|
Processo n.º 87/12
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1.ª secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC) do acórdão daquele Tribunal de 21 de dezembro de 2011.
2. O recorrente foi condenado, em 1.ª instância, em suspensão da execução da pena de prisão pelo período de 4 anos e 6 meses. Interposto recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, este Tribunal acordou em conceder provimento ao recurso que havia sido interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogar a decisão recorrida no sentido de não se manter a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido A., tendo o mesmo de cumprir tal pena de 4 anos e 6 meses de prisão.
O recorrente interpôs recurso desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual foi rejeitado com fundamento em inadmissibilidade, por decisão sumária proferida nos termos do artigo 417.º, n.º 6, alínea b), do Código de Processo Penal. Reclamou então para a conferência, que julgou a reclamação improcedente, com a seguinte fundamentação:
«Come se refere, a reformulação das condições de admissibilidade dos recursos para o STJ, decorrente da conjugação dos artigos 432º e 400º, nº 1 e respetivas alíneas, do CPP após a revisão da Lei nº 48/2007, de 29 de agosto, tem suscitado dificuldades de leitura e compreensão, com a consequente projeção em divergências na solução do problema.
Acresce que novas possibilidades abertas por novas soluções para questões específicas – como, por exemplo, o exercício da faculdade prevista pelo artigo 371º-A do CPP – acrescentam complexidade, não apenas pelo âmbito dos meios processuais criados, como pelas consequências da coordenação com o regime dos recursos.
O caso sob apreciação constitui uma das (várias) espécies problemáticas na coordenação no âmbito do regime de recursos saído da revisão de 2007 do processo penal.
A coerência do anterior modelo no que respeita aos critérios de admissibilidade de recurso para o STJ, que se baseava em três módulos essenciais (natureza do tribunal a quo; natureza e gravidade do crime, avaliadas pelo critério da pena aplicável: “dupla conforme”, isto é, a confirmação da decisão pelo tribunal da relação), foi substituída por um sistema em que, aparentemente, desaparece o critério da natureza do tribunal a quo, e o critério da natureza do crime foi substituído pela medida concreta da pena efetivamente aplicada.
Esta diferente perspetiva introduziu fatores acrescidos de dificuldades na interpretação, porque leituras imediatas, chegadas ao pé da letra, transportam desvios e incoerências sistémicas.
Divergências jurisprudenciais a propósito constituem o reflexo, inevitável, de aporias que resultam da não compatibilidade entre formulações e a imediata coerência interna do sistema e do modelo de recursos.
A recorribilidade para o STJ de decisões penais está prevista, específica e autonomamente, no artigo 432º do CPP. De uma forma direta, nas alíneas a), c) e d) do nº 1; e de um modo indireto na alínea b), decorrente da não irrecorribilidade de decisões proferidas, em recurso, pelas relações, nos termos do artigo 400º, nº 1 e respetivas alíneas, do CPP.
Há, neste regime definido pelo conjunto das referidas normas, elementos que, aparentemente descoordenados, não podem deixar de ser harmonizados, salvo risco e efeito de uma séria contradição intrassistemática.
A referência essencial para a leitura integrada do regime – porque constitui a norma que define diretamente as condições de admissibilidade do recurso para o STJ – não pode deixar de ser a alínea c) do nº 1 o artigo 432º do CPP, que fixa, em termos materiais, uma condição e um limiar material mínimo de recorribilidade – acórdãos finais, proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo, que apliquem pena de prisão superior a cinco anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito.
Não sendo interposto de decisão do tribunal coletivo, ou sendo recurso de decisão do tribunal coletivo ou do tribunal do júri que não aplique pena de prisão superior a cinco anos, o recurso, mesmo versando exclusivamente o reexame da matéria de direito, segue a regra geral do artigo 427º do CPP e deve ser obrigatoriamente dirigido ao tribunal da relação.
A repartição das competências em razão da hierarquia pelas instâncias de recurso está, assim, delimitada por uma regra-base que parte da confluência de uma dupla de pressupostos – a natureza e a categoria do tribunal a quo e a gravidade da pena efetivamente aplicada.
A coerência interna do regime de recursos para o STJ em matéria penal supõe, deste modo, que uma decisão em que se não verifique a referida dupla de pressupostos não deva ser (não possa ser) recorrível para o STJ. Com efeito, se não é admissível recurso direto de decisão proferida por tribunal singular, ou que aplique pena de prisão não superior a cinco anos, também por integridade da coerência que deriva do princípio da paridade ou até da maioria de razão, não poderá ser admissível recurso de segundo grau de decisão da relação que conheça de recurso interposto nos casos de decisão do tribunal singular ou do tribunal coletivo ou do júri que aplique pena de prisão não superior a cinco anos.
Como a propósito se refere em acórdão do STJ (de 25 de junho de 2008, proc. 1879/2008), «desde que não haja condenação em pena não superior a cinco anos de prisão, não incumbe ao STJ, por não se circunscrever no âmbito dos seus poderes de cognição, apreciar e julgar recurso interposto de decisão final do tribunal coletivo o do júri, que condene em pena não superior a cinco anos de prisão» «o legislador, ao arredar da competência do Supremo o julgamento do recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa de liberdade, quis implicitamente significar, de harmonia com o artigo 9º do Código Civil, na teleologia e unidade do sistema quanto a penas privativas de liberdade, que […] apenas é admissível recurso de acórdão da relação para o Supremo quando a relação julgar recurso de decisão do tribunal coletivo ou do júri, em que estes tivessem aplicado pena superior a cinco anos de prisão».
É, pois, neste círculo hermenêutico que têm de ser interpretadas as normas do artigo 400º, nº 1 do CPP, quando determinam a irrecorribilidade (e, por antonímia, a recorribilidade) das decisões proferidas, em recurso, pelo tribunal da relação.
Desde logo a norma da alínea e) do nº 1 do artigo 400º, que prevê a irrecorribilidade das decisões proferidas em recurso pela relação, que apliquem pena não privativa de liberdade.
