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Processo n.º 778/10
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. intentou em 28 de dezembro de 2006 ação de investigação da paternidade no Tribunal Judicial de Esposende contra B., peticionando o estabelecimento do vínculo jurídico de paternidade jurídica entre a autora e o réu. O Tribunal de Esposende julgou a ação procedente em 22 de abril de 2009. Inconformado, o réu recorreu para a Relação de Guimarães que, no entanto, julgou improcedente o recurso. Desse aresto recorreu novamente o réu para o Supremo Tribunal de Justiça, que veio a proferir acórdão no qual ponderou:
[...] Assim, concordamos com a posição assumida de que estando em causa o estabelecimento da paternidade da autora, o prazo previsto no artigo 1817º, n.º 1 na redação da nova Lei é também materialmente inconstitucional, na medida em que é limitador da possibilidade de investigação a todo o tempo, constituindo, o estabelecimento do mesmo e nos tempos que correm, com o novo paradigma do direito fundamental à identidade pessoal e de livre desenvolvimento da personalidade (acrescentado este ao artº 26º pela revisão constitucional de 1997) uma restrição não justificada, desproporcionada e não admissível do direito do filho saber em vida de quem descende.
De resto e neste mesmo sentido se pronunciaram outros acórdãos deste Supremo, podendo citar-se os de 14/12/2006, CJ /STJ 2006, 30, 161, 23/07/2007, procº nº 07A2736, dgsi. Net estes anteriores à nova lei e o de 15/03/2010, procº nº 123/08.8TBMDR.Pl também no mesmo “site”, posterior à mesma.
V - Pelo exposto, acorda-se em negar a revista e, em consequência, confirma-se o decidido no acórdão, recusando aplicar, nos termos do art. 204º da Constituição, o novo normativo da Lei nº 14/09 sobre o prazo de caducidade da ação de investigação da paternidade na aqui movida pela recorrida”[...]
2. É deste Acórdão que B. recorre para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70.º n.º 1 alínea a) da Lei 28/82 de 15 de novembro (LTC). Admitido o recurso, o recorrente alegou e concluiu:
“1 – A estabilidade jurídica impõe, que o exercício de direitos indisponíveis também esteja sujeito a prazo.
2 – A Lei nº 14/2009, de 1 de abril, não é inconstitucional, quer quanto à fixação de prazo para a propositura da ação de investigação, quer quanto à sua aplicação aos processos pendentes.
3 – Por isso, o S.T.J., ao recusar-se a aplicar a Lei nº 14/2009 violou a mesma lei e o artº 204º da C.R.P.
Termos em que, e sempre com o doutíssimo suprimento de Vossas Excelências, deverá ser declarada constitucional a Lei nº 14/2009, de 1 de abril e, em consequência, julgada improcedente a presente ação, por caducidade do direito”.
3. A recorrida apresentou contra-alegações, que concluiu da seguinte forma:
a) - O estabelecimento de um limite temporal para a instauração de uma ação de investigação de paternidade é inconstitucional por violação dos artigos 26º, n.º 1, 36º, n.º 1 e 18º, n.º 2 da CRP.
b) - O artigo 36º, n.º 1 da CRP reconhece um direito de constituir família, o qual impõe ao legislador a previsão de meios para o estabelecimento jurídico dos vínculos de filiação, entre os quais se inclui a ação de investigação.
e) - “Deve, pois, dar-se por adquirida a consagração, na Constituição, como dimensão do direito à identidade pessoal, consagrado no artigo 26º, n.º 1, de um direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da maternidade e da paternidade.” – Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/2006.
d) - O envelhecimento ou perecimento das provas não configura uma justificação aceitável para o estabelecimento de um prazo de caducidade, fruto dos avanços científicos que permitem a realização de testes de ADN, com uma fiabilidade muito próxima da certeza
e) - O argumento que se situa numa perspetiva patrimonial não pode prevalecer perante o exercício de uma faculdade eminentemente pessoal, como a de averiguar quem é o seu progenitor.
f) - Não se justifica conceder ao pretenso progenitor e aos seus herdeiros uma proteção da segurança da sua vida patrimonial que legitime a exclusão do direito do filho a saber quem é o seu pai.
g) - O artigo 1817º, n.º 1 do Código Civil tem como consequência uma diminuição desproporcional do alcance do conteúdo essencial dos direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família, que incluem o direito ao conhecimento da paternidade.
