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Processo n.º 543/12
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que são recorrentes, A. e B. e recorridos o Ministério Público, C., D. e E., foi interposto recurso ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC) do acórdão daquele Tribunal de 9 de maio de 2012.
2. Cada um dos recorrentes foi condenado, em 1.ª instância, numa pena única de prisão superior a 8 anos (14 e 15 anos, respetivamente), pela prática de crimes punidos com penas de prisão inferiores a 8 anos. Desta decisão recorreram para o Tribunal da Relação do Porto, que negou provimento aos recursos, confirmando integralmente a decisão da 1.ª instância.
Do acórdão do Tribunal da Relação do Porto recorreram então para o Supremo Tribunal de Justiça, que acordou, em 9 de maio de 2012, em rejeitar parcialmente os recursos interpostos, excetuando os segmentos em que os arguidos impugnaram a medida das penas conjuntas.
Para o que agora importa apreciar e decidir, é a seguinte a fundamentação da decisão recorrida:
«Começando por conhecer a questão atinente à rejeição parcial dos recursos interpostos, já que prévia, dir-se-á.
A lei adjetiva penal manda rejeitar o recurso sempre que seja manifesta a sua improcedência, se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do artigo 414º e o recorrente não apresente, complete ou esclareça as conclusões formuladas e esse vício afete a totalidade do recurso nos termos do n.º 3 do artigo 417º – n.º 1 do artigo 420º.
Primeira causa de não admissão do recurso prevista no n.º 2 do artigo 414º é a da irrecorribilidade da decisão.
De acordo com o preceituado no artigo 400º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 48/07, de 29 de agosto, não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos, o que significa, como este Supremo Tribunal de Justiça vem entendendo, de forma constante e pacífica, só ser admissível recurso de decisão confirmatória da relação no caso de a pena aplicada ser superior a 8 anos de prisão, quer estejam em causa penas parcelares ou singulares quer penas conjuntas ou únicas resultantes de cúmulo (…).
No caso vertente estamos perante decisão condenatória de 1ª instância confirmada pelo Tribunal da Relação, sendo todas as penas parcelares aplicadas a todos os recorrentes não superiores a 8 anos de prisão, conquanto as penas conjuntas cominadas ultrapassem aquele patamar.
Deste modo, certo é ser irrecorrível a decisão impugnada no que respeita às penas parcelares aplicadas a todos os recorrentes, a significar que relativamente à condenação por todos os crimes em concurso está este Supremo Tribunal impossibilitado de exercer qualquer sindicação, sindicação que só é admissível no que tange às penas conjuntas cominadas, ou seja, no que concerne à operação de formação ou determinação das penas únicas.
Com efeito, estando o Supremo Tribunal impedido de sindicar o acórdão recorrido no que tange à condenação pelos crimes em concurso, obviamente que está impedido, também, de exercer qualquer censura sobre a atividade decisória prévia que subjaz e conduziu à condenação dos recorrentes por cada um desses crimes. A verdade é que relativamente a todos os crimes em concurso o acórdão recorrido transitou em julgado, razão pela qual no que a eles se refere se formou caso julgado material, tornando definitiva e intangível a respetiva decisão em toda a sua dimensão, estando pois a coberto do caso julgado todas as decisões que antecederam e conduziram à condenação dos recorrentes pelos crimes em concurso, ou seja, que a jusante da condenação se situam.
De outra forma estar-se-ia a violar o princípio constitucional non bis in idem (n.º 5 do artigo 29º da Constituição), concretamente na sua dimensão objetiva, que garante a segurança e a certeza da decisão judicial, através da imutabilidade do definitivamente decidido (…), sendo certo que, ao contrário do alegado pelos recorrentes A. e B., a limitação do recurso à pena ou penas superiores a 8 anos de prisão, não é inconstitucional por ofensa do direito ao recurso consagrado no n.º 1 do artigo 32º da Constituição da República, consabido que, como o Tribunal Constitucional vem decidindo, a apreciação de qualquer processo por dois tribunais de grau distinto tutela de forma suficiente as garantias de defesa constitucionalmente consagradas (…).
Aliás, é essa a solução consagrada na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ao estabelecer o direito a um duplo grau de jurisdição em matéria penal – artigo 2º, do Protocolo n.º 7 Adicional à Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais».
