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Processo n.º 774/11
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social, e recorrida A., Lda., foi proferido, em conferência, o Acórdão n.º 93/2012, de 02 de fevereiro de 2012, que indeferiu a reclamação da Decisão Sumária n.º 636/2011, proferida pela Relatora, em 24 de novembro de 2011.
2. Notificada daquele acórdão, veio a recorrente requerer reforma de custas, alegando que gozaria de uma isenção do pagamento de custas, nos termos que ora se sintetizam:
“(…)
8º
Assim, há antes de mais que atender ao disposto no art. 4º (Isenções) do Regulamento das Custas Processuais que isenta de custas (nº 1, al. g)): “As entidades públicas quando atuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições para defesa de direitos fundamentais dos cidadãos ou de interesses difusos que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto, e a quem a lei especialmente atribua legitimidade processual nestas matérias”.
9º
Parece não haver dúvidas de que a Recorrente se enquadra na previsão desta norma e que, por isso, beneficia de isenção de custas processuais fundada na defesa do interesse público.
10º
Antes de mais, e de acordo com o art. 1º, nº 2, da Lei nº 53/2005, de 8 de novembro, que criou a ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social e aprovou os seus Estatutos, trata-se de “uma pessoa coletiva de direito público, com natureza de entidade administrativa independente, que visa assegurar as funções que lhe foram constitucionalmente atribuídas, definindo com independência a orientação das suas atividades, sem sujeição a quaisquer diretrizes ou orientações por parte do poder político”.
11º
O art. 39º da CRP incumbiu a Recorrente de assegurar, nos meios de comunicação social, liberdades, direitos e princípios estruturantes do Estado de Direito, entre eles, o direito à informação e a liberdade de imprensa (al. a) do nº 1), o respeito pelos direitos, liberdades e garantias pessoais (al. d) do nº 1) e o respeito pelas normas reguladoras das atividades de comunicação social (al. f) do nº 1).
12º
Nos seus Estatutos são desenvolvidas as atribuições da Recorrente e definidas as competências do seu Conselho Regulador, tendo sempre em vista a densificação do citado preceito constitucional que consagrou a existência de uma entidade reguladora para o setor da comunicação social.
13º
Julga-se dispensável reproduzir aqui todas as normas estatutárias que evidenciam que à Recorrente foram conferidas “especiais atribuições para defesa de direitos fundamentais dos cidadãos”, sendo este um dos requisito para a concessão da isenção prevista no art. 4º, nº 1, al. g) do citado Regulamento.
14º
Também não parece necessário explicar, nesta sede, que o direito de resposta constitui um direito fundamental, consagrado no art. 37º, nº 4 da CRP, como integrando a própria liberdade de expressão e de informação.
15º
Resta dizer, para completar o elenco de requisitos da referida isenção subjetiva que a Lei nº 2/99, de 13 de janeiro (Lei de Imprensa) no seu art. 27º, nº 1, expressamente atribui à Recorrente legitimidade para efetivar coercivamente o direito de resposta que tenha sido recusado, ordenando a sua publicação.
16º
O que significa que, se adotar uma deliberação sobre essa matéria que venha a ser impugnada judicialmente pelo órgão de comunicação social a quem a mesma foi dirigida, tem a Recorrente legitimidade processual para intervir, defendendo o cumprimento do direito de resposta.
17º
E fá-lo, não no seu interesse, mas no interesse daquele a quem foi recusado o exercício do direito de resposta, como aconteceu nos presentes autos, devendo percorrer todas as instâncias, se estiver convencida da razão que assiste ao titular daquele direito e tal for necessário para, em casos futuros, salvaguardar aquele direito fundamental.
18º
Como salienta Salvador da Costa in Regulamento das Custas Processuais, Almedina 2011, 3ª edição, pág. 156, ao comentar esta isenção:
“Uma das tarefas fundamentais do estado é a de garantir os direitos e liberdades fundamentais (artigo 9º, alínea b), da Constituição).
