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Processo n.º 618/11
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorridos Ministério Público e B., S.A., o primeiro veio interpor recurso, em 6 de julho de 2011 (fls. 1423), ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70.º da LTC, do acórdão proferido, em conferência, pela 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, para que seja apreciada a constitucionalidade de interpretação normativa extraída do “artigo 400.º, n.º 3, do CPP, quando interpretado no sentido de que o princípio da dupla conforme previsto no artigo 721.º. n.º 3, do CPC, na redação que lhe foi dada pelo D.L. 303/2007, é aplicável ao pedido de indemnização civil enxertado no processo crime no caso deste pedido ter sido apresentado depois da entrada em vigor daquele diploma embora se tenha iniciado muito antes com a apresentação da queixa crime (em 2006), na qual o recorrente logo declarou pretender ser indemnizado, ao abrigo do art. 75.º do CPP” (fls. 1429), por violação do direito de acesso à Justiça, consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
2. Pela Decisão Sumária n.º 580/2011, decidiu-se não conhecer do objeto do recurso, com fundamento na falta de suscitação prévia e adequada da questão de inconstitucionalidade, considerando-se que a decisão recorrida não era surpreendente, designadamente por confronto com jurisprudência proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça sobre a matéria. Porém, na sequência de reclamação apresentada pelo recorrente, nos termos da qual se alegou que nenhuma da referida jurisprudência incidia, especificamente, sobre a questão normativa em discussão nos autos, foi proferido, em conferência, o Acórdão n.º 38/2012, que deferiu a reclamação.
3. Notificado para tal pela Relatora, o recorrente produziu então as suas alegações, das quais se podem extrair as seguintes conclusões:
«A) O principio da dupla conforme introduzido pelo D.L. 303/2007 de 24/8 e transposto para o art° 721 n°3 do CPC não se aplica ao regime de recursos em processo penal.
B) Isto porque o art° 400 n° 3 do Código de Processo Penal contém uma norma expressa no sentido de que “mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização cível”, sendo este recurso admissível da Relação para o STJ, em processos cuja decisão seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do Tribunal recorrido (art° 432 ai. b) e 400 n° 2 do C.P.P.).
C) O que significa que o legislador quis estabelecer inequivocamente um regime de recursos no C.P.P. diferente do regime do C.P.C, tanto assim que quando produziu e aprovou a norma do art° 400 n° 3 do C.P.P. já conhecia a regra da dupla conforme do art° 721 n°3 do C.P.C.
D) Havendo norma expressa no C.P.P. a regular esta matéria não pode o julgador, de forma totalmente surpreendente e sem respeitar o principio da confiança no direito, falar em omissões ou em integração de lacunas que não existem e muito menos em interpretação do que é claro e não precisa de ser interpretado.
E) Mesmo que assim se não entenda e que se julgue o principio da dupla conforme aplicável aos recursos instaurados do pedido de indemnização cível formulado no processo penal, este principio soçobra sempre que estejam em causa questões de particular relevância jurídica e social, como acontece com estes autos, que tratam de um acidente de viação em que o recorrente esteve em risco de vida, sofreu um longo período de internamento, tem uma IPP de 43% e discute uma indemnização superior a um milhão de euros.
F) Ao interpretar o art° 400 n° 3 do C.P.P. no sentido de que o principio da dupla conforme do art° 721 n° 3 e 4 é aplicável a esse pedido de indemnização, o STJ violou ostensivamente o principio de acesso ao direito previsto no art° 20 n° 1 e o principio da confiança no direito contido no art. 2, ambos da Constituição da República Portuguesa.
G) Isto porque amputou ou eliminou, de forma absolutamente surpreendente, uma dupla instância de recurso (da Relação para o STJ) que o C.P.P. expressamente admite e regula no seu art° 400 n° 1,2 e 3.
H) Ao proferir tal decisão, sem conceder ao recorrente o direito ao contraditório, o STJ proferiu uma decisão surpresa, imprevisível e contrária à norma do art° 20 n°3 da CRP.
Por outro lado,
I) O art° 11 n° 1 do D.L. 303/2007, que introduziu o já citado principio da dupla conforme, refere expressamente que a norma do art° 721 n° 3 do C.P.C. não se aplica a processos pendentes.