3. Desta decisão foi interposto o presente recurso, mediante requerimento onde se lê o seguinte:
«2º
O acórdão fundou-se em determinada interpretação normativa dada ao art. 400º nº1-f) do C.P.P., no sentido de que, havendo uma pena única superior a 8 anos – aplicada a arguido que cometeu uma pluralidade de crimes parcelares, a que correspondeu (a cada um deles) uma pena inferior a 8 anos – , não pode ser objeto do recurso para o STJ a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão.
3º
Para os Recorrentes, tal entendimento normativo é inconstitucional, por ofensa do direito ao recurso consagrado no art. 32º nº 1 da CRP, que, nessa interpretação, é restringido em termos desproporcionados e iníquos».
4. Notificados para alegar, os recorrentes sustentaram e concluíram o seguinte:
«1. O tema do recurso é de enunciação muito simples: é ou não desproporcionado – em termos constitucionalmente relevantes – o entendimento dado pelo Supremo Tribunal de Justiça ao art. 400º nº 1-f) do C.P.P., no sentido de que – havendo uma condenação com uma pena superior a 8 anos de prisão – não há recurso para o S.T.J. relativamente à matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares interiores a 8 anos de prisão?
2. Os Recorrentes – que foram condenados a penas de prisão de 14 anos, ele, e de 15 anos, ela – sustentaram – logo quando responderam, em 2 de maio de 2012, à douta promoção do Ministério Público – não só que tal entendimento seria erróneo, não correspondendo à adequada interpretação da norma em pauta (tese igualmente sufragada por alguma outra jurisprudência do Supremo Tribunal), como, sendo adotado, como veio a ser, estaria ferido de inconstitucionalidade, por ofensa do direito ao recurso, posição que se mantém.
3. O Supremo Tribunal, no acórdão recorrido, argumenta no sentido de que a tese perfilhada pelos Recorrentes é que violaria o princípio non bis in idem, afetando a segurança e a certeza das decisões judiciais, uma vez que, quanto aos crimes parcelares, se teria formado caso julgado material.
Por outro lado, invoca a consabida jurisprudência do Tribunal Constitucional (e do TEDH) de que a garantia constitucional do direito ao recurso só imporia dois graus de jurisdição.
4. Quanto ao primeiro argumento, e ressalvado o devido respeito, a tese do Supremo Tribunal padece de vício lógico manifesto.
É que só foi formado caso julgado material se não houve, in casu, direito ao recurso. Havendo-o, como há, tal caso julgado não se forma e não pode invocar-se o principio non bis in idem.
5. Quanto ao segundo argumento, é sabido que a garantia constitucional do direito ao recurso não impõe um terceiro grau de jurisdição.
E daí decorre uma ampla liberdade para o legislador ordinário estabelecer as situações e os termos em que há direito a um segundo grau de recurso, ou seja, a um terceiro grau de jurisdição. Num extremo, pode mesmo eliminar-se tal possibilidade.
Só que o problema não é esse. A questão está em saber se, consagrado um terceiro grau de jurisdição, as limitações ao seu exercício respeitam ou não os princípios constitucionais que informa os direitos fundamentais e o processo penal. É o que apreciaremos de seguida.
6. Veja-se, por absurdo, um exemplo-limite.
Faria sentido que o legislador ordinário, estabelecendo o direito a um terceiro grau de jurisdição em matéria penal, dele excluísse os que fossem condenados a pena de prisão superior a 8 anos? É óbvio que não. Isso nem mereceria discussão.
7. Vejamos, agora, a situação dos autos.
Até à reforma de 2007, havendo dupla conforme, o acesso ao Supremo Tribunal dependia da gravidade do crime em pauta aferida em função da respetiva moldura penal (o que, no caso de concurso de infrações, deu azo a uma jurisprudência contraditória e conflituante, que se arrastou durante anos). Com a reforma de 2007, o legislador escolheu um novo critério, objetivo e de fácil aplicação: tem direito ao recurso para o Supremo Tribunal, mesmo havendo dupla conforme, quem tenha sido condenado a pena de prisão superior a 8 anos. Isto é, o legislador adotou o critério da gravidade da pena, ou seja, da repercussão concreta para o arguido da condenação de que foi alvo, só admitindo um terceiro grau de jurisdição quando essa gravidade se traduza numa pena de prisão superior a 8 anos.
8. Neste âmbito, que sentido é que faz – entre os condenados com pena superior a 8 anos de prisão – distinguir a situação daqueles que o foram por causa de um único crime daqueles outros que o foram por força do cúmulo derivado da prática de uma pluralidade de crimes?
