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Processo n.º 476/12
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, em que é recorrente a Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de A. e são recorridos o Ministério Público, B., C., S.A. e D., Unipessoal, Ld.ª, foi interposto o presente recurso, ao abrigo das alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 16 de fevereiro de 2012.
2. Pela Decisão Sumária n.º 432/2012, decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto. Tal decisão tem a seguinte fundamentação:
«O presente recurso foi interposto ao abrigo das alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
1. De acordo com a alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Suscitação que há de ter ocorrido de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (artigo 72.º, n.º 2, da LTC). Requisito que não se pode dar como verificado nos presentes autos.
Em resposta ao convite que lhe foi formulado nos termos do artigo 75.º-A, n.º 6, da LTC, a recorrente indicou como norma a apreciar por este Tribunal «a resultante das disposições conjugadas dos números 1 e 2 do artigo 821.º, do artigo 827.º, da alínea a, do número 1 do artigo 909.º, do Código de Processo Civil e dos números 1 e 2 do artigo 291º, do Código Civil, e do número 1 do artigo 3.º e número 5 do artigo 101.º, do Código de Registo Predial, quando interpretada no sentido de que “os bens de quem não é devedor executado no processo podem ser objeto de venda, não sendo permitida ao proprietário a defesa da sua propriedade, em caso de venda judicial e aquisição da propriedade do bem por terceiro de boa-fé, em execução não movida contra o verdadeiro devedor». Sucede, porém, que nas passagens da peça processual indicada em cumprimento da segunda parte do n.º 2 do artigo 75.º-A da LTC não foi questionada, de todo, a constitucionalidade da norma indicada pela recorrente. Nem tão-pouco na peça processual globalmente considerada.
Com efeito, se, por um lado, questiona a constitucionalidade de uma decisão judicial (14.ª conclusão), por outro, não identifica a interpretação normativa cuja constitucionalidade pretendia questionar (17.ª conclusão). Justifica-se, por isso, a prolação da presente decisão (artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC).
2. Sendo o recurso interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, constitui um ónus do recorrente identificar, no requerimento de interposição, a decisão do Tribunal Constitucional ou da Comissão Constitucional que, com anterioridade, julgou inconstitucional a norma aplicada pela decisão recorrida (artigo 75.-ºA, n.º 3, da LTC).
Apesar de convidada a prestar esta indicação, a recorrente continua a não satisfazer este requisito. Reconhece até que não encontrou jurisprudência atinente à norma cuja apreciação pretende, pelo que há que concluir também pelo não conhecimento do objeto do recurso, interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o que justifica a prolação da presente decisão sumária (artigo 78º-A, nº 2, da LTC)».
3. A recorrente vem agora reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, com os seguintes fundamentos:
«1º
Com todo o respeito, a decisão reclamada não apreciou corretamente o requerimento de interposição de recurso, uma vez que nele foram indicados os normativos legais violados pelo Tribunal recorrido, as normas jurídicas violadas e o douto Acórdão do Tribunal Constitucional anteriormente proferido, designadamente a norma 909º do CPC, artº 5º do CRP, 291º e 1306º do Código Civil, por violação dos artigos 20º e 62º da Constituição, nos termos do Acórdão do Tribunal Constitucional já indicado nº 287/2003.
2º
A recorrente interpôs recurso do Acórdão da Relação de Guimarães, que não reconheceu à recorrente o direito de anular a venda efetuada no processo de execução nº 414/97 do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Esposende, apesar de o título executivo constituído por uma escritura de hipoteca, ter sido anulada pelo Tribunal Judicial de Viana do Castelo, em processo intentado contra o exequente, o Banco Crédito Predial Português.
3º
A sentença anulou o título dado à execução contra a executada e posteriormente falecida A., tendo porém sido vendidos os bens da executada apesar de o exequente não ser seu credor.
4º
Decidindo o acórdão que os compradores são compradores de boa fé para efeitos do registo predial, nos termos do artº 5º do CR Predial e que a ação não foi registada, sendo tal decisão proferida numa interpretação dos aludidos normativos em manifesto desacordo com o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 3/99 de 18-5-99 e publicado no DR em 10-7-99.