J) Como o presente processo já está pendente desde 2006 e o D.L. 303/2007 só entrou em vigor em 01/01/2008, o principio da dupla conforme não lhe é aplicável.
L) Como a expressão “processos pendentes” não distingue processos cíveis de outro tipo de processos (designadamente dos processos crime, administrativos ou fiscais), nem descrimina ou exceciona do seu regime os enxertos cíveis dos processos crime propriamente ditos, parece inquestionável que o principio da dupla conforme é aplicável a todos os processos (sejam eles quais forem) que entrarem em Juízo apenas e tão só após a entrada em vigor da norma que introduz essa regra no nosso ordenamento jurídico.
M) É por isso que também é inconstitucional a interpretação jurídica dada pelo STJ ao art° n 1 do D.L. 303/2007, no sentido de que a expressão “processos pendentes” referida nesse artigo não abrange todos os processos, inclusive os criminais, mas somente as ações cíveis e os pedidos de indemnização civis apresentados em processos crime.
N) A melhor demonstração da violação do direito constitucional de acesso ao direito e do principio da confiança no direito por parte do recorrente é que se tivesse instaurado uma ação cível antes de instituído o principio da dupla conforme (portanto antes de 01/01/2008) — e podia fazê-lo porque o acidente foi em 2006 e o relatório da avaliação dos seus danos físicos é de 23 de junho de 2007 — teria sempre a prorrogativa do duplo grau de jurisdição, já que o valor do seu pedido permitia recurso até ao STJ.
O) Mas como foi obrigado a optar pelo processo crime, por força do principio da adesão previsto no artigo 71 do CPP e por forma a evitar a renuncia ao direito de gueixa se fizesse o pedido em separado (art° 72 n° 2 do C.P.P.), já o seu direito de acesso a esse duplo grau de jurisdição ficou, com a decisão do STJ, restringido a uma só instância recursiva.
Em suma,
P) O artigo 400 n° 3 do C.P.P., quando interpretado no sentido de que o principio da dupla conforme previsto no art° 721 n° 3 do C.P.C., na redação que lhe foi dada pelo D.L. 303/2007 (que refere não se aplicar aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor — 01/01/2008 —) é aplicável ao pedido de indemnização civil enxertado no processo crime no caso deste pedido ter sido apresentado depois da entrada em vigor deste diploma, embora se tenha iniciado nestes autos com a apresentação da queixa crime (em 2006), na qual logo o recorrente declarou pretender ser indemnizado, ao abrigo do art° 75 do C.P.P., viola o principio do acesso ao direito previsto no art° 20 n 1 da Constituição da Republica Portuguesa.
Q) O Acórdão do STJ violou os artigos 2 e 20 n° 1 e n° 4 da Constituição.» (fls. 1515 a 1519).
4. Devidamente notificado para o efeito, o Ministério Público veio apresentar as seguintes contra-alegações:
«(…)
2. Apreciação do mérito do recurso
2.1. A norma em causa, n.º 3 do artigo 400.º do CPP, estabelece que: «Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil».
2.2. Por sua vez, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo 400.º do CPP, a admissibilidade do recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil está dependente da verificação cumulativa de dois requisitos: que a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre, e que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal que proferiu a decisão de que se recorre.
2.3. O acórdão recorrido considerou que, para além desses dois requisitos enumerados, a admissibilidade do recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil estava ainda sujeita à limitação da recorribilidade do acórdão do Tribunal da Relação para o STJ, que resulta da aplicação subsidiária, por força do disposto no artigo 4.º do CPP, do artigo 721.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), segundo o qual: «Não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida em 1ª instância (…)».
Segundo o acórdão recorrido, «Não existe, efetivamente, razão alguma para que em relação a duas ações civis idênticas haja diferentes graus de recurso apenas em função da natureza civil ou penal do processo usado, quando é certo que neste último caso a ação civil conserva a sua autonomia.
(…)
Assim, e porque não está em causa a aplicação do regime excecional do art.º 721º-A do CPP, o recurso não é admissível e por isso não deveria ter sido admitido, em face do disposto no artº 414º, º 2, do CPP.
