, de 13 de agosto, 238/92, de 29 de outubro, 64/95, de 7 de abril, 258/97, de 30 de setembro, 153/2000, de 21 de julho, 317/2002, de 27 de dezembro, 37/2003, de 6 de março, e 200/2009, de 27 de agosto e 114/2011, 30 de novembro, o direito de promover concursos de apostas mútuas (os chamados “jogos sociais do Estado”) é reservado ao Estado, que concede à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa a sua organização e exploração, em regime de exclusivo, para todo o território nacional (com exceção das apostas mútuas hípicas – Decreto-Lei n.º 268/92, de 28 de novembro).
A lei pune como contra-ordenação a violação desse regime de exclusivo mediante várias ações tipificadas, nomeadamente, a promoção, organização ou exploração de concursos de apostas mútuas, lotarias ou outros sorteios idênticos aos concursos concedidos em regime de exclusivo à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa [cfr. alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 30/2006, de 11 de julho]. E comete a esta instituição o exercício deste poder sancionatório, dispondo o artigo 5.º da Lei n.º 30/2006 que é competente para o processamento destas contra-ordenações o Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e para a aplicação das respetivas coimas e sanções acessórias a direção desse Departamento.
No caso de que o presente recurso emerge, em conclusão de processo instruído pelo Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a recorrente foi punida por decisão do Vice-Provedor e Administrador Executivo desse Departamento, como autora da contra-ordenação prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º da referida Lei n.º 30/2006, com fundamento em que procedia, num seu estabelecimento comercial, à promoção, organização e exploração de um concurso de apostas mútuas em que os participantes prognosticavam o resultado do sorteio do número suplementar do jogo social do Estado denominado “Totoloto” para obter o prémio constituído por um presunto. No âmbito do processo de impugnação judicial desta decisão sancionatória, a que concedeu provimento, a decisão recorrida desaplicou, com fundamento em inconstitucionalidade o regime normativo decorrente do n.º 1 do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 282/2003, de 3 de novembro, em conjugação com a alínea n) do n.º 3 do artigo 27.º dos Estatutos da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 235/2008, de 3 de dezembro.
Estes preceitos legais têm a seguinte redação:
(Decreto-Lei n.º 282/2003)
“Artigo 14.º
Processo e competência contra-ordenacional
1 — Compete à Direção do Departamento de Jogos, no âmbito das suas atribuições, a apreciação e aplicação de coimas ou outras sanções acessórias dos processos de contra-ordenação que vierem a ser instaurados com vista à aplicação das penalidades previstas no presente decreto-lei.
2 — A instrução dos processos segue o disposto no Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, na redação do Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de setembro, e compete ao Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
3 — O produto das coimas e da venda dos bens e valores apreendidos integrará o resultado líquido da exploração dos jogos a que respeitem, ainda que cobrado em juízo.
4 — O pagamento da coima aplicada será efetuado ao Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.”
(Decreto-Lei n.º 235/2008)
“Artigo 27.º
Atribuições e competências
1 - (…)
2 – (…)
3 - Sem prejuízo de exercer as demais competências atribuídas ao departamento por lei e as que lhe sejam delegadas pelo provedor e pela mesa, são, nomeadamente, competências do DJ:
(…)
n) Apreciar os processos de contra-ordenação que vierem a ser instaurados respeitantes à exploração ilícita de lotarias e apostas mútuas ou outros jogos e atividades similares com vista à aplicação das penalidades previstas na lei;
(…).”
No seu imediato teor literal, as disposições legais que integram o “regime normativo” sujeito a apreciação expressam uma norma atributiva de competência no âmbito do regime do “ilícito de mera ordenação social” em matéria de “jogos sociais”. O qual, por força de remissão legal, é o “regime geral” do processo de contra-ordenação e respetivas sanções, coimas e sanções acessórias [Decreto-Lei n.º 282/2003, artigos 11.º a 14.º, n.º 2, que remete para o regime geral do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, na redação do Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de setembro, e artigo 27.º, n.º 1, dos Estatutos da SCML].