h) - O artigo 67º da CRP enquadra-se no capítulo dos direitos e deveres sociais, pelo que não tem qualquer aplicação ao caso em apreço, no qual estão em causa direitos, liberdades e garantias pessoais.
i) - Devem os Venerandos Juízes Conselheiros confirmar a inconstitucionalidade do artigo 1817º, n.º 1 do Código Civil, na redação que lhe é dada pela Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, por violação dos artigos 26º, n.º 1, 36º, n.º 1 e 18º, n.º 2 do CRP.
j) - A estipulação do prazo de caducidade constante da nova redação do artigo 1817º, n.º 1 do Código Civil constitui uma restrição ao direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da maternidade e da paternidade.
k) - Independentemente da proporcionalidade ou desproporcionalidade da consagração de um prazo de caducidade, o artigo 1817º, n.º 1 do Código Civil, na sua nova redação, é uma lei restritiva de direitos, liberdades e garantias.
l) - De acordo com o artigo 18º, n.º 3 da CRP, as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias não podem ter efeito retroativo.
m) - A solução constante do artigo 3º da Lei n.º 14/2009 viola ostensivamente os princípios da segurança jurídica e da confiança jurídica, sendo claramente desfavorável ao titular do direito fundamental.
n) - A alteração do regime jurídico, com efeitos retroativos, na pendência do processo, frustrou a confiança da Recorrida no Estado de Direito, impedindo que esta pudesse fundamentar de modo adequado a sua pretensão.
o) - Negar um direito fundamental ao reconhecimento da paternidade, com base na entrada em vigor de uma norma com efeito retroativo, quando os factos que suportam o direito invocado se encontram demonstrados, viola claramente os princípios da segurança e da confiança jurídicas.
p) - A aplicação retroativa da nova redação do artigo 1817º, n.º 1 do Código Civil viola claramente o princípio da verdade material.
q) - Devem os Venerandos Juízes Conselheiros confirmar a inconstitucionalidade do artigo 1817.º do Código Civil, na redação que lhe é dada pela Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, por violação do artigo 18º, n.º 3 da CRP.
4. São duas as questões de inconstitucionalidade a que importa dar resposta. Em primeiro lugar, saber se o n.º 1 do artigo 1817º do Código Civil, na redação da referida Lei n.º 14/09, é inconstitucional, na medida em que prevê um determinado prazo de caducidade para a propositura das ações de investigação da paternidade; e, depois, a questão é saber se o artigo 3.º da Lei n.º 14/09, de 1 de abril, a norma transitória que manda aplicar aos processos pendentes o novo regime de prazos resultante da Lei n.º14/2009, de 1 de abril, constitui uma violação do princípio constitucional da justiça e da tutela da confiança legítima ínsitos no princípio do Estado de direito democrático decorrente do artigo 2º da Constituição.
O Plenário do Tribunal já conheceu de ambas as questões.
Na verdade, face a posições divergentes na jurisprudência das suas Secções, no Acórdão n.º 401/2011 o Tribunal decidiu que «a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante, não se afigura desproporcional, não violando os direitos constitucionais ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico, abrangidos pelo direitos fundamentais à identidade pessoal, previsto no artigo 26.º, n.º 1, e o direito a constituir família, previsto no artigo 36.º, n.º 1, ambos da Constituição». Decidiu, em consequência, «não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante.»
Quanto à norma transitória, pronunciou-se o Tribunal no Acórdão n.º 24/12.
Entendeu-se, em suma, que a aplicação do prazo previsto na alínea c) do n.º 3 do artigo 1817º aos processos pendentes à data de entrada em vigor da Lei n.º 14/2009 de 1 de abril, por força do artigo 3.º da referida Lei, viola a Constituição.
No presente caso, apesar de não poder manter-se o julgamento do tribunal recorrido quanto à inconstitucionalidade da norma do artigo 1817º n.º 1 do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009 de 1 de abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante, o certo é que, devendo manter-se o julgamento quanto à desconformidade constitucional da norma do artigo 3.º da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, na medida em que manda aplicar, aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, o prazo previsto na nova redação do artigo 1817.º nº 1, do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, tal é suficiente para confirmar o efeito da decisão recorrida que decorre do julgamento da questão de inconstitucionalidade.
5. Em consequência, decide-se – em aplicação da referida jurisprudência – negar provimento ao presente recurso. Sem custas.
Lisboa, 9 de fevereiro de 2012.- Carlos Pamplona de Oliveira – Maria João Antunes – Gil Galvão – Rui Manuel Moura Ramos.
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