A formulação da norma constava da Proposta de Lei nº l09/X (DAR. II série, nº 31, de 23/Dez/06) em termos diversos («são irrecorríveis» os acórdãos proferidos, em recurso, pela relação, «que apliquem pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos»), adaptando, por comparação com a anterior formulação e para os casos aí previstos, o critério da “pena aplicada” em lugar da pena aplicável ao crime” (Os Projetos de Lei nº 237/X, DAR. II série. nº 100, de 6/abril/06; 368/X, 369/X e 370/X, DAR, II série, nº 52, de 9/março/07 não previam qualquer alteração para a alínea e) do nº 1 do artigo 400º).
A redação final foi votada, após proposta oral do PS (com a abstenção dos restantes Partidos), em última leitura no Grupo de Trabalho da Comissão Parlamentar, ficando a expressão constante da redação fixada pela Lei nº 48/2007, de 29 de agosto - «que apliquem pena não privativa de liberdade».
O Relatório dos trabalhos preparatórios, de 18 de julho de 2007, fixando a alteração na sequência da «proposta oral», não deixa qualquer traço de fundamentação que justifique o desvio em relação ao primeiro texto proposto e a consequente «descontinuidade metodológica».
E, assim, também não deixa massa crítica nos procedimentos que permita obter deduções, com o peso de probabilidade necessário, sobre a vontade ou a intenção de legislador.
Isto é, não parece possível determinar se a formulação final e votada da norma constitui um «acidente» na metodologia da formação normativa, ou uma expressão concreta, firme e pensada da vontade do legislador.
A conclusão que poderá ser extraída de todo o processo legislativo, tal como deixou traço, será a de que se não manifesta nem revela uma intenção, segura, de alteração do paradigma que vem já da revisão do processo penal de 1998: o STJ reservado para os casos mais graves e de maior relevância, determinados pela natureza do tribunal de que se recorre e pela gravidade dos crimes aferida pelo critério da pena aplicável. É que, no essencial, esta modelação mantém-se no artigo 432º do CPP, e se modificação existe, vai ainda no sentido da restrição: o critério da pena aplicada conduz, por comparação com o regime antecedente, a uma restrição no acesso ao STJ.
Não sendo razoavelmente possível, pelos elementos objetivos que o processo legislativo revela, identificar a vontade do legislador no sentido de permitir a conclusão de que na alínea e) do nº 1 do artigo 400º do CPP disse mais do que quereria, não parece metodologicamente possível operar uma interpretação restritiva da norma.
Porém, a norma, levada isoladamente ao pé da letra, sem enquadramento sistémico, acolheria solução que é diretamente afastada pelo artigo 432º, nº 1, alínea c), produzindo uma contradição intrínseca que o equilíbrio normativo sobre o regime dos recursos para o STJ não pode comportar.
Basta pensar que, na leitura isolada, estreitamente literal, um acórdão proferido em recurso pela relação, que aplicasse uma pena de trinta dias de prisão, não confirmando a decisão de um tribunal de Pequena Instância, seria recorrível para o STJ, contrariando de modo insuportável os princípios, a filosofia e a teleologia que estão pressupostos na repartição da competência em razão da hierarquia definida na regra-base sobre a recorribilidade para o STJ do artigo 432º, nº 1, alínea c) do CPP.
A contradição e a assimetria normativa e a consequente aporia intrassistemática seriam, assim, tão patentes e tão intensas, que tornariam insuportável tal sentido.
Impõe-se, por isso, um acrescido esforço de interpretação.
Uma norma legal, contra o seu sentido literal mas de acordo com a teleologia imanente à lei, pode exigir uma limitação que não está contida no texto, acrescentando-se uma restrição que é requerida em conformidade com o sentido da norma.
Pode suceder, com efeito, que uma norma, lida «demasiado amplamente segundo o seu sentido literal», tenha de ser reconduzida e deva ser «reduzida ao âmbito de aplicação que lhe corresponde segundo o fim da regulação ou a conexão do sentido da lei», procedendo às «diferenciações requeridas pela valoração» e «exigidas pelo sentido e finalidade da própria norma» e pela finalidade ou sentido «sempre que seja prevalecente» de outra norma, que de outro modo seria seriamente afetada, seja pela “natureza das coisas” ou «por um princípio imanente à lei prevalecente num certo grupo de casos» (cfr., KARL LARENZ, “Metodologia da Ciência do Direito”, 2ª ed., p. 473-474).
Nestes casos, deverá o intérprete operar a “redução teleológica” da norma.
A redução ou correção respeitará também o princípio da proporcionalidade e serve o interesse preponderante da segurança jurídica.
A perspetiva, o sentido essencial e os equilíbrios internos que o legislador revelou na construção do regime dos recursos para o STJ, com a prevalência sistémica, patente e mesmo imanente, da norma do artigo 432º, e especialmente do seu nº 1, alínea e), impõe, por isso, em conformidade, a redução teleológica da norma do artigo 400º, nº 1, alínea e) do CPP, de acordo com o princípio base do artigo 432º, nº 1, alínea c) do CPP, necessária à reposição do equilíbrio e da harmonia no interior da regime dos recursos para o STJ.
O recurso não é, assim, admissível - 432º, nº 1, alíneas b) e c) e 400º, nº 1, alínea e) do CPP (cf, v. g., acórdãos do STJ, de 7.04.08, proc. n.º 903/08; de 24.04.09, proc. n.º 329/05.1PTLRS.S1: de 13.10.2010, proc. nº 1252/07.0TABCL.G1.S1; de 16.12.2010, proc. n.º 152/06.6GAPNC.C2.S1; e de 18.05.2011, proc. nº 37/09.4 PBVCD).
Não há, assim, motivos para alterar a posição defendida neste Supremo Tribunal sobre a não admissibilidade do recurso em casos como o presente.
4. O recorrente suscita também a inconstitucionalidade do critério de interpretação utilizado na decisão sumária – refere-se necessariamente à conjugação normativa dos artigos 432º, nº 1, alínea c) e 400º, nº 1, alínea f) do CPP – que considera violador do princípio do direito ao recurso (artigo 32º, nº 1, da C.R.P.), do principio da legalidade (artigo 29.º, n.º 1, da C.R.P.), e, outrossim, do princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva (artigo 20º, n.º 1, da C.R.P.), por compressão dos direitos do arguido.
