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Processo n.º 630/12
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, A. reclamou, em 23 de janeiro de 2002 (fls. 2 a 39), ao abrigo do n.º 4 do artigo 76º da LTC, do despacho proferido pelo Juiz do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, em 13 de julho de 2012 (fls. 76 e 77), que rejeitou recurso de constitucionalidade por si interposto, em 03 de julho de 2012 (fls. 74), com fundamento na falta de suscitação processualmente adequada de qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
2. Os termos da reclamação deduzida, que ora se resumem, são os seguintes:
«(…)
3º Foi alegada a inconstitucionalidade do entendimento da Segurança Social à letra do artº 18º/2 da Lei 34/2004, de 29/07, e consequências que daí tira (i.e., que tendo intervindo no processo após o conhecimento da precaridade económica... o benefício não mais poderia ser concedido), por violar os princípios Constitucionais do Acesso ao Direito (Artº 20º, CRP), Audiência Prévia (artº 267º/5, CRP), Proporcionalidade: adequação; necessidade; e equilíbrio (266º/2, CRP) e da Reserva do Conteúdo Mínimo (artº 18º/3 CRP);
(…)
5º A Constituição não permite que o pobre não possa pleitear, nem permite que o conteúdo mínimo do Acesso ao Direito seja vedado pela demora em requerer um benefício, muito menos quando o pobre caminha para a miséria se se endividar para suportar os custos de um pleito. Pior, não é Constitucional que um cidadão que só depois de esgotar os seus recursos e aforro seja preterido face àquele que ao mínimo sinal de insuficiência vá requerer o benefício — o que até seria moralmente subversivo!
6º Entende a Srª Juiz que “De facto, no requerimento por si referido (de 13/06/2012, constante de fls. 62 e ss), limita-se a enunciar diversas questões, comentando de seguida que responder afirmativamente às mesmas é dizer que a Lei é inconstitucional; ora, é manifesto que tal requerimento não configura a invocação de qualquer inconstitucionalidade, pois nem sequer se reporta, em concreto, a qualquer norma cuja inconstitucionalidade possa ser apreciada.” - e, assim, indefere o recurso!
Assim logrando que as suas decisões, por razão de insuficiência económica do recorrente, fiquem inatacáveis.
(…)
7º O que está em causa não é a inconstitucionalidade de uma norma, mas sim a inconstitucionalidade da interpretação de uma norma;
8º Atrevidamente — por o articulado nem ter cabimento legal — o reclamante, pressagiando sem qualquer indício (salvo um longo historial de “nãos garantidos”) uma PRIMEIRA decisão Judicial, deixou escrito: (...) Uma vez mais a SS esvazia de conteúdo a “audiência prévia”, pois que, de cada passo, muda de argumento... com vista à decisão que tem em vista. (...) “Será que a Lei quis, para quem não andou “lesto” e “atento” a cominação de, nesse processo (que pode ser morosíssimo e caríssimo), nunca mais o “pobre dos pobres” ter apoio judiciário? E não poder por falta de meios económicos, pº exº, recorrer? (...) “Responder afirmativamente é dizer que a Lei é inconstitucional! “Adequação”, “proporcionalidade” e “acesso ao Direito”, eis os princípios informadores para uma correta exegese, além dos enunciados no CCivil.
9º Assim, temos por bom que foi suficientemente clara e concreta a invocação de uma inconstitucionalidade de uma interpretação, para mais estando-se, como se estava, no domínio da “adivinhação”.
10º Mais, não se perca de vista que o reclamante se dirigiu a um Tribunal, a uma pessoa, que forçosamente está preparado e avisado para perceber o conteúdo e alcance daquela invocação de “Princípios Constitucionais”, tanto mais que tal requerimento não tem outro conteúdo... - cfr. o referido requerimento de 13.6.2012.
Sem prescindir,
11º Mesmo que se entenda que a inconstitucionalidade não foi invocada, esse Esclarecido Tribunal, certamente, saberá — como, aliás, tem feito — que quando se está — como se estava — no domínio de uma “possibilidade” de decisão judicial, não pode ser vedado o recurso ao último reduto de garantia dos Direitos Subjetivos Fundamentais. Ou seja, o recurso é sempre admissível quando não seja “humanamente exigível” uma “antevisão” da decisão judicial — ou seja, na esmagadora maioria dos casos em que ainda não há decisão judicial que aponte claramente um determinado entendimento. Ora, no caso, não havia sequer qualquer decisão judicial, pelo que a invocação feita, além de temerária, por candidata a ser mandada esentranhar, estribou-se em mero “fumus”.
