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Processo n.º 516/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam em conferência na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Foi constituída servidão de gás a favor da A., S.A., sobre a parcela n.º 1003, com a área de 1.672 m2, do concelho de Alenquer (esta parcela é atravessada pela conduta do gás natural - gasoduto Setúbal – Braga), por declaração de utilidade pública, tal como foi previsto no projeto de traçado aprovado pelo despacho n.º 113/93 de 15/9 do Ministério da Indústria e Energia e publicado por Aviso da Direção-Geral de Energia no DR IIª série de 17/3/94 e ainda Aviso Complementar da DGE de 16/3/94, publicado no DR II.ª Série, n.º 1, de 3/1/94.
O acórdão arbitral proferido em 18/3/1998 deliberou por maioria fixar o quantitativo indemnizatório pela expropriação em Esc. 12.292.080$00.
A entidade Expropriante e os Expropriados recorreram para o Tribunal de Alenquer que, por sentença, fixou a indemnização em 497.240$00.
Desta decisão recorreram os Expropriados, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, após várias vicissitudes processuais, por Acórdão proferido em 22 de setembro de 2011, julgado improcedente o recurso.
Desta decisão recorreram os Expropriados para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
“1. Nos termos dos arts. 70º, nº 1, b), e 75º-A, nº 1, da LTC, as normas jurídicas cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional e que foram efetivamente aplicadas na Decisão recorrida, são a interpretação do art. 24º do Código das Expropriações, no sentido de que (i) a envolvente urbanística e edificada da parcela expropriada não deve ser atendida na classificação do solo expropriado e (ii) no sentido de que o projeto expropriante, pela solução/utilização urbanística daí resultante para o solo e pela rentabilidade que a entidade beneficiária da expropriação daí retira, não deve ser atendida na classificação do solo expropriado.
2. A referida interpretação daquelas mesmas normas jurídicas é inconstitucional por violação do princípio da igualdade dos cidadãos na repartição dos encargos públicos, do direito de propriedade privada, do direito a uma justa indemnização, do princípio da proporcionalidade e da proibição de enriquecimento sem causa (arts. 2º, 13º, 18º, nº 2, 62º e 266º da Constituição).”
Foi proferida decisão sumária de não conhecimento do recurso com a seguinte fundamentação:
“No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada diretamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adoção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e, por isso, suscetível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Os Recorrentes pretendem que o Tribunal Constitucional aprecie a constitucionalidade do artigo 24.º do Código das Expropriações, quando interpretado no sentido de que “a envolvente urbanística e edificada da parcela expropriada não deve ser atendida na classificação do solo expropriado” e no sentido de que “o projeto expropriante, pela solução/utilização urbanística daí resultante para o solo e pela rentabilidade que a entidade beneficiária da expropriação daí retira, não deve ser atendida na classificação do solo expropriado”.
Quanto à omissão da ponderação da “envolvente urbanística da parcela expropriada” na qualificação do respetivo solo para efeitos do cálculo da indemnização pela expropriação, verifica-se que a mesma não resultou da enunciação de qualquer critério normativo que determinasse o não atendimento deste fator, mas apenas da respetiva factualidade não ter sido considerada provada.
A interpretação normativa do artigo 24.º do Código das Expropriações, segundo a qual “a envolvente urbanística e edificada da parcela expropriada não deve ser atendida na classificação do solo expropriado”, não se mostra, pois, perfilhada, pela decisão recorrida, não tendo integrado a sua fundamentação, pelo que, relativamente a esta questão de constitucionalidade, não pode o Tribunal Constitucional apreciar do seu mérito.
Quanto à segunda questão, os Recorrentes suscitaram a inconstitucionalidade do artigo 24.º do Código das Expropriações, no sentido de que “o projeto expropriante, pela solução/utilização urbanística daí resultante para o solo e pela rentabilidade que a entidade beneficiária da expropriação daí retira, não deve ser atendida na classificação do solo expropriado”.
Nas alegações de recurso apresentadas perante o Tribunal da Relação, os Recorrentes haviam alegado o seguinte:
“E. O princípio da proibição do enriquecimento sem causa
A parcela expropriada é utilizada pela A. e por grandes grupos económicos e financeiros, nacionais e internacionais, na exploração do gasoduto como infraestrutura de caráter industrial, habitacional e comercial (B., e os seus acionistas C., D., E., F.) e de uma rede de cabos de fibra ótica no negócio das telecomunicações (G. e os seus acionistas C./H./I.) e o principio da proibição do enriquecimento sem causa impede que a A. e os demais agentes económicos privados que exploram as parcelas e daí retiram avultadas vantagens financeiras paguem uma indemnização calculada com base em rendimentos agrícolas quando essas entidades utilizam as parcelas, com elevados lucros, para fins industriais e como infraestrutura de telecomunicações. Para além deste enriquecimento sem causa, permitir-se-ia então uma situação injusta, desigual e desproporcionada, em violação dos princípios constitucionais que o proíbem (art. 266° da Constituição) — cfr. factos descritos a págs. 16 a 20 das Alegações de 21.01.2002.”