E a resposta só pode ser que tal distinção não faz sentido. Se o critério é a gravidade da pena (isto é, o castigo infligido), parece ser indiferente se isso é o resultado de uma pena única ou do cúmulo de penas parcelares.
E, assim sendo, quando a pena superior a 8 anos de prisão é o resultado do cúmulo de penas parcelares de montante inferior, não é razoável que o arguido só tenha acesso ao Supremo Tribunal para discutir o cúmulo e já não as matéria decisórias referentes aos crimes e às penas parcelares, que são, afinal, e por regra, na substância da condenação, o mais relevante, condicionando os termos da pena única aplicada.
9. Ora, quando o Supremo Tribunal limita o direito ao recurso com base no critério irrazoável e desproporcionado que elegeu – de resto, à margem do que manifestamente desejou o legislador ordinário –, está a ofender os valores que a Constituição assegura.
10. Pelo exposto, o entendimento dado pelo acórdão recorrido ao art. 400º nº 1-f) do C.P.P., no sentido de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não há recurso para o STJ relativamente à matéria decisória dos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos, é inconstitucional, por ofensa do direito ao recurso consagrado no art. 32º nº 1 da CRP, que é restringido em termos desproporcionados, irrazoáveis e iníquos.
CONCLUSÕES
A) O tema do recurso é de enunciação muito simples: é ou não desproporcionado – em termos constitucionalmente relevantes – o entendimento dado pelo Supremo Tribunal de Justiça ao art. 400º nº 1-f) do C.P.P., no sentido de que – havendo uma condenação com uma pena superior a 8 anos de prisão – não hã recurso para o S.T.J. relativamente à matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão?
B) Divergindo da posição do Supremo Tribunal, os Recorrentes entendem que a questão está em saber se, consagrado um terceiro grau de jurisdição, as limitações ao seu exercício respeitam ou não os princípios constitucionais que informa os direitos fundamentais e o processo penal.
C) Neste âmbito, que sentido é que faz – entre os condenados com pena superior a 8 anos de prisão – distinguir a situação daqueles que o foram por causa de um único crime daqueles outros que o foram por força do cúmulo derivado da prática de uma pluralidade de crimes?
E a resposta só pode ser que tal distinção não faz sentido. Se o critério é a gravidade da pena (isto é, o castigo infligido), parece ser indiferente se isso é o resultado de uma pena única ou do cúmulo de penas parcelares.
D) E, assim sendo, quando a pena superior a 8 anos de prisão é o resultado do cúmulo de penas parcelares de montante inferior, não é razoável que o arguido só tenha acesso ao Supremo Tribunal para discutir o cúmulo e já não as matéria decisórias referentes aos crimes e às penas parcelares, que são, afinal, e por regra, na substância da condenação, o mais relevante, condicionando os termos da pena única aplicada.
E) Ora, quando o Supremo Tribunal limita o direito ao recurso com base no critério irrazoável e desproporcionado que elegeu – de resto, à margem do que manifestamente desejou o legislador ordinário –, está a ofender os valores que a Constituição assegura.
F) Pelo exposto, o entendimento dado pelo acórdão recorrido ao art. 400º nº 1-f) do C.P.P., no sentido de que, havendo uma pena única superior a 8 anos, não há recurso para o STJ relativamente à matéria decisória dos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos, é inconstitucional, por ofensa do direito ao recurso consagrado no art. 32º nº 1 da CRP, que é restringido em termos desproporcionados, irrazoáveis e iníquos».
5. Notificados os recorridos, contra-alegou apenas o Ministério Público, concluindo o seguinte:
«25º
Só resta, assim, concluir, que o presente recurso não deverá merecer provimento por parte deste Tribunal Constitucional.
Com efeito, a jurisprudência deste Tribunal encontra-se estabilizada, há já vários anos, como se viu, tendo sempre concluído pela não inconstitucionalidade da norma impugnada.
26º
No entender do Ministério Público, este Tribunal Constitucional deverá, pois, negar provimento ao recurso dos arguidos, ora recorrentes, concluindo, mais uma vez, não ser inconstitucional a interpretação normativa dada à norma constante do art. 400º, nº 1, alínea f), do Código de Processo Penal, “no sentido de que, havendo uma pena única superior a 8 anos – aplicada a arguido que cometeu uma pluralidade de crimes parcelares, a que correspondeu (a cada um deles) uma pena inferior a 8 anos – não pode ser objeto do recurso para o STJ a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão”.
