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Processo n.º 548/10
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso, ao abrigo do artigo 280.º, n.º 1, al. b), da CRP e da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do Acórdão n.º 7/2010, proferido pela 3ª Secção do Tribunal de Contas, em 28 de Maio de 2010 (fls. 63 a 110), para que seja apreciada a constitucionalidade da norma extraída da alínea b) do n.º 1 do artigo 65.º da Lei nº 98/97, de 26 de Agosto, na redacção introduzida pela Lei nº 48/2006, de 29 de Agosto, por violação do princípio da legalidade penal, consagrado no n.º 1 do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa.
2. Notificado para tal pela Relatora, o recorrente produziu alegações, das quais se podem extrair as seguintes conclusões:
«a) A recorrente, Presidente da Câmara Municipal de Setúbal, por decisão da 3ª Secção do Tribunal de Contas, proferida em processo para efectivação de responsabilidade financeira sancionatória, foi condenada ao pagamento de uma multa de 17 UCs;
b) Por se ter considerado que, pelo facto de ter participado numa deliberação daquele órgão autárquico, que aprovou, por forma que foi considerada ilícita, a celebração, por ajuste directo, de um contrato adicional a uma empreitada em curso, com o adjudicatário da empreitada primitiva, se colocara sob a alçada da disposição punitiva da alínea b) do art. 65° da LTC;
c) De acordo com tal disposição, fica sujeito a responsabilidade financeira sancionatória quem violar normas relativas à “assunção, autorização ou pagamento de despesas públicas ou compromissos”, tendo sido em tal disposição que o douto acórdão sob recurso considerou integrar-se a conduta imputada à aqui recorrente;
d) Nos termos da própria decisão recorrida e das alegações, que nessa parte tiveram acolhimento, do Digníssimo Magistrado do Ministério Público, tal preceito funciona como uma norma geral sancionatória e reporta-se à violação de quaisquer normas sobre a “assunção, autorização ou pagamento de despesas públicas ou compromissos”, remetendo o conteúdo incriminatório para todas e quaisquer normas relacionadas com a realização de despesa, considerando-se ainda que, pela complexidade da actividade administrativa, nunca seria viável uma descrição tipificada das múltiplas condutas que poderiam conduzir a uma responsabilidade financeira sancionatória;
e) Tal norma, com tal sentido e alcance que, efectivamente, resulta do seu teor literal, infringe patetamente as exigências de tipificação inerentes ao princípio da legalidade penal, inscrito no art. 29 da Constituição da República, já que conduz a um sancionamento de “tudo o resto e do mais que haja” para além daquilo que está - especificadamente previsto, em termos de ilicitude na realização de despesas e na assunção de compromissos, nas demais alíneas da citada disposição do art. 65° da LTC;
f) Pois tal amplitude, generalização e imprecisão de tal norma, não se coaduna com as exigências resultantes daquele princípio, que impõe que a lei incriminadora descreva o mais pormenorizadamente possível a conduta que qualifica como um crime, se abstenha de utilizar cláusulas gerais para definição dos crimes, conceitos indeterminados, fórmulas vagas na descrição de tipos legais, devendo ter um conteúdo autónomo e suficiente, possibilitando um controlo objectivo da sua aplicação individualizada e concreta;
g) A Constituição da República, em termos de direito sancionatório público, para além da punição dos ilícitos penais, apenas permite o sancionamento de ilícitos contraordenacionais e ilícitos disciplinares, não podendo a lei prever qualquer outro tipo de ilícitos que não se enquadre num daqueles três tipos, que fixa, assim, um numerus clausus, vigorando, desse modo, um princípio de tipicidade de tipos sancionatórios;
h) Sendo inequívoco que a responsabilidade financeira sancionatória não tem natureza contraordenacional nem disciplinar, é forçoso atribuir-lhe uma natureza penal;
i) Natureza penal que resulta também patente do facto de lhe ser aplicável uma multa, sanção em todo igual a idêntica pena prevista no Código Penal;
j) Sendo tal tipo de ilícitos sancionados através dos meios jurisdicionais — o que definitivamente os afasta quer do ilícito contraordenacional quer do ilícito disciplinar — com recurso aos princípios, quer adjectivos quer substantivos, do direito penal;
l) Desse modo, é inequívoco que o art. 29° da Constituição da República se aplica directamente à disposição sancionatória, cuja constitucionalidade material se sindica no presente recurso;
m) E, ainda que se atribuísse a tal norma sancionatória uma natureza não penal, tal disposição constitucional também se lhe aplicaria, já que, como é entendido na doutrina e na jurisprudência desse Tribunal, o princípio da legalidade penal fixado no art. 29° da Constituição da República, aplica-se por analogia constitucional, a todas as situações de direito sancionatório público;
n) Assim, por não satisfazer as exigências de tipificação que resultam do princípio da legalidade penal, inscrito no art. 29° da Constituição da República, a disposição da alínea b), do art. 65° da LTC, no segmento “bem tomo da assunção, autorização ou pagamento de despesas públicas ou compromissos”, é materialmente inconstitucional por violação de tal preceito constitucional.