Entre esses direitos, a que este normativo se reporta, temos essencialmente por um lado, o direito à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade, à capacidade, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da vida privada e familiar e á liberdade e segurança, e, por outro, o direito de acesso aos dados informáticos que lhes respeitem, à liberdade de constituição da família e de contrair casamento, de expressão e informação, de consciência, religião e culto, de criação intelectual, de aprendizagem e de ensino, de deslocação e emigração, de reunião e de manifestação, de associação, de escolha de profissão e de acesso à função pública (artigos 24º a 47º da Constituição).
São abrangidas por esta isenção as entidades públicas que sejam sujeitos ativos nas ações ou procedimentos cautelares com vista à defesa dos mencionados direitos fundamentais dos cidadãos ou de interesses difusos, que lhe estejam especialmente atribuídos pela lei ou pelos respetivos estatutos e se inscrevam na sua legitimidade ad causam” (sublinhado nosso).
19º
Assim sendo, não poderá deixar de se entender que a Recorrente beneficia da isenção subjetiva prevista na alínea g) do nº 1 do art. 4º do Regulamento das Custas Processuais.
20º
Resta saber se, por ter decaído, é aplicável, e em que medida, o disposto no nº 6 do citado art. 4º que acaba por dizer que “ a parte isenta é responsável, a final, pelos encargos a que deu origem no processo, quando a respetiva pretensão for totalmente vencida” (sublinhado nosso).
21º
A norma fala em “encargos” e não em custas processuais e o certo é que o Acórdão aqui em causa condena expressamente a Recorrente no pagamento de custas.
22º
Convirá, pois, saber o que se entende por “encargos”, sendo que o art. 3º, nº 1 do Regulamento das Custas Processuais é bem claro: “as custas processuais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de partes”.
23º
Não é, assim, possível confundir “custas processuais” com “encargos” como, aliás, salienta o referido Autor (ob. cit., pág. 140): “Os encargos consubstanciam-se na vertente das custas processuais relativas ao custo das coisas e serviços envolvidos pelo exercício da função jurisdicional, portanto com exclusão da parte relativa à taxa de justiça”.
24º
A questão tem sido já abordada pela jurisprudência, podendo ler-se no Acórdão do TCA Sul de 04/03/2010 (Proc. 05833/10): “Significa isto que não obstante a reclamante beneficiar de isenção de custas, essa isenção não cobre os encargos, uma vez que a sua pretensão ficou totalmente vencida. Nestes termos, e pelo exposto, acordam em conferência os Juízes do 2º Juízo do TCA Sul em reformar o acórdão de fls. 220/226 quanto a custas, consignando que a condenação em custas da recorrente só engloba os encargos, mas não a taxa de justiça e as custas de parte”.
24º
Por último, é de salientar que a condenação no pagamento de “encargos” pressupõe que estes tenham existido e que seja conhecido o seu real montante, não podendo ser fixados arbitrariamente.” (fls. 536 a 540).
3. Notificado deste requerimento, veio o Ministério Público pronunciar-se no seguinte sentido:
«(…)
5. Por sua vez, o artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (Regulamento das Custas no Tribunal Constitucional), manda aplicar, quanto à isenção de custas no Tribunal Constitucional, o disposto no artigo 4.º do Regulamento das Custas Processuais.
6. O artigo 4.º fixa o regime de isenção de custas, num elenco fechado e taxativo.
7. O requerente alega que está isento de custas face ao disposto na alínea g) do n.º 1, do artigo 4.º do Regulamento.
8. Ora, não foi esse o entendimento do Tribunal Central Administrativo Sul que revogou a sentença proferida em 1.ª instância e, em substituição, decretou a “providência peticionada de suspensão de eficácia de deliberação n.º 63/DR-I/2010, de 22 de dezembro de 2010 do Conselho Regulador de ERC”.
O Acórdão finaliza, dizendo:
“Custas em ambas as instâncias a cargo da Recorrida (ERC) que contra-alegou” (sublinhado nosso).
9. Transcrevendo o que diz Salvador da Costa (Regulamento das Custas Processuais, Almedina 2011, 3.ª Edição, pág. 156) a recorrente afirma que “ são abrangidas por esta isenção as entidades públicas que sejam sujeitos ativos nas ações ou procedimentos cautelares (…)”.
