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Processo n.º 631/11
2ª Secção
Relator: Conselheiro José Cunha Barbosa
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O representante do Ministério Público, junto do 2.º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal do Porto, interpôs recurso (obrigatório) para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 280.º, n.º 1, alínea a) e 3 da Constituição da República Portuguesa e, bem assim, 70.º, n.º 1, alínea a) e 72º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, da decisão proferida naquele Tribunal, em 7 de julho de 2011, no âmbito do processo n.º 514/11.7PTPRT em que é arguido A., que se recusou a aplicar a norma contida no artigo 384.º, n.º 2 do CPP com fundamento em inconstitucionalidade.
2. Na decisão recorrida, afirma-se, no que releva para a apreciação da questão de (in)constitucionalidade, o seguinte:
«…
Atento o enquadramento legal, são os presentes autos, autos de processo sumário, arts. 381 a 391°, a que corresponde o TITULO I - Do processo sumário, do LIVRO VIII - Dos processos especiais, da PARTE SEGUNDA do CPP.
Autue-se e registe-se como tal.
*
Dispõe o art. 384° do CPP, com as alterações introduzidas pela lei nº 26/2010 de 30 de agosto:
nº 1 — É correspondentemente aplicável em processo sumário o disposto nos artigos 280°, 281° e 282°, até ao início da audiência, por iniciativa do tribunal ou a requerimento do Ministério Público, do arguido ou do assistente, devendo o juiz pronunciar-se no prazo de cinco dias.
nº 2 — Se, para efeitos do disposto no número anterior, não for obtida a concordância do juiz de instrução, o Ministério Público notifica o arguido e as testemunhas para comparecerem ... a julgamento.
Determina e impõe pois esta norma a competência para conhecer do pedido de suspensão provisória do processo no âmbito do processo sumário que corre termos pelo Tribunal de Pequena Instância Criminal não o juiz titular desse órgão de soberania, mas o juiz do Tribunal de Instrução Criminal.
O que constitui uma violação da Constituição, art. 18º, nº 2 e 102º da LOFT e arts. 202º, 203º, 210º, nº 3 e 211º, nº 2 da CRP.
Assente é que o arguido, nos termos dos arts. 381º a 383º do CPP, é apresentado para julgamento sob a forma de processo sumário.
E é matéria específica da competência do TPIC preparar e julgar as causas a que corresponda a forma de processo sumário, nos termos do art. 211º, nº 2 da Constituição e da norma do art. 102º da lei de organização e funcionamento dos tribunais.
Na verdade, nos termos dos arts. 210º, nº 3 e 211º da Constituição da República Portuguesa (CRP), os tribunais judiciais exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais, podendo haver na primeira instância tribunais com competência específica e tribunais especializados para o julgamento de matérias determinadas.
E assim estão criados e instalados nesta Comarca do Porto os Tribunais de Instrução Criminal, de competência especializada, e os Tribunais de Pequena Instância Criminal, de competência específica, cabendo àqueles exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, e a estes preparar e julgar as causas a que corresponda a forma de processo sumário, arts. 79º, nº 1 e 102º, nº 1, da LOFT.
Nos termos do art. 202º da Constituição, os tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo.
(…)
Nos termos da constituição são o TIC e o TPIC, cada um deles, um órgão de soberania, independente e com reserva da função jurisdicional atribuída em proveito do tribunal.
(…)
Pelo que, a competência determinada e imposta ao juiz do Tribunal de Instrução Criminal pela norma do nº 2 do art. 384º do CPP para conhecer do pedido de suspensão provisória do processo no âmbito do processo sumário que corre termos pelo Tribunal de Pequena Instância Criminal, constitui uma ofensa à soberania e independência dos tribunais, citados arts. 18°, nº 2, 790 e 102° da LOFT e 202º, 203º, 210º, nº 3 e 211º, nº 2 da CRP.
Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei. Mas esta subordinação à lei deve ser entendida como subordinação não apenas ao bloco de legalidade estrito, mas também à Constituição — autores e ob. cit., pág. 38
(…)
O que em consonância se decide pela inconstitucionalidade do art. 384º, nº 2 do CPP com a redação dada pela lei nº 26/2010 de 30 de agosto, por violação dos arts. 202º, 203º, 210º, nº 3 e 211º, nº 2, e ainda 32º, nº 9, da Constituição da República Portuguesa que determina e atribui ao Juiz deste Tribunal de Instrução Criminal a competência reservada ao Juiz do Tribunal de Pequena Instância Criminal.
...».
3. O Digno Magistrado do Ministério Público, junto deste Tribunal, notificado para apresentar as suas alegações de recurso, nelas se pronunciou quanto à ‘delimitação do objeto do recurso’ e, bem assim, sobre o seu mérito, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
«…
1. Tendo a iniciativa de suspender provisoriamente o processo partido do Ministério Público logo que o arguido se apresentou para ser julgado em processo sumário, a norma do nº 2 do artigo 384° do CPP, na redação dada pela Lei nº 26/2010, de 30 de agosto, enquanto determina que é o juiz de instrução o competente para concordar ou discordar daquela decisão do Ministério Público (artigo 281°, nº 1, do CPP), não viola o princípio do juiz natural, consagrado no artigo 32º, nº 9, da Constituição, nem qualquer outro preceito constitucional, designadamente os artigos 202.º, 203.º, 210.º, n.º 3, e 211.º, n.º 2, não sendo, por isso, inconstitucional.
2. Termos em que deverá conceder-se provimento ao recurso.
…».
4. Com relevo para a apreciação do caso concreto, importa deixar explicito que os autos indiciam os seguintes factos:
- A. foi notificado, em 21.06.2011, para « … comparecer nos Serviços do Ministério Público, Juízos de Pequena Instância Criminal do Porto. No dia 22.06.2011, pelas 09:30» (cfr. ‘auto de notícia por detenção’ e ‘auto de libertação e notificação);
- Os autos indiciavam a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez «… p.p. pelos artigos 292.º, n.º 1, 69.º, n.º 1, al. a) e 101.º do Código Penal …» (cfr. auto de notícia por detenção), ou seja, com uma TAS de 1,31 g/l;
- A Exma. Procuradora-Adjunta, de turno semanal, proferiu despacho em que validou a constituição como arguido do cidadão supra identificado e, tendo ponderado o uso do instituto da suspensão provisória do processo, nele concluiu da seguinte forma:
«…
Assim, em seguida proceder-se-á à audição sumária da/o arguida/o, através de declaração, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 382.º, n.º 2, 1ª parte do Código de Processo Penal a fim de aquilatarmos se a/o arguida/o concorda com a suspensão provisória do processo, mediante a imposição de injunções, atenta a sua situação económica, social e familiar, cotejadas com as exigências de prevenção geral e especial que o presente caso requer.
…»:
- O arguido deu a sua concordância e, em despacho fundamentado, em que se afirma existirem os pressupostos que justificariam o uso do ‘instituto da suspensão provisória do processo’, aquela magistrada, concluiu:
«…
Nestes termos, mediante a concordância do Meritíssimo Juiz de Instrução, determina-se nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 281.º e 282.º, do Código de Processo Penal, a suspensão provisória do processo pelo período de 4 meses, impondo ao arguida/o as injunções constantes dos pontos 1 e 6 da declaração que antecede.
*****
Concluam-se os autos ao Meritíssimo Juiz de Instrução para que se pronuncie, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 281.º, 282.º e 384.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal.
Para tanto, remeta os presentes autos ao Tribunal de Instrução Criminal do Porto.