Nestes termos e nos mais de direito do douto suprimento de Vossas Excelências,
Deve ser julgado procedente o presente recurso, declarando-se a inconstitucionalidade material da referida norma e ordenando-se a baixa do processo 3ª Secção do Tribunal de Contas para rever a decisão proferida com base em tal declaração de inconstitucionalidade, como é de JUSTIÇA» (fls. 130 a 131-verso).
3. O Ministério Público veio apresentar contra-alegações, cujas conclusões são as seguintes:
«1º
A interpretação sufragada da norma do artigo 65.º, nº 1, alínea b), da Lei nº 98/97, de 26 de Agosto, na redacção introduzida pela Lei nº 48/2006, de 29 de Agosto, não viola as exigências do princípio da legalidade, consagrado no artigo 29.º, nº 1, da CRP.
2º
Com efeito, a norma não deixa dúvidas acerca dos pressupostos do facto sancionado com multa, permite dar a conhecer aos seus destinatários os comportamentos que merecem censura e a sanção de multa, possibilitando, ainda, um controlo objectivo na sua aplicação individualizada e concreta.
3º
Aliás, face à multiplicidade dos actos e condutas em que se desdobra a complexa actividade administrativa, seria inviável que a norma especificasse as várias condutas e circunstâncias que podem conduzir a uma responsabilidade financeira sancionatória.
4º
Acresce estarmos no domínio da responsabilidade financeira sancionatória, cuja autonomia e natureza própria tem, como consequência necessária, que a respectiva efectivação seja promovida em função de pressupostos autónomos, no lugar de competência próprio, através de processo específico e no âmbito das valorações próprias.
5º
Assim, a competência material para a efectivação da responsabilidade financeira pertence ao Tribunal de Contas, devendo ser requerida pelo Ministério Público, no exercício de competência directamente prevista na lei, independentemente de eventuais responsabilidades de outra natureza, emergentes dos mesmos factos, poderem (e deverem) ser apuradas em outras jurisdições.
6º
Estamos, pois, perante uma norma enquadrada num ramo de direito público sancionatório que não se confunde com o direito penal, nem mesmo com o direito contra-ordenacional ou disciplinar, sendo como tal, de menor grau as exigências da tipicidade, corolário do princípio da legalidade, consagrado no artigo 29.º, nº 1, da Lei Fundamental.
7º
De todo o modo, a norma reveste um grau de precisão que permite identificar o tipo de comportamentos capazes de induzir a aplicação de multas pelo Tribunal de Contas.
8º
Pelo que, a nosso ver, o recurso não merece provimento.» (fls. 143 a 145).
Posto isto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A norma cuja fiscalização de constitucionalidade se requer consta da Lei nº 98/97, de 26 de Agosto, que aprovou a Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas, de acordo com a redacção introduzida pela Lei nº 48/2006, de 29 de Agosto, e tem o seguinte teor:
“Artigo 65º
Responsabilidades financeiras sancionatórias
1 – O Tribunal de Contas pode aplicar multas nos casos seguintes:
(…)
b) Pela violação das normas sobre a elaboração e execução dos orçamentos, bem como da assunção, autorização ou pagamento de despesas públicas ou compromissos;
(…)”
Importa ainda ter presente o artigo 48.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 59/99, de 02 de Março, que aprovou o regime jurídico das empreitadas de obras públicas, o qual deu origem à respectiva responsabilidade financeira:
“Artigo 48º
Escolha do tipo de procedimento
(…)
2 – São os seguintes os procedimentos aplicáveis, em função do valor estimado do contrato:
Concurso público ou limitado com publicação de anúncio, seja qual for o valor estimado do contrato;
Concurso limitado sem publicação de anúncio quando o valor estimado do contrato for inferior a 50 000 contos;
Concurso por negociação, quando o valor estimado do contrato for inferior a 5 000 contos, sendo obrigatória a consulta a três entidades;
Ajuste directo, quando o valor estimado do contrato for inferior a 1 000 contos, sem consulta.”