10. Na situação dos autos, a ERC, no exercício da sua competência, limitou-se a proferir uma deliberação, sendo, pois, o sujeito ativo no procedimento cautelar, a “A., Lda.”.
11. De salientar ainda, que mesmo quem esteja isento ao abrigo da alínea g), do n.º 1, do artigo 4.º, pode ser responsabilizado pelas custas “quando a respetiva pretensão for totalmente vencida” (n.º 6).
12. Por tudo o exposto, entendo que a recorrente não está isenta de custas, devendo ser indeferido o pedido de reforma.» (fls. 551 e 552)
4. Por sua vez, apesar de devidamente notificada para o efeito, a recorrida deixou esgotar o prazo sem que viesse aos autos deduzir qualquer resposta.
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. Efetivamente, a alínea g) do n.º 1 do artigo 4º do Regulamento das Custas Processuais (de ora em diante, RCP), que é aplicável às custas incorridas no decurso de recursos de constitucionalidade, por força do n.º 1 do artigo 3º do Regime de Custas no Tribunal Constitucional (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro, e alterado pelo Decreto-Lei n.º 91/2008, de 02 de junho, de ora em diante designado por RCTC), determina que:
“Artigo 4.º
Isenções
1 – Estão isentos de custas:
(…)
g) As entidades públicas quando atuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições para defesa de direitos fundamentais dos cidadãos ou de interesses difusos que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto (…)”.
Ora, conforme este Tribunal tem reiteradamente afirmado, a propósito da natureza jurídica da ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social (cfr. Acórdão n.º 613/2008, sucessivamente reiterado pelos Acórdãos n.º 261/2009, n.º 315/2009 e n.º 361/2009):
“Da sua configuração constitucional, retira-se que aquela «entidade administrativa independente» não se limita a integrar o leque de pessoas coletivas públicas dotadas de funções administrativas de mera regulação e supervisão de um determinado mercado económico, antes se configurando – e em principal medida – como uma entidade administrativa dotada de funções de defesa e salvaguarda de direitos fundamentais, maxime, dos direitos diretamente relacionados com o princípio do pluralismo político, com a liberdade de expressão e de informação e com a liberdade de imprensa. Tal resulta, desde logo, das várias atribuições que o legislador constituinte entendeu conferir-lhe. Porventura, com exceção da alínea e) do n.º 1 do artigo 39º da Constituição, todas as demais alíneas daquele preceito constitucional afastam a “entidade administrativa independente” da categoria das pessoas coletivas públicas, exclusiva ou predominantemente, vocacionadas para a mera regulação e supervisão de determinado mercado económico (reforçando esta função de defesa de direitos fundamentais, ver Gomes Canotilho / Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Vol. I, Coimbra, 2007, págs. 598 e 599)”.
Nos autos que deram causa ao presente recurso de constitucionalidade, a recorrente agiu processualmente no âmbito exclusivo da prossecução das suas atribuições de defesa de direitos fundamentais, sendo que o procedimento cautelar administrativo que correu termos nos autos recorridos visou a suspensão de uma decisão administrativa que reconheceu legitimidade a Maria Henrique Fragoso Espada e Santos para exercício do direito de resposta e determinou que a recorrida procedesse à publicação daquela resposta. Ao longo da tramitação processual vertida nos presentes autos, a recorrida agiu sempre em prossecução das suas atribuições, com vista à defesa do referido direito fundamental de resposta a notícias ou opiniões publicadas em meio de comunicação social. Assim sendo, não há como negar que a recorrente goza, nos termos da alínea g) do n.º 1 do artigo 4º do RCP, de isenção de custas judiciais.