… »;
- O Exmo. Juiz de Instrução Criminal proferiu despacho em que, inicialmente, determinou a autuação dos autos como ‘processo sumário’, tendo de seguida, após explanação da respetiva fundamentação, concluido da seguinte forma:
«…
O que em consonância se decide pela inconstitucionalidade do art. 384º, nº 2 do CPP com a redação dada pela lei nº 26/2010 de 30 de agosto, por violação dos arts. 202º, 203º, 210º, nº 3 e 211º, nº 2, e ainda 32º, nº 9, da Constituição da República Portuguesa que determina e atribui ao Juiz deste Tribunal de Instrução Criminal a competência reservada ao Juiz do Tribunal de Pequena Instância Criminal.
…».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
5. O presente recurso mostra-se interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, ou seja, com base na recusa de aplicação da norma constante do n.º 2 do artigo 384.º do Código de Processo Penal, com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Como se dá nota no Acórdão n.º 433/2011 desta 2.ª Secção, face a sucessivas decisões de recusa de aplicação da norma em causa com fundamento na sua inconstitucionalidade e proferidas pelo Tribunal de Instrução Criminal do Porto, submetidas, pela mesma via do recurso, à apreciação do Tribunal Constitucional, este tem vindo a decidir não tomar conhecimento do objeto desses recursos, de que é exemplo o acórdão acabado de mencionar, invocando-se, para tanto, a inexistência de uma ‘desaplicação da norma por inconstitucionalidade’ e/ou ‘irrelevância do juízo de constitucionalidade’ que pudesse vir a fazer-se quanto à norma em causa, tendo em vista uma eventual alteração da decisão recorrida.
Porém, a fundamentação da decisão sob recurso é, agora, diversa da que levou ao não conhecimento do objeto daqueles recursos, porquanto abandona, ainda que com a permanência de um leve resquício, os fundamentos de natureza infraconstitucional e coloca a questão vincadamente segundo parâmetros constitucionais.
Daí que se possa concluir que estamos, no caso ‘sub judicio’, perante uma recusa de aplicação de norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, não resultando da decisão recorrida algo que possa determinar a sua inutilidade, encontrando-se, assim, verificados os pressupostos que determinam o seu conhecimento.
6. No caso, como se alcança do teor do requerimento de interposição de recurso, o objeto deste é consubstanciado pela recusa de aplicação, por inconstitucionalidade, da norma constante «… do artigo 384.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 26/2010, de 30/08.
Delimitado, assim, o objeto do recurso, impõe-se a apreciação e decisão da questão de (in)constitucionalidade suscitada.
7. O Ministério Público, junto do Tribunal de Pequena Instância Criminal do Porto, tendo-lhe sido presente o arguido para julgamento em processo sumário, em vez de o apresentar a julgamento (cfr. artigo 382.º, n.º 2 do Código de Processo Penal), proferiu despacho em que concluiu pela verificação dos pressupostos que justificavam a aplicação do instituto da ‘suspensão provisória do processo’, previsto no artigo 281.º do Código de Processo Penal, tendo, em consequência, obtida a concordância do arguido, determinado que os autos fossem conclusos ao Juiz de Instrução, no caso, do Tribunal de Instrução Criminal do Porto, a fim de que este se pronunciasse «…, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 281.º, 282.º e 384.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal.»
Neste último tribunal, o Senhor Juiz de Instrução Criminal veio a proferir decisão, cujo mérito no que concerne ao plano infraconstitucional nos não cumpre apreciar, na qual, após ter determinado a autuação dos autos como ‘processo sumário’, decidiu, com base nos fundamentos invocados, «… pela inconstitucionalidade do art. 384.º, n.º 2 do CPP com a redação dada pela lei n.º 26/2010 de 30 de agosto, por violação dos arts. 202º, 203º, 210º, nº 3 e 211º, nº 2, e ainda 32º, nº 9, da Constituição da República Portuguesa que determina e atribui ao Juiz deste Tribunal de Instrução Criminal a competência reservada ao Juiz de Pequena Instância Criminal», sendo que desta decisão se poderá concluir que se está perante a recusa de aplicação, no mínimo implícita, da identificada norma com fundamento na sua inconstitucionalidade.