Considera ainda que a interpretação das referidas normas é igualmente violadora do principio de reserva de lei (artigo, 165º, n.º 1, alínea c), da C.R.P.) e do principio da subordinação dos tribunais à lei (artigo 203.º da C.R.P), «quando subscreve a Proposta Governamental 109/X na alínea o), nº 1 do artigo 400.º, a qual, como se sabe, não foi aprovada».
O artigo 20º, nº 1 da CRP – acesso ao direito e aos tribunais – garante que a todos é assegurado o direito a que a sua causa seja submetida a um juiz, para a declaração e o exercício de direitos, e é constitucionalmente assegurado com a disponibilidade processual adequada, que pode limitar-se a um único grau de jurisdição: a norma constitucional e a substância do direito não exigem, apenas por si, a organização de competências e do processo em vários graus de jurisdição. O aceso aos tribunais para a defesa de interesses legalmente protegidos basta-se com a previsão dos adequados procedimentos e meios de exercício, estando fora da garantia a previsão de tipos, modos, e sobretudo pluralidade de graus de recuso (cf., v. g.. acórdão do Tribunal Constitucional nº 261/02, de 18 de junho de 2002).
A recorrente teve acesso aos tribunais, e dispôs dos meios processuais adequados que a lei lhe confere, na liberdade de conformação do legislador quanto á organização das competências e das instâncias de recurso.
Não existe, pois, qualquer violação do artigo 20º, nº 1 da CRP.
Também não existe violação do artigo 29º, nº 1 da CRP.
A disposição constitucional garante o princípio da legalidade dos crimes e das penas, sendo uma norma essencial da constituição penal. Mas, nesse campo material de aplicação, é estranha a qualquer dimensão adjetiva de garantia de recuso e de organização infraconstitucional do regime de recursos em processo penal.
Também é manifestamente improcedente a invocada violação do artigo 32º, nº 1 da CRP.
O artigo 32º, nº 1 da CRP prevê o direito ao recurso como garantia de defesa mas a garantia constitucional, com é assente, fica assegurada na substância com a previsão e o direito ao recurso em um grau, não exigindo um segundo grau de recurso ou terceiro de jurisdição no caso, o objeto do processo já foi apreciado em recurso, estando, assim, satisfeita a exigência constitucional (cf. entre vários, o acórdão do Tribunal Constitucional nº 175/l0, de 4 de maio de 2010).
A invocação do artigo 165º, nº 1, alínea c) da CRP, não tem aqui sentido, não sendo apreensível a formulação do recorrente.
A norma constitucional é uma norma de definição da competência e da reserva de competência legislativa da Assembleia da República: delimitando a competência legislativa entre os órgãos constitucionais com poderes legislativos.
A função de identificação de uma norma e do seu sentido pelos tribunais, com o apelo a regras e princípios metodológicos, ou seja, a apreensão e identificação da dimensão normativa relevante para um caso concreto, especialmente quando a regra concreta de aplicação tem de ser encontrada num conjunto normativo mais ou menos complexo, constitui interpretação e aplicação, e não criação normativa primária: é por estarem sujeitos apenas à lei, que os tribunais têm por função interpretar a lei como pressuposto da aplicação e de julgamento.
Não tem, por isso, qualquer sentido a invocação da violação dos artigos 165º, nº 1, c) e 203º da CRP».
3. Desta decisão foi interposto o presente recurso, mediante requerimento onde se lê, entre o mais, o seguinte:
«b) O Recorrente pretende que seja apreciada a inconstitucionalidade da interpretação normativa feita pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça, que resultou da conjugação das normas respeitantes à alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º e al. e) do n.º 1 do artigo 400.º, ambos do C.P.P, segundo a qual “é irrecorrível o acórdão proferido, em recurso, pelas Relações, que apliquem pena privativa da liberdade (mesmo que ela seja inferior a 5 anos), quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade ou pena privativa da liberdade inferior à pena aplicada pelo Tribunal da Relação”.
c) Tal interpretação viola os seguintes princípios constitucionais: princípio do direito ao recurso artigo 32.º n.º 1, da C.R.P.), o princípio da legalidade (artigo 29º, n.º 1, da C.R.P.), e o princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º n.º 1 da C.R.P.), princípio de reserva de lei (artigo 165.º n.º 1 alínea c) da C.R.P.) e do princípio da subordinação dos tribunais à lei (artigo 203.º da C.R.P.), quando subscreve a Proposta Governamental 109/X na alínea e), n.º 1 do artigo 400.º, a qual, não foi aprovada».
4. Por despacho da relatora, o recorrente foi notificado para alegar, tendo em vista a apreciação da «interpretação normativa resultante da conjugação das normas da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º e alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, segundo a qual é irrecorrível o acórdão proferido pelas relações, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade inferior a cinco anos, quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade». Concluiu as alegações sustentando o seguinte:
«1.º
O Arguido/Recorrente pretende que o Venerando Tribunal Constitucional aprecie da inconstitucionalidade da interpretação normativa que resultou da conjugação das normas respeitantes à alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º e al. e) do n.º 1 do artigo 400º, ambos do C.P.P, segundo a qual é “irrecorrível o acórdão proferido, em recurso, pelas Relações, que apliquem pena privativa da liberdade (mesmo que ela seja inferior a 5 anos), quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade ou pena privativa da liberdade inferior à pena aplicada pelo Tribunal da Relação”
2.º
Considera o Venerando Supremo Tribunal de Justiça que, por conjugação normativa dos artigos 432.º, n.º 1 alínea c) e 400.º, n.º 1, alínea e) do C.P.P., não é admissível recurso do Acórdão da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça, quando a Relação julgar recurso de decisão do Tribunal Coletivo ou de Júri, em que estes tenham aplicado pena inferior a cinco anos de prisão.
3.º
Ainda que, como é o caso, a Relação aplique pena privativa da liberdade quando o Tribunal de 1.ª Instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade.
4.º
Ora, salvo o devido respeito, o Recorrente não pode concordar com o entendimento perfilhado pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça, por violar princípios constitucionalmente consagrados.