Diga-se, aliás, que o argumento esgrimido pelo Ministério Público, segundo o qual a recorrente não poderia beneficiar da isenção de custas por não ser “sujeito ativo no procedimento cautelar” (sic, a fls. 552) não procede. Se bem se entende tal argumentação, chegar-se-ia à conclusão de que as entidades públicas que prosseguem a defesa de direitos fundamentais apenas poderiam gozar de isenção de custas processuais quando agissem como requerentes de providências cautelares, mas não já quando figurassem como requeridas. Ora, na medida em que, na esmagadora maioria das vezes, as providências cautelares administrativas são requeridas contra as entidades públicas – e não por elas –, tal corresponderia a esvaziar de utilidade a isenção que, afinal, o legislador pretendeu consagrar. Por outro lado, nada há que permita destrinçar entre uma atuação processual na qualidade de requerente ou de autora e uma outra atuação, desta feita na qualidade de requerida ou de ré. Independentemente da posição processual que ocupem, as entidades públicas que atuem exclusivamente nas suas funções de defesa de direitos fundamentais beneficiam de isenção de custas, por força da finalidade de interesse público que prosseguem.
Não procede igualmente a objeção fundada no n.º 6 do artigo 4º do RCP, nos termos do qual mesmo os beneficiários de isenção de custas ficam sujeitos ao pagamento dos encargos processuais por si gerados, quando a sua posição processual resulta integralmente vencida. Com efeito, a própria lei distingue as custas processuais em taxa de justiça, encargos e custas de parte (artigo 3º, n.º 1, do RCP), expressamente discriminando quais os custos económicos podem ser qualificados como “encargos” (artigo 16º do RCP). Sucede que as condenações sucessivas em custas processuais, nos presentes autos – ou seja, as que resultam do Acórdão n.º 93/2012 e da Decisão Sumária n.º 636/2011 – apenas abrangeram a “taxa de justiça” e não aquilo que, tecnicamente, é designado por “encargos”. Aliás, deve frisar-se que os recursos de constitucionalidade se encontram, à partida isentos de custas (artigo 84º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional – LTC), salvo quanto às exceções consagradas na lei, designadamente aquelas expressamente consignadas no já supra referido Regime de Custas no Tribunal Constitucional (artigo 84º, n.º 2 a 5, da LTC). Ora, nos termos desse regime jurídico, apenas se procede à expressa submissão dos recursos de constitucionalidade ao pagamento de “taxa de justiça” (artigos 6º a 9º do RCTC), sem que se fixe, expressamente, a sua sujeição ao pagamento de quaisquer “encargos”.
E, mesmo que se admitisse a sujeição de uma parte processual ao pagamento de “encargos”, no caso de integral vencimento da sua posição, por aplicação subsidiária do n.º 6 do artigo 4º do RCP – posição que se afasta, mas que por mero esgotamento de fundamentação se pondera –, certo é que dificilmente poderia encontrar-se fundamento legal no artigo 16º do RCP para imputar à recorrente o pagamento de quaisquer “encargos” decorrente do presente recurso de constitucionalidade. Com efeito, os referidos “encargos” encontram-se expressamente tipificados naquele preceito legal e, em função da especificidade da tramitação dos recursos de constitucionalidade, nenhuma das referidas alíneas se dá por preenchida. Aliás, em função da autonomia financeira do Tribunal Constitucional, mesmo os custos com o envio postal de notificações ou com comunicações telefónicas, por telecópia ou por meios eletrónicos não ficam abrangidos pela subalínea iv) da alínea a) do n.º 1 do artigo 16º do RCP, na medida em que este Tribunal não procede a quaisquer reembolsos ao IGFIJ – Instituto de Gestão Financeira e das Infraestruturas da Justiça, I.P..
Em suma, a recorrente goza de isenção integral de custas processuais, quer porque não é devida “taxa de justiça”, ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 4º do RCP, quer porque não são devidos quaisquer “encargos”, em função da ausência de expressa previsão legal, seja pelo Regime de Custas no Tribunal Constitucional, seja pelo artigo 16º do RCP.
III – Decisão
Pelos fundamentos supra expostos, decide-se:
i) Deferir o pedido de reforma do Acórdão n.º 93/2012 quanto a custas;
ii) Declarar que a recorrente goza de isenção de custas quanto ao presente recurso, incluindo as que resultariam da Decisão Sumária n.º 636/2011;
E, em consequência:
iii) Determinar que a Secretaria tenha em consideração essa isenção, para efeitos de elaboração da conta de custas.
Sem custas, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 26 de setembro de 2012. – Ana Guerra Martins – Vítor Gomes – Rui Manuel Moura Ramos.
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