O artigo 384º, donde foi extraída a norma desaplicada, é do seguinte teor:
Artigo 384.º
[Arquivamento ou suspensão do processo]
1 - É correspondentemente aplicável em processo sumário o disposto nos artigos 280.º, 281.º e 282.º, até ao início da audiência, por iniciativa do tribunal ou a requerimento do Ministério Público, do arguido ou do assistente, devendo o juiz pronunciar -se no prazo de cinco dias.
2 - Se, para efeitos do disposto no número anterior, não for obtida a concordância do juiz de instrução, o Ministério Público notifica o arguido e as testemunhas para comparecerem numa data compreendida nos 15 dias posteriores à detenção para apresentação a julgamento em processo sumário, advertindo o arguido de que aquele se realizará, mesmo que não compareça, sendo representado por defensor.
3 - Nos casos previstos no n.º 4 do artigo 282.º, o Ministério Público deduz acusação para julgamento em processo abreviado no prazo de 90 dias a contar da verificação do incumprimento ou da condenação.
Da conjugação da norma em causa com o disposto nos artigos 281.º e 282.º do Código de Processo Penal resulta que a ‘suspensão provisória do processo’ é aplicável no âmbito do processo sumário, sendo que naquela se deixa expressamente mencionada, como se faz na norma contida no n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, a necessidade da concordância do ‘juiz de instrução’, perante a proposta do Ministério Público e obtida a concordância do arguido, interpretação esta que a decisão recorrida acolhe e em que baseia o seu juízo de (in)constitucionalidade, e à qual se deverá atender, na apreciação e decisão do presente recurso, porquanto é vedado ao Tribunal Constitucional a pronúncia interpretativa sobre as normas infraconstitucionais.
A decisão recorrida, partindo dessa leitura da norma em causa, como se deixou já referido, afirma a sua inconstitucionalidade com fundamento em que a exigência da intervenção do ‘juiz de instrução’, no âmbito do processo sumário e para manifestar concordância ou discordância relativamente à ‘suspensão provisória do processo’, coloca em crise a independência dos tribunais, a competência e especialização dos tribunais judiciais e o princípio do juiz natural, princípios estes de consagração constitucional.
Ora, das normas contidas nos artigos 281.º e 282.º do Código de Processo Penal resulta que «[se] o crime for punível com pena de prisão não superior a cinco anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição de injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem …» os pressupostos enumerados nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, sendo que, se o arguido cumprir as injunções e regras de conduta que lhe venham a ser opostas, dentre as previstas no n.º 2 do citado normativo legal, o Ministério Público arquivará o processo que não poderá ser reaberto, como resulta do disposto no artigo 282º, nº 3 do mencionado diploma legal; caso contrário, isto é, perante uma situação de incumprimento daquelas injunções ou regras, o processo prosseguirá, naturalmente, para a fase de julgamento.
Pode, assim, concluir-se que a suspensão provisória do processo, cumpridas que se mostrem as injunções e regras de conduta impostas, levará necessariamente à não submissão do arguido a julgamento, constituindo, designadamente quando a iniciativa parta do Ministério Público e no seguimento de uma apresentação de detido para julgamento em processo sumário, uma alternativa à acusação, correspondendo antes a uma decisão de não submissão a julgamento (cf., neste sentido, Fernando José dos Santos Pinto Torrão, ‘in’ Relevância Politico-Crimininal da Suspensão Provisória do Processo, págs. 185 e 186).
Tal conceito e finalidade da ‘suspensão provisória do processo’, tidos conjugadamente com a estrutura jurídico-processual do processo sumário, levam, desde logo, ao afastamento do pressuposto subjacente à argumentação desenvolvida na decisão recorrida para justificar o juízo de inconstitucionalidade nela alcançado, como decidiu já o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 7/2012, em caso em tudo idêntico ao presente, e que, por se concordar com os fundamentos aí plasmados, se seguirá de muito perto.