5.º
Ao interpretar a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea e) do C.P.P., conjugando-a não com a norma do artigo 432.º, n.º 1, alínea b), que refere os casos passíveis de recurso de decisões proferidas pelas Relações em recurso, mas sim com a norma do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), que se refere aos recursos interpostos diretamente da primeira instância para o Supremo Tribunal de Justiça, violou este Venerando Tribunal o princípio do direito ao recurso (artigo 32.º, n.º 1, da C.R.P.), o princípio da legalidade (artigo 29.º, n.º 1, da C.R.P.), e o princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva (artigo 20º, n.º 1, da C.R.P.), por compressão dos direitos do Arguido, ora Recorrente.
6.º
Por outro lado, ao recorrer a um critério de interpretação restritiva do artigo 400.º do C.P.P., o Venerando Supremo Tribunal de Justiça violou, além dos princípios referidos no número anterior, o princípio de reserva de lei (artigo, 165.º, n.º 1, alínea c), da C.R.P.) e o princípio da subordinação dos tribunais à lei (artigo 203.º da C.R.P.), quando subscreve a Proposta Governamental 109/X na alínea e), n.º 1 do artigo 400.º, a qual, como se sabe, não foi aprovada.
Assim,
7.º
Por razões que se ignora e que desafiam os princípios gerais de interpretação do direito, constantes nos artigos 9.º e 11.º, ambos do Código Civil, o Venerando Supremo Tribunal de Justiça, confere uma importância maior à al. c) do artigo 432.º do C.P.P., do que à al. b) do mesmo preceito, resultante de uma análise que até se aceita, mas com cuja consequência jamais se poderá concordar.
8.º
Independentemente, para o ensaio em análise, do constante no artigo 400.º do C.P.P, afigura- se evidente não resultar qualquer distinção quanto a “importância” entre a al. b) e a c), não obstante se aceitar, ser uma de aplicação mais direta que a outra, mas sem lógica interpretativa prioritária, como conclui – ainda que de forma não assumida –, o Venerando Supremo Tribunal de Justiça.
9.º
Neste sentido, o Venerando Supremo Tribunal de Justiça alicerça-se num preconceito interpretativo que não tem a correspondência verbal suficiente com o estatuído pela norma, razão pela qual se afirma que incorre, também aqui, em erro, tão-somente, porque as alíneas a), c) e d) comportam uma referência direta, e a alínea b), uma referência indireta.
Por outro lado,
10.º
Não obstante a fundamentação que conduziu o raciocínio do Excelentíssimo Julgador, desde o ponto de partida até ao seu culminar, não se pode conceder, de forma alguma, com a interpretação restritiva do artigo 400º, n.º 1, alínea e) do C.P.P., constante na decisão em recurso.
11.º
Em termos de evolução legislativa entretanto operada no âmbito do regime processual penal, o legislador, perentória e intencionalmente, alterou a disposição prevista no código de processo penal anterior, concretamente, e como melhor ensina Paulo Pinto de Albuquerque (…),
“A Lei 48/2007, de 29.8, alargou a irrecorribilidade a todos os acórdãos proferidos, em recurso, pelo TR, que apliquem pena não privativa de liberdade, onde anteriormente a Lei 58/98, de 25.8, previa que não eram recorríveis os acórdãos proferidos, em recurso, pelo TR, em processo-crime a que seja aplicável pena de multa. (...) A contrario, resulta ainda do disposto no artigo 400.º, n.º 1, a.º e), a admissibilidade da interposição do recurso para o STJ de acórdão pro ferido, em recurso, pelas Relações, que aplique pena privativa da liberdade (mesmo que ela seja inferior a cinco anos), desde que o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade ou pena privativa da liberdade inferior à pena aplicada pelo TR, isto é, desde que o TR não “confirme” a decisão do tribunal de primeira instância.” (negrito e aspas do autor citado).
12.º
Com efeito, a par da alteração conhecida face ao último código de processo penal, concorre ainda o facto, como de certa forma se refere na Douta decisão de que se recorre, que posição diversa constava da Proposta Governativa 109/X já anteriormente referida, e tal “raciocínio” foi liminarmente afastado, fazendo-se expressamente constar no artigo 400º, sob epígrafe
“Decisões que não admitem recurso”, que, não é admissível recurso: “e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa de liberdade.”
13.º
A contrario, os acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena privativa de liberdade, por força do disposto no artigo 432.º, n.º 1, al. b), do C.P.P., são recorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça, ainda que, o espírito do legislador se tenha norteado pela redução dos recursos para este mesmo Tribunal.
14.º
Entendeu o legislador, e no nosso modesto entendimento, bem, sobrepesados os interesses jurídicos em confronto, conferir primazia ao direito a um segundo grau de jurisdição a quem fosse condenado em pena privativa de liberdade face ao limite material de 5 anos constante na al. c), n.º 1, do artigo 432.º do C.P.P.
15.º
Não existe, em concreto, duplo grau de jurisdição quanto à aplicação da pena não privativa da liberdade, pois esta não foi aplicada pelo tribunal de primeira instância, mas pelo Tribunal de Relação, sendo o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça o 2.º grau de jurisdição quanto a essa aplicação.
1 6.º
Donde que, se não pode conceder tal interpretação restritiva como a constante na decisão em recurso.
Assim, tendo em conta o exposto,
17.º
A interpretação jurídica supra pronunciada – concretamente, da conjugação das normas respeitantes à alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º e al. e) do n.º 1 do artigo 400.º, ambos do C.P.P. – acha-se ferida de inconstitucionalidade, por violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 1, 29.º, n.º 3 e 20.0, n.º 1, todos da C.R.P.
1 8.º
Por outro lado, a interpretação restritiva ao artigo 400.º, n.º 1, al. e), se não limita a contrariar a letra da lei, mas, igualmente, a vontade do legislador, como resulta da alteração propositadamente introduzida pela Assembleia da República à Proposta Governamental n.º 109/X, sobre a al. e), n.º 1, do artigo 400º.
