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Processo n.º 518/12
3.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, veio A., S.A., interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com as alterações posteriores (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
2. No requerimento de interposição de recurso, a recorrente reporta-se ao objeto respetivo, nos seguintes termos:
“ (…) consigna que (…) a norma cuja inconstitucionalidade foi arguida se acha no n.º 1 do artigo 4.º do DL 73/99, de 16 de março, e, bem assim, o ponto 9 da Portaria 752-D/81, de 2 de setembro quando interpretada no sentido de que a dívida que emerge dessa norma não é uma dívida fiscal”
3. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária.
“(…) No presente caso, atenta a redação dos preceitos indicados no requerimento de interposição de recurso, a título de suporte do respetivo objeto, conjugada com a circunstância de a recorrente se reportar, na mesma peça processual, às inconstitucionalidades suscitadas previamente - com utilização do plural - parece-nos legítimo concluir que pretenderia submeter à sindicância do Tribunal Constitucional duas questões: a primeira assente no artigo 4.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 73/99, de 16 de março, e a segunda referente ao ponto 9 da Portaria 752-D/81, de 2 de setembro.
Desta forma, analisaremos separadamente tais questões.
(…) Quanto à primeira assinalada questão, a recorrente não enuncia, no requerimento de interposição do recurso, a concreta norma ou interpretação normativa que extrai da disposição legal que identifica e cuja sindicância pretende, parecendo, assim, esquecer que os conceitos de norma e preceito legal não são sobreponíveis.
Incumpre a recorrente, desta forma, o disposto no n.º 1 do artigo 75.º A da LTC.
Na verdade, por força do referido preceito, tem este Tribunal entendido que sobre a parte, que pretenda questionar a constitucionalidade de uma norma ou de determinada interpretação normativa, impende o ónus de enunciar expressamente tal norma ou interpretação, em termos tais que o Tribunal Constitucional, no caso de concluir pela sua inconstitucionalidade, possa reproduzir tal enunciação, de modo a que os respetivos destinatários e operadores do direito em geral fiquem cientes do concreto sentido normativo julgado desconforme com a Lei Fundamental.
A omissão de menção, autónoma e especificada, de tal elemento não é, por natureza, abstratamente insuprível.
Porém, em obediência aos princípios de economia e celeridade processuais, não é equacionável, in casu, facultar à recorrente a possibilidade de suprir tal deficiência, mediante o convite ao aperfeiçoamento a que se reporta o n.º 6 do artigo 75.º-A da LTC, porquanto, ainda que a mesma aperfeiçoasse, de forma satisfatória, o requerimento de interposição do recurso, sempre o mesmo não prosseguiria, por falta de pressupostos de admissibilidade do recurso, como melhor analisaremos.
(…) Feito este esclarecimento prévio, detenhamo-nos sobre os pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, atendendo à especificidade do concreto tipo de recurso em análise nos autos.
O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
(…) Como já referimos, a recorrente não enuncia, no requerimento de interposição do recurso, o específico critério normativo, cuja constitucionalidade pretende ver apreciada, limitando-se a mencionar o preceito legal de que tal critério será presumivelmente extraível, a saber, o artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 73/99, de 16 de março, que se reporta ao prazo de liquidação de juros de mora.
Porém, sobre tal matéria, o acórdão recorrido não se pronunciou, em termos substantivos.
Na verdade, pode ler-se na decisão recorrida:
“Como atrás já se disse, a sentença recorrida conheceu da invocada questão da prescrição da dívida exequenda no âmbito de um processo de impugnação e fê-lo na perspetiva da utilidade da lide, seguindo a jurisprudência dominante deste Supremo Tribunal Administrativo.
Mas quanto à ilegalidade da liquidação de juros de mora julgou verificado erro na forma do processo, considerando que o meio processual adequado a esta pretensão da impugnante seria a reclamação de atos do Chefe do Serviço de Finanças.
E subsequentemente absolveu a Fazenda Pública da instância quanto ao pedido subsidiário de ilegalidade da liquidação de juros de mora ( cf. sentença a fls. 243).