Vejamos, então, se a norma supra transcrita, enquanto norma de remissão, padece de inconstitucionalidade, por violação do princípio da legalidade penal (artigo 29º, n.º 1, da CRP), tal como alega o recorrente.
5. Antes de mais, deve sublinhar-se que a norma objecto do presente recurso, como indica a sua epígrafe, se refere à responsabilidade financeira sancionatória daqueles que, sendo titulares de cargos públicos, são susceptíveis de exercer competências relacionadas com a elaboração e execução dos orçamentos, bem como com a assunção, autorização ou pagamentos de despesas públicas ou compromissos.
Partindo deste pressuposto, há que averiguar se – como pretende a recorrente – este tipo de responsabilidade se deve inserir, por força de um pretenso princípio constitucional da tipicidade dos ilícitos sancionatórios, no ilícito penal, disciplinar ou contra-ordenacional – únicos constitucionalmente admissíveis – ou se a responsabilidade em causa neste processo deve ser encarada como um tipo autónomo.
Note-se que ainda que se chegue à conclusão que se trata de um tipo de responsabilidade autónomo, sempre nos teremos interrogar se o princípio da legalidade penal, tal como previsto no n.º 1 do artigo 29º da CRP, se aplica para além do Direito Penal, ou seja, se se aplica igualmente ao caso em apreço.
6. A Constituição da República Portuguesa menciona o Tribunal de Contas no seu artigo 214.º, qualificando-o como o “órgão supremo de fiscalização da legalidade das despesas públicas e de julgamento das contas que a lei mandar submeter-lhe”. De entre as competências que a Constituição atribui ao Tribunal de Contas, no n.º 1 do referido preceito, consta a de “efectivar a responsabilidade por infracções financeiras, nos termos da lei”. Ou seja, a Constituição admite que o Tribunal de Contas tem competência para aplicar sanções por violação de regras financeiras, remetendo para a lei as suas concretas delimitação e determinação.
Perante a norma constante do artigo 214.º, n.º 1, al. c), da CRP não se vislumbra como se poderá sustentar a tese da recorrente de que a Constituição consagra um princípio da tipicidade dos ilícitos e limita as sanções a três tipos – as de carácter penal, disciplinar e contra-ordenacional.
Ora, sendo assim, a norma sancionatória em análise não tem, por imposição constitucional, de se reconduzir a nenhuma das três categorias acima referidas, fazendo parte de um tipo autónomo de responsabilidade sancionatória – a financeira – o que significa que, directa e imediatamente, o princípio da legalidade penal constante do artigo 29.º, n.º 1, da CRP não se aplica no caso concreto.
7. Do exposto não resulta necessariamente que as normas sancionatórias estejam dispensadas de respeitar determinadas regras e princípios constitucionais, de entre os quais se destacam o princípio da segurança jurídica, decorrente da ideia de Estado de Direito (artigo 2º da CRP), bem como as regras relativas às restrições de direitos, liberdades e garantias inseridas no artigo 18.º da CRP.
Assim, a previsão normativa da sanção deve ser prévia e certa, na medida em que qualquer norma que envolva a restrição de direitos, liberdades e garantias, como é o caso da norma que impõe a aplicação de determinada sanção (mesmo de natureza não penal – disciplinar, contra-ordenacional ou outra) deve ser prévia à conduta do agente e certa quanto ao respectivo conteúdo.
Porém, nada na Constituição obriga a que a previsão tenha de obedecer a um modelo assente na previsão expressa da conduta típica. Pelo contrário, ela pode basear-se num modelo de remissão do tipo de ilícito para outras normas legais que densificam os elementos do tipo de ilícito a sancionar. Ou seja, a norma sancionatória pode estabelecer apenas parcialmente o comportamento ilícito, remetendo para outras normas a explanação de todas as suas circunstâncias, as quais serão precisadas por outras normas («norma sancionadora em branco») ou limitar-se a dispor que a inobservância de determinadas normas constitui infracção sujeita a sanção. A infracção será, portanto, estipulada de forma indirecta, por meio do recurso às normas principais que fixam os deveres em causa.