A decisão recorrida após ter abordado o problema da classificação da parcela expropriada para efeitos de determinação dos critérios aplicáveis ao apuramento da indemnização devida, pronunciou-se sobre a invocação do princípio da proibição do enriquecimento sem causa nos seguintes termos:
“O enriquecimento sem causa pressupõe que alguém se tenha locupletado injustificadamente à custa alheia – art. 473 CC.
No enriquecimento sem causa, verifica-se uma deslocação patrimonial, resultante de ato jurídico não negocial, ou de mero ato material, em consequência do qual o “accipiens” aumenta o seu património à custa de outrem sem qualquer causa, obrigacional ou negocialmente clausulada, que a justifique.
À vantagem patrimonial do enriquecido contrapõe-se o empobrecimento do que foi privado do bem ou do património.
A causa da deslocação patrimonial só releva para os efeitos do art. 473/1 CC, no caso de ausência de relação obrigacional, negocial ou legal e, designadamente, tratando-se de prestação sem qualquer finalidade típica tutelada cfr. Ac. STJ de 14/7/2009, relator Sebastião Póvoas, in www.dgsi.pt, Prof. Vaz Serra, “Enriquecimento sem Causa”, BMJ 81-5 e 82-5, Antunes Vareja, “Das Obrigações em Geral”, 1, 10ª ed. – 470, Galvão Telles, “Direito das Obrigações”, 5ª ed.-161.
In casu, afastado está este instituto, não se verificam os seus pressupostos – a indemnização fixada corresponde ao prejuízo sofrido pela constituição da servidão.
Destarte, falece a conclusão dos apelantes.”
Conforme se constata, a rejeição da aplicação do instituto do enriquecimento sem causa não se apoiou expressa ou implicitamente no critério normativo enunciado pelos Recorrentes, mas apenas por se ter entendido que a deslocação patrimonial ocorrida com a expropriação tinha uma justificação legal, pelo que também o segundo critério normativo enunciado pelos Recorrentes não integra a ratio decidendi do acórdão recorrido.
Não correspondendo nenhuma das interpretações normativas, cuja constitucionalidade os Recorrentes pretendem ver apreciada, à fundamentação da decisão recorrida, está o Tribunal Constitucional impedido de proceder à requerida fiscalização, devendo ser proferida decisão sumária nesse sentido, nos termos do artigo 78.º - A, n.º 1, da LTC.”
Desta decisão reclamaram os Recorrentes, expondo os seguintes argumentos:
“1. Conforme bem identificou o Despacho reclamado, os Expropriados pretendem que este Venerando Tribunal aprecie a constitucionalidade do art. 24º do Código das Expropriações, quando interpretado no sentido de que (i) a envolvente urbanística e edificada da parcela expropriada não deve ser atendida na classificação do solo expropriado e (ii) no sentido de que o projeto expropriante, pela solução/utilização urbanística daí resultante para o solo e pela rentabilidade que a entidade beneficiária da expropriação daí retira, não deve ser atendida na classificação do solo expropriado.
2. O Despacho recorrido fundamentou a sua Decisão de não conhecer do presente recurso com os seguintes fundamentos, quanto a cada uma da questões/inconstitucionalidades identificadas pelos Expropriados:
a. “Quanto à omissão da ponderação da «envolvente urbanística da parcela expropriada» na qualificação do respetivo solo para efeitos do cálculo da indemnização pela expropriação, verifica-se que a mesma não resultou da enunciação de qualquer critério normativo que determinasse o não atendimento deste fator, mas apenas da respetiva factualidade não ter sido considerada provada.
A interpretação normativa do artigo 24º do Código das Expropriações, segundo o qual «a envolvente urbanística e edificada da parcela expropriada não deve ser atendida na classificação do solo expropriado», não se mostra, pois, perfilhada, pela decisão recorrida, não tendo integrado a sua fundamentação, pelo que, relativamente a esta questão de constitucionalidade, não pode o Tribunal Constitucional apreciar do seu mérito” (cfr. 2º e 3º parágrafos da pág. 3 do Despacho reclamado);
b. “Conforme se constata, a rejeição da aplicação do instituto do enriquecimento sem causa não se apoiou expressa ou implicitamente no critério normativo enunciado pelos Recorrentes, mas apenas por se ter entendido que a deslocação patrimonial ocorrida com a expropriação tinha uma justificação legal, pelo que também o segundo critério normativo enunciado pelos Recorrentes não integra a ratio decidendi do acórdão recorrido” (cfr. 3º parágrafo da pág. 5 do Despacho reclamado).
