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Processo n.º 424/12
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O relator proferiu a seguinte decisão, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º da Lei nº 28/82, de 15 de novembro (LTC):
“1. O recorrente [A.] interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15 de fevereiro de 2012, integrado pelo acórdão de aclaração de 23 de abril de 2012, que negou provimento a recurso que interpôs de decisão do tribunal de 1ª instância que o condenou em pena de prisão.
O recurso de constitucionalidade foi interposto mediante um requerimento, contendo o que o recorrente designa por “motivação” do recurso, peça processual que termina com as seguintes conclusões:
«(…)
1- No pedido de aclaração efetuado, o Venerando Tribunal da Relação não se pronuncia mais uma vez, sobre as invocadas obscuridades, afirmando que o Recorrente entendeu perfeitamente o teor das questões suscitadas. Só que não entendeu.
2- E esta decisão viola os já invocados art.ºs 13º e 20º da Constituição da República Portuguesa, por impedir, mais uma vez, o direito a uma decisão judicial, de que igualmente todos os cidadãos portugueses podem beneficiar.
3- Assim, em primeira análise, ao percorrer o texto da fundamentação da aclaração resulta evidente que não foi produzido um esforço de rigor e de análise crítica da prova minimamente compatível com a garantia dos direitos do arguido ao processo justo e equitativo consagrado aliás, na Constituição da Republica Portuguesa (art.º 20º nº4 in fine).
4- Bastando-se o Tribunal com a indicação genérica da motivação que serviu para formar a sua convicção; porém, através de considerações puramente presuntivas ou unilaterais e omissões fundamentais, em todo o caso sem assomo de real análise crítica. Acolhendo sistematicamente como certezas e convicções – sem dúvidas – factos de natureza meramente instrumental que, pela sua ambiguidade e natureza própria exigiriam ao menos a exposição e ponderação crítica das outras possibilidades conclusivas favoráveis à posição do recorrente.
5- Em especial pela forma simplista e liminar como descarta a prova documental – leia-se certificado do registo criminal (junto aos autos em fase de inquérito) –, onde após análise crítica individualizada quanto ao arguido e não numa sistemática nebulosa de factos correlações e circunstâncias descritas numa amálgama ou mistura factual com o comportamento e atividade do coarguido, facilmente se aperceberia o Venerando Tribunal da Relação que, durante grande parte do período factual que lhe foi imputado na acusação e mereceu condenação, o arguido estava recluído num Estabelecimento Prisional.
6- Na verdade, não se trata de uma exigência exaustiva de exposição e análise crítica de toda a prova efetivamente produzida em audiência.
7- Do esgotar das potencialidades de toda a prova: porque isso tem tecnicamente cabimento, mas noutra vertente, em especial no quadro da impugnação da matéria de facto (art.º 412º do Código de Processo Penal).
8- Não. Trata-se sim de, perante a prova que o tribunal entendeu bastante indicar como base para a decisão e só essa, perceber qual foi o encadeamento racional e dedutivo que levou – sem dúvida razoável – ao acolhimento desta ou daquela tese e culminou na condenação.
9- E para tal conseguir, é preciso que do texto do acórdão se perceba de forma transparente que o tribunal adotou de forma rigorosa, um método de ponderação e de análise equitativo e justo.
10- Ou de outro modo que, perante um determinado quadro hipotético avaliou as provas de forma objetiva, percorrendo todas as hipóteses possíveis e plausíveis para a decisão, sem olhar se as mesmas são favoráveis à tese da acusação ou do arguido que se defende.
11- Ora, a forma e o parecer no ato de fazer justiça são elemento essencial e fazem parte do processo justo e equitativo como forma de prevenir o risco daquilo que usualmente se designa como uma espécie de doença designada pelos termos “justiceiro” ou “voluntarismo justiceiro.”
12- É tudo isso, dito em palavras simples o que se entende pelo “Direito a um processo equitativo’ cristalizado no célebre art. 6º nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem cujo texto capital, lembramos:
“Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial ... o qual decidirá ... sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela.”
13- Feitas estas considerações, entende o recorrente que o acórdão de aclaração incorreu num método e forma de análise que, sem deixar de o ser, porém não cumpre os requisitos mínimos que permitam em toda a objetividade intelectual considerar que foi feita uma real “análise crítica da prova.”
14- O que viola, em consequência, os supra citados art°s 13º e 20º da Constituição da República Portuguesa.
- Pelo que se verifica a violação das referidas normas e consequente ilegalidade da decisão, nos termos sobreditos.»
2. O requerimento de interposição do recurso não satisfaz integralmente as exigências do artigo 75.º-A da LTC. É, por um lado deficitário na indicação dos elementos a que se refere esse preceito e, por outro lado, excessivo ao conter a dita “motivação” do recurso (cfr. artigo 79.º da LTC).
De todo o modo, é inútil convidar à sua correção, porquanto se torna evidente que o recurso não pode prosseguir porque a pretensão do recorrente não corresponde a objeto idóneo para o recurso de constitucionalidade.