Ainda sem prescindir,
12º Salvo melhor opinião, cabe ao Tribunal a quo “apenas” fiscalizar o cumprimento das formalidades previstas no artº 75º-A e 76º, da LTC. Não cabe ao Tribunal a quo apreciar do mérito do recurso, in casu, se a inconstitucionalidade de uma norma (ou da sua hermenêutica) foi devidamente invocada e se essa invocação era exigível, mas tão só se o recorrente indicou a peça processual onde diz ter alegado a inconstitucionalidade — o que, resulta evidente, o recorrente fez!»
3. Em sede de vista, o Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal pronunciou-se nos termos que ora se resumem:
«5. Ora, crê-se que a Meritíssima Juiz tem inteira razão na sua apreciação.
Não há, com efeito, a suscitação, por parte do ora reclamante, de nenhuma questão de constitucionalidade normativa, na aceção persistentemente exigida por este Tribunal Constitucional.
Nessa medida, não pode dizer-se que, nos presentes autos, se tenha dado cumprimento ao exigido pelo art. 72º, nº 2 da LTC, de a parte ter “suscitado a questão de inconstitucionalidade ou da ilegalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dele conhecer”.» (fls. 93).
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Da análise da atuação processual do ora reclamante nos autos recorridos resulta por demais evidente que o mesmo nunca suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, especificamente dirigida a uma concreta norma jurídica. Com efeito, compulsada a respetiva petição da ação de impugnação judicial da decisão administrativa de indeferimento de pedido de apoio judiciário (fls. 52 e 53), verifica-se que o ora reclamante nunca invocou a inconstitucionalidade de qualquer norma ou interpretação normativa. Além disso, nem sequer quando se pronunciou, em 13 de junho de 2012 (fls. 62), sobre a decisão de manutenção da decisão de indeferimento, pelo Instituto de Segurança Social, I.P., fundamentada no artigo 18º, n.º 2, da Lei n.º 34/2004, de 28 de julho (cfr. fls. 6), o reclamante logrou suscitar, de modo processualmente adequado, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa. Na verdade, o reclamante limitou-se a tecer estas considerações genéricas:
«Será que a Lei pretende que o cidadão que não t[e]m proventos para solver a sua vida corrente (pessoal e profissional) pague custas?
Será que a Lei quis que (em caso de superveniência da insuficiência económica) o cidadão tenha a noção exata da data da sua precari[e]dade económica e vá “a correr” pedir o benefício de apoio?
Será que a Lei quis, para quem não andou “lesto” e “atento”, a cominação de, nesse processo (que pode ser morosíssimo e caríssimo), nunca mais o “pobre dos pobres” ter apoio judiciário?
E não poder por falta de meios económicos, pª exª, recorrer?
“Quem não tem não paga!” – Será que a Lei se fez para não ser cumprida?
Responder afirmativamente é dizer que a Lei é inconstitucional!» (fls. 62 e 63)
Sem qualquer margem para dúvidas, o reclamante nunca identificou qualquer específico preceito legal do qual fosse possível extrair uma norma ou interpretação normativa inconstitucional. Ora, na medida em que, no ordenamento jurídico português, apenas é possível proceder ao controlo da constitucionalidade de “normas jurídicas” ou de interpretações normativas delas extraídas (artigo 277º, n.º 1, da CRP), torna-se inequívoco que o reclamante não deu cumprimento ao ónus de prévia e adequada suscitação de qualquer questão de inconstitucionalidade normativa (artigo 72º, n.º 2, da LTC). Razão pela qual andou bem o tribunal recorrido quando recusou admitir o recurso de constitucionalidade interposto.
Acresce ainda que também não procede a argumentação do recorrente quanto à impossibilidade de antecipação da aplicação da norma extraída do artigo 18º, n.º 2, da Lei n.º 34/2004. Conforme já demonstrado, o próprio recorrido – Instituto de Segurança Social, I.P. – invocou expressamente aquela norma (e respetiva interpretação normativa) no despacho de manutenção da decisão de indeferimento (fls. 6), ao qual, aliás, o ora reclamante até teve oportunidade de responder sem que, em momento algum, tivesse invocado a sua inconstitucionalidade. Por conseguinte, não pode qualificar-se a decisão alvo de recurso de constitucionalidade como uma “decisão-surpresa”. Obviamente, o ónus de prévia e adequada suscitação da questão de inconstitucionalidade que se pretende ver apreciada, a final, pelo Tribunal Constitucional pressupõe, precisamente, que as partes processuais antecipem a aplicação de normas ou de interpretações normativas potencialmente inconstitucionais. Não foi isso que fez o ora reclamante, porém, podendo tê-lo feito.
Por tudo isto, mais não resta do que confirmar integralmente a fundamentação e teor da decisão reclamada.
III – Decisão
Nestes termos, pelos fundamentos supra expostos e ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 77º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 24 de outubro de 2012. – Ana Maria Guerra Martins – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.
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