27º
Com efeito, ao contrário do que alegam os recorrentes, tal interpretação normativa não viola as garantias de defesa dos arguidos.
Como repetidamente afirmado pela jurisprudência deste Tribunal Constitucional, “mesmo em processo penal, a Constituição não impõe ao legislador a obrigação de consagrar o direito de recorrer de todo e qualquer ato do juiz e, mesmo admitindo-se o direito a um duplo grau de jurisdição como decorrência, no processo penal, da exigência constitucional das garantias de defesa, tem de aceitar-se que o legislador penal possa fixar um limite acima do qual não seja admissível um terceiro grau de jurisdição: ponto é que, com tal limitação se não atinja o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido.”
28º
Por outro lado, “o conteúdo essencial das garantias de defesa do arguido consiste no direito a ver o seu caso examinado em via de recurso, mas não abrange já o direito a novo reexame de uma questão já reexaminada por uma instância superior.”
Foi o que aconteceu nos presentes autos, em que os arguidos tiveram oportunidade de recorrer do Acórdão proferido em 1ª instância - pela 2ª Vara Criminal do Porto -, para o Tribunal da Relação do Porto, tendo este tribunal superior confirmado a decisão condenatória do tribunal de julgamento.
29º
Por último, este Tribunal Constitucional reconhece “alguma liberdade de conformação do legislador na limitação dos graus de recurso. No caso, o fundamento da limitação – não ver a instância superior da ordem judiciária comum sobrecarregada com a apreciação de casos de pequena ou média gravidade e que já foram apreciados em duas instâncias – é um fundamento razoável, não arbitrário ou desproporcionado e que corresponde aos objetivos da última reforma do processo penal.”
30º
Este Ministério Público entende, assim, não ser de conceder provimento, por parte deste Tribunal Constitucional, ao presente recurso, interposto pelos arguidos, ora recorrentes, A. e B., do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de maio de 2012».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. A norma que é objeto do presente recurso é o artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal (CPP), na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão.
Esta disposição legal tem a seguinte redação:
Artigo 400.º
Decisões que não admitem recurso
1 - Não é admissível recurso:
(…)
f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos».
Segundo os recorrentes a norma cuja apreciação é requerida viola o direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), por ser restringido em termos desproporcionados e iníquos.
2. O artigo 399.º do CPP consagra o princípio geral de que é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei, dispondo o artigo 400.º do mesmo Código sobre as decisões que não admitem recurso – as elencadas nesta disposição legal e nos demais casos previstos na lei. No que se refere ao duplo grau de recurso de decisões que conheçam, a final, do objeto do processo, a regra é a da recorribilidade das decisões proferidas, em recurso, pelas relações (artigo 399.º do CPP), sendo irrecorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça os acórdãos proferidos em recurso previstos nas alíneas d), e) e f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP.
Não obstante ter arredado a norma segundo a qual não é admissível recurso de acórdãos das relações em recursos interpostos de decisões em primeira instância (artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, na redação primitiva), tem sido propósito do legislador circunscrever o recurso em segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior gravidade, aos casos de maior merecimento penal (cf. Exposição de Motivos da Proposta de Lei que esteve na origem das alterações introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, Projeto de Revisão do Código de Processo Penal. Proposta de Lei apresentada à Assembleia da República, Ministério da Justiça, 1998, p. 27, e Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 109/X, na base das alterações introduzidas pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto). Num primeiro momento, o legislador fez “uso discreto do princípio da dupla conforme”, combinando-o com o critério da gravidade da pena abstrata correspondente ao crime (artigo 400.º, n.º 1, alíneas d), e) e f), do CPP, na redação de 1998); num momento posterior, combinou aquele princípio com o critério da gravidade da pena aplicada (pena concreta), para restringir, ainda mais, “o recurso de segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior merecimento penal” (artigo 400.º, n.º 1, alíneas d), e) e f), do CPP, na atual redação).
A partir de 1998, a alínea f) passou a dispor que não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infrações; a partir de 2007, a mesma alínea prevê a irrecorribilidade de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos. A gravidade da pena aplicada ao arguido (pena concreta) passou a ser o critério de acesso, em segundo grau de recurso, ao Supremo Tribunal de Justiça, relativamente a acórdãos condenatórios das relações que, em recurso, confirmem decisão de 1.ª instância.