A decisão recorrida censura o bloco normativo em causa por dele resultar que se reúnam, numa mesma entidade, a condição de agente económico e, bem assim, a competência para processamento das contra-ordenações e a aplicação das coimas e das sanções acessórias, que no caso couberem por violação de normas que protegem o seu monopólio dos jogos sociais. Em última análise, com o argumento do processo equitativo, a decisão recorrida coloca exigências de “imparcialidade” e de “estrutura acusatória” em sede do processo de contra-ordenação que têm subentendida a transposição dos parâmetros constitucionais relativos ao “processo judicial” e aos “tribunais” para o “procedimento de contra-ordenação” e as “autoridades administrativas” com poderes sancionatórios que neles intervêm.
4. Característica essencial do ilícito de mera ordenação social – tipo de ilícito de que a Constituição se ocupa expressamente no n.º 10.º do artigo 32.º, na alínea d) do n.º 1 do artigo 165.º e na alínea q) do n.º 1 do artigo 227.º, assumindo-o com o que essencialmente o caracteriza e distingue no elenco das categorias de ilícito público – é que a “primeira palavra” em matéria de aplicação da sanção pertence, em princípio, à Administração. De acordo com o artigo 33.º do Regime Geral das Contra-ordenações, salvo as especialidades previstas no diploma, o processamento das contra-ordenações e a aplicação das coimas e das sanções acessórias competem às autoridades administrativas. Salvo em situações particulares (v. gr. concurso ou convolação de crime em contra-ordenação e regime dos financiamentos políticos) a aplicação da sanção só compete ao juiz se o arguido não se conformar com decisão administrativa. De modo esquemático, o legalmente denominado “processo de contra-ordenação” (II Parte do RGCO) comporta duas fases. Uma fase de procedimento que culmina na decisão administrativa sancionatória (artigos 33.º a 58.º do RGCO). E uma fase de impugnação dessa decisão administrativa (artigos 59.º a 75.º do RGCO). Porém, mais do que duas fases de um mesmo processo, tanto na perspetiva orgânica como material ou funcional, há dois momentos procedimentais autónomos. O primeiro consiste numa sequência ordenada de formalidades tendente à formação da decisão sancionatória da autoridade administrativa ou com funções administrativas, na prossecução do interesse público posto pela lei a seu cargo. O segundo é já um meio de defesa jurisdicional contra a ação sancionatória da autoridade administrativa. Embora com a particularidade de a impugnação, se respeitados os requisitos de forma e tempo, eliminar automaticamente o caráter definitivo (hoc sensu, materialmente definidor da situação do particular) da decisão administrativa, porque a apresentação dos autos ao juiz vale como acusação, assim se convertendo em judicial o poder de aplicação da sanção (cfr. artigo 62.º do RGCO).
No regime do ilícito de mera ordenação social de proteção aos “jogos sociais do Estado” esta competência sancionatória compete a um órgão da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, pessoa coletiva que é titular exclusivo da respetiva promoção e exploração. É o Departamento de Jogos, melhor, a respetiva Direção, a “autoridade administrativa” para efeitos do artigo 33.º do RGCO. Os serviços procedem à instrução do processo e à Direcção compete a apreciação e aplicação da sanção. Foi o que no caso sucedeu, com base num auto de notícia levantado por agente da Polícia de Segurança Pública.
