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Processo n.º 367/11
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Por decisão da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) o A., S.A. (A.) foi condenado, em processo de contraordenação por infrações relativas à comunicação ou divulgação de informação não completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita, previstas na alínea a) do n.º1 do artigo 389.º do Código de Valores Mobiliários (CdVM) no pagamento de diversas coimas. Inconformado, o A. impugnou a deliberação no Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, que julgou em parte procedente o recurso. Ainda inconformado, o A. recorreu para a Relação de Lisboa que, por acórdão de 6 de abril de 2011, julgou improcedente o recurso, confirmando integralmente a sentença recorrida.
Decidiu a Relação, para o que agora releva, o seguinte:
“Inconstitucionalidade da atual versão do artigo 389º nº 1 e 2, do CdVM.
Alegou e concluiu o recorrente que:
- “Os tipos contraordenacionais devem revelar-se certos e determinados, (...) exigindo-se ao legislador um juízo de proporcionalidade que se divide em dois sentidos: um primeiro sentido, que diz respeito à avaliação da congruência entre o desvalor de uma determinada infração e o desvalor (o quantum) da sanção que lhe é associada (proporcionalidade absoluta); e um segundo sentido, que diz respeito à congruência entre a sanção prevista para uma determinada conduta e o seu horizonte normativo, ou seja, as opções normativas constitutivas de todo o sistema jurídico (proporcionalidade relativa)”.
Mais conclui o recorrente, que o artº 389º n.º 1 al. a) do CdVM ao prever que a prestação de toda e qualquer informação sem as qualidades referidas na própria é punida com coima, sem identificar e delimitar o agente, objeto, natureza e/ou os efeitos sobre o mercado dessa mesma informação, o referido artº 389º, nº 1, alínea a), do CdVM, “se revela excessivamente indeterminado, não assegurando a certeza que é exigida pelo artigo 29º da Constituição da República Portuguesa, pelo que revela uma norma materialmente inconstitucional”, (...) por violação do princípio da necessidade da punição e do princípio da proporcionalidade da punição, quer no seu sentido relativo, quer no seu sentido absoluto, ambos previstos no artigo 18º, nº 2, da CRP, violando igualmente o princípio da culpa, previsto no artigo 1º e 27º da CRP e o princípio da igualdade, previsto no artigo 13º da Lei fundamental. No fundo, invoca a indeterminação da norma e a falta de proporcionalidade.
A argumentação expendida pelo recorrente, não só nas conclusões, como na motivação, sobre a alegada inconstitucionalidade material do artº 389º do CdVM, salvo o devido respeito, constitui um derradeiro ensaio dialético inconsistente, com vista ao afastamento da imputação objetiva e subjetiva das contraordenações pelas quais foi condenado.
Porém, também aqui sem razão.
A conjugação das normas dos artº 389º nº 1 al. a) (enquadrado no capítulo dos ilícitos de mera ordenação social e secção dos ilícitos em especial) e art. 7º (inserido no capítulo da informação das disposições gerais) do CdVM, reportando-se aquele à informação e este, à qualidade da informação, levam-nos sem esforço à conclusão de que não há falta de determinação da norma, dado que o seu âmbito de aplicação é garantido pela dupla conexão, normativa e temática e o conceito de informação é claro e preciso.
Como já atrás referimos, decorre das normas em causa que o legislador pretendeu salvaguardar a segurança do investimento e a confiança no mercado, que são “condições essenciais ao regular funcionamento deste, pois delas depende a decisão do investidor no sentido de aplicar nele as suas poupanças”
O artigo 388º, n.º 1, al. a), do CdVM não distingue, efetivamente, limites mínimos e máximos das coimas aplicáveis em razão da qualidade singular ou coletiva dos agentes da infração. Mas tal omissão, situada no âmbito do poder discricionário, constituiu uma opção do legislador, que na ponderação dos bens jurídicos em causa, decidiu relegar para o momento da determinação da medida concreta da sanção a obrigatoriedade de ser considerada a natureza singular ou coletiva do infrator, para além das circunstâncias referidas no artº 405º, nº 1 a 3, do CdVM, sobre a determinação da sanção aplicável.
A opção dogmática de que partiu o legislador do CdVM foi a de qualificar determinadas contraordenações como “muito graves”, e de seguida tipificar as condutas ou atuações, de pessoas singulares ou coletivas que as podem integrar; uma delas é a “violação dos deveres de informação”, nos termos em que procedeu o recorrente.
Tendo em conta a conjugação das normas citadas, não vemos que a não distinção da qualidade singular ou coletiva do agente constitua qualquer violação dos princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade, pois na determinação concreta da punição terão de ser sempre consideradas as circunstâncias expressamente previstas no artº 405º, n.º 1 a 3, do CdVM, de forma ponderada e diferenciada.
Na apreciação da invocada inconstitucionalidade do artº 389º do CdVM, não podemos ignorar o papel fundamental da CMVM, que tem como principais incumbências a regulamentação, supervisão, fiscalização e promoção dos mercados de valores mobiliários e a obrigação de zelar pelo bom funcionamento dos mercados, nomeadamente no que concerne à sua transparência, sem a qual não existiria confiança por parte dos agentes económicos. É imperativo que as entidades bancárias cumpram com rigor as suas obrigações, no que toca à prestação de informação à CMVM, que deve ser “completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita”, (cfr. artº 7º nº 1 e 389º nº 1 al. a) do CdVM). A tese do recorrente, a ser levada em conta, conduziria a que o papel desta entidade reguladora fosse meramente decorativo.
Mais do que isso, a sua tese é que se afigura ferida de inconstitucionalidade, tendo em conta que os mercados e o sistema financeiro são valores que, pela sua importância, revestem dignidade e proteção constitucional, como decorre do disposto nos artº 81º e 101º da CRP.
No artº 81º al. f), prevê-se o funcionamento eficiente dos mercados e nesse contexto, designadamente, a repressão de práticas lesivas do interesse geral como incumbências prioritárias do Estado; por seu turno, o artº 101.º obriga a que o sistema financeiro seja estruturado por lei de modo a garantir a formação, a captação e a segurança das poupanças, bem como a aplicação dos meios financeiros necessários ao desenvolvimento económico e social.
Esta norma comporta uma abrangente e forte intervenção da entidade reguladora (CMVM) em matéria de supervisão das entidades financeiras, o que inteiramente se compreende e se justifica, basta atentarmos na génese da atual crise financeira mundial, para concluirmos que talvez se justifique o reforço de poderes das entidades supervisoras ou pelo menos atribuir maior eficácia prática às suas decisões, dotando os ordenamentos jurídicos de leis claras e libertas de mecanismos ínvios, que permitem o obscurecimento da verdade económica, como acontece com o recurso frequente das entidades bancárias, entre elas o recorrente, as sociedades offshore, com todas as consequências negativas que daí advêm para a transparência da vida económica.
Como referem os Prof. Gomes Canotilho e Vital Moreira, o artº 101.º al. f) da CRP, (...) constitui uma amplíssima credencial constitucional para a intervenção, regulação e supervisão pública das atividades financeiras, com as necessárias limitações restrições da liberdade económica nesta área, com a extensão e a intensidade que os interesses em causa podem justificar (desde a autorização administrativa para a entrada na atividade até, no limite, a intervenção na gestão das instituições financeiras). De resto não estão aqui em causa somente valores constitucionais ligados à estabilidade financeira e ao desenvolvimento económico e social mas também a proteção dos direitos dos aforradores e investidores e clientes das instituições financeiras, a começar pelo seu direito de propriedade.”.
Citado pelo Ministério Público na resposta ao recurso, não podemos deixar de salientar também a passagem do autor Paulo Câmara, (…) a maximização de informação constitui uma trave mestra do sistema de governação dos emitentes. (...). As regras sobre informação procuram servir uma quádrupla função: prosseguir objetivos de proteção dos investidores, de robustecimento da governação, de defesa do mercado e de prevenção de ilícitos”.
Mais refere ainda lucidamente o autor que: “a transparência das decisões empresariais e a divulgação imediata dos indicadores de desempenho servem de base para o escrutínio da gestão e, com isso, favorecem o efeito disciplinador do mercado de capitais”.
“Os deveres de informação dos emitentes de valores mobiliários representam a pedra angular do sistema jurídico-mobiliário”.
2. É deste acórdão que o A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC (Lei n.º 28/82 de 15 de novembro) em requerimento do seguinte teor:
“ A. S.A. (adiante A.), Arguido e Recorrente nos autos à margem identificados, tendo sido notificado do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 6 de abril de 2011, Vem, ao abrigo do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), n.º 2 e n.º 3, 72.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, 75.º e 75.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, a Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (abreviadamente LTC), interpor recurso para o Tribunal Constitucional do citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 6 de abril de 2011, o qual deve subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, o que faz nos termos e com os seguintes fundamentos:
1. Normas cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie:
a) a norma constante do artigo 389.º. n.º 1, alínea a), do CdVM, ao prever que a prestação de toda e qualquer informação sem as qualidades referidas no próprio artigo 389.º, n.º 1, alínea a), do CdVM, é punida com coima, sem identificar e delimitar o agente, objeto, natureza e/ou os efeitos sobre o mercado dessa mesma informação.
