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Processo n.º 799/11
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, o agora reclamante, A., veio interpor recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
2. O objeto do recurso – que incide sobre o acórdão de 22 de junho de 2011 – é delimitado, nos seguintes termos:
“(…) O recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade do n.º 2 do artº 374º do CPP, com a interpretação que lhe é dada pelo acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no sentido de julgar improcedente a inconstitucionalidade alegada pelo recorrente quanto à aplicação do n.º 2 do artigo 374º do CPP, por violação do n.º 1 do artº 205 da CRP.”
3. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se, nomeadamente, o seguinte:
“(…) O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência dum objeto normativo – norma ou interpretação normativa – como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (CRP); artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
(…) Face à semelhança entre os recursos interpostos pelos recorrentes A. e B., serão os mesmos tratados conjuntamente, apenas se isolando as considerações quando necessário.
Ambos os recursos em análise se reportam ao n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal, que é do seguinte teor:
“ Artigo 374.º
Requisitos da sentença
(…)
2- Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”
Não obstante o recorrente A. não enunciar, de forma clara e especificada, a concreta interpretação do preceito em referência, cuja constitucionalidade pretende ver sindicada, apenas fazendo uma alusão remissiva para a decisão recorrida, não se justifica facultar-lhe a possibilidade de suprir tal omissão, mediante o convite ao aperfeiçoamento a que se reporta o n.º 6 do artigo 75.º-A, da LTC, atenta a não verificação de pressupostos de admissibilidade do recurso insupríveis por essa via, que sempre determinariam a impossibilidade de conhecimento de mérito, como melhor exporemos infra.
Na verdade, o convite ao aperfeiçoamento, previsto no artigo 75.º-A, n.os 5 e 6, da LTC, só tem sentido útil quando faltam apenas meros requisitos formais do requerimento de interposição do recurso – a que se alude nos n.os 1 a 4 do mesmo preceito – carecendo, ao invés, de utilidade quando faltam os pressupostos de admissibilidade do recurso – enunciados especificamente no artigo 70.º e no n.º 2 do artigo 72.º da LTC – que não podem ser supridos deste modo. Nesta última hipótese, em vez de proferir um convite ao aperfeiçoamento – que determinaria a produção de processado inútil, em prejuízo dos princípios de economia e celeridade processuais – deve o relator proferir logo decisão sumária, no sentido do não conhecimento do recurso (cfr., neste sentido, acórdãos deste Tribunal Constitucional n.os 99/00, 397/00, 264/06, 33/09 e 116/09, disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt).
Acresce que, perante a leitura da motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa, depreende-se que a questão de constitucionalidade, a que o recorrente A. se reporta, corresponde à mesma que é referida pelo recorrente B., ou seja, a invocada inconstitucionalidade “da norma do nº 2 do artigo 374° do CPP, quando interpretada no sentido de que a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração e reprodução, das declarações e depoimentos prestados na audiência, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do Tribunal”.
Verifica-se, porém, que não existe coincidência entre a interpretação enunciada pelos recorrentes e a ratio decidendi do acórdão recorrido.
Na verdade, pode ler-se na decisão recorrida:
“Nos termos do artº 374°, n° 2, do cód. procº penal, a fundamentação da sentença penal deve conter duas grandes linhas mestras, consistindo uma delas na enumeração dos factos provados e não provados e outra na exposição completa, ainda que concisa dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que contribuíram para a formação da convicção do tribunal.
Por sua vez, o exame crítico deve consistir na explicitação do processo de formação da convicção do julgador, concretizado este na indicação das razões pelas quais e em que medida, determinados meios de prova, foram valorados num certo sentido e outros não o foram, reconduzindo-nos no fundo a uma explicitação dos motivos que levaram o tribunal a considerar certos meios de prova como idóneos e credíveis e outros no sentido contrário, sem esquecer ainda que deverá conter a exposição e explicação dos critérios, lógicos e racionais, utilizados na apreciação efetuada.
Ora no caso concreto, se atentarmos a fls. 12 a 28 (…) o acórdão mostra-se devidamente fundamentado, com a enumeração dos meios de prova, seguido da avaliação crítica dos mesmos e a razão por que foram julgados credíveis uns e não credíveis outros.”
Conclui a decisão recorrida que a interpretação, cuja inconstitucionalidade é invocada pelos recorrentes, não é perfilhada nem pelo Tribunal da Relação, nem pelo da 1.ª Instância, sendo certo que, de acordo com a decisão recorrida, “em parte alguma do acórdão (da 1ª Instância) se pode extrair a ideia de que este preceito (n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal) não foi observado, pois como acima referimos, a fundamentação mostra-se conforme as exigências legais e sem vícios suscetíveis de conduzir à nulidade do mesmo.”
Não existindo coincidência entre a questão de constitucionalidade suscitada pelos recorrentes e a ratio decidendi do acórdão recorrido, fica prejudicada a admissibilidade dos recursos em análise.
A exigência de que o critério normativo, cuja sindicância é pretendida, corresponda ao fundamento jurídico determinante da solução dada ao litígio prende-se com o caráter instrumental do recurso de constitucionalidade.