Tem sido doutrinalmente controversa a natureza jurídica da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (Cfr. Pedro Gonçalves, Entidades Privadas com Poderes Públicos, pág. 922; Marcello Rebelo de Sousa, Os Novos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Estudos de Direito Público, pág. 43 e segs.; José Carlos Vieira de Andrade, Os Novos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Estudos de Direito Público, pág. 99 e sgs)). Os Estatutos aprovados pelo Decreto-Lei n.º 235/2008, de 3 de dezembro, na sequência do Decreto-Lei 322/91, de 26 de agosto, definem-na como pessoa coletiva de direito privado de utilidade pública administrativa. A SCML prossegue fins de ação social, de prestação de cuidados de saúde, educação, cultura, e outras atribuições que lhe sejam cometidas pelo Estado, sobretudo em proteção dos mais desfavorecidos. Como meio de obtenção de receitas, é concessionária ex lege da exploração dos jogos sociais do Estado, em regime de exclusivo para todo o território nacional, aliás na sequência de uma longa tradição. Como salienta Pedro Gonçalves (que propõe a sua qualificação como instituto privado do Estado), “ [o] Governo exerce sobre ela vastos poderes de tutela e de superintendência – define as orientações gerais de gestão, determina os critérios de atuação e os objetivos a prosseguir, autoriza, aprova e homologa inúmeros atos, regras e negócios jurídicos da instituição, fiscaliza a sua atividade: é, de facto, o Governo que determina, estabelece ou marca a 'agenda da instituição' além de nomear os titulares dos Órgãos de administração (Provedor e Mesa), assim como a maioria dos titulares dos órgãos consultivos e de fiscalização”. O qualificativo de pessoa coletiva de utilidade pública administrativa reflete a primariedade pública dos fins que a SCML é chamada a realizar, numa relação que não se resume à prossecução em coexistência cooperante e controlada, e corresponde a uma inserção de modo mais intenso na Administração e na sujeição a poderes de controlo que se aproximam do poder de superintendência (Marcello Rebelo de Sousa, loc. cit., pág. 63).
Neste contexto das atribuições de interesse público administrativo e de vinculações jurídico-públicas a que está sujeita e que a diferenciam das restantes “Misericórdias”, mesmo quando não se considerem inerentes ou passíveis de atribuição na mera qualidade de concessionário, os poderes conferidos à SCML no âmbito da gestão dos jogos cujo exclusivo lhe está confiado, nomeadamente, que a instituição seja encarregada de fazer atuar as sanções contra-ordenacionais contra a violação das proibições estabelecidas no domínio dos jogos sociais, não exorbita das razões pelas quais, em geral, se confere o exercício de poderes sancionatórios desta natureza às autoridades administrativas. Não consiste, contra o que parece ter influenciado a compreensão da questão de constitucionalidade pela decisão recorrida, em permitir a um “agente económico” defender a sua posição ou interesse privatístico, mas de encarregar uma entidade privada com poderes públicos ( uma pessoa colectiva de utilidade pública administrativa, uma entidade privada administrativa) de prosseguir os fins de interesse público que ditam que a atividade em causa seja proibida.
5. A decisão recorrida considerou violado o princípio do processo equitativo, consagrado no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição que, sob a epígrafe “acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva” dispõe que “[t]odos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”.
Sucede que desta norma constitucional não decorre o efeito que a decisão recorrida, por si e pelo que absorve do precedente jurisprudencial a que se acolhe (Acórdão do TRP de 2/11/2011, P. 801/06.6TPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt ), lhe atribuiu, no que se refere à fase administrativa do processo de contra-ordenação. Desde logo, porque a conformação legislativa dessa fase do processo de contra-ordenação está fora do campo de previsão desta norma constitucional. O “processo equitativo” que constitui objeto imediato do n.º 4 do artigo 20.º da Constituição respeita à “tutela jurisdicional efetiva”, aos “tribunais”, a “causas” e “procedimentos judiciais”. Como diz o Ministério Público. a linguagem, o sentido e a função desta disposição constitucional são inequívocos ao localizarem o direito (fundamental) ao processo equitativo em sede “judicial” e não em sede “administrativa”, como é o caso da fase administrativa do “processo de contra-ordenação”.
O que conta, pois, para concretizar esta garantia constitucional, é que o arguido, sem embaraço ou custo excessivos, possa impugnar a decisão administrativa sancionatória, abrindo um verdadeiro processo judicial, que corre termos no tribunal competente, é decidido por um juiz, através de um procedimento contraditório e assegura ao arguido todas as garantias de defesa. A esta fase aplicam-se por inteiro as exigências do processo equitativo, designadamente as que respeitam à separação entre a titularidade do impulso acusatório e a competência decisória e a imparcialidade do órgão decisor – exigências que, aliás, são objeto de parâmetros constitucionais específicos e que, por isso, é operativamente desnecessário amalgamar no conceito de processo equitativo – mas tal garantia não é vulnerada pelas regras competênciais ou pela estrutura organizatória das “autoridades administrativas” que intervêm na decisão sancionatória prévia, objeto de impugnação.