Tendo sido admitido, e porque essa decisão não vincula o tribunal superior, nos termos do nº 3 daquele artº 414º, deve agora ser rejeitado, de acordo com o disposto no artº 420º, nº 1, alínea b), deste último código».
2.4. Pelo que o acórdão recorrido veio a rejeitar o recurso, embora com uma declaração de voto, que, no essencial, questiona «(…) se a falta de previsão, no CPP, do caso especial de irrecorribilidade previsto no n.º 3 do artigo 721.º do CPC (verificação de dupla conforme, sem voto de vencido) constitui uma lacuna que deva ser integrada por apelo ao artigo 4.º do CPP».
E, sustenta ainda a declaração de voto do acórdão recorrido:
«Antes de mais porque o princípio geral em matéria de recursos é o da recorribilidade (artigo 399.º do CPP). As limitações a este princípio devem ser previstas na lei e, na matéria, estão-no, no n.º 2 do artigo 400.º (regras da alçada e da sucumbência).
Por outro lado, o legislador, no momento em que legislou, nesse preciso âmbito, introduzindo o referido n.º 3 ao artigo – e sendo conhecedor, como vimos, da “nova” limitação introduzida, no processo civil, pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto – não se decidiu pela consagração, no CPP, da limitação (do recurso para o STJ) decorrente de se verificar dupla conforme, sem voto de vencido».
2.5. De todo o modo, pese embora a pertinência e relevância dos argumentos esgrimidos tanto no acórdão recorrido, como na declaração de voto, não cabe ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre qual a melhor interpretação do direito infraconstitucional aplicável ao caso, ou aplicado pelo tribunal de que se recorre.
Com efeito, em matéria de fiscalização concreta da constitucionalidade o que compete ao Tribunal Constitucional é esclarecer se a interpretação normativa formulada na decisão recorrida e identificada pelo recorrente como objeto de recurso, padece da inconstitucionalidade que lhe foi imputada, ou, eventualmente, de outra (art.º 79.º C da LTC).
2.6. A jurisprudência do Tribunal Constitucional, considerando que as garantias de defesa consagradas constitucionalmente implicam tratamento específico desta matéria em sede de processo penal, tem perspetivado a problemática do direito ao recurso em termos diversos relativamente ao direito penal, por um lado, e aos outros ramos do direito, por outro.
Efetivamente, embora o direito ao recurso conste expressamente do texto constitucional, o recurso continua a ser uma tradução das garantias de defesa consagradas no n.º 1 do art.º 32 da CRP (o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso).
Mas, mesmo em sede de processo penal, onde o direito ao recurso integra o núcleo essencial das garantias de defesa, a garantia do duplo grau de recurso existe, essencialmente, quanto às decisões penais condenatórias e às respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade, ou a outros direitos fundamentais.
2.7. Essa mesma jurisprudência é pacífica, quanto ao entendimento de não poder inferir-se, do artigo 20.º da Constituição, qualquer irrestrita possibilidade de acesso, em via de recurso, ao Supremo Tribunal de Justiça, e quanto à inexistência de um direito a um triplo grau de jurisdição (ou a um duplo recurso).
2.8. A título de exemplo citam-se os Acórdãos nºs 338/2005 e 575/2006.
O primeiro não julgou inconstitucional o artigo 432.º, alínea b), conjugado com o artigo 400.º, n.º 1, alínea e), e 2, do CPP, interpretado no sentido de que não cabe recurso para o STJ de decisão do Tribunal da Relação relativa à indemnização civil, proferida em 2ª instância, se for irrecorrível a correspondente decisão penal.
O segundo não julgou inconstitucional o artigo 400.º, n.º 2, do CPP, interpretado nesse mesmo sentido (de que não cabe recurso para o STJ da decisão do Tribunal da Relação relativa a indemnização civil, proferida em 2ª instância, se for irrecorrível a correspondente decisão penal).
2.9. Ora, no presente caso, pedido de indemnização cível enxertado em processo-crime, a garantia de acesso ao direito já foi atuado em mais de um grau de jurisdição, e com um grau de recurso.
Efetivamente, com a reapreciação jurisdicional efetuada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, revela-se satisfeito o direito ao recurso, não sendo exigível um novo controlo jurisdicional da decisão emanada do Tribunal da Relação.