No seguimento do ensaio prestado por Paulo Pinto de Albuquerque (…),
“Enfim, dito de outro modo, esta interpretação do STJ viola o princípio de reserva de lei (artigo 165º, n.º 1, al. c) in fine da CRP) e o princípio da subordinação dos tribunais à lei (artigo 203.º da CRP), uma vez que o STJ se imiscui na função legislativa, procedendo a uma construção manifestamente contra legem da vontade do legislador, reduzindo a cacos o princípio constitucional da reserva de lei e ultrapassando os limites constitucionais da interpretação do referido preceito do artigo 400.º, n.º 1, al. e) do CPP.”.
20.º
Em consequência, por um lado, na medida em que o direito ao recurso integra o núcleo essencial das garantias de defesa constitucionalmente reconhecidas e, por outro, na medida em que foram violados os princípios da reserva de lei e de subordinação dos tribunais à lei, é inconstitucional pela violação 13º, 20.º, n.º 1, 32.º, n.º 1, 165.º, n.º 1, al. C) e 203.º, todos da C.R.P., a norma aplicada pela decisão do Excelentíssimo Julgador, nos termos da qual decorre dos artigos 399º, 400º, n.º 1, al. e) e 432.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, que,
“A redação dada ao artigo 400º, n.º 1, alínea e), segundo a qual é irrecorrível o acórdão proferido, em recurso, pelas Relações, que apliquem pena privativa da liberdade (mesmo que ela seja inferior a 5 anos), quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade ou pena privativa da liberdade inferior à pena aplicada pelo Tribunal da Relação”».
5. O Ministério Público contra-alegou, sustentando e concluindo o seguinte:
«2.1. Quanto à dimensão normativa em causa, tendo em atenção a circunstância do caso concreto, que necessariamente a modelam, a pena privativa de liberdade aplicada pelo acórdão da Relação, resultou, simplesmente, da revogação da suspensão da pena que tinha sido decidida em 1.ª instância.
2.2. Esta questão não é nova no Tribunal Constitucional.
Efetivamente o Acórdão n.º 424/2009, confirmando a Decisão Sumária, não julgou inconstitucional a norma do artigo 400.º alíneas e) e f), conjugada com a norma do artigo 432.º n.º 1 alínea c) do CPP, na redação emergente da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, quando interpretada no sentido de que não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão da Relação que, revogando a suspensão da execução da pena decidida em 1.ª instância, aplica ao arguido pena não superior a 5 anos de prisão efetiva.
O Acórdão pode sumariar-se da seguinte forma:
I - O Tribunal Constitucional já apreciou por diversas vezes questão semelhante à que os recorrentes colocam. Referimo-nos às pronúncias de não inconstitucionalidade das normas que não admitem recurso para o Supremo Tribunal de acórdãos condenatórios da Relação que revogaram sentenças absolutórias de 1.ª instância. Ora, se assim é quando a decisão da Relação inverte o sentido da decisão de 1.ª instância, condenando o arguido quando a decisão de 1.ª instância era absolutória, por maioria de razão não será inconstitucional a norma quando interpretada no sentido de não admitir recurso em caso de a decisão do tribunal superior não manter a suspensão da execução da pena de prisão.
II - Os argumentos dos reclamantes não abalam os fundamentos em que assenta a decisão sumária, que correspondem a jurisprudência uniforme e constante do Tribunal quanto à garantia de recurso consagrada no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição. Fundamento comum às duas reclamações é o de que não pode considerar-se garantido em concreto um grau de recurso quando a aplicação da pena de prisão efetiva só tenha ocorrido na Relação, atendendo a que está em consideração o valor da liberdade.
III - Mas, esta circunstância não justifica a revisão da jurisprudência do Tribunal. Tal condenação resulta justamente da reapreciação por um tribunal superior (o tribunal da relação), perante o qual o arguido tem a possibilidade de expor a sua defesa. Face a uma mesma imputação penal e à pretensão de aplicação de uma pena privativa de liberdade arguido tem a oportunidade de defender perante dois tribunais, o tribunal de 1.ª instância e o tribunal superior, o seu direito à liberdade. Perante o tribunal superior pode fazer rever tanto a decisão que o condenou, como contrariar a pretensão de que essa condenação seja agravada, designadamente que se converta em pena privativa de liberdade.
2.3. A posterior jurisprudência deste Tribunal em nada altera o que se disse.
Efetivamente, quanto à constitucionalidade das normas ou interpretações normativas que limitam o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sempre o Tribunal proferiu juízos de não inconstitucionalidade (vg. Acórdãos n.ºs. 219/2009, 263/2009, 385/2011 e 659/2011).
A única exceção é o Acórdão n.º 107/2012.
No entanto, essa era uma dimensão muito específica e o juízo de inconstitucionalidade assentou na ausência de prévio contraditório sobre o fundamento em que se baseava a rejeição do recurso.
2.4. Concordamos com a interpretação que foi sufragada no Supremo Tribunal de Justiça sobre o regime de recursos saído das alterações introduzidas pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto.
O acesso ao Supremo Tribunal de Justiça deverá estar reservado a questões que se colocam em processo por crimes graves e a gravidade do crime afere-se pela pena concretamente aplicada e não pela abstratamente aplicável ao crime, como, em larga medida, ocorria no regime anterior e que levou a divergências na jurisprudência, designadamente sobre a interpretação da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP.
Divergências que chegaram ao Tribunal Constitucional e que este resolveu pelo Acórdão n.º 64/2006 que, com numerosos votos de vencido, não julgou inconstitucional a norma constante da alínea f) do n.º 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que não é admissível recurso interposto apenas pelo arguido para o Supremo Tribunal de Justiça de um acórdão da Relação que, confirmando a decisão da 1ª Instância, o tenha condenado numa pena não superior a oito anos de prisão, pela prática de um crime a que seja aplicável pena superior a esse limite.
De salientar, no entanto, que a divergência deveu-se, exclusivamente, ao facto de, a redação da altura, não permitir a interpretação que estava em causa, sem que dessa forma fossem violados os artigos 32.º, n.º 1 e 13.º da Constituição.
Naturalmente que, vendo exclusivamente o que dispõe a alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na atual redação, essas dúvidas interpretativas também se colocam.