O Acórdão recorrido aplicou efetivamente a referida norma, pois a mesma consubstancia o tipo contraordenacional pelo qual o arguido foi acusado e condenado (cfr. pág. 1 e 2 da sentença). Assim, ao confirmar a condenação do arguido, necessariamente, o Acórdão recorrido aplicou a referida norma (veja-se, também, sem margem para dúvidas, pág. 122 do Acórdão recorrido).
O Acórdão recorrido enfrenta diretamente esta questão de inconstitucionalidade tempestivamente suscitada – fazendo-o em termos que o arguido não considera corretos – ao alegar que «não há falta de determinação da norma, dado que o seu âmbito de aplicação é garantido pela dupla conexão, normativa e temática e o conceito de informação é claro e preciso» (cfr. pág. 130 do Acórdão recorrido).
b) a norma constante do artigo 389º, n.º 1, alínea a), do CdVM, ao prever que toda e qualquer prestação de informação sem qualidade traduz, independentemente de quem a presta e do objeto, natureza e/ou efeitos sobre o mercado dessa mesma informação, uma contraordenação «muito grave».
O Acórdão recorrido aplicou efetivamente a referida norma, pois a mesma consubstancia o tipo contraordenacional pelo qual o arguido foi acusado e condenado (cfr. pág. 1 e 2 da sentença). Assim, ao confirmar a condenação do arguido, necessariamente, o Acórdão recorrido aplicou a referida norma (veja-se, também, sem margem para dúvidas, pág. 122 do Acórdão recorrido).
O Acórdão recorrido enfrenta diretamente esta questão de inconstitucionalidade tempestivamente suscitada – fazendo-o em termos que o arguido não considera corretos – ao alegar que «a opção dogmática de que partiu o legislador do CdVM foi a de qualificar determinadas contraordenações como ‘‘muito graves”, e de seguida tipificar as condutas ou atuações, de pessoas singulares ou coletivas que as podem integrar, uma delas é a “violação dos deveres de informação”, nos termos em que procedeu o recorrente» (cfr. pág. 130 do Acórdão recorrido).
c) a norma do artigo 360.º, n.º 1, alínea f) do CdVM, interpretada no sentido de que a CMVM, enquanto autoridade reguladora e de supervisão, pode dar ordens que coloquem o Arguido na situação de, inevitavelmente e em alternativa, confessar a prática de um ilícito, incorrer na prática de um crime ou incorrer na prática de uma contraordenação.
Nesse sentido, por um lado, o Acórdão recorrido reconhece expressamente que «o segundo caso (comunicado de 23 de dezembro de 2007)» resultou de um «pedido da entidade supervisora». Por outro lado, afirma expressamente que «o recorrente tinha plena consciência de que na primeira vez prestara a informação referida, a mesma não correspondia à verdade e ainda assim, ao ser questionado, com vista à informação do mercado, sobre a mesma realidade, podendo corrigir o erro e assim prestar informação verdadeira, decidiu voltar a confirmar o que sabia não ser verdadeiro». Ou seja, de acordo com o Acórdão recorrido [rectius, de acordo com a interpretação por si realizada daquele artigo 360.º, n.º 1, alínea f) do CdVM], a CMVM pode dar ordens aos supervisionados que, pelo menos em tese, os coloquem na situação de confessar um ilícito anterior ou praticar novo ilícito.
d) a norma que resulta dos artigos 54.º, nºs 1 e 2, 50º, 43.º e 58.º, todos do RGCOC, quando interpretados no sentido de considerar que, nos processos contraordenacionais, a fase de investigação, e com ela as atividades de obtenção de prova, fora de casos de flagrante delito ou de manifesta simplicidade de provas, e iniciada após notícia do ilícito contraordenacional, pode ser realizada pelas entidades administrativas fora da existência de um processo contraordenacional formalmente instaurado – sujeito aos princípios constitucionais aplicáveis e aos regimes jurídico-processuais concretamente aplicáveis – e, por conseguinte, que a sua inexistência ou a sua realização fora daquele não geram a sua nulidade absoluta, insanável, invocável a todo o tempo e de conhecimento oficioso, com a impossibilidade absoluta de sustentar qualquer acusação ou decisão final com base nas provas obtidas.
Nesse sentido, o acórdão recorrido afirma expressamente o seguinte: «o processo de contraordenação no âmbito do CdVM possui duas fases: a administrativa e a judicial. Na fase administrativa destrinçamos três sub-fases: recolha de elementos no âmbito dos poderes de supervisão (artigo 360 e 361 do (CdVM,); a defesa (artigo 50.º RGCOC); e a decisão (artigo 58 do RGCOC,). Daqui se pode concluir que não faz o menor sentido invocar a falta de inquérito, por estarmos em âmbitos completamente diferentes e nenhuma norma legal existe no RGCOC e no CdVM que imponham exigência» (cfr. pág. 149 do Acórdão recorrido).
Ora, só pode isto significar que o Tribunal interpretou o artigo 54.º, n.º 1 e 2, do RGCOC, no sentido de que a atividade de investigação e obtenção de prova, em processo de contraordenação, pode ser realizada pelas entidades administrativas fora da existência de um processo contraordenacional formalmente instaurado, podendo as mesmas, conforme diz expressamente o Tribunal, ser realizadas «no âmbito dos poderes de supervisão».
e) a norma extraída dos artigos 360º, n.º 1, alínea e), 361º, n.º 2, 381.º 389.º. n.º 3, alíneas b) e c). 401.º 1, n.º 1 e 408.º, n.º 1, do CdVM, 33º n.º 1, 41.º, n.º 2, e 54.º n.º 2, do RGCOC, 125.º. 126º, n.º 1 e 2, alínea a), n.º 3. 241º, e 262.º do CPP, interpretados no sentido de que a CMVM, enquanto Autoridade Administrativa reguladora e supervisora, pode acusar e condenar uma pessoa coletiva sujeita à sua supervisão com base em provas, nomeadamente documentos, obtidas dessa mesma pessoa coletiva no âmbito de um procedimento de supervisão de caráter não sancionatório, ao abrigo dos seus poderes de supervisão e sob a cominação implícita da prática de uma contraordenação, nos termos do artigo 389.º, n.º 3, alíneas b) e c) do CdVM – ou outras imputáveis à luz do mesmo Código –, ou de um crime de desobediência, previsto no artigo 381.º do CdVM, já depois de aquela entidade ter tido noticia de factos com eventual relevância contraordenacional, mas sem que tenha instaurado o respetivo processo contraordenacional e sem que tenha informado a visada de que era suspeita da prática de atos ilícitos contraordenacionais e/ou que estava a investigar a prática de factos ilícitos contraordenacionais.
A este propósito, é necessário referir que o Tribunal recorrido enfrentou expressamente a referida questão de inconstitucionalidade, entre o mais, nos seguintes termos: «tendo em conta os princípios de supervisão (art. 358.º do CdVM), procedimentos de supervisão (art. 360.º do CdVM) e o exercício dessa mesma supervisão (art. 361.º do CdVM), dúvidas não restam que existe uma clara limitação ou restrição do princípio “nemo tenetur se ipsum accusare” que deve ceder perante o regime previsto no CdVM, que tem acolhimento constitucional expresso, como acima referimos. Tal restrição é manifestamente extensiva a toda a fase de recolha e análise de documentação que a entidade bancária está obrigada a entregar à entidade supervisora, seja por mera rotina, seja a pedido desta» (cfr. pág. 143 do Acórdão recorrido).
2. Normas e princípios constitucionais que se considera terem sido violados:
a) a norma constante do artigo 389º, n.º 1, alínea a), do CdVM, ao prever que a prestação de toda e qualquer informação sem as qualidades referidas no próprio artigo 389.º, n.º 1, alínea a), do CdVM, é punida com coima, sem identificar e delimitar o agente, objeto, natureza e/ou os efeitos sobre o mercado dessa mesma informação, conforme referido no ponto 1, alínea a), supra, aplicada pelo Acórdão recorrido, ao não assegurar o caráter certo e determinado do tipo contraordenacional, viola assim o artigo 29.º, nºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa.
b) a norma constante do artigo 389.º. n.º 1, alínea a), do CdVM, ao prever que toda e qualquer prestação de informação sem qualidade traduz, independentemente de quem a presta e do objeto, natureza e/ou efeitos sobre o mercado dessa mesma informação, uma contraordenação «muito grave», conforme referido no ponto 1, alínea b), supra, aplicada pelo Acórdão recorrido, viola o princípio da necessidade da punição e o princípio da proporcionalidade da punição, quer no seu sentido relativo, quer no seu sentido absoluto, ambos previstos no artigo 18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, violando igualmente o princípio da culpa, previsto no artigo 1.º e 27.º da Constituição da República Portuguesa, e o princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.