Note-se que a existência de “normas sancionatórias em branco” é transversal a todos os ilícitos sancionatórios, incluindo no ilícito penal. Por isso, este Tribunal já teve ocasião de decidir que as “normas penais em branco” não atentam contra o princípio da legalidade penal, desde que garantam um mínimo de determinabilidade, definindo o núcleo essencial da proibição penal, e que o elemento mutável do tipo de ilícito esteja directamente dependente de critérios de natureza técnica (assim, ver Acórdãos n.º 299/92, n.º 427/95, nº 534/98 e nº 115/08, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos). Ora, se este raciocínio vale para o domínio do ilícito penal que é, sem dúvida, o de maior gravidade, do ponto de vista da Constituição, por maioria de razão, deverá aplicar-se aos outros tipos de ilícitos, incluindo o caso da responsabilidade sancionatória financeira.
Como afirmou este Tribunal, no Acórdão n.º 458/93 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/):
“17. O princípio da precisão ou determinabilidade das leis implica que o legislador elabore normas jurídicas claras, susceptíveis de interpretação que conduza a um sentido inequívoco, e que tenham a suficiente densidade, de forma a constituírem uma medida jurídica capaz de alicerçar posições juridicamente protegidas dos cidadãos, traduzindo uma norma de actuação para a Administração, possibilitando, como norma de controlo, a fiscalização de legalidade e a defesa dos direitos e interesses protegidos (ensino de Gomes Canotilho, ob. cit, págs. 376 e seguintes, acolhido no Acórdão nº 285/92, do Tribunal Constitucional, no Diário da República, I Série-A, nº 188, de 17 de Agosto de 1992, págs. 2962 e seguintes).”
Este Tribunal também já teve oportunidade de se pronunciar – ainda que a propósito do ilícito administrativo de natureza disciplinar – sobre a questão de saber se o princípio da legalidade penal (artigo 29º, n.º 1, da CRP), “qua tale”, é aplicável aos demais domínios, tendo afirmado, no Acórdão n.º 666/94 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), que:
“8. A regra da tipicidade das infracções, corolário do princípio da legalidade, consagrado no nº 1 do artigo 29º da Constituição (nullum crimen, nulla poena, sine lege), só vale, qua tale, no domínio do direito penal, pois que, nos demais ramos do direito público sancionatório (maxime, no domínio do direito disciplinar), as exigências da tipicidade fazem-se sentir em menor grau: as infracções não têm, aí, que ser inteiramente tipificadas.
Simplesmente, num Estado de Direito, nunca os cidadãos (cidadãos-funcionários incluídos) podem ficar à mercê de puros actos de poder. Por isso, quando se trate de prever penas disciplinares expulsivas - penas, cuja aplicação vai afectar o direito ao exercício de uma profissão ou de um cargo público (garantidos pelo artigo 47º, nºs 1 e 2) ou a segurança no emprego (protegida pelo artigo 53º) -, as normas legais têm que conter um mínimo de determinabilidade. Ou seja: hão-de revestir um grau de precisão tal que permita identificar o tipo de comportamentos capazes de induzir a inflicção dessa espécie de penas - o que se torna evidente, se se ponderar que, por força dos princípios da necessidade e da proporcionalidade, elas só deverão aplicar-se às condutas cuja gravidade o justifique (cf. artigo 18º, nº 2, da Constituição).
No Estado de Direito, as normas punitivas de direito disciplinar que prevejam penas expulsivas, atenta a gravidade destas, têm de cumprir uma função de garantia. Têm, por isso, que ser normas delimitadoras.
É que, a segurança dos cidadãos (e a correspondente confiança deles na ordem jurídica) é um valor essencial no Estado de Direito, que gira em torno da dignidade da pessoa humana - pessoa que é o princípio e o fim do Poder e das instituições (cf. artigos 2º e 266º, nºs 1 e 2, da Constituição).”
Assim sendo, e na sequência desta Jurisprudência constitucional, a norma sub judice não atenta contra o princípio da legalidade penal, na medida em que aquele princípio, numa dimensão reforçada, apenas é aplicável aos ilícitos de natureza penal.