Com efeito, o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade apenas pode ter por objeto (em sentido material ou substantivo) a apreciação de constitucionalidade de “normas” aplicadas (ou, se for o caso, a que tenha sido recusada aplicação com fundamento em inconstitucionalidade. Esta natureza necessariamente normativa do recurso de constitucionalidade no nosso sistema jurídico resulta claramente da Constituição (artigo 280.º da CRP) e da Lei (artigo 70.º da LTC) e é constantemente afirmado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional. Ora, a violação de normas e princípios constitucionais de que o recorrente se queixa e que pretende ver apreciado pelo Tribunal é diretamente imputado à decisão recorrida, não a quaisquer normas de direito ordinário, ainda que em determinada interpretação por essa decisão mediatizada.
No sistema gizado pela Constituição não cabe ao Tribunal Constitucional dizer se, no seu concreto proceder, os demais tribunais violaram a Constituição, os instrumentos de Direito Internacional ou a lei a que deviam obediência.
Assim sendo, não pode tomar-se conhecimento do recurso, o que imediatamente se decide ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC.
3. Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objeto do recurso e condena-se o recorrente nas custas, com 7 UCs de taxa de justiça.”
2. O recorrente reclama para a conferência nos seguintes termos:
«(…)
1- O Reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do douto Acórdão de Aclaração do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, sendo o mesmo admitido por despacho de fls. 596.
2- Fê-lo para obter a apreciação da legalidade constitucional da decisão aplicada, nos termos do artº 71 nº 1 da LTC.
3- Cumpriu com exigência prevista no artigo 75º-A da LTC e não foi objeto de despacho de aperfeiçoamento do requerimento.
4- O presente recurso vem interposto ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea f), da LTC, nos termos do qual — e em paralelo com a norma do artigo 280.º, n.º 1, alínea d), da CRP – se admite recurso para o Tribunal de decisões que apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo, encontrando-se esgotados os recursos ordinários (v., também, artigo 70.º, n.º 2, da LTC).
5- Não obstante, este Tribunal entendeu não ser de apreciar o recurso.
6- Decidiu o Exmo. Juiz Conselheiro não admitir a apreciação da ilegalidade da decisão recorrida, por violação dos art.ºs. 13º e 20º da Constituição da República Portuguesa.
7- A nosso ver, respeitosamente, sem razão.
8- Primeiro que tudo, não podem existir quaisquer dúvidas que a questão da ilegalidade foi sempre suscitada nos autos.
9- Também, não podem existir dúvidas que o Tribunal da Relação de Guimarães não apreciou determinados documentos, essenciais para a decisão a proferir, negando ao arguido o acesso a uma decisão justa e equitativa, tal como prevê a Constituição nas citadas normas.
10- No que se refere ao requerimento de recurso basta que o recorrente sinalize as normas violadoras, as violadas e que faça expressa menção dessa violação desde a 1ª hora nas instâncias, o que fez e não suscitou o convite a aperfeiçoar ou a complementar
11- Acresce que a concretização da ilegalidade está o reclamante preparado para a fazer nas suas alegações e após notificação para tanto.
12- Por outro lado, a invocada ilegalidade, desde a primeira hora nas instâncias, foi-o no aspeto funcional, tendente que essas mesmas instâncias não se abstivessem de valorar, em sede de prova, um documento que faz fé pública, como um certificado de registo criminal.
13- Deve dizer-se mais, a questão foi sempre tão marginalizada que dela resultou a condenação do reclamante, pois que a ausência de valoração de tais documentos foram usados no sentido da sua incriminação.
14- Como se começou por referir, o recurso interposto ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º, da LTC, pressupõe que a questão de constitucionalidade que se aporta à jurisdição constitucional tenha sido previamente suscitada durante o processo perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida.
15- Para se aferir do cumprimento desse ónus específico, importa atentar no teor das conclusões do recurso interposto para o Tribunal a quo, pois são estas que delimitam o seu objeto.
16- Ora, o ónus de suscitação de uma questão de constitucionalidade pressupõe que se coloque o tribunal recorrido perante o dever de apreciação da constitucionalidade de uma norma legal individualizada, havendo de concretizar-se o sentido desse preceito de modo a que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual é o preceito e com que sentido ele não deve ser aplicado por, desse modo, violar a Constituição.
17- Em conformidade com essa exigência, pode dizer-se que a questão de constitucionalidade deve ser concretizada de modo claro, direto e objetivo (cf. Acórdão n.º 1210/96, disponível em www.tribunalconstitucional.pt): «suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o Tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que (...) tal se faça de modo claro e percetível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido. Impugnar a constitucionalidade de uma norma implica, pois, imputar a desconformidade com a Constituição não ao ato de aplicação do Direito – concretizado num ato de administração ou numa decisão dos tribunais – mas à própria norma, ou, quando muito, à norma numa determinada interpretação que enformou tal ato ou decisão (cf. Acórdãos nºs 37/97, 680/96, 663/96 e 618/96, este publicado no Diário da República, II Série, de 15-05-1996). É certo que não existem fórmulas sacramentais para formulação dos pedidos, nem sequer para suscitação da questão de constitucionalidade. Esta tem, porém, de ocorrer de forma que deixe claro que se põe em causa a conformidade à Constituição de uma norma.
