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Processo n.º 832/10
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos em que é recorrente A. e recorridos o Ministério Público, B., C. e D., foi interposto recurso de acórdão proferido pela 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em 04 de novembro de 2010 (fls. 496 a 507), para apreciação da constitucionalidade:
“[D]as normas contidas na parte final do n.º 2 e no n.º 3 do artigo 287.º e na alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º, ambos do CPP, inconstitucionalidade essa que é material, tendo em conta o disposto nos artigos 20.º, 32.º, n.º 7 e 266.º da Constituição da República Portuguesa”, quando interpretadas “no sentido de não permitir dar a uma declaração como a que foi feita no artigo 8.º do Requerimento de Abertura de Instrução («Por extensos e por se encontrarem taxativamente descritos nos autos à margem referenciados, não se repetirão os factos que originaram a queixa») o sentido de uma remissão material para os factos já descritos nos autos, possibilitando assim o indeferimento da abertura de instrução” (fls. 518 e 519);
“[D]as normas contidas na parte final do n.º 2 e no n.º 3 do artigo 287.º e na alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º, ambos do CPP, nesta interpretação de que uma remissão só vale se obedecer a uma fórmula sacramental, justificando o indeferimento liminar da abertura de instrução.” (fls. 520)
Da interpretação segundo a qual, “os artigos 287.º e 283.º do CPP, na sua formulação de “descrição sintética dos factos”, não permite que estes sejam descritos por remissão, e que só vale como remissão uma remissão feita em fórmula sacramental e tabeliónica, e não compreender que qualquer descrição por remissão, usando-se para essa remissão uma forma da língua portuguesa que seja funcionalmente inteligível por um destinatário médio.” (fls.521)
Da norma extraída do n.º 3 do artigo 287º do CPP, “na interpretação que dela foi feita no Acórdão de que se recorre, no sentido de, em caso de narração incompleta dos factos, ser justificada a rejeição do requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução, por violação do direito de acesso à justiça e aos Tribunais consagrado no artigo 20.º da Constituição, do direito de o ofendido intervir no processo criminal, consagrado no artigo 32.º, n.º 7, e dos princípios da boa-fé, da justiça e da imparcialidade consagrados no artigo 266.º da mesma Constituição” (fls. 522).
2. Notificado para tal pela Relatora, o recorrente produziu alegações, que ora se sintetizam:
«(…)
3.º
A esta luz se percebe que a única interpretação constitucional da norma que impõe a narração, ainda que sintética, dos factos integradores do tipo objetivo de crime é aquela que se baste com a narração, nos casos de difamação por deturpação de um discurso proferido pelo ofendido, dos factos de (i) ter sido concedida, em determinada data e determinado local a entrevista, (ii) de o seu sentido ter sido deturpado por determinados agentes, devidamente identificados, (iii) através da publicação na edição de determinado jornal, em determinada data, e (iv) de com isso ter sido lesada a honra e consideração do entrevistado.
4.º
Isto basta para que seja, do ponto de vista fáctico, suficientemente determinado o objeto do processo, para permitir o exercício pleno dos direitos de defesa dos arguidos.
(…)
8.º
O requerimento de abertura de instrução deve conter, para além dos requisitos exigidos pelo número 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deva ser aplicada.
(…)
28.º
Aqui chegados, e perante a exigência de narração resumida dos factos que fundamentam ao arguido a aplicação de um pena, o que deve conter o requerimento de abertura de instrução?
29.º
A indicação de que a entrevista foi dada naquele dia e naquele local, por aquela pessoa àquelas outras pessoas, e que o que foi dito, que está junto aos autos, não corresponde ao que foi publicado, e também está junto aos autos, ou, pelo contrário, o requerimento de abertura de instrução deve conter, para além dos dados de tempo, lugar e agentes, a expressa identificação concreta de cada uma das frases que foi publicada e que não corresponde ao que efetivamente foi dito?
30.º
Mais uma vez a primeira hipótese surge como a única apta a permitir ao arguido exercer plenamente a sua defesa sem prejudicar o direito à tutela penal dos direitos do assistente; ainda para mais se tivermos em conta que a gravação da entrevista foi junta pelo Recorrente aos Autos, tal como a respetiva transcrição e a publicação da mesma.
(…)
33.º
O entendimento dos tribunais a quo apenas é passível de ser compreendido caso o caráter difamatório da entrevista estivesse não na imputação ao Assistente de frases ou expressões, entre aspas, que este nunca disse, mas na valoração infamante das palavras publicadas.
34.º
Aí sim, seria necessário analisar uma por uma as expressões que foram alteradas pelos arguidos, para de seguida ver se essas palavras eram infamantes e se os arguidos, sendo elas infamantes, tinham verificado a sua verdade ou não.
35.º
Mas este pressuposto é totalmente errado!
36.º
Com efeito, num caso como o presente, de uma entrevista, o caráter difamatório da reprodução das afirmações do Recorrente não está na concreta divergência, mas na divergência.
37.º
Essa simples divergência, essa simples alteração entre aquilo que foi dito e aquilo que foi publicado implica uma violação do direito palavra do Recorrente, que tem o direito de se exprimir da forma que achar mais adequada, e tem o direito que essa expressão seja reproduzida exatamente tal e qual foi proferida.
38.º
Daí que, no caso dos Autos, a difamação se consubstancie numa violação do direito à palavra constitucionalmente consagrado no artigo 26.º da Lei Fundamental.
39.º
E, assim sendo, uma narração sintética dos factos consubstanciadores de um crime de difamação num caso como o dos Autos basta-se com a indicação de tempo e de lugar da entrevista, dos seus agentes, e a indicação de que o que foi publicado não corresponde ao que foi dito.
40.º
Este resumo é suficiente para delimitar o objeto do processo: a entrevista, permitindo aos Arguidos exercerem a sua defesa.
(…)
49.º
A alínea b) do número 3 do artigo 283.º e os números 2 e 3 do artigo 287.º do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de exigirem uma descrição completa dos factos, e ao fazerem culminar com a rejeição por inadmissibilidade legal o requerimento de abertura de instrução que não contenha essa descrição completa estão a impor um formalismo exagerado e absurdo que não foi vontade do legislador e que apenas tem como efeito o facto de os assistentes, como é o caso do ora Recorrente, serem impossibilitados de ver sindicada a decisão do Ministério Público de não acusar, ficando assim sem qualquer hipótese de aceder aos Tribunais para garantirem penalmente os seus direitos, nomeadamente fundamentais, como é o caso.
50.º
E tal equivale a impedir o ofendido de intervir no processo penal, o que consubstancia, também, uma violação do artigo 32.º, n.º 7, da Constituição da República Portuguesa.
51.º
Por outro lado, ao exigir uma descrição detalhada dos factos subsumíveis no tipo de crime, desconsiderando que os autos contêm já documentos – gravações e transcrições – de onde esses detalhes se podem retirar sem qualquer dificuldade, o Tribunal a quo criou obstáculos injustificados à realização da justiça, não procedeu de boa fé, nem foi imparcial porque, na ânsia de atribuir ao arguido as garantias de defesa que a lei exige, acabou por impedir toda e qualquer efetivação do direito que a lei também atribui ao assistente.