Mas, ainda assim, importa ponderar se o ilícito financeiro – e a correspondente sanção – fixados pela alínea b) do n.º 1 do artigo 65º da Lei n.º nº 98/97, de 26 de Agosto, de acordo com a redacção introduzida pela Lei nº 48/2006, de 29 de Agosto, atentam contra o “princípio da precisão ou da determinabilidade” das normas restritivas de direitos, liberdades e garantias (artigo 18º, n.º 2, da CRP) e contra o princípio da segurança jurídica, enquanto corolário do princípio do Estado de Direito (artigo 2º da CRP).
8. No caso da norma ora em apreço, deve ter-se em consideração que os destinatários da norma sancionadora não são todos e quaisquer administrados, considerados de modo indiferenciado, mas apenas os titulares de cargos políticos, de acordo com o regime de responsabilidade instituído (cfr. artigos 2º, 61º e 62º, aplicáveis ex vi artigo 67º, n.º 3, todos da Lei n.º nº 98/97, de 26 de Agosto, tal como republicada pela Lei nº 48/2006, de 29 de Agosto). Deste modo, a aferição da determinabilidade da norma sancionatória implica um juízo de prognose que tenha em consideração as concretas características dos referidos destinatários.
Conforme norma já supra transcrita, aquele regime jurídico apenas dispensava a realização de concurso público quando o valor estimado do contrato fosse inferior a 50 milhões de escudos [cfr. alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 48º do referido diploma], sendo apenas permitido a celebração de contrato de empreitada pública por ajuste directo quando o referido valor não atingisse um milhão de escudos [cfr. alínea d) do n.º 2 do artigo 48º]. Ora, conforme resulta dos factos dados como provados nos autos recorridos, a decisão administrativa de adjudicação do contrato de empreitada celebrado entre o município de Setúbal e a empresa “B., Lda”, com vista à recuperação do Bairro Dois de Abril, foi tomada por ajuste directo, ainda que o contrato ascendesse a 355. 903,56 €. Como tal, afigura-se flagrante e manifesta a violação do limite legal fixado para o ajuste directo.
Ora, da conjugação entre a alínea b) do n.º 1 do artigo 65º da Lei nº 98/97, de 26 de Agosto, que aprovou a Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas, de acordo com a redacção introduzida pela Lei nº 48/2006, de 29 de Agosto – que constitui “norma sancionatória primária” ou “norma sancionatória remissiva” – e da norma extraída da conjugação entre as alíneas a), b) e d) do n.º 2 do artigo 48º do Decreto-Lei n.º 59/99, de 02 de Março – que assume a função de “norma sancionatória secundária” ou “norma sancionatória de remissão” – resulta, de modo claro, perceptível e prévio à prática do acto, qual a conduta que constitui o tipo de ilícito financeiro pela qual a recorrente foi sancionada.
Atenta a centralidade da norma de determinação do tipo de procedimento a adoptar, quanto a contratos de empreitada de obra pública [artigo 48º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 59/99], que constitui preceito incontornável e por demais conhecido de qualquer titular de cargo político, em especial, de um titular de um cargo de âmbito autárquico, não se vislumbra de que modo é que a remissão operada pela alínea b) do n.º 1 do artigo 65º da Lei n.º 98/97, na redacção conferida pela Lei n.º 48/2006, coloca em causa o princípio da precisão ou da determinabilidade prévia da norma sancionatória, nem tão pouco o princípio da segurança jurídica. Determinando esta última norma que haja lugar a responsabilidade financeira dos titulares de cargos públicos quando sejam violadas normas legais reguladoras “da assunção, autorização ou pagamento de despesas públicas ou compromissos”, torna-se objectivamente apreensível pelos destinatários da referida norma que a violação de regras relativas à escolha do procedimento de celebração de contratos de empreitada pública se encontra abrangida por aquela tipificação sancionatória.
Por tudo o exposto, mais não resta do que concluir pela não inconstitucionalidade da norma extraída da alínea b) do n.º 1 do artigo 65º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto, que aprovou a Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas, de acordo com a redacção introduzida pela Lei nº 48/2006, de 29 de Agosto.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se não conceder provimento ao recurso interposto.
Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC´s, nos termos do n.º 1 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 20 de Dezembro de 2011. – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Gil Galvão.
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