Ora, como bem nota o Exmº Procurador-Geral Adjunto a recorrente não questionou o erro na forma de processo, fundamento da decisão de absolvição da Fazenda Pública da instância, insistindo em sede de recurso na discussão da legalidade da extensão e taxa aplicada na liquidação dos juros de mora.
A questão não pode, pois, ser reapreciada no âmbito dos presentes autos, por a isso se opor o caso julgado formal (artº 672° do Código de Processo Civil), já que a sentença não foi impugnada quanto à absolvição da Fazenda Pública [da] instância relativa ao pedido subsidiário de ilegalidade da liquidação de juros de mora.
Daí que o recurso também não possa proceder quanto a este fundamento.”
Assim, independentemente dos concretos contornos do critério normativo - que a recorrente não enunciou, reiteramos – extraível do artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 73/99, de 16 de março, teremos de concluir que o mesmo se reportaria necessariamente à liquidação dos juros de mora, matéria de que o acórdão recorrido não conheceu.
Desta forma, não tendo sido aplicado qualquer critério normativo recondutível ao aludido preceito, como ratio decidendi, da decisão recorrida, é desde já possível afirmar que está prejudicada a admissibilidade do recurso de constitucionalidade, quanto à primeira questão, tornando-se ociosa a discussão sobre a verificação dos restantes pressupostos de admissibilidade, face à sua natureza cumulativa.
(…) No tocante à segunda questão, refere a recorrente que pretende a apreciação da norma do ponto 9 da Portaria n.º 752-D/81, de 2 de setembro, “quando interpretada no sentido de que a dívida que emerge dessa norma não é uma dívida fiscal.”
Impendendo sobre a recorrente o ónus de suscitar, previamente, perante o tribunal a quo, a questão de constitucionalidade que pretenda ver dirimida em ulterior recurso para o Tribunal Constitucional, cumpre averiguar se tal ónus foi ou não cumprido.
Analisadas as alegações do recurso interposto para o Tribunal da Relação – peça processual em que a recorrente deveria ter suscitado ou renovado a suscitação da aludida questão – constata-se que, a propósito da violação da Lei Fundamental, é alegado, em síntese, o seguinte:
“E) A [IN]CONSTITUCIONALIDADE DA DECISÃO
E1) DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE FISCAL
(…)
Aceitar que a receita em causa, que tem manifesta natureza unilateral e resulta de uma imposição coativa do Estado, pode ser cobrada por esta via, sem que lhe possam ser aplicadas as regras tributárias da prescrição fiscal, configura uma aplicação da lei não conforme com o Princípio da Legalidade Constitucional.
Assim, a sentença em recurso, ao sujeitar as quantias debitadas pelo INGA ao regime civil é inconstitucional, desde logo, por violação do Princípio da Legalidade Constitucional.
E2) DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
A sentença recorrida sujeita ao extenso prazo da prescrição civil [20 anos] uma obrigação pecuniária, resultante de um ato de intervenção pública e natureza unilateral.
Dito de outro modo, sujeita estes impostos (receitas do INGA) ao regime da obrigação civil.
A lei, assim aplicada, configura uma interpretação e aplicação inconstitucional por violação do Princípio da Proporcionalidade
(…)
No caso vertente, a sentença em recurso determina a validade de uma receita claramente unilateral e a sua sujeição ao prolongado regime prescricional da lei civil, violando assim o Princípio da Proporcionalidade na sua vertente de adequação.
Pelo que, também por esta razão se impõe a declaração de inconstitucionalidade deste segmento da decisão.
E3) DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
(…)
No caso vertente, a sujeição das dívidas em causa a um longo e excessivo período de prescrição afronta o Princípio da Confiança e, genericamente, o Estado de Direito (…)
De facto, a norma invocada pela sentença em crise quando interpretada no sentido de que as dívidas ao INGA estão sujeitas à regra da prescrição civil, verificado que não lhes corresponde qualquer contrapartida, viola o Princípio da Confiança.
Por outro lado, a notação dos interesses do cidadão, no quadro de uma relação de direito público no âmbito da qual uma entidade debita uma prestação pecuniária unilateral, impõe a submissão desta prestação ao regime tributário.