52.º
Assim, as normas invocadas violam também o artigo 266.º, n.º 2 da Lei Fundamental, que impõe a todos os órgãos do Estado, incluindo Tribunais, que atuem com respeito pelos princípios da justiça, da imparcialidade e da boa fé.
53.º
Em conclusão, as normas dos números 2 e 3 do artigo 287.º e da alínea b) do número 3 do artigo 283.º, ambos do Código de Processo, quando interpretadas no sentido de exigirem que o requerimento de abertura de instrução contenha uma descrição expressa e detalhada de todos os factos integradores do tipo objetivo do crime, ainda que esses mesmos factos possam ser conhecidos através de documentos probatórios já juntos aos Autos, são inconstitucionais, por violação dos artigos 20.º, 32.º n.º 7 e 266.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
54.º
Por outro lado, o Recorrente, na sua queixa-crime, efetuou uma análise detalhada dessas dissemelhanças, tendo para aí remetido no seu requerimento de abertura de instrução.
55.º
O Tribunal da Relação de Lisboa entendeu, no entanto, que como a remissão não havia sido feita em fórmula sacramental não era líquido que a vontade do Assistente, e ora Recorrente, fosse efetivamente remeter para a descrição efetuada na queixa-crime.
56.º
Ora, o Recorrente escreveu, no artigo 8.º do seu requerimento de abertura de instrução: “Por extensos e por se encontrarem taxativamente descritos nos autos à margem referenciados, não se repetirão os factos que originaram a queixa.”.
57.º
A intenção do Recorrente com a esta declaração foi, evidentemente, incorporar no requerimento de abertura de instrução a descrição detalhada dos factos preenchedores do tipo objetivo do crime de difamação – embora essa descrição, como vimos, não poder ser exigível à luz da lei e da Constituição.
(…)
65.º
Ao não aceitar como suficiente uma remissão material, que é funcionalmente inequívoca para qualquer declaratário médio, e ao exigir, ao invés, que uma remissão só valha quando feita com uma forma sacramental como “que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais”, está-se a perante uma exigência meramente formulária e formal, que viola frontalmente o direito fundamental consagrado no artigo 20.º da Constituição, impedindo o acesso à justiça.
(…)
67.º
O Tribunal a quo, também se pronunciou no sentido de, ainda que a remissão fosse explícita, mesmo assim seria ilícita, uma vez que, no requerimento de abertura de instrução, não se podem narrar factos por remissão.
68.º
O Tribunal da Relação do Porto, em acórdão proferido em 28 de maio de 2005, decidiu que “Nos termos do art. 287.º, 2 do Cód. Proc. Penal, o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a “formalidades especiais” e julgamos lícita a remissão para peças processuais constantes dos autos, desde que tal remissão seja feita de modo claro e inequívoco. (…) O requerimento de abertura de instrução pode (e deve) ser completado com a remissão nele efetuada.”
69.º
Aí se entendeu que a narração dos factos não pode ser feita por remissão, com base nos seguintes argumentos: “Com efeito, a exigência de rigor na delimitação do objeto do processo (recorde-se, num processo em que o Ministério Público não acusou), sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo. De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa. Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo.”
70.º
Com o devido respeito, julgamos ter andado mal o Tribunal Constitucional, e expliquemos porquê, dissecando a argumentação explanada no acórdão para vedar a narração por remissão.
71.º
O primeiro argumento para impedir a narração dos factos por remissão é a “exigência de rigor na delimitação do objeto do processo, sendo esta uma das garantias de defesa do arguido”.
72.º
No entanto, e a esta é a questão fundamental: a exigência de rigor não é incompatível com o facto de a narração ser feita por remissão. É que podem perfeitamente os factos para os quais se remete estar narrados de forma rigorosa e clara, não diminuindo em nada o conhecimento que o arguido terá dos mesmos.
73.º
Nesses casos, e aplicando o critério da não diminuição das garantias de defesa do arguido, não haverá qualquer motivo justificativo para impedir que a narração dos factos seja feita por remissão.
74.º
O segundo argumento é a de que a exigência feita ao assistente aquando do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público quando acusa e, como a acusação não pode remeter para outras peças processuais, também o requerimento de abertura de instrução o não pode.
75.º
Mas também este argumento não colhe porque, primeiro, a exigência não pode ser a mesma, visto o requerimento para abertura de instrução ser sempre apreciado por um juiz de instrução, ao passo que uma acusação pode ser diretamente a base para levar o arguido a julgamento. Ou seja, a acusação, isso sim, pode e deve ser equiparada à acusação particular, ou ao despacho de pronúncia, em termos de exigências formais
76.º
Por outro lado, este argumento é desajustado porque a acusação do Ministério Público é a primeira peça processual elaborada por este no processo penal. Portanto, é evidente que tem de conter expressamente todos os factos pelos quais pretende ver o arguido condenado. Para onde poderia remeter?
77.º
Já o assistente, quando requer a abertura de instrução em casos em que o Ministério Público não acusou, já produziu – nos crimes particulares e semipúblicos, pelo menos – uma peça processual: a queixa-crime, pelo que a analogia utilizada no acórdão não pode ser aplicada, sem mais, a estes casos de narração por remissão para uma narração já feita nos autos pelo próprio requerente da abertura de instrução e para documentos por este já juntos aos autos.
78.º
O terceiro argumento é de que a pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo.
79.º
Esquece-se o Tribunal que uma remissão pode ser a forma mais simples e eficaz de atingir determinado efeito, de transmitir determinada ideia ou de narrar determinado facto. Uma remissão não é, invariavelmente e como parece entender o tribunal, fruto da preguiça.
80.º
Na verdade, e com o devido respeito, trata-se de mais uma visão preconceituosa da função remissiva, que é patente ao longo de todo o supra citado acórdão do Tribunal Constitucional.
(…)
86.º
O processo penal, mesmo em casos em que o Ministério Público não acusou, não tem início com o requerimento de abertura de instrução feito pelo assistente.
87.º
Daí que na instrução se possam analisar documentos juntos aos autos durante o inquérito, tal como é indiscutível que para esses mesmos documentos probatórios se pode remeter.
88.º
Então, se é possível remeter para atos praticados durante o inquérito, e para documentos probatórios juntos aos autos durante essa fase, porque razão não se pode remeter para a queixa-crime ou para a denúncia? Ainda para mais, a queixa-crime é elaborada pelo mesmo interveniente processual que agora requer a abertura de instrução.
89.º
Qual o critério objetivo e legal que impeça a consideração de um ato processual? Se esse ato não enfermar de nenhuma nulidade, então é imperativo que possa ser considerado e atendido em qualquer fase do processo e, como tal, é lícito às partes, a todas elas, remeter para o que quer que aí se tenha dito.
(…)
96.º
Por fim, ainda que se considerasse que o requerimento de abertura de instrução não continha, de facto, a suficiente narração dos factos ou uma expressa remissão para os factos da queixa-crime – tudo isto se colocando sem conceder por, como vimos, desprovido de qualquer razão – sempre se dirá que, em cumprimento do princípio constitucionalmente consagrado do direito de o ofendido intervir no processo, o Juiz de Instrução Criminal deveria ter notificado o Assistente para este esclarecer o tribunal dos aspetos que não se considerassem suficientemente narrados ou para esclarecer para que factos dos autos pretendia o Assistente remeter, ou até para transcrever para o requerimento os factos para os quais havia remetido.