5º
Os direitos de terceiro adquirente não são todavia reconhecidos se ação for proposta e registada dentro dos 3 anos anteriores à conclusão do negócio, conforme determina o nº 2 do artº 291º do CC esclarecendo-se que a referida ação foi intentada anos antes da venda na execução.
6º
E ainda entendeu que a Herança Ilíquida ora recorrente não tem direito a pedir a anulação da venda, uma vez que esta só pode ficar sem efeito nos casos previstos no artº 909º do CPC e a situação invocada pela recorrente não está aí prevista (violando assim a proibição da indefesa p. no artº 20º da CRP e no já citado Ac. Deste Tribunal Constitucional, em que curiosamente, era reclamante um dos aqui interessados).
7º
O recurso para este douto Tribunal foi interposto com fundamento na inconstitucionalidade da decisão recorrida por violação do principio do direito à defesa e por violação do direito de propriedade – princípios consagrados nos artigos 20º e 62º da CONSTITUIÇÃO.
8º
A recorrente respondeu ao convite formulado pelo Exm. Sr. Juiz Relator, para efeitos do artº 75º-A - nº 6 LTC , alegando que sobre o caso dos autos não foi encontrado ainda uma acórdão, por manifesto lapso, porquanto o mesmo acórdão já tinha sido citado em devido tempo, para efeitos deste recurso.
9º
Por conseguinte, só por manifesto lapso, foi a Reclamante convidada a aperfeiçoar o seu pedido de recurso, porquanto, foram indicadas expressamente as normas jurídicas sobre as quais se pretende a apreciação neste recurso, e bem como se indicaram as normas constitucionais violadas, e princípios constitucionais e o acórdão anteriormente proferido.
10º
Todas as normas supra referidas, são inconstitucionais, porquanto segundo o acórdão recorrido, não permitem defender o direito de propriedade que pertence à recorrente, impedindo a defesa do executado, ou seja a proibição de indefeso, proclamada pelo douto Tribunal em diversos acórdãos entre eles, o acórdão Supra citado.
11º
Tal interpretação dada aos citados normativos legais ou eles mesmos, a ser assim como o Tribunal recorrido entendeu, conduz a uma flagrante injustiça, à total impossibilidade de a reclamante defender os seus direitos de propriedade, num Estado de Direito Democrático, em que o Direito de Propriedade é considerado constitucionalmente como um Direito natural, permite a possibilidade de um credor executar alguém que não é seu devedor, mesmo fora dos casos previstos no artº 821 º nº 2, sem que o Tribunal (ou a Lei), órgão legal destinado à defesa do cidadão lesado, garanta a defesa os seus direitos!
12º
Situação que não seria mais que a derrogação da própria Justiça.
13º
Alega o Exmo Sr. Relator no douto despacho em reclamação que o recurso intentado ao abrigo da alínea g) do nº1 do artº 70º da LTC, constitui um ónus do recorrente identificar, no requerimento de interposição, a decisão recorrida que com anterioridade julgou inconstitucional a norma aplicada pela decisão recorrida, no entanto, como supra se referiu, tudo foi oportunamente alegado e referido, não passando de um lapso, referir na resposta que se desconhecia o acórdão sobre tal matéria.
Deste modo, não pode ser deixar de tomar conhecimento do objeto do presente recurso,
Devendo V. Exªs admitir em conferência, devendo ser procedente a presente reclamação, e nos termos do disposto no artº 78º-A da LTC, ser a reclamante notificada para apresentar as alegações».
4. Os recorridos foram notificados da presente reclamação.
O Ministério Público veio dizer o seguinte:
«1º
Pela douta Decisão Sumária n.º 432/2012, não se tomou conhecimento do recurso que vem interposto ao abrigo das alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
2º
Quando o recurso é interposto ao abrigo da alínea g), a recorrente, no requerimento de interposição do recurso, tem de identificar a decisão do Tribunal Constitucional que “com anterioridade, julgou inconstitucional a norma aplicada pela decisão recorrida” (artigo 75.º-A, n.º 3, da LTC).
3º
Não tendo sido cumprido aquele ónus, a Exma Senhora Conselheira Relatora convidou a recorrente a prestar essa informação.