No plano do direito infraconstitucional, a alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na redação vigente, suscitou a questão de saber se, em caso de concurso de crimes, é recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça o acórdão condenatório, proferido em recurso pelas relações, que aplique uma pena única de prisão superior a oito anos, correspondendo, porém, a cada um dos crimes em concurso pena de prisão inferior a oito anos (sobre isto, Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica, 2011, comentário ao artigo 400.º, ponto 11).
O Supremo Tribunal de Justiça, muito embora aceite a recorribilidade do acórdão condenatório, proferido em recurso pelas relações, que aplique uma pena única de prisão superior a oito anos, ainda que a cada um dos crimes em concurso corresponda pena de prisão inferior a oito anos, tem vindo a entender que, neste caso, se restringe “o objeto do recurso à sindicância da pena única” (Acórdão de 11-1-2012, processo 131/09, louvando-se em jurisprudência anterior, disponível em www.dgsi.pt. E, no mesmo sentido, Paulo Pinto Albuquerque, ob. cit., comentário ao artigo 400.º, ponto 11). Não se trata, porém, de entendimento unânime. Este Tribunal já apreciou a interpretação normativa extraída do “artº 400/1 al. f) do CPP no sentido de que somente é recorrível para o STJ o acórdão da relação que confirme decisão de 1ª instância, quando condene em pena por crime parcelar que seja superior a 8 anos, e não quando a pena concretamente aplicada seja, em concreto, superior a 8 anos, sendo as penas parcelares inferiores”, bem como “a norma do artigo 400.º, n.º 1, al. f), do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, em caso de concurso de infrações, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de Acórdão da Relação que confirme a decisão da 1ª instância e aplique pena única de prisão superior a 8 anos, quando as penas parcelares aplicadas aos crimes singulares não sejam superiores a esse limite” (cf., Acórdão n.º 643/2011 e Decisão Sumária n.º 366/2012, respetivamente disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt, decisões que concluíram no sentido da não inconstitucionalidade).
A norma que tem sido aplicada, como razão de decidir, no sentido de que é recorrível o acórdão condenatório, proferido em recurso pelas relações, que aplique uma pena única de prisão superior a oito anos, ainda que a cada um dos crimes em concurso corresponda pena de prisão inferior a oito anos, restringindo-se, neste caso, “o objeto do recurso à sindicância da pena única”, já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional: no Acórdão n.º 649/2009 não foi julgado inconstitucional o artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, interpretado no sentido de que “no caso de concurso de infrações tendo a Relação confirmado, em recurso, decisão de 1.ª instância que aplicou pena de prisão parcelar não superior a 8 anos, essa parte não é recorrível para o STJ, nos termos do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do C.P.P., na versão da Lei 48/2007 de 29 de agosto, sem prejuízo de ser recorrível qualquer outra parte da decisão, relativa a pena parcelar ou mesmo só à operação de formação da pena única que tenha excedido aqueles limites”. O julgamento de não inconstitucionalidade fundou-se no entendimento de que não é “constitucionalmente desconforme a inadmissibilidade de um terceiro grau de jurisdição quanto à aplicação de pena parcelar não superior a 8 anos de prisão”.
Com efeito, este Tribunal tem vindo a entender, de forma reiterada, que não é constitucionalmente imposto o duplo grau de recurso em processo penal, sustentando-se que “mesmo quanto às decisões condenatórias, não tem que estar necessariamente assegurado um triplo grau de jurisdição”, existindo, consequentemente, “alguma liberdade de conformação do legislador na limitação dos graus de recurso” (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 189/2001 e, entre outros, Acórdãos n.ºs 178/88, 189/2001, 640/2004 e 645/2009, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Entendendo, também, que, muito embora se aceite que o legislador possa fixar um limite acima do qual não é admissível um terceiro grau de jurisdição, preciso é que “com tal limitação se não atinja o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido”, devendo a limitação dos graus de recurso ter “um fundamento razoável, não arbitrário ou desproporcionado”. Porquanto a garantia constitucional do direito ao recurso não se esgota naquela dimensão. Esta garantia, “conjugada com outros parâmetros constitucionais, pressupõe, igualmente, que na sua regulação o legislador não adote soluções arbitrárias e desproporcionadas, limitativas das possibilidades de recorrer – mesmo quando se trate de recursos apenas legalmente previstos e não constitucionalmente obrigatórios” (Acórdãos n.ºs 189/2001 e 628/2005. E, ainda, Acórdão n.º 64/2006, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
É precisamente neste enquadramento da garantia constitucional do direito ao recurso em processo penal que surgem as alegações dos recorrentes. Aceitando que não é constitucionalmente imposto um segundo grau de grau de recurso, entendem que a norma cuja apreciação requerem viola o direito ao recurso, por este ser restringido em termos desproporcionados, irrazoáveis e iníquos. Para os recorrentes, a questão está, pois, em saber se, consagrado um terceiro grau de jurisdição, as limitações ao seu exercício respeitam ou não os princípios constitucionais que informam os direitos fundamentais e o processo penal.