97.º
Bem sabe o Assistente que a questão de saber se pode ou não ser dada ao Assistente a oportunidade de aperfeiçoar o seu requerimento de abertura de instrução foi já objeto de fixação de jurisprudência pelo Acórdão do STJ n.º 7/2005.
98.º
Mas a jurisprudência aí fixada não tem cabimento no presente caso, já que aquele acórdão fixa a jurisprudência no sentido da inadmissibilidade de um convite ao aperfeiçoamento para os casos em que o requerimento de abertura de instrução “for omisso relativamente à narração sintética dos factos […]” (sublinhado nosso), o que, claramente, não é o caso destes autos.
99.º
E note-se que, tratando-se de dúvidas sobre se o Assistente remeteu ou não para os factos da queixa-crime, ou para que factos remeteu, nem sequer estaríamos perante um convite ao “aperfeiçoamento”, antes perante um pedido de esclarecimento formulado pelo juiz.
100.º
Por mais que se diga que esta argumentação é um jogo de palavras e que o esclarecimento implica um aperfeiçoamento, a verdade é que assim não é.
101.º
Com efeito, é claro que não se podem acrescentar factos aos descritos no requerimento de abertura de instrução.
102.º
Mas, também nunca se pretendeu acrescentar factos àqueles que ali estão descritos.
103.º
Ora, não é idêntico o Assistente explicar que, por exemplo, a difamação está na dissemelhança e não na discrepância das palavras utilizadas e que, portanto, é toda a entrevista que é difamatória e não apenas esta ou aquela frase, ou pelo contrário, o Assistente vir dizer que para além do conteúdo daquela entrevista pretende ver os arguidos também pronunciados devido ao que escreveram noutra ocasião.
104.º
No primeiro caso estamos perante um esclarecimento que não altera os factos. No segundo caso estamos perante um aperfeiçoamento que acrescenta factos.
105.º
No primeiro caso, justifica-se o convite ao esclarecimento. No segundo caso, será ilícito o convite ao aperfeiçoamento.
106.º
E note-se que o esclarecimento ou aperfeiçoamento, antes de ser ter junto aos Autos, sempre passará pelo crivo do Juiz de Instrução Criminal, pelo que, novamente, não saem beliscadas as garantias de defesa do arguido, uma vez que o aperfeiçoamento apenas será admitido se não alterar os factos inicialmente descritos no requerimento de abertura de instrução.
107.º
Por tudo isto, é inconstitucional a norma contida no n.º 3 do artigo 287.º do CPP, na interpretação que dela seja feita no sentido de, em caso de narração incompleta dos factos, ser justificada a rejeição do requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução, por violação do direito de acesso à justiça e aos Tribunais consagrado no artigo 20.º da Constituição, do direito de o ofendido intervir no processo criminal, consagrado no artigo 32.º, n.º 7, e dos princípios da boa-fé, da justiça e da imparcialidade consagrados no artigo 266.º da mesma Constituição, que vinculam e devem orientar a atuação não só da administração pública em sentido restrito, mas de todos os órgãos de soberania, incluindo os Tribunais, na sua relação com os cidadãos.» (fls. 551-verso a 561)
3. Notificados para o efeito, os recorridos B., C. e D. apresentaram contra-alegações, das quais se extraem as seguintes conclusões:
«A. Inexiste invocada nos autos pelo Recorrente, pelo menos de forma processualmente adequada e conforme ao disposto no artigo 72.º, n.º 2, da LTC, quaisquer questões de inconstitucionalidade normativa que cumprisse então conhecer ao TRL ou cumpra agora conhecer a esse TC;
B. Porque o requerimento de abertura de instrução do Assistente consubstancia uma verdadeira acusação, deverá conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação de uma sanção penal ao Arguido e a indicação das disposições legais aplicáveis, sob pena de nulidade, sendo que a omissão de qualquer um daqueles requisitos legais é fundamento de rejeição do requerimento de abertura de instrução, sendo as normas constantes das alíneas b) e c), do n.º3, do artigo 283.º, do CPP, constitucionais quando interpretadas no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do requerimento para abertura de instrução apresentado pelo Assistente os elementos mencionados naquelas alíneas.
C. Ao recusar o requerimento de abertura de instrução dos autos, o Juiz de Instrução Criminal mais não fez do que cumprir o CPP e a Constituição, assegurando a proteção do direito de defesa dos Arguidos, consagrado no n.º 1, do artigo 32.º da CRP, e, ainda, tendo interpretado e aplicado de modo conforme à CRP e aos princípios constitucionais as normas jurídicas vertidas nos n.ºs 2 e 3, do artigo 287.º, e da alínea b), do n.º 3, do artigo 283.º, ambos do CPP, e artigos 20º, 32.º, n.º7 e 266.º, da CRP.» (fls. 607 e 607-verso)
4. Por sua vez, igualmente notificado para o efeito, o Ministério Público apresentou as seguintes conclusões nas contra-alegações:
«1. O Acórdão recorrido, proferido pela Relação de Lisboa, aceitou que no requerimento de abertura de instrução se fazia uma remissão para a queixa apresentada pelo assistente.
2. Entendeu-se, todavia, que essa remissão era insuficiente para se considerar cumpridas as exigências constantes do artigo 287.º, n.º 2, do CPP.
3. Assim, quanto às duas primeiras questões de constitucionalidade e à segunda parte da terceira, que estão exclusivamente relacionadas com a interpretação que considera não válida a remissão, o conhecimento do mérito do recurso não se revestiria de qualquer efeito útil.
4. Consequentemente, tendo em atenção a natureza instrumental dos recursos de constitucionalidade, não deverá conhecer-se de tais questões de constitucionalidade.
5. Tendo o recorrente suscitado a questão da inconstitucionalidade da não admissibilidade de remissão, na “descrição sintética dos factos”, a decisão recorrida admitiu essa remissão (vg. n.º 1, 2 e 3 destas conclusões).
6. Assim sendo, a dimensão normativa que se pretende ver apreciada, não corresponde à efetivamente aplicada, não devendo, por isso, nesta parte, conhecer-se do recurso, uma vez que falta um requisito de admissibilidade.
7. O direito do ofendido intervir no processo penal, nos termos da lei, consagrado no artigo 32.º, n.º 7, da Constituição, tem de ser conjugado com as garantias de defesa em processo penal, com tutela constitucional acrescida.
8. A obrigatoriedade do requerimento de instrução do assistente conter expressamente a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação de uma sanção penal e a indicação das disposições legais aplicáveis, sob pena de nulidade, não configura exigência excessiva, nem torna constitucionalmente censurável, que, pela não observância destes requisitos, a instrução não venha a ser aberta, por legalmente inadmissível, no quadro de um processo penal de estrutura acusatória.
9. Neste contexto, também não é constitucionalmente censurável que não seja admissível, que aquela específica narração dos factos, possa ser realizada por mera remissão para a prolixa queixa apresentada pelo assistente.
10. A norma constante dos artigos 287.º e 283.º do Código de Processo Penal, interpretada em termos de não impor a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução, apresentado pelo assistente e que não contenha o essencial da descrição dos factos imputados ao arguido, delimitando o objeto fáctico da pretendida instrução, não viola o direito de acesso à justiça por parte do ofendido.