18- Como a intervenção do Tribunal Constitucional não incide sobre a correção jurídica do julgamento – não sendo, admissíveis nesta sede os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub species constitutionis, a concreta aplicação do direito efetuada pelos demais Tribunais, em termos de se assacar ao ato judicial de aplicação a violação (direta) dos parâmetros jurídico- constitucionais –, mas apenas sobre a conformidade constitucional das normas aplicadas pela decisão recorrida, e como, em função disso, cabe ao recorrente, como se disse, nos recursos interpostos ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º, o ónus de suscitar o problema de constitucionalidade normativa num momento anterior ao da interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, não tem aquele legitimidade para interpor recurso sem que tenha previamente cumprido o mencionado ónus, como resulta claramente do artigo 72.º, n.º 2, da LTC, no qual se afirma, sob a epígrafe legitimidade para recorrer, que tais recursos só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos deste estar obrigado a dela conhecer.
19- E basta ver as conclusões citadas para verificar a referência às normas cuja ilegalidade, por omissão, se quer sindicar.
20- O Acórdão de Aclaração é inconstitucional porque violador de princípios constitucionais, ainda que, como se referiu, por omissão.
21- Em conclusão pede que seja a presente reclamação deferida e, em consequência, seja notificado para apresentar as alegações de recurso «.,., onde melhor concretizará os fundamentos em que alicerça o seu juízo e pedido de ilegalidade/ inconstitucionalidade, por não aplicação das normas enunciadas.
3. O Ministério Público responde que a reclamação improcede, pelo seguinte:
“(…)
6º
Não é, porém, assim, como o reclamante pensa.
Com efeito, o seu requerimento de recurso, como devidamente salientado pelo Ilustre Conselheiro Relator, não apresenta a “dimensão normativa” necessária, para poder ser apreciado.
E, para tanto, não basta a mera referência a disposições legais pretensamente violadas, é necessário um pouco mais do que isso.
7º
Por outro lado, o reclamante continua a referir-se a aspetos específicos da atuação do tribunal de julgamento (por exemplo, valoração de documentos – cfr. fls. 611 dos autos), que confirmam, se necessário fosse, que a sua impugnação tem mais a ver com a decisão condenatória, em concreto, do tribunal de julgamento, do que com uma questão de constitucionalidade normativa.
8º
Constitucionalidade normativa, essa, cuja dimensão não conseguiu, sequer, enunciar devidamente, como se disse, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, oportunamente apresentado.
Basta, para o efeito, atentar nas conclusões do mesmo requerimento (cfr. fls. 591-593 dos autos), para se poder comprovar que o que está fundamentalmente em causa – como devidamente sublinhado pela Decisão Sumária reclamada – é a decisão condenatória do tribunal de instância, particularmente a atividade, que desenvolveu, de valoração da prova.
Ora, uma tal atividade escapa, naturalmente, à sindicabilidade deste Tribunal Constitucional.
9º
Aliás, o reclamante não desconhece as obrigações que lhe impendem neste domínio, como se comprova pelas amplas referências, que faz, aos requisitos normalmente exigidos, por este Tribunal Constitucional, para apreciar um recurso de constitucionalidade (cfr. por exemplo fls. 611-612 dos autos).
10º
Por todo o exposto, crê-se que a reclamação para a conferência, em apreciação, não merece provimento, não havendo razões para alterar o sentido da Decisão Sumária 329/12, que determinou a sua apresentação.”
4. Na reclamação produzem-se considerações de índole genérica de cujo acerto se não duvida. Não têm, porém, qualquer aplicação ao caso dos autos.
Em primeiro lugar, é inquestionável que o recorrente imputou e continua a imputar a violação dos artigos 13.º e 20.º da Constituição à concreta decisão do Tribunal da Relação – “O Acórdão de Aclaração é inconstitucional porque violador de princípios constitucionais, ainda que, como se referiu, por omissão”, diz o recorrente no n.º 20 da reclamação – e não a qualquer norma de que tenha sido feita aplicação, o que coloca a questão fora do objeto possível do recurso de constitucionalidade no nosso sistema jurídico.
E é dificilmente compreensível a afirmação de que o recurso vem interposto ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. Não se vislumbra em qualquer das peças produzidas pelo recorrente perante o Tribunal da Relação a suscitação da ilegalidade de qualquer norma com qualquer dos fundamentos previstos nas alíneas c), d) e e) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. Só esta ilegalidade qualificada e não qualquer “ilegal” interpretação ou aplicação de normas jurídicas é passível de apreciação pelo Tribunal Constitucional.
5. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar o recorrente nas custas com 20 UCs de taxa de justiça.
Lisboa, 26 de setembro de 2012.- Vítor Gomes – Ana Guerra Martins – Rui Manuel Moura Ramos.
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