Efetivamente, como se disse no Acórdão n.º 659/2006, a propósito da introdução do atual n.º 10 do artigo 32.º da CRP – efetuada pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contra-ordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios – que se pretendeu assegurar, nesses processos, os direitos de audiência e de defesa do arguido, expondo-se o alcance da referida norma e da aplicabilidade dos princípios da constituição processual criminal, nos termos seguintes:
“Tal norma implica tão-só ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contra-ordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição) e possa defender -se das imputações que lhe são feitas (direito de defesa), apresentando meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a apurar a verdade (cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, p. 363). É esse o limitado alcance da norma do n.º 10 do artigo 32.º da CRP, tendo sido rejeitada, no âmbito da revisão constitucional de 1997, uma proposta no sentido de se consagrar o asseguramento ao arguido, “nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios”, de “todas as garantias do processo criminal” (artigo 32.º -B do Projeto de Revisão Constitucional n.º 4/VII, do PCP; cf. o correspondente debate no Diário da Assembleia da República, 2.ª série -RC, n.º 20, de 12 de setembro de 1996, pp. 541 -544, e 1.ª série, n.º 95, de 17 de julho de 1997, pp. 3412 e 3466).
É óbvio que não se limitam aos direitos de audição e defesa as garantias dos arguidos em processos sancionatórios, mas é noutros preceitos constitucionais, que não no n.º 10 do artigo 32.º, que eles encontram esteio. É o caso, desde logo, do direito de impugnação perante os tribunais das decisões sancionatórias em causa, direito que se funda, em geral, no artigo 20.º, n.º 1, e, especificamente para as decisões administrativas, no artigo 268.º, n.º 4, da CRP. E, entrados esses processos na “fase jurisdicional”, na sequência da impugnação perante os tribunais dessas decisões, gozam os mesmos das genéricas garantias constitucionais dos processos judiciais, quer diretamente referidas naquele artigo 20.º (direito a decisão em prazo razoável e garantia de processo equitativo), quer dimanados do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da CRP), [...]
[...] Dentre os processos sancionatórios é o processo contra-ordenacional um dos que mais se aproxima, atenta a natureza do ilícito em causa, do processo penal, embora a este não possa ser equiparado. Constitui afirmação recorrente na jurisprudência do Tribunal Constitucional a da não aplicabilidade direta e global aos processos contra-ordenacionais dos princípios constitucionais próprios do processo criminal [...]
[...] A diferença de “princípios jurídico -constitucionais, materiais e orgânicos, a que se submetem entre nós a legislação penal e a legislação das contra -ordenações” reflete -se “no regime processual próprio de cada um desses ilícitos”, não exigindo “um automático paralelismo com os institutos e regimes próprios do processo penal [...]”.
O que não significa, como veremos oportunamente, que não se coloquem exigências constitucionais de que o procedimento obedeça, também nessa outra fase, aos imperativos de um due process, mas não com a matriz e com o conteúdo que a sentença fez decorrer do n.º 4 do artigo 20.º da Constituição. Como se assinalou no Acórdão n.º 461/2011, o Tribunal também tem sublinhado que a reconhecida inexigibilidade de estrita equiparação entre processo contra-ordenacional e processo criminal é conciliável com “a necessidade de serem observados determinados princípios comuns que o legislador contra-ordenacional será chamado a concretizar dentro de um poder de conformação mais aberto do que aquele que lhe caberá em matéria de processo penal” (Acórdãos n.ºs 469/97 e 278/99).”