11. Termos em que deverá negar-se provimento ao recurso, na parte em que dele se conhecer.» (fls. 595 e 597)
5. Perante a invocação de fundamentos, por todos os recorridos, que obstariam ao conhecimento do objeto do presente recurso, a Relatora proferiu despacho, em 07 de julho de 2011 (fls. 610), ao abrigo dos artigos 703º, n.º 2, e 704º, n.º 2, ambos do CPC, aplicáveis “ex vi” artigo 69º da LTC, para que o recorrente se pudesse pronunciar sobre aquela argumentação.
Na sequência de tal despacho, o recorrente pronunciou-se nos termos que ora se sintetizam:
«1. Às Contra-Alegações do Ministério Público
Entende o Ministério Público que o Recurso interposto pelo Recorrente apenas deve ser parcialmente conhecido, uma vez que as invocadas inconstitucionalidades dos artigos 287.º e 283.º do Código de Processo Penal não devem ser analisadas por tal análise se revelar inútil, atenta a natureza instrumental dos recursos de inconstitucionalidade. Ou seja, ainda que fossem declaradas as inconstitucionalidades invocadas, tais declarações nenhum efeito teriam no mérito da decisão.
Com efeito, é opinião do Ministério Público que o Acórdão da Relação entendeu que o requerimento não obedecia aos requisitos legais, mas ainda que se admitisse que no seu artigo 8.º se fazia uma remissão para a queixa apresentada, essa remissão não era suficiente para considerar satisfeitas aquelas exigências.
E não era suficiente porque a peça para a qual se remetia – a queixa-crime – também não preenchia os requisitos exigidos pelo Código de Processo Penal.
Em suma, o Ministério Público interpretou as palavras do Tribunal da Relação de Lisboa da seguinte forma: “não é admissível que, num requerimento de abertura de instrução, se faça a descrição dos factos por remissão mas, ainda que tal fosse aceitável, no caso dos autos a peça para a qual se remete não contém uma descrição suficiente dos factos”.
Aliás, o Ministério Público diz mesmo que “a Relação não considerou que não era admissível a descrição sintética dos factos por remissão, antes entendeu que no caso concreto, aceitando-se que havia uma remissão, ela era insuficiente. Ou seja, mesmo levando em atenção a peça por [para] onde se remetia, o requerimento continuava a não cumprir com o legalmente exigido.”
E por isso entende que a apreciação das constitucionalidades suscitadas e que se prendem com esta questão da remissão é absolutamente inútil, porque em peça alguma dos autos os factos se encontram suficientemente descritos de forma a preencher o disposto nos artigos 287.º e 283.º do Código de Processo Penal.
Ora, e com o devido respeito, este entendimento perfilhado pelo Ministério Público só pode resultar de uma leitura desatenta do Acórdão da Relação, porque o que aí é dito é precisamente o contrário!
Para que não restem dúvidas, transcreva-se essa parte do Acórdão:
“Por um lado, há que deixar consignado que o que falta no RAI não são as circunstâncias de tempo e lugar em que terão ocorrido os factos, isto é a entrevista, a sua publicação e o seu teor, mas as concretas passagens da mesma que consubstanciam a difamação de que o Assistente se queixa. (…) Na verdade, só com a descrição dessas passagens se pode considerar cumprido o dever de descrição dos factos. Por outro lado, ainda que se possa admitir que no art.º 8.º do seu RAI faz uma remissão para a queixa apresentada a fls. 5 a 93 (o que, ainda assim, não é líquido, atenta a formulação: “por extensos e por se encontrarem taxativamente descritos nos autos à margem referenciados, não se repetirão os factos que originaram a queixa), esta remissão não é suficiente para dar cumprimento ao comando do disposto no art.º 287.º/2 do CPP.”
“Nesse sentido, porque contém uma exposição completa sobre o tema e concordamos com a posição por ele adotada, passamos a citar o Dr. Vinício Ribeiro: (…) O RAI do Assistente tem que conter, nomeadamente por força das garantias de defesa e da estrutura acusatória do processo, todos os elementos mencionados nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º do CPP. E tal exigência, contrariamente ao defendido por alguma jurisprudência (…) não pode (…) ser feita por remissão para elementos dos autos.”
Ou seja, entende o Tribunal da Relação que a remissão não é suficiente, não porque a descrição dos factos na peça para a qual se remete é, também ela, insuficiente, mas porque simplesmente não é admissível a narração dos factos por remissão.
Com efeito, e contrariamente ao que é afirmado pelo Ministério Público, o Tribunal da Relação não levou em conta a peça para onde se remetia. Aliás, em nenhuma parte do Acórdão se faz menção ou se transcreve parte dessa peça – a queixa-crime. Pelo contrário, o que o Tribunal da Relação afirma é que ainda que a fórmula utilizada no artigo 8.º do RAI seja interpretada como uma remissão, a remissão sempre seria inadmissível independentemente do conteúdo da peça para onde se remete.
Em conclusão, toda a argumentação do Ministério Público parte do pressuposto errado de que o Tribunal da Relação analisou a queixa-crime e concluiu que esta também não continha uma descrição suficiente dos factos, pelo que se tornaria agora inútil analisar as constitucionalidades relacionadas com a aceitabilidade ou inaceitabilidade da narração por remissão e da adequação da fórmula utilizada para o efeito, uma vez que a decisão que viesse a ser proferida por este Venerando Tribunal Constitucional, ainda que favorável ao Recorrente, não iria influenciar a decisão de mérito.
Mas, na verdade, e por tudo o que vimos, a análise das constitucionalidades suscitadas e relacionadas com a questão da remissão é da maior importância, e a conclusão que dessa análise venha a ser feita alterará, por completo, a decisão de mérito da causa: será admitida a abertura de instrução.
Isto porque o que o Tribunal da Relação considerou obstar à abertura de instrução foi a remissão como forma de narração, não das circunstâncias de tempo e de lugar da publicação do texto jornalístico em que se consubstanciou o crime de difamação – porque essas vêm diretamente descritas no requerimento de abertura de instrução –, mas das “concretas passagens” desse texto jornalístico – aliás junto aos autos – em que se consubstancia a difamação (parecendo, aliás, não conceber que a difamação pudesse ser perpetrada ao longo de todo o texto jornalístico).
Devem, por isso, improceder os argumentos esgrimidos pelo Ministério Público para obstar ao conhecimento desta parte do recurso.
2. Às Contra-Alegações dos Recorridos
Vêm os Recorridos, nas suas Contra-Alegações, invocar que o Recorrente “não cumpriu, necessariamente perante o Tribunal da Relação de Lisboa, o ónus de suscitação de questão de constitucionalidade, de forma processualmente adequada, até porque nenhuma pronúncia concreta, sobre tal questão, foi produzida pelo TRL, razão pela qual a invocação da alegada inconstitucionalidade, objeto do presente recurso, se encontra desprovida de qualquer substanciação normativa, que possa, aliás, tornar evidente o cumprimento daquele ónus de suscitação, o que prejudica, em suma, o conhecimento/procedência do presente recurso.”