Sujeitá-la ao regime civil não só afronta o Princípio da Legalidade e da Proporcionalidade, como também é suscetível de não passar no teste da constitucionalidade que lhe impõe o crivo do Estado de Direito, no segmento do Princípio da Confiança (…)”
A este propósito, conclui a decisão recorrida do seguinte modo:
“(…) E por isso se conclui, pese embora a valia das considerações doutrinárias que a recorrente juntou às suas alegações, que os diferenciais de preços, a crédito do Fundo de Abastecimento e a débito dos importadores de bens essenciais para o abastecimento público, entre eles, o açúcar em rama, não assumem a natureza de imposto e não se incluem no âmbito da fiscalidade ou da para-fiscalidade.
Daí que, não lhes seja aplicável o regime de prescrição das obrigações tributárias, mas sim o prazo geral ordinário de 20 anos previsto no artº 309.º do Código Civil, pelo que, como bem decidiu o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, não se verifica a prescrição quer da dívida exequenda quer dos juros de mora.
Não decorrendo de tal interpretação, como se demonstrou, qualquer violação do princípio da legalidade (artº 103.º, n.º 2 da Constituição da República) e muito menos dos princípios da proporcionalidade e da confiança, em relação aos quais a recorrente se fica pelo plano da enunciação genérica dos princípios, não sendo desenvolvida argumentação de onde se possa inferir essa inconstitucionalidade.
(…)
Com efeito, não pode dizer-se que no caso concreto a afetação das expectativas da recorrente quanto ao cômputo do prazo de prescrição tenha sido arbitrária ou deva considerar-se demasiado onerosa. Daí que não seja intolerável e constitucionalmente inadmissível por violação dos princípios da proporcionalidade e da confiança.
Isso só sucederia se tivesse ocorrido, que não ocorreu, uma mutação operada na ordem jurídica - uma mutação que, então, se apresentaria como imprevisível e injustificada, não podendo os cidadãos contar com ela.
E ainda que tal mutação tivesse ocorrido, se não houvesse fundamento material (um interesse público relevante capaz de a justificar).
Não se verifica, pois a invocada inconstitucionalidade do sentido decisório da sentença recorrida, pelo que improcederá, também, nesta parte, a argumentação da recorrente.”
Dos excertos transcritos resulta que, perante o Tribunal a quo, a recorrente não se referiu ao ponto 9 da Portaria n.º 752-D/81, de 2 de setembro, como suporte de qualquer interpretação normativa, limitando-se a problematizar a classificação da dívida como civil ou fiscal, para efeito de apuramento do regime prescricional aplicável, sendo certo que a fundamentação aduzida, para densificar o juízo de inconstitucionalidade que invoca, se reporta igualmente ao regime prescricional.
Ora, a norma ou interpretação normativa, cuja inconstitucionalidade se pretende suscitar, de forma a garantir a possibilidade de interpor ulterior recurso para o Tribunal Constitucional, tem necessariamente de assentar num preceito ou conjunto de disposições legais, que deverão ser individualizados e especificados.
A este propósito, refere o Acórdão n.º 175/06 deste Tribunal Constitucional (disponível em www.tribunalconstitucional.pt):
“A indicação do concreto preceito legal sob cuja veste a norma aparece no nosso sistema jurídico é elemento essencial para o conhecimento da questão de constitucionalidade, não podendo ter-se por adequadamente suscitada uma questão de constitucionalidade sem uma tal identificação, em virtude de, no nosso sistema de fiscalização concreta de constitucionalidade, apenas, poderem constituir objeto do recurso normas jurídicas que estejam recortadas em disposições ou preceitos que resultem do exercício de um poder normativo (conceito funcional de norma).
(…)
A identificação da base legal à qual se imputa a norma cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada é, pois, um momento insuprível do controlo de constitucionalidade, na medida em que importa saber se essa base legal elegida para a fiscalização de constitucionalidade se apresenta como idónea a suportar esse sentido (…)”
Nestes termos e numa análise rigorosa, não poderemos afirmar que exista uma verdadeira identidade entre a questão de constitucionalidade suscitada previamente, perante o Tribunal a quo, e a indicada no requerimento de interposição do recurso.