6. Não vai compreendido nesta imposição de conformação legislativa (e de atuação concreta do processo de contra-ordenação), nomeadamente por ser considerado conatural ao direito de defesa, a de que à mesma autoridade administrativa esteja vedado desempenhar, no mesmo processo, funções de investigação e de decisão. Garantidos os direitos de audiência e defesa, a fase administrativa do processo contra-ordenacional pode assumir uma estrutura inquisitória típica, porquanto o princípio da estrutura acusatória do processo é restrito ao processo criminal, não sendo estendido a este outro tipo de processo sancionatório
Como o Tribunal disse no Acórdão n.º 581/2004 (disponível, como os demais citados sem outra indicação em www.tribunalconstitucional.pt), a propósito de acusação semelhante, “a posição do arguido está garantida, não apenas, em primeiro lugar, nos limites das especificidades do processo administrativo, e, depois, na possibilidade de os destinatários da decisão promoverem a sua apreciação judicial, com todas as garantias inerentes ao processo jurisdicional [...]. Em suma: não só o ato em causa não é de molde a pôr logo em questão a imparcialidade do decisor, como a garantia constitucional dos direitos de audiência e de defesa em processo contra-ordenacional (n.º 10 do artigo 32.º da Constituição) não pode comportar a consagração de um princípio da estrutura acusatória do processo idêntico ao que a Constituição reserva, no n.º 5 do artigo 32.º, para o “processo criminal”, como, ainda – e, numa certa perspetiva, decisivamente –, a posição do arguido está garantida pela possibilidade de recurso jurisdicional. O n.º 10 do artigo 32.º da Constituição não é, pois, desrespeitado só pelo mero facto de não serem diferentes os funcionários que confirmam o auto de notícia e proferem a decisão final”.
Se isto é assim quando a identidade entre o autor da investigação ou do impulso processual e o da decisão respeita à pessoa física, sê-lo-á, por maioria de razão quando a confusão ou não separação de poderes ou funções no âmbito do mesmo processo é meramente orgânica, como no caso sucede.
Não se ignora que, em alguns regimes especiais, sem subtrair o processamento e decisão primária à esfera da Administração, se estabelece diferenciação de funções ou competências no seio do processo de contra-ordenação, que pode ir ao ponto de a entidade administrativa competente para a decisão não integrar a autoridade administrativa competente para investigação (Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contra-ordenações, pág. 119). É solução que cabe na discricionariedade legislativa, mas que não decorre das garantias constitucionais relativas ao processo de contra-ordenação, garantida que está a possibilidade de o arguido ser ouvido e se defender antes da decisão administrativa sancionatória e a impugnação desta em todos os seus aspetos lesivos, perante um tribunal independente e imparcial e com plena jurisdição, mediante um processo contraditório.
7. É certo que desde logo decorre do princípio do Estado de Direito, proclamado no artigo 2.º da Constituição, que o processo de contra-ordenação tem de ser um “processo justo” em todas as suas etapas, nessa exigência se incluindo que a estrutura organizatória e a configuração normativa do processo (bem como o seu concreto desenvolvimento) permitam que quem investiga e decide na fase administrativa reúna requisitos de isenção e imparcialidade e possa ser visto como tal. Só assim o poder público se legitima como ordenado ao fim de garantir a dignidade da pessoa humana, a liberdade, a justiça e a segurança, elementos cardeais do entendimento contemporâneo do princípio.
Todavia, a intensidade das vinculações neste domínio é variável em função da natureza do poder exercido, do tipo de ilícito e da potencialidade lesiva da actuação do poder público. A imparcialidade que se exige da Administração – e que é consagrada no artigo 266.º da Constituição, devendo a conformação dos procedimentos e da organização administrativa ser ordenada a assegurar a observância do princípio – não tem as mesmas consequências organizatórias que decorrem do “direito a um juiz imparcial”. De modo genérico, o respeito pelo princípio da imparcialidade administrativa determina que todos os factos e interesses relevantes segundo a norma jurídica sejam ponderados pelo decisor e proíbe que outros que não esses sejam considerados na decisão. Enquanto princípio material vinculativo da Administração, o princípio em causa cumpre basicamente três funções: (i) os interessados podem confiar em que os seus assuntos submetidos à apreciação da Administração merecerão uma decisão imparcial; [ii] o titular do órgão ou agente deve precaver-se contra a hipótese de, perante conflito de interesses, a sua decisão ser considerada violadora dos seus deveres pessoais e funcionais; (iii) a Administração deve, enquanto organização, acautelar-se de modo a que, em caso de conflitos de interesses, as suas decisões não corram o risco de não serem cumpridas ou aceites (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição …., Vol. II, pág. 803). É seu instrumento ou “guarda avançada”, no plano subjetivo, o regime de impedimentos, suspeições e escusas, não competindo aqui dizer se, no processo de contraordenação, há de recorrer-se, neste domínio, às regras do procedimento administrativo ou do processo penal (Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, loc. cit., pg. 120).