c) a norma do artigo 360.º, n.º 1, alínea f) do CdVM, interpretada no sentido de que a CMVM, enquanto autoridade reguladora e de supervisão, pode dar ordens que coloquem o Arguido na situação de, inevitavelmente e em alternativa, confessar a prática de um ilícito, incorrer na prática de um crime ou incorrer na prática de uma contraordenação, conforme referido no ponto 1, alínea c), supra, aplicada pelo Acórdão recorrido, viola os direitos à presunção de inocência, ao silêncio e à não autoincriminação, bem como o princípio do Estado de Direito Democrático, decorrentes do artigo 6.º da CEDH, do artigo 14.º do PIDCP e dos artigos 2.º, 20º, n.º 1 e 4, 26º e 32.º, n.º 1, 2, 5, 8 e 10 da CRP.
d) a norma que resulta dos artigos 54º, n.º 1 e 2, 50.º, 43.º e 58.º, todos do RGCOC, quando interpretados no sentido de considerar que, nos processos contraordenacionais, a fase de investigação, e com ela as atividades de obtenção de prova, fora de casos de flagrante delito ou de manifesta simplicidade de provas, e iniciada após noticia do ilícito contraordenacional, pode ser realizada pelas entidades administrativas fora da existência de um processo contraordenacional formalmente instaurado – sujeito aos princípios constitucionais aplicáveis e aos regimes jurídico-processuais concretamente aplicáveis – e, por conseguinte, que a sua inexistência ou a sua realização fora daquele não geram a sua nulidade absoluta, insanável, invocável a todo o tempo e de conhecimento oficioso, com a impossibilidade absoluta de sustentar qualquer acusação ou decisão final com base nas provas obtidas, conforme referido no ponto 1, alínea d), supra, aplicada pelo Acórdão recorrido, viola o disposto nos artigos 2.º, 20º, n.º 1 e 4, 26º e 32.º, n.º 1, 2, 5, 8 e 10, da Constituição da República Portuguesa.
e) a norma extraída dos artigos 360.º. n.º 1, alínea e). 361.º, n.º 2, 381.º 389.º, n.º 3, alíneas b) e c), 401.º 1, n.º 1 e 408.º. n.º 1, do CdVM, 33.º, n.º 1, 41.º, n.º 2. e 540, n.º 2, do RGCOC, 125.º, 126º, n.º 1, e 2, alínea a), n.º 3, 241.º, e 262.º do CPP, interpretados no sentido de que a CMVM, enquanto Autoridade Administrativa reguladora e supervisora, pode acusar e condenar uma pessoa coletiva sujeita à sua supervisão com base em provas, nomeadamente documentos, obtidas dessa mesma pessoa coletiva no âmbito de um procedimento de supervisão de caráter não sancionatório, ao abrigo dos seus poderes de supervisão e sob a cominação implícita da prática de uma contra?ordenação, nos termos do artigo 389º, n.º 3, alíneas b) e c) do CdVM – ou outras imputáveis à luz do mesmo Código –, ou de um crime de desobediência, previsto no artigo 381.º do CdVM, já depois de aquela entidade ter tido noticia de factos com eventual relevância contraordenacional mas sem que tenha instaurado o respetivo processo contraordenacional e sem que tenha informado a visada de que era suspeita da prática de atos ilícitos contraordenacionais e/ou que estava a investigar a prática de factos ilícitos contraordenacionais, conforme referido no ponto 1, alínea e), supra, aplicada pelo Acórdão recorrido, viola os direitos à presunção de inocência, ao silêncio e à não autoincriminação, bem como o princípio do Estado de Direito Democrático, decorrentes do artigo 6.º da CEDH, do artigo 14.º do PIDCP e dos artigos 2.º, 20.º, n.º 1 e 4.º, 26.º, n.º 1, 32.º, n.º 1, 2, 5, 8 e 10, da Constituição da República Portuguesa.
3. Peça processual em que foram suscitadas as questões de constitucionalidade:
a) A questão de constitucionalidade referida no ponto 1, alínea a), supra, foi suscitada nos artigos 433º, 438.º e 439.º das alegações de recurso do arguido, bem como na Conclusão n.º 40.º da mesma peça processual (tendo igualmente sido alegada nos artigos 997.º, 1002.º e 1003.º da Impugnação Judicial e Conclusão n.º 90 da mesma peça processual).
b) A questão de constitucionalidade referida no ponto 1, alínea b), supra, foi suscitada nos artigos 440.º a 444.º das alegações de recurso do arguido, bem como na Conclusão n.º 41.º da mesma peça processual (tendo igualmente sido alegada nos artigos 1004.º a 1008.º da Impugnação Judicial e Conclusão n.º 91 da mesma peça processual).
c) A questão de constitucionalidade referida no ponto 1, alínea c), supra, foi suscitada nos artigos 500.º e 501.º das alegações de recurso do arguido, bem como na Conclusão n.º 46.º da mesma peça processual (tendo igualmente sido alegada nos artigos 1062.º e 1063.º da Impugnação Judicial e Conclusão n.º 96 da mesma peça processual).
d) A questão de constitucionalidade referida no ponto 1, alínea d), supra, foi suscitada nos artigos 559.º e 560.º das alegações de recurso do arguido, bem como na Conclusão n.º 57 da mesma peça processual (tendo igualmente sido alegada nos artigos 170.º e 171.º da Impugnação Judicial e Conclusão n.º 11 e 12 da mesma peça processual).
e) A questão de constitucionalidade referida no ponto 1, alínea e), supra, foi suscitada nos artigos 715º a 717.º das alegações de recurso do arguido, bem como na Conclusão n.º 69 e 70 da mesma peça processual (tendo igualmente sido alegada nos artigos 417.º a 419.º da Impugnação Judicial e Conclusão n.º 24 a 26 da mesma peça processual).
Mais se refere que as questões sub judice haviam já sido referidas na Defesa apresentada pelo Recorrente na fase administrativa.
Nestes termos, e por estar em tempo e ser parte legítima, requer a V. Exas. se dignem admitir o presente recurso do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 6 de abril de 2011, tendo por objeto as questões de inconstitucionalidade supramencionadas, o qual tem efeito suspensivo e sobe nos próprios autos, nos termos previstos nos artigo 78.º da LTC, em concatenação com os artigos 406.º, n.º 1, 407.º e 408.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, ex vi artigo 74.º, n.º 4 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, seguindo-se os demais termos com as devidas consequências legais”.
3. O objeto do recurso ficou, no entanto, reduzido à norma do artigo 389.º n.º 1 alínea a) do Código dos Valores Mobiliários (CdVM), «ao prever que a prestação de toda e qualquer informação sem as qualidades referidas no próprio artigo 389.º n.º 1 alínea a) do CdVM, é punida com coima, sem identificar e delimitar o agente, objeto, natureza e/ou os efeitos sobre o mercado dessa mesma informação» e «ao prever que toda e qualquer prestação de informação sem qualidade traduz, independentemente de quem a presta e do objeto, natureza e/ou efeitos sobre o mercado dessa mesma informação, uma contraordenação 'muito grave'», nos termos em que o Acórdão n.º 349/2011 (disponível no site do Tribunal) definiu o objeto do recurso.
4. O recorrente apresentou alegações, concluindo da seguinte forma:
“Toda e qualquer prestação de informação sem qualidade, à margem de qualquer diferenciação, é punida como contraordenação “muito grave”
1. A escolha, pelo legislador, dos limites máximo e mínimo da coima aplicável – e também a sua qualificação como “menos grave”, “grave” e “muito grave” – “não pode ser arbitrária, devendo antes obedecer a pressupostos lógicos, razoáveis e inteligíveis (referentes normativos): por exemplo, a natureza do bem jurídico que se quer proteger, a forma e intensidade do ataque ou violação daquele bem jurídico, as finalidades da prevenção e, bem assim, a coerência e congruência com as demais opções punitivas do sistema, tomado no seu conjunto.
2. A este propósito, exige-se um juízo de proporcionalidade ao legislador (e ao intérprete quando sindica as opções do legislador), que se divide em dois sentidos: um primeiro sentido, que diz respeito à avaliação da congruência entre o desvalor de uma determinada infração e o desvalor (o quantum) da sanção que lhe é associada (proporcionalidade absoluta); e um segundo sentido, que diz respeito à congruência entre a sanção prevista para uma determinada conduta e o seu horizonte normativo, ou seja, as opções normativas constitutivas de todo o sistema jurídico (proporcionalidade relativa).
3. O Acórdão n.º 547/01, do Tribunal Constitucional, já reconheceu duas ideias: por um lado, que a construção das molduras sancionatórias aplicáveis – e também a sua qualificação como “menos grave”, “grave” e “muito grave” – “mesmo no domínio contraordenacional, deve obedecer ao princípio da culpa, ao princípio da legalidade e ao princípio da proporcionalidade; por outro lado, que o legislador deve construir as molduras sancionatórias – e decidir sobre a sua qualificação como “menos grave”, “grave” e “muito grave” – não segundo o critério da máxima amplitude e abrangência possível, tomando essa moldura num saco sem fundo onde cabem ilícitos cuja gravidade é incomparável, mas antes segundo parâmetros rigorosos e delimitados, que permitam identificar um critério sobre a gravidade da ilicitude que, em abstrato, cada um dos factos deve apresentar para poder ser integrado, de forma congruente, na respetiva moldura sancionatória.