Na realidade, a decisão recorrida considera que a norma contida no artigo 384.º, n.º 2 do Código de Processo Penal é inconstitucional por violação dos artigos 202.º (função jurisdicional), 203.º (independência dos tribunais), 210.º, n.º 3 e 211.º, n.º 2 (competência e especialização dos tribunais judiciais) e, ainda, 32.º, n.º 9 (princípio do juiz natural) da Constituição da República Portuguesa, tudo no pressuposto de que a mencionada norma permite subtrair ao tribunal competente para julgamento em processo sumário uma causa que já lhe estava cometida.
Tal pressuposto é, todavia, insustentável, face às normas adjetivas pelas quais se regula o processo sumário (cfr. artigos 381.º e ss. do CPP), designadamente, tendo em conta, como delas resulta, a ‘fase pré-judicial’, se assim se pode dizer, que se segue à apresentação do detido pelos ‘órgãos de polícia criminal’ ou ‘autoridade de polícia criminal’, que hajam procedido à detenção, ou sob notificação destes, mas que será sempre prévia ao requerimento para julgamento em processo sumário, fase processual essa em que o Ministério Público, a quem o detido é apresentado ou se apresenta, exerce significativos poderes processuais que poderão, inclusive, conduzir a uma não submissão do detido a julgamento imediato ou, até, posterior – cfr. artigos 382.º e 384º do CPP).
Efetivamente, o Ministério Público, com fundamento nas citadas normas processuais e presente que lhe seja o detido, procederá, caso entenda ser conveniente, ao seu interrogatório de forma sumária e, de seguida, na hipótese de dever ser submetido a julgamento em processo sumário, deduzirá acusação que poderá, no caso, ser substituída «… pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à detenção» - artigos 382.º, n.º 2 e 389.º, nº 2 do CPP; todavia, pode o Ministério Público, ainda e previamente à acusação, no uso dos poderes legalmente conferidos, proceder a ‘diligências de prova essenciais à descoberta da verdade’ – artigo 382.º, nº 4 do CPP, e, bem assim, pode determinar o arquivamento ou suspensão do processo – artigo 384.º do CPP.
Tais poderes do Ministério Público suscitaram, aliás, a Paulo Pinto de Albuquerque (ob. cit., pág. 992), com referência a esta fase processual prévia à acusação, o seguinte comentário: «… A Lei n.º 48/2007, de 29.8, alargou esta fase de um modo muito significativo, reforçando deste modo a importância da intervenção fiscalizadora e de controlo do MP no processo sumário. Assim, a direção do processo cabe ao MP nesta fase preliminar e não judicial do processo sumário e até à apresentação dos autos ao juiz, …», continuando, mais adiante, «… A Lei n.º 26/2010, de 30.8, alargou ainda mais esta fase pré-judicial, dando azo a um “para-inquérito” no processo sumário, … Os autos não podem ser autuados como inquérito, pois esta é uma fase do processo comum. Mas também não são ainda processo sumário, podendo, quando muito, ser autuados como “autos de apresentação de arguido a processo sumário”. …».
Tudo vale por dizer que, seja qual for a classificação por que se opte relativamente a esta fase preliminar, haver-se-á sempre de ter em conta que, enquanto o Ministério Público não deduzir acusação ou requerer julgamento em processo sumário, isto é, enquanto não introduzir o processo em juízo, se não pode afirmar que a causa se encontra afeta a um determinado tribunal (juiz) e, consequentemente, se justifique, de forma razoável, a convocação dos princípios constitucionais referentes à organização e independência dos tribunais, como assim, a garantia inerente ao princípio do juiz natural, com apelo ao facto de o juiz chamado a intervir não ser o competente para julgamento.