Concordamos, no entanto, com a interpretação que, recorrendo ao disposto no artigo 432.º do CPP, vendo o sistema de recursos no seu conjunto e realçando o papel do Supremo Tribunal de Justiça, concluiu pela irrecorribilidade, não violando tal interpretação, na nossa opinião, os direitos do arguido, constitucionalmente consagrados como o é o direito ao recurso (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição).
Acrescentaremos, todavia, que, como este Tribunal Constitucional em numerosas ocasiões salientou, não lhe cabe sindicar as concretas interpretações acolhidas pelo tribunal a quo, antes as devendo aceitar e verificar se elas são violadoras da Constituição.
3. Conclusões
1. A interpretação normativa resultante da conjugação das normas da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º e alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, segundo a qual é irrecorrível o acórdão proferido pelas relações, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade inferior a cinco anos, quando o tribunal de 1.ª instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade e nos casos em que tal decorre da revogação da suspensão de execução da pena, não viola o direito ao recurso (art. 32.º, n.º 1, da Constituição), ou qualquer outro preceito constitucional, não sendo, por isso, inconstitucional.
2. Termos em que deve negar-se provimento ao recurso.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. O presente recurso tem como objeto a interpretação normativa resultante da conjugação das normas da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º e alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, segundo a qual é irrecorrível o acórdão proferido pelas relações, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade inferior a cinco anos, quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade.
As disposições legais do Código de Processo Penal (CPP) a que se reporta a norma têm a seguinte redação:
«Artigo 432.º
Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça
1 – Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:
(…)
c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito;
Artigo 400.º
Decisões que não admitem recurso
1 - Não é admissível recurso:
(…)
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade».
Segundo os recorrentes a norma cuja apreciação é requerida viola vários princípios da Constituição da República Portuguesa (CRP): o princípio do direito ao recurso (artigo 32.º, n.º 1); o princípio da legalidade (artigo 29.º, n.º 1); o princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º, n.º 1); o princípio da reserva de lei (alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º); e o princípio da subordinação dos tribunais à lei (artigo 203.º).
2. O artigo 399.º do CPP consagra o princípio geral de que é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei, dispondo o artigo 400.º do mesmo Código sobre as decisões que não admitem recurso – as elencadas nesta disposição legal e nos demais casos previstos na lei. No que se refere ao duplo grau de recurso de decisões que conheçam, a final, do objeto do processo, a regra é a da recorribilidade das decisões proferidas, em recurso, pelas relações (artigo 399.º do CPP), sendo irrecorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça os acórdãos proferidos em recurso previstos nas alíneas d), e) e f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP.
Não obstante ter arredado a norma segundo a qual não é admissível recurso de acórdãos das relações em recursos interpostos de decisões em primeira instância (artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, na redação primitiva), tem sido propósito do legislador circunscrever o recurso em segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior gravidade, aos casos de maior merecimento penal (cf. Exposição de Motivos da Proposta de Lei que esteve na origem das alterações introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, Projeto de Revisão do Código de Processo Penal. Proposta de Lei apresentada à Assembleia da República, Ministério da Justiça, 1998, p. 27, e Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 109/X, na base das alterações introduzidas pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto). Num primeiro momento, o legislador fez “uso discreto do princípio da dupla conforme”, combinando-o com o critério da gravidade da pena abstrata correspondente ao crime (artigo 400.º, n.º 1, alíneas d), e) e f), do CPP, na redação de 1998); num momento posterior, combinou aquele princípio com o critério da gravidade da pena aplicada (pena concreta), para restringir, ainda mais, “o recurso de segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior merecimento penal” (artigo 400.º, n.º 1, alíneas d), e) e f), do CPP, na atual redação). O propósito continuou a ser o de restringir o recurso em segundo grau aos casos de maior merecimento penal e, em geral, o de limitar o recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente através da limitação agora constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º do CPP – recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito, apenas quando apliquem pena de prisão superior a cinco anos – , por comparação com a redação anterior das alíneas c) e e) do artigo 432.º do CPP.
A partir de 1998, a alínea e) passou a dispor que não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de infrações, ou em que o Ministério Público tenha usado da faculdade prevista no artigo 16.º, n.º 3; a partir de 2007, a mesma alínea prevê a irrecorribilidade de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade. Não deixando de cumprir aquele propósito, a redação final da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º alargou o âmbito das decisões que são recorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça, quando comparada com a versão constante da Proposta de Lei, nos termos da qual não era admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que aplicassem pena de multa ou pena de prisão não superior a 5 anos. A razão de ser desta modificação pode encontrar-se, ainda, não obstante o vazio dos trabalhos preparatórios (cf. Diário da Assembleia da República, II Série-A – Número 117, de 23 de julho de 2007, p. 28 e s.), no maior merecimento penal dos casos aos quais corresponda condenação em pena privativa da liberdade, por comparação com os que levem à condenação em pena não privativa da liberdade (assim, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2009, p. 319, Miguel Ângelo Lemos, “O direito ao recurso da decisão condenatória enquanto direito constitucional e direito humano fundamental”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, III, Coimbra Editora, 2010, p. 935 e s., e Figueiredo Dias/Nuno Brandão, “Irrecorribilidade para o STJ: redução teleológica permitida ou analogia proibida? Anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de fevereiro de 2009”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 2010, p. 639 e ss.).
O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo em entender – e o acórdão recorrido inscreve-se nessa corrente jurisprudencial – que não é admissível recurso em segundo grau de acórdãos proferidos pelas relações, em recurso, que apliquem pena de prisão inferior a cinco anos, nomeadamente quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade. No fundo, onde se lê que não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade (alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP) tem vindo a “ler-se” que não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena de prisão não superior a 5 anos, sendo decisivo para leitura o que dispõe o artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do CPP (sobre esta jurisprudência, Figueiredo Dias/Nuno Brandão, loc. cit., p. 629 e s.).