4. No que diz respeito ao artigo 389.º, n.º 1, alínea a), do CdVM, o legislador do CdVM, entendeu que tal infração correspondia a uma daquelas que merecia, sempre, a censura máxima do ordenamento jurídico, censura máxima essa que se traduz na aplicação, de entre as molduras de coima existentes, daquela que se revela mais elevada. Entendeu também que a prestação de informação sem qualidade ao mercado é sempre qualificada como contraordenação «muito grave», independentemente do agente e do objeto, natureza e efeitos sobre o mercado daquela informação.
5. Tal opção levanta dois problemas: por um lado, em termos absolutos, revela-se desproporcionada, na medida em que permite incluir sob a mesma bitola de gravidade (e sob a mesma moldura sancionatória aplicável), infrações cuja gravidade da ilicitude revela diferenças significativas. Por exemplo, ficará sujeito à mesma bitola de gravidade (e à mesma moldura sancionatória aplicável), a prestação de uma informação sem qualidade, insuscetível de servir de base para a formação do preço e a prestação de uma informação sem qualidade, apta a fundamentar uma decisão de investimento ou desinvestimento.
6. Por outro lado, tal situação, em termos relativos, revela-se igualmente desproporcionada, na medida em que cria incongruências face às demais infrações, tipificadas como «muito graves», «graves» e «menos graves».
7. O artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CdVM, não estabelece qualquer delimitação em função dos efeitos provocados pela informação sem qualidade, no mercado, desde logo porque, ainda que se queira conjugar/complementar esta disposição normativa com o artigo 7.º, n.º 1, do mesmo diploma, verifica-se que, por força da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 357-A/2007, de 31 de outubro, foi eliminado desta última disposição normativa o segmento que se referia ao facto de a informação poder ser suscetível de influenciar as decisões dos investidores.
8. Nessa medida, ao qualificar como “muito grave”, e sujeitar à moldura sancionatória mais elevada das contraordenações “muito graves”, toda e qualquer informação sem qualidade prestada ao mercado, não fazendo qualquer distinção relevante, em função do agente e do objeto, natureza e efeitos sobre o mercado daquela mesma informação, a norma que resulta do teor literal do artigo 389.º, n.º 1, alínea a), do CdVM é in toto inconstitucional,
9. Por violação do princípio da necessidade e da proporcionalidade, quer na sua vertente absoluta, uma vez que permite incluir sob a mesma bitola de gravidade (e sob a mesma moldura sancionatória aplicável), infrações cuja gravidade da ilicitude revela diferenças significativas, quer na sua vertente relativa, na medida em que cria incongruências graves e intoleráveis face às demais infrações, tipificadas como «muito graves», «graves» e «menos graves».
10. O princípio da necessidade e da proporcionalidade das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, como é o caso das leis que consagram tipos penais, tipos contraordenacionais e tipos disciplinares e, em geral, quaisquer tipos infraccionais que se integrem no âmbito do direito sancionatório punitivo público, está consagrado no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, sendo certo que o princípio da proporcionalidade de toda a atividade legislativa e administrativa do Estado resulta ainda do artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, o qual consagra o princípio do Estado Democrático de Direito.
11. Mais: Ao rotular como “muito grave” um tipo de infração que pode incluir e abranger factos que manifestamente não apresentam essa dignidade (essa gravidade), o artigo 389.º, n.º 1, alínea a), do CdVM, viola igualmente o princípio da culpa, previsto no artigo 1.º e 27.º da Constituição da República Portuguesa, e princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa,
12. Pois é necessário que a qualificação jurídica da infração, e principalmente a “gravidade” abstrata dessa mesma infração, que se imputa a um arguido, tenha uma conexão próxima e direta (ou pelo menos não tenha uma correspondência meramente remota) com a culpa pessoal desse mesmo arguido.
13. Tal inconstitucionalidade não é prejudicada pelo disposto no artigo 389.º, n.º 3, alínea a), do CdVM, uma vez que esta disposição legal diz respeito, apenas e tão só, aos mercados não regulamentados (veja-se, artigos 199.º e sgs. do CdVM).
14. O facto de, no quadro da operação de determinação concreta da coima, ser possível «aplicar coimas em montantes diferenciados em função das circunstâncias concretas» (alegação da CMVM), não prejudica a inconstitucionalidade invocada.
15. Com efeito, o artigo 422.º, n.º 1, do CdVM revela que a finalidade primeira das sanções previstas pelo CdVM é a restauração da confiança da comunidade na integridade e validade das normas que tutelam o mercado de valores mobiliários, através da divulgação publica do exemplo do arguido, só assim se justificando que tal publicidade ocorra num momento em existe, apenas, uma mera decisão administrativa, impugnada judicialmente.
16. Donde resulta que, considerando, entre o mais, as especificidades das finalidades associadas às contraordenações e coimas, no quadro do mercado de valores mobiliários, exige-se que o legislador utilize critérios rigorosos e refinados, na delimitação da gravidade abstrata, a que associa cada tipo de comportamento e cada moldura sancionatória específica, não sendo legítimo que o legislador integre dentro da categoria das infrações “muito graves” situações que manifestamente não têm essa dignidade.
17. Neste sentido, sai igualmente violado o princípio da culpa, previsto no artigo 1.º e 27.º da Constituição da República Portuguesa, e o princípio da igualdade, previsto no artigo 11º da Constituição da República Portuguesa.
18. A ilegitimidade de uma contraordenação “muito grave” que inclua toda e qualquer prestação de informação sem qualidade, em mercado, não significa uma menor tutela do mercado de valores mobiliários. Significa apenas que se deve reconhecer que nem toda a prestação ao mercado de informação sem qualidade partilha, uniformemente, da mesma gravidade, ao nível da ilicitude. Pelo que, em vez de se tutelar a informação ao mercado de valores mobiliários através de um único tipo contraordenacional “muito grave”, que funciona como saco comum de todos os ilícitos, mesmo que dispares, em abstrato, quanto à sua gravidade, se deveria proceder a tal tutela de forma diferenciada, utilizando o legislador critérios mais precisos e afinados para distinguir, ao nível do tipo contraordenacional, a intensidade abstrata da gravidade de cada um dos comportamentos que se pretende punir.
19. O que o Tribunal Constitucional tem de apreciar é se o tipo normativo que resulta do artigo 389.º, n.º 1, alínea a), do CdVM é ou não conforme à Constituição (sendo certo que, pelo menos nas duas alegadas infrações datadas de finais de 2007, tal tipo normativo foi aplicado, ao nível do preenchimento dos seus elementos constitutivos, sem ponderar a suscetibilidade de influenciar as decisões dos investidores),
20. Sendo absolutamente irrelevante saber se, caso o tipo infraccional se tivesse mantido idêntico ao que era antes de 2007, ainda assim, o mesmo estaria ou não preenchido.
A falta de delimitação do agente, do objeto, da natureza e/ou dos efeitos sobre o mercado dessa mesma informação, no tipo contraordenacional
21. O artigo 389.º, n.º 1, alínea a), do CdVM, sanciona com coima a prestação de toda e qualquer informação sem qualidade, sem identificar e delimitar o agente, objeto, natureza e/ou os efeitos sobre o mercado dessa mesma informação.
22. Nessa medida, tal disposição normativa constitui um tipo excessivamente amplo, uma vez que permite abarcar um conjunto excessivamente alargado de situações que, na sua essência, apresentam formas, natureza, gravidade e efeitos diferentes e não comparáveis.
23. Assim sendo, o artigo 389, n.º 1, alínea a), do CdVM, não revela limites certos e precisos à própria intervenção sancionatória do Estado, segundo juízos de necessidade para a realização dos seus fins, potenciando situações de amplitude irrestrita e/ou indiferenciada da ação punitiva desse mesmo Estado,
24. Pelo que viola o princípio da legalidade sancionatória, na sua dimensão de tipicidade (caráter certo e determinado do tipo contraordenacional), ofendendo dessa forma o artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis, deve o Tribunal Constitucional decidir julgar a inconstitucionalidade in toto da norma constante do artigo 389.º, n.º 1, alínea a), do Código dos Valores Mobiliários, segundo o requerido no requerimento de interposição de recurso, e agora melhor fundamentado nas presentes alegações”.
5. Os recorridos Ministério Público e CMVM apresentaram contra-alegações. O primeiro concluiu:
“1.º A norma cuja interpretação vem questionada, da alínea a) do n.º 1 do artigo 389.º do CdVM, não deve ser interpretada e aplicada isoladamente, mas em estreita conjugação e conexão com os artigos 7.º e 388.º, n.º 1, alínea a), do CdVM.
2.º O primeiro preceito, artigo 7.º do CdVM estatui um dever de qualidade de informação e, em conjugação com a alínea a) do n.º 1 do artigo 389.º do CdVM, preenche os elementos do tipo contraordenacional.