Na realidade, como o Tribunal, deixou explícito, no já referido Acórdão n.º 7/2012 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt),
«…para que tivesse sentido colocar uma questão de violação da independência dos tribunais ou de subtração da causa ao juiz designado por lei, seria, antes do mais, necessário que a pretensão punitiva já tivesse sido transmitida pelo Ministério Público ao juiz do tribunal competente para julgamento em processo sumário, de tal modo que viesse a ser privado desse concreto poder judicativo ou da inerente autonomia decisória por virtude da atribuição da competência em causa a um outro juiz. A circunstância de o processo ter dado entrada nos serviços administrativos do tribunal de pequena instância criminal – sejam eles da secretaria do Ministério Público ou na secretaria judicial desse tribunal – é, para este efeito, irrelevante. …».
Assim, pode concluir-se que, enquanto o feito não for introduzido em juízo, falece qualquer pertinência à convocação dos supra identificados princípios constitucionais, porquanto se não pode afirmar que esteja em crise a competência ou a independência de um determinado juiz, o que faz naufragar o pressuposto subjacente ao juízo formulado na decisão recorrida e, consequentemente, a inconstitucionalidade nela declarada.
8. Apesar da insubsistência do mencionado pressuposto, sempre se dirá, por acréscimo, que se afigura manifesta a improcedência da fundamentação, vertida na decisão recorrida, tendo em conta o confronto da norma em causa com cada um dos princípios constitucionais invocados – independência dos tribunais, organização dos tribunais e juiz natural.
Vejamos cada um deles.
8.1 A independência dos tribunais, enquanto princípio constitucional, resulta do disposto no artigo 203.º da CRP, na medida em que aí se deixa expresso que «Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei». Tal independência afirma-se em relação aos demais poderes do Estado, e, inclusivamente, aos tribunais entre si, salvaguardadas, naturalmente, as relações de hierarquia dentro de cada categoria de tribunais (cfr. artigos 210.º, 212.º e 221.º da CRP).
Na decisão recorrida sustenta-se que a norma em causa - artigo 384.º, n.º 2 do CPP - conduz à violação do princípio da independência dos tribunais por consentir ou determinar que um tribunal pratique atos que, de acordo com as regras de organização judiciária (que se afirmam com projeção constitucional), caberiam na competência de outro tribunal.
Como é consabido, a independência dos tribunais afere-se, em essência e substância, pela independência dos respetivos juízes, consistindo aquela no dever de estes julgarem apenas segundo a Constituição e a lei, portanto, sem sujeição a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso pelos tribunais superiores; efetivamente, como afirmam J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed. revista, pág. 514), « … [o] direito do juiz à independência convoca várias dimensões densificadoras da liberdade à independência no julgar: (i) liberdade contra injunções de quaisquer autoridades; (ii) liberdade de decisão perante coações ou pressões destinadas a influenciar a atividade de jurisdictio; (iii) liberdade de ação perante condicionamento incidente sob a atuação processual; (iiii) liberdade de responsabilidade, pois só ao juiz cabe extrinsecar o direito e obter a solução justa do feito submetido à sua apreciação. …».
Porém, a tal propósito, o Tribunal já afirmou, no mencionado Acórdão n.º 7/2012, ser
«… manifesto que a circunstância de a competência para proferir despacho relativamente a determinada matéria, numa causa penal que não chegou a ser submetida ao juiz de julgamento pertencer a outro juiz é indiferente ao poder (ou ao dever) de o tribunal supostamente privado da competência julgar sem sujeição a quaisquer ordens ou instruções. O juiz de instrução, ao dar ou negar a sua concordância à suspensão provisória do processo, não dá qualquer ordem nem afeta ou influi em qualquer julgamento que, no caso concreto, o juiz do tribunal de pequena instância criminal devesse proferir. Não podem, pois, considerar-se violados os artigos 202.º e 203.º da Constituição. …».