4º
Como apesar desse convite a recorrente continuou a não indicar qualquer decisão do Tribunal Constitucional, naturalmente que não se podia conhecer do recurso, como muito bem se decidiu na douta Decisão Sumária.
5.º
Aliás, mesmo após a apresentação da presente reclamação, continua a desconhecer-se esse elemento.
6.º
Quanto ao recurso interposto ao abrigo da alínea b), cotejando a dimensão normativa que a recorrente identificou como objeto do recurso após o convite que lhe foi formulado, com o que afirmou nas conclusões 14.ª e 17.ª das Alegações do recurso que interpôs para a Relação de Guimarães - local onde, segundo ela, suscitou a questão –, facilmente se conclui que a inconstitucionalidade daquela dimensão normativa não foi adequadamente suscitada “durante o processo”.
7.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação».
O recorrido B. respondeu concluindo pelo indeferimento da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
O presente recurso foi interposto ao abrigo das alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
1. No que se refere ao recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, decidiu-se não tomar conhecimento do seu objeto por não se poder dar por verificado o requisito da suscitação prévia e de forma adequada da questão de inconstitucionalidade posta a este Tribunal.
A presente reclamação em nada contraria este fundamento. O reclamante sustenta apenas que indicou a norma cuja apreciação pretendia, sendo certo que o fundamento da decisão reclamada não foi a não satisfação de um dos requisitos do artigo 75.º-A da LTC.
Com efeito, o recorrente não questionou previamente e de forma adequada a constitucionalidade da norma «resultante das disposições conjugadas dos números 1 e 2 do artigo 821.º, do artigo 827.º, da alínea a, do número 1 do artigo 909.º, do Código de Processo Civil e dos números 1 e 2 do artigo 291.º, do Código Civil, e do número 1 do artigo 3.º e número 5 do artigo 101.º, do Código de Registo Predial, quando interpretada no sentido de que “os bens de quem não é devedor executado no processo podem ser objeto de venda, não sendo permitida ao proprietário a defesa da sua propriedade, em caso de venda judicial e aquisição da propriedade do bem por terceiro de boa-fé, em execução não movida contra o verdadeiro devedor». Quando recorreu para o Tribunal da Relação de Guimarães se, por um lado, questionou a constitucionalidade (e a legalidade) de uma decisão judicial, concluindo que «o douto despacho em crise, violou o disposto no art.º 821.º, 827.º, 838.º, 908.º, 909, designadamente a aliena d), 910.º, 911.º 916.º, 919 – 1.º in fine , CPC e ainda do art.º 62 do CRP que determina como direito fundamental e inviolável o direito de propriedade privada» (14.ª conclusão); por outro, não identificou a interpretação normativa que tinha por inconstitucional, quando concluiu que «o artigo 291.º do Código Civil, devidamente compaginado com as normas do Código de registo predial aplicáveis acima aludidas (os artigo 3.º n.º 2, e o 101.º n.º 5 – este na sua atual redação), na interpretação que o Tribunal delas faz, é inconstitucional por violação, à vez, dos artigos 20.º e 62.º da Constituição da República» (17.ª conclusão).
Há que confirmar, por conseguinte, esta parte da decisão reclamada.
2. No que diz respeito ao recurso interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LCT, a decisão reclamada concluiu que o então recorrente não identificou, no requerimento de interposição de recurso, a decisão do Tribunal Constitucional ou da Comissão Constitucional que, com anterioridade, tenha julgado inconstitucional a norma aplicada pela decisão recorrida (artigo 75.-ºA, n.º 3, da LTC).
Argumenta agora a reclamante que “foi oportunamente alegado e referido” o Acórdão n.º 287/2003 do Tribunal Constitucional e que só por lapso referiu que desconhecia acórdão sobre a matéria, quando respondeu ao convite para aperfeiçoar o requerimento de interposição de recurso. Esta argumentação não apaga, porém, a circunstância de não ter cumprido um dos ónus que o n.º 3 do artigo 75.º-A da LTC impõe a quem recorre ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. E não o cumpriu quer no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade quer no aperfeiçoamento do mesmo (fls. 122 e s. e 146 e ss. dos presentes autos). É de reiterar, por isso, o juízo formulado na decisão reclamada quanto a esta questão.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 5 de dezembro de 2012.- Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria Lúcia Amaral.
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