Bem se compreende esta invocação… à falta de melhores argumentos, nada como recorrer, de forma totalmente lata e vaga, a um vício formal para obstar ao conhecimento do recurso.
Citam os Recorridos o Acórdão n.º 421/2001, de 14 de novembro, do Tribunal Constitucional, para dizerem que “uma questão de inconstitucionalidade só se pode considerar suscitada de modo processualmente adequado quando o recorrente identifica a norma que considera inconstitucional, indica o principio ou a norma constitucional que considera violados e apresenta uma fundamentação, ainda que, sucinta, da inconstitucionalidade arguida.”
Defendem os Recorridos que o Recorrente, “embora tenha identificado as normas que considera serem inconstitucionais e os princípios ou normas constitucionais alegadamente violados, não fundamenta de que forma as hipotéticas interpretações dadas às normas jurídicas aplicadas pelo tribunal a quo são inconstitucionais.”
Assim, o que está verdadeiramente em causa é apenas e tão só a inexistência de fundamentação, e não de qualquer outro requisito.
Antes de mais, diga-se que esta afirmação dos Recorridos não corresponde à verdade.
Com efeito, percebe-se perfeitamente, da leitura integrada e minimamente atenta das alegações do Recorrente para o Tribunal da Relação de Lisboa, os motivos que fundamentam a arguição de inconstitucionalidade das normas em análise.
Mas, enganam-se os Recorridos na interpretação que parecem fazer do acórdão que citam: uma fundamentação desenvolvida das inconstitucionalidades não é condição sine qua non para que se possa considerar a questão suscitada de modo processualmente adequado.
O Acórdão citado pelos Recorridos afirma, efetivamente, que é necessária uma fundamentação, ainda que sucinta, da inconstitucionalidade arguida. Mas se os Recorridos não tivessem descontextualizado a afirmação que citaram do parágrafo em que a mesma se inclui, teriam percebido que essa exigência é feita para explicar que “Não se considera assim suscitada uma questão de constitucionalidade normativa quando o recorrente se limita a afirmar, em abstrato, que uma dada interpretação é inconstitucional, sem indicar a norma que enferma desse vício.”
Ou seja, não pode ser conhecida uma inconstitucionalidade que tenha sido invocada sem o mínimo de contextualização, sem o mínimo de elementos que permitam ao juiz entender e analisar a situação: nomeadamente, sem identificar a norma que padece desse vício, ou sem identificar o princípio constitucional violado.
A fundamentação exaustiva da inconstitucionalidade invocada – i.e., a explicação detalhada das razões da desconformidade entre a norma ou interpretação normativa aplicadas e o princípio constitucional violado – é feita nas alegações de recurso para o Tribunal Constitucional.
Exigir que fosse feita a fundamentação exaustiva das inconstitucionalidades na peça processual onde as mesmas são suscitadas seria não só esvaziar de utilidade as posteriores alegações de recurso para o Tribunal Constitucional, como onerar e dificultar de forma intolerável o acesso à justiça constitucional. Seria abrir a porta a que tudo – todo e qualquer requisito ou exigência – coubesse na expressão “de modo processualmente adequado”.
Aliás, este é o entendimento que melhor se coaduna com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, onde se defende, por exemplo, que “é de considerar adequadamente suscitada a questão de inconstitucionalidade quando da atuação processual do recorrente resulte, com suficiente clareza, a norma cuja conformidade à Constituição foi questionada […]” (cfr. Acórdão n.º 53/97).
Ou ainda que “A inconstitucionalidade de uma norma pode ser suscitada por modos diversos, no decurso de um processo; poderá sê-lo através de uma menção expressa, como mediante a alusão ou referência que permita a sua identificação.” (cfr. Acórdão n.º 235/91).
Em conclusão, considera-se devidamente fundamentada a invocação de uma inconstitucionalidade quando da mesma se consiga extrair a norma reputada de inconstitucional, a norma ou principio constitucional violado e uma fundamentação, sucinta ou tácita, mas que permita perceber o porquê daquela invocação de inconstitucionalidade.
E, preenchidos estes requisitos de forma necessários a que o Tribunal a quo possa sobre a inconstitucionalidade se pronunciar, considerar-se-á que a questão da inconstitucionalidade foi suscitada de modo processualmente adequado.
Ora, da leitura das alegações que o Recorrente ofereceu ao Tribunal da Relação de Lisboa facilmente se consegue extrair quais as normas que este reputa inconstitucionais, quais as normas ou princípios constitucionais violados, e porquê.
Assim, e ao contrário do que parecem fazer crer os Recorridos, as questões de inconstitucionalidade normativa foram suscitadas de forma processualmente adequada e, como tal, deve o presente Recurso ser conhecido.» (fls. 615 a 620)
Posto isto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
- Da possibilidade de conhecimento do objeto do recurso
6. Na fase de contra-alegações foram invocados fundamentos que – caso se venham a revelar procedentes – obstariam ao conhecimento do objeto do presente recurso, pelo que importa começar por os apreciar.
Os recorridos B., C. e D. invocam a falta de suscitação processualmente adequada das questões de inconstitucionalidade, embora admitam que o recorrente identificou, em sede de alegações para o Tribunal da Relação, quer as normas jurídicas cuja inconstitucionalidade pretendiam ver apreciada, bem como as normas e princípios constitucionais que teriam sido violados. Porém, entendem que a ausência de uma causa de pedir devidamente articulada justificaria a conclusão pela falta de suscitação processualmente adequada.
Com efeito, verifica-se que o recorrente indicou, de modo especificado quais os preceitos legais dos quais se poderiam extrair as normas (e respetivas interpretações normativas) que aquele pretendia ver sindicadas, bem como as normas e princípios constitucionais que teriam sido infringidos pelas interpretações normativas aplicadas pelo juiz de instrução criminal. Esta conclusão resulta das invocações expressamente formuladas a fls. 350, 351, 359 e 362, bem como dos §§ 10º, 12º (fls. 364), 22º (fls. 367) e 35º (fls. 370).
Além disso, a jurisprudência consolidada no Tribunal (ver, a mero título de exemplo, os Acórdãos n.º 235/91, n.º 53/97 e n.º 421/2001, disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) apenas exige que o incidente de fiscalização da constitucionalidade que seja suscitado perante um tribunal comum identifique a norma (ou interpretação normativa) infraconstitucional cuja apreciação se pretende, as normas ou princípios constitucionais alegadamente violados – à imagem do que se exige, mais tarde, para a interposição de recurso de perante o Tribunal Constitucional (cfr. artigo 75º-A, n.ºs 1 e 2, da LTC) - , bem como a formulação sucinta de uma causa de pedir que sustente a alegada inconstitucionalidade.