Não há dúvida alguma que, tendo a intervenção do ‘juiz de instrução’ sido suscitada, como se deixou já explicitado supra, antes que tivesse sido deduzida acusação e/ou requerido julgamento em processo sumário, se não pode afirmar, desde logo e sem mais, que a causa era da competência do juiz do tribunal de pequena instância criminal, e esta lhe foi retirada, pois, verdadeiramente, o feito ainda não havia sido introduzido em juízo; acresce que, efetivamente, o despacho a proferir pelo ‘juiz de instrução’, isto é, de concordância ou não com a suspensão do processo, jamais poderá constituir qualquer ingerência no julgamento que possa vir a ser cometido ao juiz de pequena instância criminal, e, consequentemente vir a afetar, antes pelo contrário, a sua liberdade no ato de julgar.
Assim, contrariamente ao afirmado na decisão recorrida, não se verifica qualquer violação dos artigos 202.º e 203.º da CRP.
8.2 No que importa à ‘organização dos tribunais’, não há dúvida que a norma contida no artigo 211.º da Constituição, determina no seu n.º 2 que «Na primeira instância pode haver tribunais com competência e tribunais especializados para o julgamento de matérias determinadas».
Porém, como afirmou já o Tribunal, com relevância para tal questão, no Acórdão n.º 7/2012, ter-se-á que:
«… [o] n.º 2 do artigo 211.º permite que na primeira instância dos tribunais judiciais haja tribunais com competência específica e tribunais especializados para julgamento de matérias determinadas. Independentemente do sentido que deva conferir-se a esta distinção e que não interessa dilucidar, esta previsão não confere valor constitucional às normas de organização judiciária que, ao seu abrigo, tenham repartido a competência entre os diversos tribunais judiciais. E, por outro lado, também não reserva esse conteúdo para as leis especificas de organização judiciária, proibindo que as leis de processo se ocupem da matéria, porventura derrogando pontualmente o que daquelas resultaria. …».
Daí que, sem curar do acerto da solução encontrada pelo legislador e consagrada no artigo 384.º, n.º 2 do CPP, o certo é que da mencionada norma constitucional – artigo 211.º, n.º 2 – não é possível extrair qualquer vinculação do legislador que o impedisse de legislar tal como o fez, ou seja, dela não resulta que o despacho de concordância ou não com a ‘suspensão provisória do processo’ deva competir ao juiz de instrução ou ao juiz (tribunal) de julgamento e, bem assim, que fosse proibido às leis de processo ocupar-se de tal matéria.
8.3 Por último, resta verificar se a norma contida no artigo 384.º, n.º 2 do CPP, viola o princípio do ‘juiz legal’ ou do ‘juiz natural’, consagrado no n.º 9 do artigo 32.º da CRP.
O princípio do ‘juiz natural’ ou do ‘juiz legal’, como explicitam J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed. revista, pág. 525), «… comporta várias dimensões fundamentais: (a) exigência de determinabilidade, o que implica que o juiz (ou juízes) chamado(s) a proferir decisões num caso concreto estejam previamente individualizados através de leis gerais, de uma forma o mais possível inequívoca; (b) princípio da fixação de competência, o que obriga à observância das competências decisórias legalmente atribuídas ao juiz e à aplicação dos preceitos que de forma mediata ou imediata são decisivos para a determinação do juiz da causa; (c) observância das determinações de procedimento referentes à divisão funcional interna (distribuição de processos), o que aponta para a fixação de um plano de distribuição de processos (embora esta distribuição seja uma atividade materialmente administrativa, ela conexiona-se com o princípio da administração judicial). …».
Poder-se-á, assim, afirmar, em essência e síntese, que ‘juiz natural’ ou o ‘juiz legal’ será o juiz a quem cabe a competência para a causa, nos termos da lei, exigindo o princípio constitucional, consagrado no n.º 9 do artigo 32.º da CRP, que essa competência esteja fixada em lei anterior à prática do facto (crime).