Não se verifica, assim, nenhuma indeterminação dos pressupostos da norma questionada.
3.º O segundo preceito, alínea a) do n.º 1 do artigo 388.º do CdVM, estabelece a moldura sancionatória da contraordenação.
4.º O legislador ordinário que já goza de uma ampla liberdade na definição de crime e na fixação de penas, apenas sendo de considerar violado o princípio de proporcionalidade, consagrado no artigo 18º, nº 2, da Constituição, em casos de inquestionável e evidente excesso, dispõe de ainda mais ampla liberdade, quando não se está perante matéria criminal, mas apenas de mera ordenação social.
5.º No caso, tratando-se de ilícitos contraordenacionais especialmente graves, em que estão em causa valores sociais de grande relevo, geralmente associados a avultados interesses patrimoniais, não se mostra desnecessária, inadequada ou clara e manifestamente excessiva a moldura sancionatória imposta pela alínea a) do n.º 1 do artigo 388.º do CdVM.
6.º Sobretudo se se tiver em conta a incumbência prioritária do Estado de tutelar os mercados, consagrada no atigo 81.º, alínea f) da Constituição, bem como as exigências, decorrentes do artigo 101.º da CRP, em relação ao sistema financeiro.
7.º Por outro lado, a determinação da coima em concreto resulta da ponderação, dentro da margem fornecida pelos limites mínimo e máximo estabelecidos pelo n.º 1 do artigo 388.º do CdVM, das circunstâncias especificadas no artigo 405.º do CDVM, nomeadamente, da natureza singular ou coletiva do agente, da gravidade da conduta e do grau de culpa do agente.
8.º Pelo que o quadro legal em que se insere a norma questionada assegura, de forma diferenciada, a determinação da punição no caso concreto.
9.º Do exposto, não se afigura que a norma em causa padeça de inconstitucionalidade material, nomeadamente, por violação dos princípios da proporcionalidade, da culpa, da necessidade, da igualdade ou da legalidade.
10.º Deve, assim, negar-se provimento ao recurso”.
6. A CMVM, que fez juntar aos autos um 'Parecer Jurídico' subscrito pelos Professores Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, concluiu a sua alegação do seguinte modo:
1.ª Em sede de fiscalização concreta não cabe ao Tribunal Constitucional proceder a uma verificação e controlo dos elementos da norma que não foram efetivamente aplicados no Acórdão recorrido (i.e. proceder ao recurso “in toto” de uma norma legal, como pretende o recorrente). Nesta sede está apenas em causa saber se a dimensão normativa efetivamente aplicada pelo Tribunal no Acórdão recorrido é constitucionalmente censurável.
Não obstante, e em qualquer caso, não existe inconstitucionalidade alguma:
2.ª Em geral:
a) Mesmo que as contraordenações legitimamente recolham conceitos e estruturas dogmáticas do direito penal, são genética, valorativa e estruturalmente diferentes dos crimes, e obedecem a um regime muito diverso, menos garantístico.
b) O artigo 389º, n.º 1 do CdVM apenas sofreu alterações de técnica legislativa, não tendo sofrido nenhuma alteração de substância, pelo que não diminuiu a sua clareza e determinação ao longo do tempo.
c) O artigo 7.º do CdVM, na sua redação de 2007, passa a gerar uma infração de perigo abstrato, o que é legítimo, nem essa legitimidade é contestada pelo A..
d) O CdVM não trata da mesma forma todas as violações à qualidade de informação, sancionando de forma diferenciada situações segundo os agentes, natureza, objeto e destinatários da informação.
e) As necessidades especiais do sistema financeiro têm assento constitucional nos artigos 81.º, al. f) e 101.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), sendo a transparência um dos seus pilares fundamentais.
f) A jurisprudência constitucional portuguesa, na única vez que se refere ao atual CdVM, salienta a sua conformidade com a Constituição por ter molduras sancionatórias adequadas e um rigoroso regime de graduação concreta da sanção no seu artigo 405º CdVM.
3.ª O artigo 389.º, n.º 1, al. a) do CdVM pelo facto de qualificar como muito grave a violação da qualidade da informação não viola os artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 13.º ou 27.º, n.º 1 da CRP, porquanto:
a) Não viola o princípio da necessidade dado que, mesmo que este fosse aplicável às contraordenações, as suas exigências seriam bem menores que em sede criminal; mesmo nos crimes este princípio deixa uma grande margem discricionariedade legislador ordinário e caberia em qualquer caso ao A. demonstrar a desnecessidade da sanção, o que não fez.
b) Não viola o princípio da proporcionalidade no seu sentido absoluto por existir uma conexão entre a natureza fundamental, eminente, do valor da transparência e a sua sanção como contraordenação muito grave.
c) Não viola o princípio da proporcionalidade no seu sentido relativo, porquanto o CdVM sanciona de forma apenas grave ou menos grave diversas informações sem qualidade; e quando ocorre a sua sanção no grupo das contraordenações mais severamente sancionadas na economia do CdVM, isto decorre diretamente do facto de tutelar um valor que está entre os mais fundamentais deste regime;
d) Acresce, a afastar qualquer alegação de desproporcionalidade, que o desenho legal das molduras sancionatórias permite que uma contraordenação qualificada abstratamente como muito grave possa, atentas as circunstâncias do caso concreto, ser sancionada com coima que também cabe na moldura das sanções graves e menos graves;
e) Não viola o princípio da igualdade, porque não favorece os agentes mais fortes em relação aos mais frágeis, e bem pelo contrário, na economia do CdVM, e tendo em conta o seu artigo 405.º do CdVM, na medida concreta da sanção as situações de maior poder, seja económico, seja de outra natureza, induzem tendencialmente uma mais forte sanção.
f) Não viola, igualmente o princípio da culpa, na medida em que só são sancionadas as contraordenações a título de dolo ou negligência (artigo 402.º do CdVM) e a medida concreta da culpa releva para a determinação da sanção concreta (artigo 405.º do CdVM).
g) O que determina as garantias da conformação de um tipo infraccional é a sua natureza (penal ou contraordenacional) e não o facto de haver menor ou maior publicidade do processo ou da sua decisão, pelo que o artigo 422.º do CdVM é irrelevante para essa determinação.
4ª O artigo 389º, n.º 1, al. a) CdVM não viola os artigos 29.º, n.º 1 e 3 da CRP, e nomeadamente o princípio da tipicidade ou a exigência de clareza e determinação das normas porquanto:
a) As exigências da tipicidade em sede contraordenacional são menos intensas que em crime e, em acréscimo trata-se de um circuito de tráfego jurídico especial, sendo que o próprio Tribunal Constitucional já entendeu que nestes casos é lícito o uso pelo legislador de conceitos mais indeterminados.
b) E mesmo assim, o CdVM apresenta um triplo feixe de garantias; (i) dupla conexão temática (artigo 389.º, n.º 1, al. a) do CdVM), e normativa (artigo 388º, n.º 2 do CdVM, na redação à data dos factos aplicado no processo), (ii) inequivocidade do conceito central (“informação”) (iii) e dos conceitos de qualificação (verdade, completude, licitude).
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentação
7. O recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 389.º n.º 1 alínea a) do CdVM, que apresenta a seguinte redação:
Artigo 389.º
Informação
1 - Constitui contraordenação muito grave:
a) A comunicação ou divulgação, por qualquer pessoa ou entidade, e através de qualquer meio, de informação que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita;
Invoca a violação do princípio da legalidade sancionatória, na sua dimensão de tipicidade, previsto no artigo 29.º da Constituição, bem como os princípios constitucionais da necessidade da punição e da proporcionalidade, previstos no artigo 18.º, n.º2, o princípio da culpa, previsto no artigo 1.º e 27.º, bem, como o princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º.
8. Importa começar por contextualizar esta norma, integrando-a no âmbito da atividade reguladora da CMVM.
A CMVM é um ente público de natureza administrativa (artigo 1.º do Estatuto da CMVM), cujo papel fundamental consiste em zelar pelo bom funcionamento dos mercados de valores mobiliários – seja ao nível do mercado primário (de emissão de títulos), seja ao nível de mercado secundário (de livre troca dos títulos anteriormente emitidos), tendo sido dotada de poderes públicos administrativos – nomeadamente poderes de regulação, supervisão e fiscalização, entre os quais se inclui o processamento das contraordenações e a aplicação das respetivas coimas. Neste contexto, as entidades que atuam profissionalmente ou de forma qualificada no mercado de valores mobiliários estão sujeitas a um acompanhamento regular por parte da CMVM (art.º 359.º do CdVM), e têm o dever legal de prestar, à autoridade de supervisão, toda a colaboração solicitada por esta (n.º 3 do art.º 359.º do CdVM). Em particular, cabe-lhes o dever de prestação de informação, que deve ser “completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita”, (artigo 7º nº 1 do CdVM).