Nos presentes autos, nem sequer se pode afirmar que exista uma formulação sucinta da causa de pedir nas alegações de recurso apresentadas perante o Tribunal da Relação de Lisboa. Resulta de todo o articulado que o recorrente contesta a constitucionalidade das interpretações normativas objeto do presente recurso, por alegada violação do seu direito fundamental de acesso à Justiça e, em especial, do direito fundamental de intervenção processual do ofendido em processo crime. Mas, mais do que isso, pode mesmo extrair-se das referidas alegações a verbalização expressa da respetiva causa de pedir. Senão, vejam-se os seguintes excertos:
“Aliás, se ao próprio Juiz de Instrução é expressamente admitido que fundamente o despacho de pronúncia – mesmo no que respeita às razões [de] facto – por remissão para o requerimento de abertura de instrução ou na acusação, peças processuais que nem sequer são da sua autoria, nada justifica que fosse vedada ao ofendido/Assistente a narração dos factos para narração por sim mesmo feito numa peça processual anterior e pertencente aos mesmos autos – a queixa crime.” (fls. 350, com sublinhado nosso)
“O Tribunal interpretou e aplicou as normas contidas nos artigos 287.º, n.º 2, parte final, e 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), numa forma errada, pois fê-lo num sentido tão limitado e apertado que poucos ou nenhuns requerimentos de abertura de instrução seriam, nessa lógica, admissíveis.” (fls. 360 e § 26º das conclusões, a fls. 368)
Daqui decorre que o recorrente nem sequer se limitou a indicar as interpretações normativas e as normas e princípios constitucionais violados, tendo mesmo contextualizado essas alegadas inconstitucionalidades, demonstrando que as interpretações em causa restringiriam, de modo desproporcionado, os seus direitos fundamentais de acesso à Justiça Penal, enquanto ofendido.
Encontra-se, pois, cumprido o ónus processual de prévia suscitação de questões de constitucionalidade normativa, pelo que improcede o argumento dos recorridos.
7. Em sede de contra-alegações, o Ministério Público invocou que as primeiras três questões de inconstitucionalidade normativa não poderiam ser alvo de conhecimento, na medida em que o tribunal recorrido teria adotado uma fundamentação alternativa que esvaziaria de conteúdo um eventual juízo de inconstitucionalidade, pelo Tribunal Constitucional, por manifesta falta de interesse. Em suma – e acordo com esta perspetiva –, o Tribunal da Relação de Lisboa teria entendido que, mesmo que se admitisse a possibilidade de remissão para os factos enunciados na queixa-crime, esta sempre padeceria da falta de descrição adequada dos factos que preencheriam o tipo de ilícito penal em causa. Funda-se este entendimento no seguinte excerto da decisão recorrida:
“Por um lado, há que deixar consignado que o que falta no RAI não são as circunstâncias de tempo e lugar em que terão ocorrido os factos, isto é a entrevista, a sua publicação e o seu teor, mas as concretas passagens da mesma que consubstanciam a difamação de que o Assistente se queixa. Quanto a estas, o RAI limita-se a referir, genericamente, a título de exemplo, “declarações deturpadas” (art.º 2º), “acentuadas discrepâncias” (art.º 25º), “imputação ao entrevistado de afirmações que este não proferiu e omissão de afirmações que … proferiu” (art.º 48º), sem nunca especificar essas discrepâncias, imputações e omissões.
Na verdade, só com a descrição dessas passagens se pode considerar cumprido o dever de descrição dos factos.
Por outro lado, ainda que se possa admitir que no art.º 8º do seu RAI faz uma remissão para a queixa apresentada a fls. 5 a 93, esta remissão não é suficiente para dar cumprimento ao comando do disposto no art.º 287º/2 do CPP.” (fls. ###, com sublinhado do recorrido)
Em sentido diametralmente oposto, entende o recorrente que o excerto isolado do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, citado pelo Ministério Público, deturpa o sentido geral daquela decisão, por força da sua descontextualização. De acordo com o recorrente, a decisão recorrida teria, ao invés, concluído pela mera inadmissibilidade de remissão para a queixa-crime, nem sequer tendo chegado a apreciar acerca da suficiência da descrição dos factos que são enunciados por aquela queixa-crime.
Analisemos, então, a decisão recorrida, de modo a deslindar se aquela admite, subsidiariamente, a remissão da descrição dos factos típicos para a queixa-crime e se, perante tal hipótese, conclui por fundamento alternativo, in casu, a ausência de descrição suficiente dos referidos factos ilícitos, pela própria queixa-crime.
Se o não fizer, mantém-se o interesse processual no conhecimento do objeto do presente recurso. Se aquela o fizer, porém, perde-se o interesse processual no presente recurso quanto às três primeiras questões normativas. Isto porque, caso o Tribunal Constitucional julgasse inconstitucionais as referidas interpretações normativas, o tribunal recorrido poderia manter o sentido final da sua decisão, em função do fundamento alternativo. Isto é, continuaria a julgar improcedente o recurso do despacho proferido pelo juiz de instrução criminal, considerando que nem sequer a queixa-crime contém uma descrição suficiente e adequada dos factos típicos.
Após análise aturada da decisão recorrida, impõe-se contextualizar aquele excerto, tal como invocado pelo Ministério Público, face a todo o demais excurso argumentativo da decisão. Com efeito, a referência isolada, de acordo com a qual “ainda que se possa admitir que no art.º 8º do seu RAI faz uma remissão para a queixa apresentada a fls. 5 a 93, esta remissão não é suficiente para dar cumprimento ao comando do disposto no art.º 287º/2 do CPP”, poderia levar o intérprete menos prevenido a entender que a decisão recorrida havia aludido a uma fundamentação alternativa, no sentido de que mesmo que se considerasse como admissível a remissão para o teor da queixa-crime, aquela não continha uma narração suficiente dos factos típicos.
Contudo, aquela expressão adotada pela decisão recorrida deve ser compreendida à luz das contra-alegações apresentadas pelo Ministério Público, junto do Tribunal de Instrução Criminal, que chegou a alegar que a expressão adotada no artigo 8º do requerimento de abertura de instrução – recorde-se o teor desse artigo: “Por extensos e por se encontrarem taxativamente descritos nos autos à margem referenciados, não se repetirão os factos que originaram a queixa.” – não configurava uma efetiva remissão para a queixa-crime (cfr. §§ 1 a 3 das conclusões das contra-alegações, de fls. 182 e 183). Portanto, aquela passagem da decisão recorrida (já supra citada) não pode senão ser interpretada no sentido de que o tribunal recorrido pretendeu esclarecer que, mesmo havendo dúvidas sobre se o artigo 8º do referido requerimento consistia sequer numa verdadeira remissão, sempre se deveria concluir que a mera remissão para a queixa-crime seria insuficiente ou inadequada para dar cumprimento à exigência do artigo 287º, n.º 2, do CPP. Ou seja, a decisão recorrida conclui que, mesmo que se admitisse que o artigo 8º do requerimento de abertura de instrução constitui uma efetiva remissão para a queixa-crime, certo é que a narração, ainda que sintética, dos factos ilícitos não pode ser feita mediante remissão.
Esta interpretação acerca daquele excerto é corroborada pela ausência de qualquer análise, sucinta que fosse, do teor da queixa-crime, através da qual se pudesse concluir pela insuficiência da narração levada a cabo na queixa-crime. Pelo contrário, a decisão recorrida passa, logo de imediato, a transcrever, longamente (cfr. fls. 505 a 509, um comentário doutrinário ao Código de Processo Penal, que dá conta e defende, justamente, a tese da inadmissibilidade de remissão do requerimento de abertura de instrução para a queixa-crime.