3. No entanto, quanto àquela primeira questão da interpretação do art. 24º do Código das Expropriações, no sentido de que a envolvente urbanística e edificada da parcela expropriada não deve ser atendida na classificação do solo expropriado, salvo o devido respeito, a leitura que o Despacho reclamado faz do Acórdão recorrido não é, salvo o devido respeito, a mais correta.
De facto, o Acórdão recorrido deu como provado que (i) “a parcela expropriada situa-se próximo de Vale do Carregado” (Facto assente nº 1) e que (ii) existem armazéns a poucos metros da parcela objeto destes autos (Facto assente nº 8).
4. Deste modo, não é correta a afirmação de que a omissão da ponderação da envolvente urbanística da parcela expropriada na qualificação do solo da parcela expropriada para efeitos do cálculo da indemnização pela expropriação não tenha resultado da enunciação de qualquer critério normativo que determinasse o não atendimento deste fator, mas apenas da respetiva factualidade não ter sido considerada provada.
5. Na verdade, não obstante o Tribunal ter dado como provado que a parcela se localiza a poucos metros de armazéns e próximo do núcleo urbano de Vale do Carregado, veio depois a concluir que “a indemnização devida aos expropriados deve ter em atenção o prejuízo, medido pelo valor do bem expropriado, atentas todas as circunstâncias e as condições de facto existentes na data da declaração de utilidade pública, nomeadamente o valor de mercado, venda ou de compra e venda do bem expropriado, no sentido de «valor normal ou habitual de mercado» e «não especulativo» – cfr. Ac. STJ de 12/1/99, in DR, Iª série, de 13/2/99. Para efeitos do cálculo indemnizatório o solo da parcela foi qualificado como «solo apto para outros fins» que não o da construção – arts. 23 e 24 CExp/91” (cfr. págs. 39-40 do Acórdão recorrido).
Assim, a conclusão que, ao contrário do que decide e fundamenta o Despacho reclamado, o Acórdão recorrido deu como provados factos que demonstram uma envolvente edificada e urbanizada, não tendo, no entanto, em violação dos princípios constitucionais invocados no Requerimento de Recurso, considerado/interpretado que, nos termos do art. 24º do Código das Expropriações, a envolvente urbanística e edificada da parcela expropriada deve ser atendida na classificação do solo expropriado.
6. Deste modo, porque, pelo menos naquela primeira questão, a interpretação do art. 24º do Código das Expropriações perfilhada pelo Acórdão recorrido foi, de facto, a que ficou identificada e vem sindicada pelos Expropriados, deverá o Despacho reclamado ser revogado e o presente recurso conhecido por este Venerando Tribunal.”
A Recorrida pronunciou-se no sentido de ser indeferida a reclamação apresentada.
Fundamentação
Os Recorrentes pretendiam a apreciação de duas questões de constitucionalidade.
Na decisão reclamada entendeu-se que ambas tinham por objeto critérios normativos que não integravam os fundamentos da decisão recorrida, pelo que o recurso não podia ser conhecido.
Com a presente reclamação os Recorrentes apenas manifestam a sua discordância, relativamente à primeira questão, defendendo que o critério enunciado corresponde à ratio decidendi do acórdão recorrido.
A norma cuja fiscalização pretendiam ver efetuada era a constante do artigo 24º do Código das Expropriações, quando interpretado no sentido de que a envolvente urbanística e edificada da parcela expropriada não deve ser atendida na classificação do solo expropriado.
Contudo, da leitura da decisão recorrida verifica-se que após se desatender a pretensão dos Recorrentes de considerar provada a maior parte dos elementos descritivos dessa envolvente urbanística, confirmou-se a qualificação da parcela de terreno em causa como apta para outros fins, com aptidão essencialmente agrícola, devido a situar-se em área da Reserva Agrícola Nacional e na Reserva Estratégia Nacional. Em parte alguma se afirmou que a envolvente urbanística e edificada da parcela expropriada não deveria ser atendida na classificação do solo expropriado e a simples ausência de ponderação dos escassos elementos constantes da matéria de facto provada, apontados pelos reclamantes, não é suficiente para se poder extrair a conclusão que esse foi o pensamento implícito subjacente ao critério classificativo adotado pela decisão recorrida.
Por estes motivos confirma-se que a norma cuja fiscalização de constitucionalidade foi requerida em primeiro lugar não integra a ratio decidendi do acórdão recorrido, pelo que a reclamação deve ser indeferida.
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada pelos Expropriados.
Custas pelos Recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios estabelecidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro.
Lisboa, 24 de outubro de 2012.- João Cura Mariano – Ana Maria Guerra Martins – Joaquim de Sousa Ribeiro.
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