É neste contexto que surge a norma objeto do presente recurso, que qualifica como contraordenação muito grave a “comunicação ou divulgação, por qualquer pessoa ou entidade, e através de qualquer meio, de informação que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita”.
A atual redação do artigo 389.º do CdVM foi introduzida pelo Decreto-lei n.º 357-A/2007, de 31 de outubro. Mas a previsão de uma contraordenação muito grave por comunicação ou divulgação, por qualquer pessoa ou entidade, e através de qualquer meio, de informação que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita, decorria já do n.º 1 do artigo 389.º na redação do Decreto-lei n.º 52/2006, de 15 de março. O diploma anterior – o Decreto-lei 486/99, de 13 de novembro – previa apenas uma configuração diferente deste tipo de contraordenação. A mesma era já qualificada como “muito grave”, mas dizia respeito à comunicação ou divulgação, por qualquer entidade, e através de qualquer meio, de informação relativa a valores mobiliários ou outros instrumentos financeiros que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita.
9. Alega o recorrente, em primeiro lugar, que o 389.º n.º 1 alínea a) do CdVM viola o princípio da legalidade sancionatória, previsto no artigo 29.º n.º1 e 3 da Constituição. E, isto, por constituir “um tipo excessivamente amplo, uma vez que permite abarcar um conjunto excessivamente alargado de situações que, na sua essência, apresentam formas, natureza, gravidade e efeitos diferentes e não comparáveis”, pelo que não cumpriria o requisito de possuir caráter certo e determinado.
Na verdade, aquele preceito constitucional consagra o princípio da tipicidade ou a exigência de clareza e determinação das normas penais incriminadoras, uma vez que a exigência da determinabilidade é uma das dimensões irredutíveis do princípio da legalidade (“nullum crimen, nulla poena sine lege coerta”), fundamental para a garantia da liberdade e segurança dos cidadãos.
9.1. Mas é um erro pretender estender tais exigências ao domínio contraordenacional.
Importa efetivamente relembrar que o Tribunal Constitucional tem constantemente sublinhado “a diferente natureza do ilícito, da censura e das sanções” entre o ilícito contraordenacional e o ilícito penal, o que justifica que os princípios que orientam o direito penal não sejam automaticamente aplicáveis ao direito de mera ordenação social. É o que resulta, por exemplo, do Acórdão n.º 344/93 (publicado in Diário da República, IIª Série, de 11-08-1993), do Acórdão n.º 278/99 (disponível no site do Tribunal Constitucional) e do Acórdão n.º 160/04, que sublinhou a “diferença dos princípios jurídico-constitucionais que regem a legislação penal, por um lado, e aqueles a que se submetem as contraordenações”. Diferença, esta, que cobra expressão, designadamente, na natureza administrativa (e não jurisdicional) da entidade que aplica as sanções contraordenacionais”. A mais recente jurisprudência do Tribunal Constitucional, precisamente a propósito da aplicação de contraordenações pela CMVM, reafirmou essa orientação, conforme resulta, por exemplo, do Acórdão n.º 537/2011 (disponível no site do Tribunal). É assim bem certo que a exigência de determinabilidade do tipo predominante no direito criminal não opera no domínio contraordenacional.
9.2. Restará saber se o tipo previsto no 389º n.º 1 alínea a) do CdVM viola as exigências mínimas de determinabilidade no ilícito contraordenacional. A norma qualifica como contraordenação muito grave “a comunicação ou divulgação, por qualquer pessoa ou entidade, e através de qualquer meio, de informação que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita”. Ora, apesar de o Decreto-lei n.º 52/2006, de 15 de março ter eliminado a referência ao objeto da informação – até aí expressamente delimitado como constituindo informação relativa a valores mobiliários ou outros instrumentos financeiro – nem por isso se pode considerar que o tipo de ilícito tenha passado a ser demasiado amplo ou pouco claro, como alega o recorrente.
De facto, a norma objeto do presente recurso conjuga-se com outras disposições do CdVM, que concorrem para delimitar o âmbito do ilícito. Tais normas são, por um lado, o artigo 7.º e, por outro, o artigo 388.º n.º 1 alínea a) do CdVM.
Ora, deve desde logo sublinhar-se que o simples facto de o tipo contraordenacional dever ser lido em conjugação com outras normas presentes no mesmo diploma não viola, por si só, qualquer princípio constitucional. Trata-se de uma técnica de tipificação dos ilícitos contraordenacionais através de remissões materiais, em que o tipo sancionatório remete para deveres tipificados no próprio Código. Neste contexto, “ao contrário da generalidade dos tipos incriminadores que preveem condutas proibidas e, em imediata conexão com elas, uma pena, a técnica legislativa no Direito de mera ordenação social não tem de obedecer a este paradigma rígido da tipicidade. Pelo contrário, nesta área as funções heurística e motivadora das normas não se identificam com a norma de sanção, mas sim com a norma de conduta. Neste sentido, algumas funções da tipicidade penal são, no Direito de mera ordenação social, assumidas pelas próprias normas substantivas que impõem deveres, (…). Assim, a técnica de tipificação no Direito de mera ordenação social pode inclusivamente ser mais precisa para o destinatário da norma, já que descreve expressamente as normas de conduta (nos ‘pré-tipos’), ao contrário do que acontece nos tipos penais onde as normas de conduta surgem, na generalidade dos casos, apenas implícitas na matéria da proibição”. Em suma, “a exigência de tipicidade não tem no Direito de mera ordenação social de obedecer à mesma técnica dos tipos penais incriminadores” (Frederico da Costa Pinto, O novo regime dos crimes e contraordenações no Código dos valores mobiliários, Almedina, 2000, p. 28).
Posto isto, o que importa determinar é se a norma globalmente resultante da integração da remissão cumpre os requisitos e exigências da determinabilidade.
9.3. A norma do artigo 389º n.º 1 alínea a) deve ser lida, em primeiro lugar, em conjugação com a do artigo 7.º do CdVM.
Essa norma estabelece um dever de qualidade de informação a cargo das entidades que atuam no mercado de valores mobiliários. Ela prescreve que “a informação respeitante a instrumentos financeiros, a formas organizadas de negociação, às atividades de intermediação financeira, à liquidação e à compensação de operações, a ofertas públicas de valores mobiliários e a emitentes deve ser completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita”. Essas exigências aplicam-se, nos termos do n.º 2, seja qual for o meio de divulgação e ainda que a informação seja inserida em conselho, recomendação, mensagem publicitária ou relatório de notação de risco. Ora, desde logo cumpre esclarecer que, no contexto do presente diploma e dos deveres que o mesmo estabelece sobre as entidades bancárias, o conceito de “informação” não pode, contrariamente ao que alega o recorrente, ser considerado como indeterminado, nem tão pouco como vago ou pouco claro, encontrando-se perfeitamente circunscrito no artigo 7.º do CdVM, que delimita não só o conteúdo abrangido pela mesma (informação respeitante a instrumentos financeiros, a formas organizadas de negociação, às atividades de intermediação financeira, à liquidação e à compensação de operações, a ofertas públicas de valores mobiliários e a emitentes), como os veículos da mesma (informação inserida em conselho, recomendação, mensagem publicitária ou notação de risco).
Por outro lado, se é certo que, na redação dada pelo Decreto-lei n.º 486/99, de 13 de novembro, apenas se exigiam esses requisitos no que toca à informação que fosse “suscetível de influenciar as decisões dos investidores”, menção que foi posteriormente retirada, nem por isso essa alteração implicou uma diminuição da clareza da norma. Alterou-se, com efeito, a configuração do tipo contraordenacional, que passou a sancionar uma conduta independentemente dos efeitos danosos que ela possa provocar nos bens jurídicos que se visam salvaguardar. Ora, não é constitucionalmente ilegítima a criação de infrações contraordenacionais formais ou de mera atividade, em que o preenchimento do tipo se esgota na realização da conduta proibida, independentemente de qualquer resultado exterior. Na verdade, pode afirmar-se que “no âmbito do mercado de valores mobiliários uma tal antecipação da intervenção sancionatória de natureza contraordenacional justifica-se plenamente. A tutela dos valores em causa não se deve fazer por referência aos danos provocados ou às lesões de interesses efetivamente verificadas. Por um lado, porque neste tipo de mercado é muitas vezes difícil a identificação dos danos, na maior parte de natureza difusa; por outro lado, quando identificados os danos sobre o mercado eles são, em regra, já irreparáveis e incontroláveis; finalmente, porque com as práticas ilícitas se geram normalmente efeitos económicos em cadeia que transcendem o simples espaço de circulação dos valores em causa; por último, mas não menos importante, para um mercado tão rápido e sensível como este qualquer perigo é já um momento de danosidade efetiva, que nele permanece alimentando a desconfiança dos investidores. É pois compreensível, por exemplo, que o CdVM sancione a simples violação de deveres de informação ou a inexatidão desta” (Frederico Lacerda da Costa Pinto, “A tutela dos Mercados de Valores Mobiliários e o Regime do ilícito de mera ordenação social”, in AA.VV., Direito dos Valores Mobiliários, vol. I, Coimbra Editora, 1999, p. 300).