Tal caráter ou função instrumental traduz-se na possibilidade de o julgamento da questão de constitucionalidade se repercutir, de forma útil e eficaz, na solução jurídica do caso concreto. Esta possibilidade efetiva-se quando a decisão sobre a questão de constitucionalidade é suscetível de alterar o sentido ou os efeitos da decisão recorrida, implicando uma reponderação da solução dada ao caso, pelo tribunal a quo. Tal possibilidade encontra-se, naturalmente, afastada, quando o fundamento da solução jurídica dada ao caso se mantém incólume, por não coincidir com o critério cuja constitucionalidade é discutida.
Assim, no caso concreto, não teria qualquer utilidade discutir a constitucionalidade da questão suscitada pelos recorrentes, face à impossibilidade de os efeitos de tal decisão se repercutirem na decisão recorrida.
Diga-se, em acréscimo, que, lida a exposição de cada um dos recorrentes, plasmada no requerimento de interposição de recurso respetivo, resulta que os mesmos pretendem centrar, verdadeiramente, o alvo da sindicância na própria decisão jurisdicional, enquanto ato de julgamento ou valoração casuística, parecendo pretender assacar o vício de inconstitucionalidade à referida decisão e não, em rigor, a qualquer critério normativo que a mesma tenha utilizado como fundamento da solução dada ao caso.
Impressivamente, refere o recorrente A., no seu requerimento de interposição de recurso:
“O douto acórdão recorrido não contém todas as menções referidas no nº 2 do artigo 374º do CPP. Concretamente, não contém a exposição dos motivos que fundamentaram a decisão do Tribunal “a quo” de considerar provados os factos (…), bem como o exame crítico das provas que terão servido para formar a sua convicção nesse sentido.
(…)
Ora, (…) uma fundamentação assim não cumpre a norma do nº 2 do artigo 374º do CPP, pois esta exige, não só a indicação dos meios de prova utilizados concretamente, mas também a explicitação do processo de formação da convicção do Tribunal.
(…) o Tribunal “a quo” não procedeu concreta e objetivamente no que ao aqui Recorrente respeita, a essa explicitação.
(…) deve ser declarado nulo o acórdão proferido, por não ter sido feito o exame crítico das provas, em clara violação (…) do nº 2 do artigo 374º do CPP, violando não só o princípio constitucional do dever de fundamentação das decisões judiciais previsto no n.º 1, art. 205º da Constituição da República Portuguesa, como também o princípio constitucional das garantias de defesa do processo criminal, previsto no artº 32º n.º 1 da CRP.
(…)
Ora, no caso concreto, e ao contrário da posição defendida no acórdão proferido pelo Tribunal da relação de Lisboa, o dever constitucionalmente garantido no artº 205 n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, de fundamentação da sentença, não foi cumprido.
(…) A fundamentação do tribunal tem que ser de molde a convencer (…) sendo necessário que o tribunal indique os fundamentos suficientes (…)
Porém, não foi este o caminho seguido, no acórdão da 1ª instância, nem no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, ao julgar improcedente a inconstitucionalidade invocada.
(…) não só o Tribunal “a quo” violou o disposto no art. 374º, nº 2 do CPP e consequentemente o art. 205º nº 1, da CRP, como também, o Tribunal da Relação de Lisboa, ao julgar improcedente a inconstitucionalidade invocada.”
(…)
Esquecem os recorrentes que o Tribunal Constitucional apenas pode sindicar a constitucionalidade de normas ou interpretações normativas e não de decisões, nomeadamente jurisdicionais, não compreendendo o nosso ordenamento jurídico a figura do recurso constitucional de amparo ou queixa constitucional.
Face às considerações expendidas, dependendo a admissibilidade do presente recurso de constitucionalidade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, da correspondência entre o objeto normativo, erigido como objeto do recurso, e o critério normativo efetivamente aplicado como ratio decidendi da decisão recorrida, conclui-se, in casu, pela não admissibilidade dos recursos interpostos pelos recorrentes A. e B.. (…)”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
4. O reclamante reitera a argumentação já expendida no seu requerimento de interposição de recurso, afirmando ter cumprido os pressupostos de admissibilidade enunciados nos artigos 70.º e 72.º, n.º 2, da LTC.
Conclui, desta forma, peticionando o provimento da reclamação deduzida.
5. O Ministério Público, em resposta, manifesta a sua concordância com a decisão sumária proferida, referindo que o reclamante não enunciou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, limitando-se a discordar do grau e amplitude da fundamentação da decisão da 1.ª Instância, que não mereceu, nessa parte, reparo por parte do Tribunal da Relação, sendo que tal matéria é insindicável por este Tribunal Constitucional.
Acrescenta que, de todo o modo, o acórdão recorrido afasta expressamente a “interpretação” a que o recorrente imputa o vício de inconstitucionalidade.
Conclui assim pugnando pelo indeferimento da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentos
6. Analisada a reclamação apresentada, conclui-se que os argumentos aduzidos pelo reclamante não infirmam a correção do juízo efetuado, na decisão sumária proferida.
Na verdade, o reclamante limita-se a repetir a argumentação já utilizada no requerimento de interposição de recurso, concluindo pela sua discordância relativamente à decisão reclamada.
Nestes termos, não tendo sido carreado qualquer novo argumento que cumpra especificamente apreciar e sendo certo que a decisão reclamada merece a nossa concordância, damos por reproduzida a sua fundamentação e, em consequência, concluímos pelo indeferimento da reclamação apresentada.
III – Decisão
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se confirmar a decisão sumária reclamada, proferida no dia 5 de janeiro de 2012, e, em consequência, indeferir a reclamação apresentada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 8 de fevereiro de 2012.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.
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