Mas, diversamente da imparcialidade judicial, a imparcialidade da Administração (das “autoridades administrativas” na terminologia do RGCO) não implica a neutralidade do decisor. As “autoridades administrativas” ainda quando aplicam sanções em ilícito de mera ordenação social não dirimem conflitos de interesses púbicos e privados: prosseguem o(s) interesse(s) público(s) postos pela lei a seu cargo. Quer as que investigam, quer as que são chamadas a aplicar a sanção. E isso mesmo não pode deixar de considerar-se representado pelo legislador constituinte quando acolheu o ilícito de mera ordenação social com a característica essencial de a “primeira palavra” sancionatória pertencer, em princípio, à Administração e se absteve de sujeitar o respetivo processo ao princípio do acusatório.
Não pode, assim, subscrever-se a afirmação de que, em ordem a respeitar a exigência de um processo equitativo, a entidade com poderes de fiscalização e sancionatórios deva deter uma estrutura independente em relação às entidades que prosseguem o interesse público primário, devendo ainda ser dotada de autonomia técnica e financeira, que é a solução consentida ao legislador pela decisão recorrida. Essa para-judicialização da fase administrativa do processo – que, aliás, só atingiria totalmente os seus objetivos se a decisão pertencesse sistematicamente a uma autoridade administrativa independente –, com uma entidade administrativa com poderes de promoção da pretensão punitiva e outra, sem ligação com o interesse público primário objeto de tutela contraordenacional, com poderes de decisão e aplicação da sanção, não é indispensável a assegurar a possibilidade de defesa e a efetiva contribuição do interessado para a formação da decisão que lhe diz respeito.
8. Por outro lado, a afirmação de que o processo deve ser equitativo no seu todo e não apenas na fase de recurso é, em si mesmo, verdadeira. Mas já não quando pressupõe o monismo entre a fase administrativa e a fase judicial do processo de contra-ordenação, equiparando funcionalmente a decisão sancionatória a uma sentença de 1ª instância, de tal modo que se devam transpor as exigências constitucionais inerentes à conformação dos meios de tutela jurisdicional para a estrutura organizatória e conformação processual da fase administrativa do processo de contra-ordenação. A jurisprudência constitucional invocada em sentido contrário, designadamente os Acórdãos n.ºs 469/97 (contraditório, após “questão nova” suscitada pelo Ministério Público) e 278/99 (direito de defesa perante irregularidade da notificação), não versa sobre o tema aqui especificamente em apreço, das exigências organizatórias e da estrutura acusatória do processo nessa fase.
Esta estruturação acusatória do processo na fase administrativa ou de entrega do poder de decisão nessa fase a “terceiro desinteressado” é tanto menos necessária se atendermos ao carácter “provisório” da decisão administrativa face à natureza da impugnação judicial, que consubstancia uma verdadeira “transferência da questão do domínio da administração para o juiz, no dizer do Bundesgerichtshof alemão” (na expressão de Paulo Pinto de Albuquerque, op. cit., pág. 295).
Em conclusão, o referido regime de competência do Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia e respetiva Direção não viola o princípio do processo equitativo nem o princípio da imparcialidade.
III. Decisão
Pelo exposto, concedendo provimento ao recurso, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma que resulta da interpretação do n.º 1 do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 282/2003, de 3 de novembro, em conjugação com a alínea n) do n.º 3 do artigo 27.º dos Estatutos da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 235/2008, de 3 de dezembro, no sentido de que compete ao Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa instruir os processos por contra-ordenações previstas naquele primeiro diploma legal e à Direção desse Departamento a aplicação das correspondentes sanções;
b) Ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o agora decidido quanto à questão de constitucionalidade;
c) Sem custas.
Lisboa, 6 de dezembro de 2012.- Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Maria José Rangel de Mesquita – Catarina Sarmento e Castro – Maria Lúcia Amaral.
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