Por conseguinte, aquela passagem da decisão recorrida só evidencia a adoção de uma fundamentação alternativa relativamente às primeira, segunda e última parte da terceira interpretações normativas cuja constitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada. No fundo, a decisão recorrida entendeu que, ainda que se considerasse que a expressão linguística utilizada no artigo 8º do requerimento de abertura de instrução fosse uma remissão material, não seria suficiente para dar cumprimento ao dever processual de narração sintética dos factos ilícitos. Deve frisar-se, aliás, que a decisão recorrida nem sequer aborda, em nenhuma outra passagem, o problema da alegada “fórmula sacramental”, conforme empregada pelo recorrente, o que sempre conduziria ao não conhecimento do objeto do pedido, por falta de aplicação efetiva das referidas interpretações normativas (artigo 79º-C da LTC).
Muito pelo contrário, toda a fundamentação da decisão recorrida assenta na inadmissibilidade legal da remissão para os factos narrados na queixa-crime. Como tal, mantém-se plenamente o interesse processual no conhecimento do objeto do presente recurso, mas apenas quanto à primeira parte da terceira interpretação normativa, ou seja, quanto à interpretação segundo a qual, “os artigos 287.º e 283.º do CPP, na sua formulação de “descrição sintética dos factos”, não permite que estes sejam descritos por remissão (…)”, ficando assim precludido o conhecimento acerca das primeira, segunda e parte final da terceira interpretações normativas.
8. Por último, importa ainda registar que, conforme detetado pelo Ministério Público, subsiste uma discrepância entre o modo como o recorrente limitou a quarta interpretação normativa, relativa ao n.º 3 do artigo 287º do CPP, “no sentido de, em caso de narração incompleta dos factos, ser justificada a rejeição do requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução” (fls. 522) e as suas próprias alegações de recurso, através das quais enuncia (e ataca) a falta de convite ao aperfeiçoamento, ou melhor, àquilo que designa por “esclarecimento” (cfr. §§ 96 a 107 das conclusões).
Porém, considera-se que tal discrepância não obsta ao conhecimento do objeto do recurso, quanto a essa parte. Ainda que o requerimento de interposição de recurso constitua a sede própria para a fixação do objeto do recurso – o que se reitera e acentua – certo é que o modo amplo como o recorrente delimitou a quarta interpretação normativa inclui, na sua amplitude, a rejeição do requerimento em qualquer condição, incluindo quando se opta por não proceder a convite ao aperfeiçoamento (ou ao “esclarecimento”, como prefere o recorrente de modo a furtar-se à influência do Acórdão n.º 7/2005, do Supremo Tribunal de Justiça, que fixou jurisprudência no sentido da inexistência de um dever de convite ao aperfeiçoamento).
Assim sendo, decide-se conhecer da alegada inconstitucionalidade da quarta interpretação normativa.
- Do conhecimento do mérito do recurso
9. Vejamos, então, se é contrária aos direitos fundamentais de acesso aos tribunais (artigo 20º, n.º 1, da CRP), de participação do ofendido no processo penal (artigo 32º, n.º 7, da CRP) e ao dever de respeito da administração pública pelos princípios da proporcionalidade, da justiça e da boa fé (artigo 266º, n.º 2, da CRP), uma interpretação dos artigos 283º e 287º segundo a qual “na sua formulação de “descrição sintética dos factos”, não permite que estes sejam descritos por remissão” (fls. 620).
Em primeiro lugar, note-se que não se compreende a alegada contradição com o artigo 266º, n.º 2, da CRP, na medida em que este preceito constitucional se insere no Título IX da Constituição, relativo à administração pública, e apenas abrange, portanto, os órgãos e entidades que exerçam a função administrativa. Como é evidente, questionando-se uma decisão de um órgão jurisdicional, não se pode usar como parâmetro de validade uma norma destinada a regular a atividade de órgãos administrativos.
Quanto ao mais, deve referir-se que a própria decisão recorrida (ainda que por via de citação de opinião doutrinária) adere ao Acórdão n.º 358/2004 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), através do qual o Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar sobre questão idêntica à que ora se encontra em apreço. Dessa feita, foi dito que:
“7. O assistente, já se referiu, tem a faculdade de requerer a abertura da instrução. Tal faculdade, no caso concreto, foi exercida na sequência da prolação do despacho de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público.
Esse requerimento consubstancia, materialmente, uma acusação, na medida em que por via dele é pretendida a sujeição do arguido a julgamento por factos geradores de responsabilidade criminal.
A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objeto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.
Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objeto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa.
Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.
Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe, como se deixou mencionado, uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução.
Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada.
Será, porém, aceitável a exigência de que tal menção seja feita por remissão para elementos dos autos, ou pelo contrário, será inconstitucional, por violação do direito ao acesso aos tribunais, que seja vedada a possibilidade de tal indicação ser feita por remissão para elementos dos autos?
A resposta é negativa.
Com efeito, a exigência de rigor na delimitação do objeto do processo (recorde-se, num processo em que o Ministério Público não acusou), sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.
De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa.
Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo.
Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efetiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito.”
Apesar de o recorrente procurar afastar a argumentação expendida pelo Acórdão n.º 358/2004, não se vislumbram quaisquer razões para afastar tal entendimento, pelo que se reitera integralmente aquela jurisprudência, não se julgando, portanto, inconstitucional a primeira parte da terceira interpretação normativa.
10. Por fim, quanto à alegada inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 287º e 283º do CPP, “no sentido de, em caso de narração incompleta dos factos, ser justificada a rejeição do requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução”, igualmente por violação dos direitos fundamentais de acesso aos tribunais (artigo 20º, n.º 1, da CRP), de participação do ofendido no processo penal (artigo 32º, n.º 7, da CRP) e ao dever de respeito da administração pública pelos princípios da proporcionalidade, da justiça e da boa fé (artigo 266º, n.º 2, da CRP), deve começar por estabelecer-se que essa constitui a consequência natural da falta (ou incompletude) de narração dos factos.
Por si só, não se vislumbra de que modo poderia essa interpretação ser inconstitucional, pelo menos quando estivesse em causa a completa ausência da narração dos factos. Importa apenas verificar se constituiria restrição desproporcionada daqueles direitos uma interpretação que não exigisse o cumprimento de um (pretendido) dever de convite ao aperfeiçoamento.
Recentemente, a propósito de questão paralela à que se discute nos presentes autos o Tribunal proferiu o Acórdão n.º 636/11, no qual se afirmou o seguinte:
“(…) As garantias de processo criminal que, no artigo 32.º, a CRP consagra, são essencialmente as garantias da defesa. E como é em torno da tutela destas últimas que o legislador ordinário organiza as regras de processo – procurando a realização do equilíbrio entre as necessidades emergentes dessa tutela e as exigências decorrentes do imperativo de realização da justiça penal –, nelas, o estatuto do assistente não poderá nunca ser equiparável ao estatuto do arguido. Por assim ser, diz o nº 7 do artigo 32.º que o direito do ofendido a intervir no processo será reconhecido nos termos da lei. Semelhante formulação não é usada pelo texto constitucional quanto ao reconhecimento das garantias de defesa do arguido. Em relação à conformação do estatuto processual do assistente detém, portanto, o legislador ordinário uma margem de liberdade maior do que aquela que a Constituição lhe consente quando se trata de definir o estatuto processual do arguido.