Antes, porém, põe-se a questão de saber se a interpretação normativa que é objeto deste recurso se contém, ainda, no sentido possível das palavras da lei ou se, ao invés, coloca o intérprete no domínio da analogia constitucionalmente proibida. Questão que se enquadra no âmbito dos poderes de cognição deste Tribunal: está em causa a apreciação de uma norma que é, por isso mesmo, suscetível de controlo por parte do Tribunal (assim, Acórdão n.º 183/2008, disponível em www.tribunalconstitucional.pt); o Tribunal pode julgar inconstitucional a norma que a decisão recorrida tenha aplicado ou a que haja recusado aplicação com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada (artigo 79.º-C da LTC).
3. O artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da CRP submete a intervenção penal ao princípio da legalidade, no sentido preciso de que não pode haver crime nem pena ou medida de segurança que não resultem de lei prévia, escrita, certa e estrita, estando, consequentemente, proibido o recurso à analogia.
No Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 183/2008 conclui-se relativamente a este princípio constitucional, com relevo para a questão de constitucionalidade a decidir, que:
«Não se trata, pois, apenas de um qualquer princípio constitucional mas de uma “garantia dos cidadãos”, uma garantia que a nossa Constituição – ao invés de outras que a tratam a respeito do exercício do poder jurisdicional – explicitamente incluiu no catálogo dos direitos, liberdades e garantias relevando, assim, toda a carga axiológico-normativa que lhe está subjacente. Uma carga que se torna mais evidente quando se representa historicamente a experiência da inexistência do princípio da legalidade criminal na Europa do Antigo Regime e nos Estados totalitários do século XX (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte Geral, I, p. 178).
Nos Estados de Direito democráticos, o Direito penal apresenta uma série de limites garantísticos que são, de facto, verdadeiras “entorses” à eficácia do sistema penal; são reais obstáculos ao desempenho da função punitiva do Estado. É o que sucede, por exemplo, com o princípio da culpa, com o princípio da presunção de inocência, com o direito ao silêncio e, também, com o princípio da legalidade (nullum crimen sine lege certa). Estes princípios e direitos parecem não ter qualquer cabimento na lógica da prossecução dos interesses político-criminais que o sistema penal serve. Estão, todavia, carregados de sentido: são a mais categórica afirmação que, para o Direito, a liberdade pessoal tem sempre um especial valor mesmo em face das prementes exigências comunitárias que justificam o poder punitivo.
Não se pense pois que estamos perante um princípio axiologicamente neutro ou de uma fria indiferença ética, que não seja portador de qualquer valor substancial.
O facto de o princípio da legalidade exigir que num momento inicial do processo de aplicação se abstraia de qualquer fim ou valor decorre de uma opção “axiológica” de fundo que é a de, nas situações legalmente imprevistas, colocar a liberdade dos cidadãos acima das exigências do poder punitivo.
Assim se justifica que nem mesmo os erros e falhas do legislador possam ser corrigidos pelo intérprete contra o arguido.
(…)
A amplitude do processo hermenêutico e argumentativo de aplicação da lei penal encontra aqui, na moldura semântica do texto, uma barreira intransponível - uma barreira que apenas se explica pela preferência civilizacional que o Direito concede à liberdade pessoal sobre a necessária realização das finalidades político-criminais que justificam a instituição do sistema penal e que está na base da especial força normativa que a nossa Constituição concede à garantia pessoal de não punição fora do domínio da legalidade, ao inclui-la no catálogo dos direitos, liberdades e garantias (artigo 29.º, n.º 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa)».