Aliás, sintomaticamente, a recorrente expôs os fundamentos da inconstitucionalidade invocada, reportando-os ao vício de “inconstitucionalidade da decisão”, sob a alínea E) das suas alegações de recurso, não manifestando preocupação em autonomizar e enunciar uma concreta interpretação normativa, extraída de um concreto preceito ou conjunto de preceitos inequivocamente identificados.
Em conformidade, o Tribunal a quo apreciou a argumentação da recorrente, no âmbito da constitucionalidade, sob o prisma da prescrição, concluindo não se verificar o vício invocado de “inconstitucionalidade do sentido decisório da sentença recorrida”.
Pelo exposto, não tendo sido cumprido adequadamente o ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, erigida como objeto do presente recurso, concluímos pela inadmissibilidade do mesmo, igualmente quanto a esta segunda questão.
(…) Não obstante, mesmo que a recorrente tivesse cumprido o referido ónus de suscitação prévia, de forma adequada, ainda assim estaria legitimada a prolação de decisão sumária, nos termos do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, atenta a existência de jurisprudência firmada deste Tribunal Constitucional a propósito da problemática dos “diferenciais de preços”.
Na verdade, o Acórdão n.º 7/84 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), depois de afastar a possibilidade de incluir esta figura no âmbito da fiscalidade ou da parafiscalidade, refere que “estes “diferenciais” ou “diferenças” não são senão aquilo que o seu próprio nome indica: diferenças de preços. Ou, se se quiser: lucros, tratando-se de diferenças, para mais, entre os preços antigos e os novos preços; perdas, no caso inverso.”
Na única declaração de voto aposta no mesmo aresto, pode ler-se:
“(…)os diferenciais de preços (…) de qualquer modo não deverão ser tidos como impostos, do ponto de vista jurídico-constitucional (que é um ponto de vista normativo, e não puramente doutrinário). Com efeito, afigura-se nítido que, ao estabelecê-los, o legislador não se move na órbitra tributária (a dos artigos 106.º e seguintes da Constituição da República), mas ainda na órbitra da direção económica — ou da regulamentação «direta» da economia pelo Estado [cf. artigos 81.º, alíneas d) e J), 96.º, n.º 1, alínea c), e, em particular, artigos 103.º e 10.º da Constituição]: está-se num domínio de preços administrativamente fixados, e do que se trata não é propriamente de estabelecer «autonomamente» (digamos assim) uma receita do Estado, mas antes de definir regras relativas à aplicação de novos preços (em suma: regras de funcionamento do mercado quando se verifiquem atualizações de preços), incluindo aí a definição do destino a dar aos excedentes que porventura ocorram. Tanto é assim que o legislador prevê igualmente a hipótese de ocorrerem défices, e aí seguramente não estamos perante uma situação tributária: ora, as duas situações devem merecer qualificação e tratamento jurídico-constitucional idênticos.”
Igualmente o Acórdão n.º 474/99 (disponível no mesmo sítio da internet), reportando-se a diferenciais de preços, afirmou a sua natureza não fiscal ou parafiscal.
A argumentação utilizada nos referidos arestos sempre seria transponível para a presente situação, determinando um juízo de não inconstitucionalidade relativamente à segunda questão colocada no requerimento de interposição de recurso, ainda que tivesse sido adequadamente cumprido o ónus de suscitação prévia que sobre a recorrente impendia, circunstância que – reitera-se – não se verificou.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
4. A reclamante, na reclamação apresentada, limita-se a manifestar a pretensão de reapreciação da questão pela conferência, invocando o disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, sem especificar as razões da discordância com a decisão sumária proferida.
5. A reclamada, notificada para o efeito, não apresentou resposta.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
6. A reclamação apresentada não contém qualquer argumentação, tendente a infirmar a correção do juízo efetuado, na decisão reclamada.
Assim, e sendo certo que a decisão sumária proferida merece a nossa concordância, concluímos pelo indeferimento da presente reclamação.
III - Decisão
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se confirmar a decisão sumária reclamada, proferida no dia 11 de outubro de 2012, e, em consequência, indeferir a reclamação apresentada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 6 de dezembro de 2012.- Catarina Sarmento e Castro – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral.
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