Em terceiro lugar, há que ter em conta que as normas ordinárias relativas a pressupostos processuais se incluem, por via de regra, no âmbito dessa margem de livre conformação. As regras legais que definem estes pressupostos, enquanto condições de admissibilidade, por parte do tribunal, dos atos praticados pelos sujeitos processuais, não podem à partida ser consideradas como agressões ao direito de acesso ao direito (artigo 20.º) e às garantias de processo (artigo 32.º). Pelo contrário: na exata medida em que visam isso mesmo – a regulação, por parte do legislador ordinário, dos termos em que o tribunal admite os atos praticados pelos sujeitos intervenientes no processo – constituem as referidas regras mecanismos de funcionalização do sistema judiciário no seu conjunto, fazendo parte dele enquanto meios necessários para a realização do direito a uma tutela jurisdicional efetiva e a um processo (penal) côngruo. Ponto é que o conteúdo dessas regras se inscreva ainda nas exigências decorrentes do princípio da proporcionalidade, não transformando os pressupostos processuais em encargos excessivos ou desrazoáveis para aqueles a que se destinam.”
No caso concreto ora em apreço, sucede, precisamente, que a interpretação normativa extraída dos artigos 287º e 283º do CPP, “no sentido de, em caso de narração incompleta dos factos, ser justificada a rejeição do requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução”, diz respeito não ao cumprimento de meros requisitos formais, mas antes ao incumprimento – ou, pelo menos, ao cumprimento deficiente – de um ónus de natureza material, neste caso, a falta de narração adequada dos factos ilícitos que consubstanciariam a responsabilidade penal dos arguidos.
Aliás, deve reiterar-se que o requerimento de abertura de instrução, quando deduzido pelo assistente, exerce a função de delimitação do objeto do próprio processo penal – como é evidente, quando, posteriormente, corroborado pelo despacho de pronúncia proferido pelo competente juiz de instrução (assim, ver José Souto Moura, O Objeto do Processo, in Apontamentos de Direito Processual Penal (org. Teresa Pizarro Beleza), II Volume, AAFDL, Lisboa, 1993, p. 24). Ora, a natureza material da narração dos factos típicos é evidente quando se atenta na centralidade da delimitação objetiva e transparente do objeto do processo penal. Conforme demonstra Castanheira Neves, O Objeto do Processo, in Direito Processual Penal – Textos (org. Teresa Pizarro Beleza / Frederico Isasca), AAFDL, Lisboa, 1992, p. 137:
“(…) a definição e delimitação do objeto do processo deverá orientar-se, por um lado, decerto no sentido de ser uma garantia de que apenas do que é acusado se terá de defender, e de que só por isso será julgado, posto que a «eadem res» da acusação à sentença é seguramente uma fundamental garantia para uma defesa pertinente e eficaz, segura de não deparar com surpresas incriminatórias e de ter assim um julgamento leal –, mas, por outro lado, no sentido também de não frustrar uma averiguação e um julgamento justos e adequados da infração acusada.”
Em suma, a incompletude ou narração inadequada dos factos que gerariam responsabilidade criminal dos arguidos não pode ser qualificada como uma mera preterição de um formalismo legalmente exigido, pelo que não se pode estabelecer qualquer paralelismo entre a quarta questão de inconstitucionalidade normativa em apreço nos presentes autos e aquelas que foram alvo de juízos de inconstitucionalidade, por violação do direito de acesso ao recurso em processo penal. Assim, atenta a ampla liberdade do legislador, não se afigura que a opção pela rejeição do requerimento de abertura de instrução corresponda a uma restrição manifestamente desproporcionada do direito de acesso aos tribunais (artigo 20º, n.º 1, da CRP) e do direito de participação do ofendido no processo penal (artigo 32º, n.º 7, da CRP).
Acentua-se ainda que uma interpretação que propugne o afastamento do dever de convite ao aperfeiçoamento coaduna-se perfeitamente com a própria defesa de interesses constitucionalmente protegidos, de que beneficiam os arguidos, em especial, a celeridade do processo penal, conforme já igualmente demonstrado pelo Acórdão n.º 636/11 (supra citado):
“Ao determinar que “o requerimento [de abertura de instrução] não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à (…) não acusação”, o nº 2 do artigo 287.º do CPP está a definir um pressuposto de admissibilidade, por parte do tribunal, do ato praticado pelo assistente no processo que, para além de ser – como qualquer outro pressuposto processual – um meio de funcionalização do sistema no seu conjunto, é, pelo seu teor, necessário, face às exigências decorrentes dos princípios fundamentais da Constituição em matéria de processo penal. Face à legitimidade (digamos assim) “reforçada” de que dispõe, portanto, o legislador ordinário para fixar esse pressuposto – exigindo o seu cumprimento por parte do assistente – não se afigura excessiva ou desproporcionada a norma sob juízo, aplicada pela decisão recorrida: a Constituição não impõe um convite ao aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, que, fora dos casos previstos no nº 3 do artigo 287.º do CPP, não cumpra os requisitos exigidos pelo nº 2 do mesmo preceito.
Assim é, tanto mais se se considerarem os efeitos que, nos termos do nº 1 do artigo 57.º do CPP, decorrem da apresentação do requerimento de abertura de instrução. Por tal apresentação implicar, ipso facto, a constituição de arguido (com todas as consequências que daí resultam para a proteção das garantias de defesa), não é jurídico?constitucionalmente irrelevante o tempo em que ela é feita. Precisamente por esse motivo fixa a lei um prazo – que é de 20 dias a contar da notificação do arquivamento do inquérito (artigo 287.º, n.º 1 do CPP) – para o assistente apresentar o requerimento de abertura de instrução.
A dilação desse prazo, que seria potenciada pela necessidade de formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente, viria afetar os direitos de defesa do arguido, porquanto a peremptoriedade do prazo funciona em favor do arguido e dos seus direitos de defesa (v., nesse sentido, acórdão do STJ n.º 7/2005, já citado, pág. 6344). Além disso, o convite à correção dilataria o termo final do desfecho da instrução. A relevância jurídico-constitucional desses dois aspetos do regime legal relaciona-se não apenas com os direitos de defesa do arguido, tal como constitucionalmente tutelados, mas decorre também de valores constitucionalmente atendíveis tais como o princípio da celeridade processual. Mais outra razão, portanto, para que a opção legislativa pela inexigibilidade da formulação de tal convite seja tida como constitucionalmente legítima.”
Quanto à alegada violação do artigo 266º, n.º 2, da CRP, reitera-se o que já se expôs no § 9 do presente acórdão, afastando-se o alegado fundamento de inconstitucionalidade.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não conhecer do objeto do recurso quanto às primeira, segunda e ao segundo inciso da terceira interpretações normativas;
b) Não julgar inconstitucional a norma extraída dos artigos 287º e 283º do CPP, quando interpretada no sentido de que a “sua formulação de “descrição sintética dos factos”, não permite que estes sejam descritos por remissão”;
c) Não julgar inconstitucional a norma extraída dos artigos 287º e 283º do CPP, quando interpretada “no sentido de, em caso de narração incompleta dos factos, ser justificada a rejeição do requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução”.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC´s, nos termos do n.º 1 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 25 de janeiro de 2012. – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.
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