Acompanhando Figueiredo Dias, é de concluir que, constituindo o princípio da legalidade “a mais sólida garantia das pessoas contra possíveis arbítrios do Estado, não se vê porque não haja ele de estender-se, na medida imposta pelo seu conteúdo de sentido, ao processo penal, cuja regulamentação pode a todo o momento pôr em grave risco a liberdade das pessoas”. No sentido preciso de o recurso à analogia em processo penal estar vedado, sempre que venha a traduzir-se “num enfraquecimento da posição ou numa diminuição dos direitos processuais do arguido (desfavorecimento do arguido, analogia «in malam partem»” (Direito Processual Penal, Universidade de Coimbra, ed. policopiada, 1988-9, p. 68 e s.). Segundo o autor, “razões históricas [que remontam à Carta Constitucional de 1826, à Constituição Política de 1911 e à Constituição Política de 1933] e teleológicas dão-se pois as mãos para convencer que, quando o artigo 29.º, n.º 1 da atual CRP refere o princípio da legalidade à exigência de se não ser «sentenciado criminalmente», quer aplicá-lo tanto ao direito penal como ao direito processual penal, não obstante a limitação ao primeiro sugerida pelo restante texto legal”.
E abona neste mesmo sentido o artigo 32.º, n.º 1, da CRP, nos termos do qual o processo penal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso. Poder-se-á mesmo afirmar que “perturbações essenciais do direito de defesa permitem, em última análise, uma frustração do próprio nullum crimen sine lege. Esta exigência da lei incriminadora concretiza-se no Processo Penal pela possibilidade de o agente demonstrar que não praticou o crime que lhe é imputado. Se o não puder fazer devidamente, o nullum crimen sine lege será um artefacto que permitirá atribuir responsabilidade onde em concreto possa não ter existido qualquer crime” (Fernanda Palma, “Linhas estruturais da reforma penal – Problemas de aplicação da lei processual penal no tempo”, O Direito, 2008, I, p. 20 e s.).
O processo penal só assegurará plenamente as garantias de defesa através de lei estrita que conforme a posição processual do arguido e os seus direitos processuais, nomeadamente o direito ao recurso. As garantias de defesa só estarão plenamente asseguradas se, no momento relevante para o exercício do direito ao recurso (o da notificação do acórdão condenatório em primeira instância), o destinatário da norma conhecer as condições do respetivo exercício com a segurança que o garanta contra a imprevisibilidade. Esta exigência impõe-se necessariamente quando o que está em causa é o acesso a um segundo grau de recurso, num ordenamento processual penal onde a irrecorribilidade das decisões constitui uma exceção (artigos 399.º e 400.º do CPP) e que dá ao recorrente a possibilidade de aceder diretamente ao Supremo Tribunal de Justiça, quando pena de prisão aplicada em acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo seja superior a cinco anos (artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do CPP).
4. Vai também no sentido da extensão do princípio da legalidade ao processo penal, na medida imposta pelo seu conteúdo de sentido, a jurisprudência constitucional em matéria de aplicação da lei processual penal no tempo. O Tribunal tem entendido que o princípio da aplicação da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido (artigo 29.º, n.º 4, da CRP) não se restringe à aplicação da lei penal substantiva (entre outros, Acórdãos n.ºs 247/2009 e 551/2009, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt, e indicações doutrinais aí contidas). Como o direito ao recurso é uma das mais relevantes garantias de defesa do arguido e as questões de constitucionalidade que importava apreciar tinham a ver com a sucessão no tempo de normas sobre a recorribilidade de decisões, um dos parâmetros de aferição da conformidade constitucional das normas em causa foi precisamente o artigo 29.º, n.º 4, da CRP. Há que salvaguardar o conteúdo da garantia conferida pelo princípio da aplicação da lei penal de conteúdo mais favorável, de onde resulta que não deve aplicar-se a nova lei processual penal num processo pendente, sempre que da nova lei resulte um agravamento da posição processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa.
5. Segundo o acórdão recorrido, “não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”, pelo que só é “admissível recurso de decisão confirmatória da relação no caso de a pena aplicada ser superior a 8 anos de prisão, quer estejam em causa penas parcelares ou singulares quer penas conjuntas ou únicas resultantes de cúmulo”. E assim sendo, “certo é ser irrecorrível a decisão impugnada no que respeita às penas parcelares aplicadas” (itálico aditado), uma vez que são não superiores a 8 anos de prisão.
Dispondo a alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP que “não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos” (itálico aditado), é de concluir que a norma aplicada pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, ultrapassa o sentido possível das palavras da lei. Na verdade, a norma segundo a qual não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância, na parte que se refira a penas de prisão parcelares não superiores a 8 anos – aplicada na decisão recorrida – ultrapassa a moldura semântica daquele texto.
A norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, ao prever que não seja admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos, constitui uma exceção ao princípio geral da recorribilidade dos acórdãos, das sentenças e dos despachos, cuja irrecorribilidade não esteja prevista na lei (artigo 399.º do mesmo Código). Deve, por isso, o intérprete ater-se ao texto “acórdãos condenatórios”, o qual aponta inequivocamente para a decisão no seu todo. Nas alíneas d), e) e f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP integra o critério da inadmissibilidade de recurso a natureza dos acórdãos, proferidos em recurso, pelas relações, atento o dispositivo da decisão (cf. artigo 374.º, n.º 3, alínea b) do CPP). Isto é: acórdãos absolutórios ou condenatórios (acórdãos que apliquem pena), no seu todo. São estes, e não uma parte deles, que são ou não irrecorríveis, ressalvado o que se dispõe no n.º 2 do artigo 400.º relativamente à indemnização civil, prevendo-se aí, de forma expressa, a inadmissibilidade do recurso quanto a uma parte da decisão. O que se harmoniza, de resto, com o critério de acesso ao segundo grau de recurso seguido pelo legislador em 2007 – o critério da gravidade da condenação penal em 2.ª instância. No que se refere aos casos denominados de “dupla conforme condenatória”, não são recorríveis os acórdãos que apliquem pena de prisão até 8 anos, corresponda ela à condenação por um único crime ou à condenação por vários crimes em concurso.
Como não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a oito anos pela prática de um único crime, o tribunal recorrido conclui – através de um argumento de semelhança – que, então, não é também recorrível a parte do acórdão condenatório (proferido, em recurso, pelas relações que confirme decisão de 1.ª instância e aplique pena única de prisão superior a oito anos) que se refira às penas parcelares inferiores a oito anos de prisão. É criada uma outra exceção à regra da recorribilidade das decisões, que coloca o intérprete no âmbito da analogia constitucionalmente proibida, sendo indiferente que a norma encontrada fora da moldura semântica do texto seja constitucionalmente admissível e político-criminalmente defensável, uma vez que a liberdade dos cidadãos está acima das exigências do poder punitivo nas situações legalmente imprevistas. Um processo criminal que assegure todas as garantias de defesa, garante a proteção que é devida ao destinatário das normas sobre recorribilidade de decisões condenatórias, que deverá poder prever as condições do exercício do direito ao recurso, e, concomitantemente, que é o legislador quem decide sobre os graus de jurisdição.
6. É de concluir, pois, pela inconstitucionalidade do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal (CPP), na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal (artigos 29.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP).
E sendo, afinal, recorrível o acórdão condenatório, no seu todo, não é sequer equacionável a violação do princípio constitucional non bis in idem (artigo 29.º, n.º 5, da Constituição) na parte que se refere às penas parcelares.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional o artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal (CPP), na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal (artigos 29.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).
b) Conceder provimento ao recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 5 de dezembro de 2012.- Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria Lúcia Amaral – J. Cunha Barbosa (vencido de acordo com a declaração que junto) – Joaquim de Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido porquanto, sem colocar em crise a doutrina desenvolvida no acórdão relativamente à extensão do princípio da legalidade ao processo penal, se me afigura que, no caso sub juditio, não ocorre uma situação de analogia proibida justificadora de tal extensão, já que não é evidente que a 'norma' alcançada pela decisão recorrida, em função da atividade hermenêutica nela desenvolvida, não tenha um sentido cabível no texto da lei - alínea f) do artigo 400.º do Código de Processo Penal - (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, à Luz da Constituição da República e da Convenção dos Direitos do Homem, 4.ª edição atualizada, página 1046. nota 11), para além de que tal interpretação normativa não retira efeito útil ao recurso (cfr. Acórdão n.º 649/2009), nem é estranha à teleologia do regime recursivo em processo penal vigente a partir da Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, a que foram introduzidas alterações pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, no sentido de restringir o recurso de segundo grau para o STJ, como se alcança da 'exposição de motivos' das respetivas Propostas de Lei subjacentes aos citados diplomas legais.
Daí que conclua que a operação a realizar pelo Tribunal fosse tão só a de ponderar a 'norma' alcançada pela interpretação normativa levada a cabo na decisão recorrida e à luz do artigo 32.º, n.º 1 da Constituição, que já não do seu artigo 29.º, n.º 1 e 2, e, em consequência, ser julgada não inconstitucional, tendo em conta a significativa jurisprudência do Tribunal relativamente a esta matéria, negando-se, portanto, provimento ao recurso.- J. Cunha Barbosa.
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