A norma que tem sido aplicada, como razão de decidir, no sentido de que é irrecorrível o acórdão proferido pelas relações que aplique pena de prisão não superior a 5 anos, em recurso de decisão de primeira instância que tenha aplicado pena não privativa da liberdade, já foi apreciada por este Tribunal, que a não julgou inconstitucional face aos disposto nos artigos 20.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP (Acórdãos n.ºs 424/2009, 419/2010 e 589/2011, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). O julgamento de não inconstitucionalidade funda-se no entendimento de que o acórdão da Relação consubstancia a garantia do duplo grau de jurisdição, tendo em conta que perante ela o arguido tem a possibilidade de expor a sua defesa, entroncando os fundamentos do direito ao recurso verdadeiramente na garantia do duplo grau de jurisdição. Ou seja, o direito ao recurso constitucionalmente consagrado satisfaz-se, atento o seu âmbito de proteção, com a garantia de um duplo grau de jurisdição.
Com efeito, este Tribunal tem vindo a entender, de forma reiterada, que não é constitucionalmente imposto o duplo grau de recurso em processo penal, sustentando-se que “mesmo quanto às decisões condenatórias, não tem que estar necessariamente assegurado um triplo grau de jurisdição”, existindo, consequentemente, “alguma liberdade de conformação do legislador na limitação dos graus de recurso” (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 189/2001 e, entre outros, Acórdãos n.ºs 178/88, 189/2001, 640/2004 e 645/2009, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Entendendo, também, que, muito embora se aceite que o legislador possa fixar um limite acima do qual não é admissível um terceiro grau de jurisdição, preciso é que “com tal limitação se não atinja o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido”, devendo a limitação dos graus de recurso ter “um fundamento razoável, não arbitrário ou desproporcionado”. Porquanto a garantia constitucional do direito ao recurso não se esgota naquela dimensão. Esta garantia, “conjugada com outros parâmetros constitucionais, pressupõe, igualmente, que na sua regulação o legislador não adote soluções arbitrárias e desproporcionadas, limitativas das possibilidades de recorrer – mesmo quando se trate de recursos apenas legalmente previstos e não constitucionalmente obrigatórios” (Acórdãos n.ºs 189/2001 e 628/2005. E, ainda, Acórdão n.º 64/2006, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
3. O recorrente alega que a norma que é objeto de apreciação viola, entre outras disposições constitucionais, o artigo 29.º, n.º 1, que consagra o princípio da legalidade, sustentando expressamente que é contrariada a letra da lei, o que coloca a questão de saber se a interpretação normativa que é objeto deste recurso se contém, ainda, no sentido possível das palavras da lei ou se, ao invés, coloca o intérprete no domínio da analogia constitucionalmente proibida. Questão que se enquadra no âmbito dos poderes de cognição deste Tribunal, por estar em causa a apreciação de uma norma que é, por isso mesmo, suscetível de controlo por parte do Tribunal (assim, Acórdão n.º 183/2008, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Ponto é que o princípio da legalidade em matéria criminal, constitucionalmente consagrado, seja extensível ao processo penal.
4. O artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da CRP submete a intervenção penal ao princípio da legalidade, no sentido preciso de que não pode haver crime nem pena ou medida de segurança que não resultem de lei prévia, escrita, certa e estrita, estando, consequentemente, proibido o recurso à analogia.
No Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 183/2008 conclui-se relativamente a este princípio constitucional, com relevo para a questão de constitucionalidade a decidir, que:
«Não se trata, pois, apenas de um qualquer princípio constitucional mas de uma “garantia dos cidadãos”, uma garantia que a nossa Constituição – ao invés de outras que a tratam a respeito do exercício do poder jurisdicional – explicitamente incluiu no catálogo dos direitos, liberdades e garantias relevando, assim, toda a carga axiológico-normativa que lhe está subjacente. Uma carga que se torna mais evidente quando se representa historicamente a experiência da inexistência do princípio da legalidade criminal na Europa do Antigo Regime e nos Estados totalitários do século XX (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte Geral, I, p. 178).
Nos Estados de Direito democráticos, o Direito penal apresenta uma série de limites garantísticos que são, de facto, verdadeiras “entorses” à eficácia do sistema penal; são reais obstáculos ao desempenho da função punitiva do Estado. É o que sucede, por exemplo, com o princípio da culpa, com o princípio da presunção de inocência, com o direito ao silêncio e, também, com o princípio da legalidade (nullum crimen sine lege certa). Estes princípios e direitos parecem não ter qualquer cabimento na lógica da prossecução dos interesses político-criminais que o sistema penal serve. Estão, todavia, carregados de sentido: são a mais categórica afirmação que, para o Direito, a liberdade pessoal tem sempre um especial valor mesmo em face das prementes exigências comunitárias que justificam o poder punitivo.
Não se pense pois que estamos perante um princípio axiologicamente neutro ou de uma fria indiferença ética, que não seja portador de qualquer valor substancial.
O facto de o princípio da legalidade exigir que num momento inicial do processo de aplicação se abstraia de qualquer fim ou valor decorre de uma opção “axiológica” de fundo que é a de, nas situações legalmente imprevistas, colocar a liberdade dos cidadãos acima das exigências do poder punitivo.
Assim se justifica que nem mesmo os erros e falhas do legislador possam ser corrigidos pelo intérprete contra o arguido.
(…)
A amplitude do processo hermenêutico e argumentativo de aplicação da lei penal encontra aqui, na moldura semântica do texto, uma barreira intransponível - uma barreira que apenas se explica pela preferência civilizacional que o Direito concede à liberdade pessoal sobre a necessária realização das finalidades político-criminais que justificam a instituição do sistema penal e que está na base da especial força normativa que a nossa Constituição concede à garantia pessoal de não punição fora do domínio da legalidade, ao inclui-la no catálogo dos direitos, liberdades e garantias (artigo 29.º, n.º 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa)».
Acompanhando Figueiredo Dias, é de concluir que, constituindo o princípio da legalidade “a mais sólida garantia das pessoas contra possíveis arbítrios do Estado, não se vê porque não haja ele de estender-se, na medida imposta pelo seu conteúdo de sentido, ao processo penal, cuja regulamentação pode a todo o momento pôr em grave risco a liberdade das pessoas”. No sentido preciso de o recurso à analogia em processo penal estar vedado, sempre que venha a traduzir-se “num enfraquecimento da posição ou numa diminuição dos direitos processuais do arguido (desfavorecimento do arguido, analogia «in malam partem»” (Direito Processual Penal, Universidade de Coimbra, ed. policopiada, 1988-9, p. 68 e s.). Segundo o autor, “razões históricas [que remontam à Carta Constitucional de 1826, à Constituição Política de 1911 e à Constituição Política de 1933] e teleológicas dão-se pois as mãos para convencer que, quando o artigo 29.º, n.º 1 da atual CRP refere o princípio da legalidade à exigência de se não ser «sentenciado criminalmente», quer aplicá-lo tanto ao direito penal como ao direito processual penal, não obstante a limitação ao primeiro sugerida pelo restante texto legal”.