Aliás, sobre os fundamentos da exigência do princípio do ‘juiz natural’ ou do ‘juiz legal, pronunciou-se já o Tribunal em diversos acórdãos, designadamente no Acórdão n.º 614/03 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), onde, no que releva para o caso concreto, deixa explícito que:
«…O princípio do “juiz natural”, ou do “juiz legal”, para além da sua ligação ao princípio da legalidade em matéria penal, encontra ainda o seu fundamento na garantia dos direitos das pessoas perante a justiça penal e no princípio do Estado de direito no domínio da administração da justiça. É, assim, uma garantia da independência e da imparcialidade dos tribunais (artigo 203º da Constituição).
Designadamente, a exigência de determinabilidade do tribunal a partir de regras legais (juiz legal, juiz predeterminado por lei, gesetzlicher Richter) visa evitar a intervenção de terceiros, não legitimados para tal, na administração da justiça, através da escolha individual, ou para um certo caso, do tribunal ou do(s) juízes chamados a dizer o Direito. Isto, quer tais influências provenham do poder executivo – em nome da raison d’État – quer provenham de outras pessoas (incluindo de dentro da organização judiciária). Tal exigência é vista como condição para a criação e manutenção da confiança da comunidade na administração dessa justiça, “em nome do povo” (artigo 202º, n.º 1, da Constituição), sendo certo que esta confiança não poderia deixar de ser abalada se o cidadão que recorre à justiça não pudesse ter a certeza de não ser confrontado com um tribunal designado em função das partes ou do caso concreto.
A garantia do “juiz natural” tem, assim, um âmbito de proteção que é, em larga medida, configurado ou conformado normativamente – isto é, pelas regras de determinação do juiz “natural”, ou “legal” (assim G. Britz, ob. cit, pág. 574, Bodo Pieroth/Bernhard Schlink, Grundrechte II, 14ª ed., Heidelberg, 1998, pág. 269).
E, independentemente da distinção no princípio do juiz legal de um verdadeiro direito fundamental subjetivo de dimensões objetivas de garantia, pode reconhecer?se nesse princípio, desde logo, uma dimensão positiva, consistente no dever de criação de regras, suficientemente determinadas, que permitam a definição do tribunal competente segundo características gerais e abstratas. …».
Ora, entendido desta forma tal princípio, o mesmo não se encontra minimamente colocado em crise pela norma contida no artigo 384.º, n.º 2 do CPP, designadamente na dimensão cuja aplicação veio a ser recusada. Na realidade, a competência para proferir o despacho em causa, ou seja, de concordância ou não com a ‘suspensão provisória do processo’ encontra-se determinada por lei anterior, geral e abstrata. Efetivamente, para tanto, é competente o juiz de instrução que, face aos fatores de conexão relevantes, o seria em qualquer outro tipo de processo, sem qualquer possibilidade de os sujeitos processuais ou terceiros poderem alterar, atuando de modo discricionário, o tribunal (juiz) ou tribunais que hão de intervir no processo.
Daí que, encontrando-se definidos, no caso concreto e por lei anterior, as regras que permitem definir o tribunal (juiz) competente segundo características gerais e abstratas, deva concluir-se pela observância do princípio (constitucional) do ‘juiz natural’ ou do ‘juiz legal’, e, consequentemente, pela inexistência de qualquer inconstitucionalidade com base no mesmo.
Concluindo, soçobram, também nesta parte, as razões ou fundamentos invocados na decisão recorrida quanto à, aí afirmada, violação de tal princípio.
III. Decisão
Pelo exposto, concedendo-se provimento ao recurso, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 384.º do CPP, com a redação dada pela Lei n.º 26/2010, de 30 de agosto, interpretada no sentido de que é o Juiz de Instrução o competente para dar a concordância à suspensão provisória do processo, nos casos em que o arguido é apresentado para julgamento em processo sumário, e o Ministério Público entenda, com a concordância do arguido, que se justifica tal suspensão;
b) Ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o agora decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 8 fevereiro de 2012.- J. Cunha Barbosa – João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Joaquim de Sousa Ribeiro – Rui Manuel Moura Ramos.
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