9.4. Por fim, a norma objeto do presente recurso deve ser ainda lida em conjugação com a alínea a) do n.º 1 do artigo 388.º do CdVM, que estabelece a moldura sancionatória das contraordenações qualificadas como muito graves, fixada entre 25000 e 2500000 Euros. Não se pode considerar que os limites máximo e mínimo da moldura sancionatória tenham sido fixados de forma a violar o princípio da determinabilidade da norma. De facto, o CdVM especifica no artigo 405.º os critérios que deverão presidir à determinação da medida da coima, nomeadamente a ilicitude concreta do facto, da culpa do agente, os benefícios obtidos, as exigências de prevenção, a natureza singular ou coletiva do agente. A determinação da coima em concreto resulta da ponderação, dentro da margem fornecida pelos limites mínimo e máximo estabelecidos pelo n.º 1 do artigo 388.º do CdVM, das circunstâncias que estão expressamente mencionadas na lei. É, assim, perfeitamente possível aos destinatários saber quais são as condutas proibidas, como ainda antecipar, com segurança, a sanção aplicável ao correspondente comportamento ilícito.
E é nisto que consiste a necessária determinabilidade dos tipos contraordenacionais. Importa relembrar, com efeito, que da jurisprudência do Tribunal resulta que o estabelecimento de limites alargados das sanções, no domínio contraordenacional, não consubstancia em si uma violação de princípios constitucionais, devendo avaliar-se se a lei estabelece outros mecanismos que concorrem para a segurança jurídica.
No Acórdão n.º 574/95 (disponível no site do Tribunal Constitucional), o Tribunal considerou que o n.º 5 do artigo 670.º do CdVM então em vigor – que previa uma moldura sancionatória de 500.000$00 a 300.000.000$00 – não era inconstitucional, já que “a distância entre o limite mínimo e o limite máximo da coima” não seria “de molde a que esta deixe de cumprir a sua função de garantia contra o exercício abusivo (persecutório e arbitrário) ou incontrolável do ius puniendi do Estado”, já que o legislador teria fixado sem margem para dúvidas os limites “dentro dos quais se há de mover aquele que tiver de aplicar a coima”. Acrescentou-se ainda que “uma certa extensão da moldura sancionatória é de algum modo – pode mesmo dizer-se – o tributo que o princípio da legalidade das sanções tem de pagar ao princípio da culpa, que deriva da essencial dignidade da pessoa humana e se extrai dos artigos 1º e 25º, nº 1 da Constituição”.
É certo que no Acórdão n.º 547/01, o Tribunal reviu alguns destes argumentos, chegando a uma solução diferente no que toca ao n.º 4 do artigo 670.º do CdVM, que fixava uma coima de 500.000$00 a 300.000.000$00. Mas mesmo dentro deste prisma, o aresto não deixou de reconhecer que:
“(…) as características particulares do mercado de valores mobiliários não impediram o legislador de 1999 de alterar o sistema sancionatório das contraordenações com ele relacionadas, através do novo Código dos Valores Mobiliários.
Com efeito, por um lado, as contraordenações muito graves passam a ser puníveis com coimas de 25.000 a 2.500.000 euros [al. a) do nº 1 do artigo 388º], o que, apesar de representar ainda uma grande amplitude, atenua a distância substancial até aí existente entre um limite mínimo leve e um limite máximo particularmente severo.
Por outro lado, o artigo 405º do mesmo Código estabelece, de modo inovador, uma série de critérios e circunstâncias tendentes a permitir adequar a determinação concreta da sanção ao grau de ilicitude e da culpa do agente.
Deste modo, independentemente do juízo que possa merecer o novo regime, confirma-se que o legislador tem diversos meios de que se pode servir para evitar violar o princípio da determinação da sanção, decorrente do princípio da legalidade”.
Pode, por isso, concluir-se que o regime resultante da fixação dos limites máximo e mínimo que compõem a atual moldura sancionatória para as contraordenações muito graves da CdVM, em conjugação com a previsão expressa dos critérios e circunstâncias que devem pautar a determinação concreta da sanção, é suficiente para respeitar as exigências de determinabilidade sancionatória decorrente da Constituição.
Com efeito, o tipo contraordenacional em causa resulta da interpretação conjugada das três normas referidas; através da conjugação destes preceitos, a descrição do comportamento sancionado como contraordenação – e a sanção – resultam objetivamente determináveis para os destinatários, não podendo considerar-se violado o princípio previsto no artigo 29.º da Constituição.
10. Alega o recorrente que a qualificação como contraordenação “muito grave” de toda e qualquer prestação de informação ao mercado sem qualidade, independentemente de quem a presta e do objeto, natureza ou efeitos sobre o mercado viola o princípio constitucional da proporcionalidade, numa dupla dimensão: numa dimensão “absoluta”, “que diz respeito à avaliação da congruência entre o desvalor de uma determinada infração e o desvalor (o quantum) da sanção que lhe é associada”, e numa dimensão “relativa”: “ que diz respeito à congruência entre a sanção prevista para uma determinada conduta e o seu horizonte normativo, ou seja, as opções normativas constitutivas de todo o sistema jurídico.
10.1. Decorre, porém, da jurisprudência do Tribunal que o legislador tem uma ampla margem de conformação em matéria de previsão de contraordenações, uma vez que – há que recordá-lo – o princípio da proporcionalidade enquanto princípio da ultima ratio ou da subsidiariedade da punição vale apenas para o direito penal. No que toca à previsão de contraordenações, o legislador tem poderes mais amplos para decidir se é ou não necessário qualificar determinado comportamento como contraordenação, e maior margem de conformação no que toca à fixação das sanções aplicáveis aos comportamentos que decidiu tipificar como contraordenações. Sobre a salvaguarda do princípio da proporcionalidade em matéria de contraordenações, lê-se, por exemplo, no Acórdão n.º 574/95 (disponível no site do Tribunal):
«Quanto ao princípio da proporcionalidade das sanções, tem, antes de mais, que advertir-se que o Tribunal só deve censurar as soluções legislativas que cominem sanções que sejam desnecessárias, inadequadas ou manifesta e claramente excessivas, pois tal o proíbe o artigo 18º, nº 2, da Constituição. Se o Tribunal fosse além disso, estaria a julgar a bondade da própria solução legislativa, invadindo indevidamente a esfera do legislador que, aí, há de gozar de uma razoável liberdade de conformação [cf., identicamente, os acórdãos nºs 13/95 (Diário da República, II série, de 9 de fevereiro de 1995) e 83/95 (Diário da República, II série, de 16 de junho de 1995)], até porque a necessidade que, no tocante às penas criminais é - no dizer de FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal II, 1988, policopiado, página 271) - 'uma conditio iuris sine qua non de legitimação da pena nos quadros de um Estado de Direito democrático e social', aqui, não faz exigências tão fortes.
De facto, no ilícito de mera ordenação social, as sanções não têm a mesma carga de desvalor ético que as penas criminais - para além de que, para a punição, assumem particular relevo razões de pura utilidade e estratégia social».
Neste contexto, o princípio da proporcionalidade apenas deve considerar-se violado nos casos em que o legislador incorreu em inquestionável e evidente excesso, prevendo sanções desnecessárias, inadequadas ou manifesta e claramente excessivas; em suma, só poderá falar-se de inconstitucionalidade nas situações em que o legislador dispunha comprovadamente de meios menos gravosos para proteger os bens jurídicos em causa.
Importa, por isso, averiguar se o legislador incorreu nesse evidente e inquestionável excesso no que toca à qualificação como contraordenação muito grave da comunicação ou divulgação, por qualquer pessoa ou entidade, e através de qualquer meio, de informação que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita.
10.2. O juízo de proporcionalidade implica, neste caso, a ponderação entre dois valores: o que é sacrificado, em confronto com aquele que o legislador visa proteger. Neste contexto, apenas um manifesto desequilíbrio entre tal relação poderá fundar a violação do princípio.
A contraordenação em causa visa salvaguardar um valor de inegável relevo; o da verdade e da transparência do mercado de valores mobiliários. De facto, a fiabilidade da informação é um pilar fundamental do mercado de valores mobiliários, que permite assegurar que a decisão de investimento seja inteiramente esclarecida. É, por isso, inegável que “é a existência de uma informação tão completa, verosímil e clara quanto possível que constitui a garantia essencial de funcionamento regular dos mercados” (Eduardo Paz Ferreira, “A informação no mercado de valores mobiliários”, in AA.VV., Direito dos Valores Mobiliários, Vol. III, Coimbra Editora, 2001, p. 145).
Em suma, a necessidade de assegurar a transparência e a fiabilidade da informação é essencial para o regular funcionamento do mercado de valores mobiliários.