E abona neste mesmo sentido o artigo 32.º, n.º 1, da CRP, nos termos do qual o processo penal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso. Poder-se-á mesmo afirmar que “perturbações essenciais do direito de defesa permitem, em última análise, uma frustração do próprio nullum crimen sine lege. Esta exigência da lei incriminadora concretiza-se no Processo Penal pela possibilidade de o agente demonstrar que não praticou o crime que lhe é imputado. Se o não puder fazer devidamente, o nullum crimen sine lege será um artefacto que permitirá atribuir responsabilidade onde em concreto possa não ter existido qualquer crime” (Fernanda Palma, “Linhas estruturais da reforma penal – Problemas de aplicação da lei processual penal no tempo”, O Direito, 2008, I, p. 20 e s.).
O processo penal só assegurará plenamente as garantias de defesa através de lei estrita que conforme a posição processual do arguido e os seus direitos processuais, nomeadamente o direito ao recurso. As garantias de defesa só estarão plenamente asseguradas se, no momento relevante para o exercício do direito ao recurso (o da notificação do acórdão condenatório em primeira instância), o destinatário da norma conhecer as condições do respetivo exercício com a segurança que o garanta contra a imprevisibilidade. Esta exigência impõe-se necessariamente quando o que está em causa é o acesso a um segundo grau de recurso, num ordenamento processual penal onde a irrecorribilidade das decisões constitui uma exceção (artigos 399.º e 400.º do CPP).
5. Vai também no sentido da extensão do princípio da legalidade ao processo penal, na medida imposta pelo seu conteúdo de sentido, a jurisprudência constitucional em matéria de aplicação da lei processual penal no tempo. O Tribunal tem entendido que o princípio da aplicação da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido (artigo 29.º, n.º 4, da CRP) não se restringe à aplicação da lei penal substantiva (entre outros, Acórdãos n.ºs 247/2009 e 551/2009, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt, e indicações doutrinais aí contidas). Como o direito ao recurso é uma das mais relevantes garantias de defesa do arguido e as questões de constitucionalidade que importava apreciar tinham a ver com a sucessão no tempo de normas sobre a recorribilidade de decisões, um dos parâmetros de aferição da conformidade constitucional das normas em causa foi precisamente o artigo 29.º, n.º 4, da CRP. Há que salvaguardar o conteúdo da garantia conferida pelo princípio da aplicação da lei penal de conteúdo mais favorável, de onde resulta que não deve aplicar-se a nova lei processual penal num processo pendente, sempre que da nova lei resulte um agravamento da posição processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa.
6. Segundo o acórdão recorrido, não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena de prisão não superior a 5 anos, quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade. Dispondo a alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP que “não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa da liberdade” (itálico aditado), é de concluir que a norma aplicada pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, ultrapassa o sentido possível das palavras da lei, saindo “fora do âmbito da interpretação” (assim, Figueiredo Dias/Nuno Brandão, loc. cit., p. 635 e ss. E no mesmo sentido, Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica, 2011, comentário ao artigo 400.º, ponto 14).
Constituindo a norma da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP uma exceção ao princípio geral da recorribilidade dos acórdãos, das sentenças e dos despachos, cuja irrecorribilidade não esteja prevista na lei (artigo 399.º do mesmo Código), ao prever um caso de inadmissibilidade de recurso, deve o intérprete ater-se ao texto “pena não privativa da liberdade”. Sendo certo que a alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º é estranha à matéria da recorribilidade das decisões, inserindo-se antes na matéria atinente à repartição de competências entre as relações e o Supremo Tribunal de Justiça, dispondo especificamente sobre esta repartição relativamente a recursos interpostos de acórdãos do tribunal do júri e do tribunal coletivo, ou seja, de decisões finais de 1.ª instância, já que quanto a recurso interpostos de acórdãos das relações dispõe especificamente a alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo 432.º Havendo, além do mais, boas razões para concluir que a redação atualmente vigente daquela alínea e) quis afastar a constante da Proposta de Lei que esteve na origem das alterações de 2007 (supra ponto 2. da Fundamentação). Esta sim é que previa expressamente que não era admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que aplicassem pena de multa ou pena de prisão não superior a 5 anos.
Entendeu, porém, o acórdão recorrido que, “se não é admissível recurso direto de decisão proferida por tribunal singular, ou que aplique pena de prisão não superior a cinco anos” (artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do CPP), então, “também por integridade da coerência que deriva do princípio da paridade ou até da maioria de razão, não poderá ser admissível recurso de segundo grau de decisão da relação que conheça de recurso interposto nos casos de decisão do tribunal singular ou do tribunal coletivo ou do júri que aplique pena de prisão não superior a cinco anos”. Só que esta norma coloca o intérprete no âmbito da analogia constitucionalmente proibida, sendo indiferente que a norma encontrada fora da moldura semântica do texto seja constitucionalmente admissível e político-criminalmente defensável, uma vez que a liberdade dos cidadãos está acima das exigências do poder punitivo nas situações legalmente imprevistas.
7. É de concluir, pois, pela inconstitucionalidade da interpretação normativa resultante da conjugação das normas da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º e alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, segundo a qual é irrecorrível o acórdão proferido pelas relações, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade inferior a cinco anos, quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal (artigos 29.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP).
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a interpretação normativa resultante da conjugação das normas da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º e alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, segundo a qual é irrecorrível o acórdão proferido pelas relações, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade inferior a cinco anos, quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal (artigos 29.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).
b) Conceder provimento ao recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 5 de dezembro de 2012.- Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria Lúcia Amaral – J. Cunha Barbosa – Joaquim de Sousa Ribeiro.
|