Ora, o mercado e o sistema financeiro merecem proteção constitucional. O artigo 81º alínea f), prevê o funcionamento eficiente dos mercados, e nesse contexto, designadamente, a repressão de práticas lesivas do interesse geral, como incumbências prioritárias do Estado. Por seu turno, o artigo 101.º obriga a que o sistema financeiro seja estruturado por lei de modo a garantir a formação, a captação e a segurança das poupanças, bem como a aplicação dos meios financeiros necessários ao desenvolvimento económico e social. Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, o artigo 101.º al. f) da CRP, (...) constitui uma amplíssima credencial constitucional para a intervenção, regulação e supervisão pública das atividades financeiras, com as necessárias limitações restrições da liberdade económica nesta área, com a extensão e a intensidade que os interesses em causa podem justificar (desde a autorização administrativa para a entrada na atividade até, no limite, a intervenção na gestão das instituições financeiras). De resto não estão aqui em causa somente valores constitucionais ligados à estabilidade financeira e ao desenvolvimento económico e social mas também a proteção dos direitos dos aforradores e investidores e clientes das instituições financeiras, a começar pelo seu direito de propriedade.”.
O funcionamento dos mercados de valores mobiliários constitui um instrumento específico do desenvolvimento económico do Estado. Estão em causa bens jurídicos supraindividuais afetos a um programa de desenvolvimento económico e isto explica a preocupação constitucional de tutela dos mercados. Mas não só. Em causa estão ainda os direitos patrimoniais dos aforradores, investidores e clientes das instituições financeiras. De facto, a exigência de informação corresponde ainda a uma exigência de proteção dos investidores que pretendam atuar no contexto de um mercado caracterizado por um elevado nível de risco. A contraordenação em causa visa também proteger direitos individuais, seja a salvaguarda do património próprio dos cidadãos.
Por fim, as exigências de informação e transparência permitem ainda garantir um sistema de igualdade de oportunidades dos investidores. São neste contexto particularmente ilustrativas as palavras de Eduardo Paz Ferreira, ao afirmar que “o equilíbrio automático que seria conseguido pelo funcionamento do mercado é, de facto, substancialmente perturbado pela existência de assimetrias de informação que vão determinar uma alocação imperfeita da riqueza” (ibid.). No contexto da regulação da Concorrência, o Tribunal teve também já oportunidade de sublinhar a importância da informação no domínio das atividades económicas ligadas ao exercício da iniciativa privada (Acórdão n.º 461/2011, disponível no site do Tribunal).
Para a salvaguarda dos referidos valores constitucionais, o legislador optou por estabelecer sanções que se revelassem dissuasoras. Como explica Frederico Lacerda da Costa Pinto, “o merecimento de tutela sancionatória destes bens radica, de uma forma geral, no facto de estar em causa a regularidade e a eficiência de um setor do sistema financeiro, reconhecido constitucionalmente (art. 101.º da Constituição), que desempenha funções económicas essenciais, como a diversificação das fontes de financiamento das empresas, a aplicação de poupanças das famílias ou a gestão de mecanismos de cobertura de risco de atividades e de investimentos” (op. ult. cit., p. 17).
Em suma, a qualificação da comunicação ou divulgação, por qualquer pessoa ou entidade, e através de qualquer meio, de informação que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita como contraordenação muito grave fundamenta-se na necessidade de salvaguardar os referidos interesses, constitucionalmente tutelados. Face ao relevo dos valores que se pretenderam salvaguardar, não pode considerar-se que a qualificação das condutas referidas como “contraordenação muito grave” se mostre desnecessária, inadequada ou manifestamente excessiva, pelo que não pode considerar-se violado o princípio da proporcionalidade na vertente que o recorrente qualifica como “absoluta”.
10.3. O mesmo se dirá, de resto, no que respeita ao princípio da proporcionalidade na também invocada vertente “relativa”, a propósito da congruência que deverá verificar-se entre si, quanto às sanções previstas no ordenamento jurídico em causa.
Também aqui há que começar por relembrar a ampla margem de liberdade de conformação do legislador no que toca ao equilíbrio interno do sistema de sanções previstas no CdVM. E a verdade é que não pode concluir-se que a qualificação como “contraordenação muito grave” se revele manifestamente desproporcionada em relação às demais contraordenações previstas no diploma. De facto, o CdVM procede à distinção de várias situações de transparência atribuindo-lhes sanções diferenciadas, consoante a verificação de vários fatores, como se depreende da leitura dos demais números do artigo 389.º do CdVM. Importa atentar, em particular, na alínea a) do n.º 3, que determina que, se a prestação de informação sem a qualidade exigida disser respeito a valores mobiliários ou a instrumentos financeiros que não sejam negociados em mercado regulamentado, ou se a operação tiver valor igual ou inferior ao limite máximo da coima prevista para as contraordenações graves, apenas se originará contraordenação grave, o que manifesta a preocupação do legislador em salvaguardar a referida vertente relativa do princípio da proporcionalidade, sancionando mais fortemente a violação de deveres de informação respeitantes a outros valores.
Por fim, pode ainda afirmar-se que, no que toca aos montantes das coimas, o artigo 388.º do CdVM prevê que os limites máximos e mínimos dos vários tipos de contraordenações são parcialmente sobreponíveis, o que demonstra que, na arquitetura do regime de sanções previstas no Código, a solução legal não se mostra desequilibrada.
11. Alega ainda o recorrente que, ao rotular como “muito grave” a comunicação ou divulgação, por qualquer pessoa ou entidade, e através de qualquer meio, de informação que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita, o artigo 389.º n.º 1 alínea a) do CdVM, viola o princípio da culpa previsto no artigo 1.º e 27.º da Constituição, por ser “necessário que a qualificação jurídica da infração, e principalmente a “gravidade” abstrata dessa mesma infração, que se imputa a um arguido, tenha uma conexão próxima e direta (…) com a culpa pessoal desse mesmo arguido”.
Também neste ponto não assiste razão ao recorrente.
O princípio da culpa postula, por um lado, a exigência de uma culpa concreta como pressuposto necessário de aplicação de qualquer pena, e, por outro, a proibição da aplicação de penas que excedam, no seu quantum, a medida da culpa. Mas é sabido que o princípio jurídico-constitucional da culpa (fundado na dignidade da pessoa humana) não vale, como parâmetro, no domínio das contraordenações. Mas mesmo que assim não fosse, nunca poderia considerar-se violado pela norma objeto do presente recurso, pela singela razão de a punição prevista no artigo 389.º, n.º 1, alínea a), do CdVM não prescindir da demonstração da culpa do agente. Por um lado, a referida norma tem de ser lida em conjugação com o artigo 402.º do CdVM, que determina que apenas são sancionadas as contraordenações a título de dolo ou negligência. Por outro lado, decorre ainda do já citado artigo 405.º do CdVM, que o grau de culpa do agente tem de ser tido em conta na determinação da medida concreta da coima. Dentro dos limites mínimo e máximo da moldura contraordenacional, o julgador dispõe de suficiente liberdade de apreciação para ponderar o grau de culpa com que o agente atuou. A culpa atua assim não só como pressuposto de aplicação da contraordenação, mas ainda como medida da mesma.
12. Por fim, o recorrente alega que a norma impugnada viola o princípio da igualdade, ao invocar que “nem toda a prestação ao mercado de informação sem qualidade partilha, uniformemente, da mesma gravidade, ao nível da ilicitude. Pelo que, em vez de se tutelar a informação ao mercado de valores mobiliários através de um único tipo contraordenacional “muito grave”, (…) se deveria proceder a tal tutela de forma diferenciada, utilizando o legislador critérios mais precisos e afinados para distinguir, ao nível do tipo contraordenacional, a intensidade abstrata da gravidade de cada um dos comportamentos que se pretende punir”.
Mas há que sublinhar que o CdVM não trata da mesma forma todas as violações à qualidade de informação, sancionando o comportamento de forma diferenciada, segundo o agente, a natureza, o objeto e os destinatários da informação. De facto, como já se referiu, no que toca em específico aos deveres de informação, o legislador preocupou-se em prever, no n.º 3 e n.º 4 do artigo 389.º do CdVM contraordenações que qualifica simplesmente como graves, ou mesmo menos graves.
No que toca ao universo de condutas que cabem dentro do âmbito da alínea a) do n.º 1 do artigo 389º CdVM, é certo que o legislador não estabelece distinções consoante a qualidade singular ou coletiva dos agentes da infração, o objeto ou natureza da informação e efeitos sobre o funcionamento do mercado dessa mesma informação. No entanto, nem por isso se pode considerar existir violação do princípio da igualdade; é que, apesar de o legislador não estabelecer molduras sancionatórias diferenciadas em atenção aos diversos fatores referidos, tal não significa que os mesmos não sejam tidos em conta. O legislador simplesmente optou por relegar para o momento da determinação da medida concreta da sanção a ponderação desses fatores, opção que não se afigura ilegítima e que permite salvaguardar o princípio da igualdade.
III – Decisão
13. Improcede, nestes termos, o recurso. O Tribunal decide, em consequência, negar-lhe provimento, confirmando a decisão da Relação de Lisboa no que toca à questão de inconstitucionalidade. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 15 de fevereiro de 2012.- Carlos Pamplona de Oliveira – Maria João Antunes – Gil Galvão – Rui Manuel Moura Ramos.
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