Aliás, a restrição de acesso, em via de recurso ao Supremo Tribunal de Justiça, tendo em vista impedir que a instância superior da ordem judiciária aprecie questões de diminuta repercussão e que já foram apreciadas em duas instâncias, não é arbitrária, nem manifestamente infundada.
3. Conclusões
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se que:
1.º
A restrição de acesso, em via de recurso, ao Supremo Tribunal de Justiça, tendo em conta que, nos presentes autos, a decisão recorrida já foi proferida, em recurso, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, e, portanto, que o ora recorrente teve já acesso a dois graus de jurisdição, não afronta a Constituição, designadamente, o princípio do acesso ao direito e aos tribunais consagrado no seu artigo 20.º.
2.º
Pelo que o presente recurso não merece provimento.» (fls. 299 a 310)
5. Por fim, igualmente notificada para o efeito, a recorrente B., S.A., veio apresentar as seguintes contra-alegações:
«2.
Sustenta o recorrente que o Acórdão do STJ afronta o disposto nos artigos 4° e 20° nº 1 e 4 da Constituição.
No que concerne ao citado primeiro preceito é linear que em nenhum momento o STJ desconsiderou ser o Autor cidadão português.
No que tange ao segundo não se alcança em que medida foi este ofendido, sendo, inclusive, a tramitação deste processo um atual (bom) exemplo do contrário; isto é que ao recorrente/demandante cível tem sido possível exercer o direito de aceder à jurisdição das suas pretensões.
Não assiste, manifestamente, razão ao recorrente,
3.
Cotejando o incidente aqui ajuizado, depara-se o recorrido com a citação de uma passagem do Acórdão nº 551/09 do TC, justamente o seu número sete.
Uma leitura descomprometida desta decisão é suficiente para fundamentar a rejeição da invocada inconstitucionalidade, para mais neste campo em que se aborda uma questão relativa a recurso sobre matéria não penal.
Assim, em
CONCLUSÃO
A)- Não tendo o Acórdão do STJ violado nenhum preceito constitucional,
B)- Deve ser julgado improcedente o presente recurso.» (fls. 1529 a 1530)
Posto isto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
6. Em primeiro lugar, importa frisar que não cabe a este Tribunal pronunciar-se sobre a interpretação que a decisão recorrida adotou em relação a questões de natureza estritamente infraconstitucional. Dito de outro modo, não deve este Tribunal discutir a bondade do juízo formulado pelo tribunal recorrido quanto à aplicação da norma extraída do n.º 3 do artigo 721º do Código de Processo Civil (CPC). Não deve, designadamente, curar de saber se “pode o julgador, de forma totalmente surpreendente e sem respeitar o principio da confiança no direito, falar em omissões ou em integração de lacunas que não existem e muito menos em interpretação do que é claro e não precisa de ser interpretado”. Tal questão nem foi colocada pelo recorrente em sede de requerimento de interposição, nem sequer configura uma verdadeira questão normativa, antes se destinando a colocar em crise a própria decisão jurisdicional. Ainda que o recorrente dela discorde – entendendo que o n.º 3 do artigo 400º do Código de Processo Penal (CPP) contém uma norma expressa que afasta a aplicação subsidiária daquela norma processual civil –, certo é que, nesta sede, apenas se deve conhecer da inconstitucionalidade da interpretação normativa efetivamente aplicada pela decisão recorrida (artigo 79º-C da LTC).
Ora, foi o recorrente quem delimitou o objeto do presente recurso, através do seu requerimento de interposição, fixando-o na interpretação normativa extraída do “artigo 400.º, n.º 3, do CPP, quando interpretado no sentido de que o princípio da dupla conforme previsto no artigo 721.º, n.º 3, do CPC, na redação que lhe foi dada pelo D.L. 303/2007, é aplicável ao pedido de indemnização civil enxertado no processo crime no caso deste pedido ter sido apresentado depois da entrada em vigor daquele diploma embora se tenha iniciado muito antes com a apresentação da queixa crime (em 2006), na qual o recorrente logo declarou pretender ser indemnizado, ao abrigo do art. 75.º do CPP” (fls. 1429).
Em suma, a este Tribunal compete verificar se o resultado da interpretação normativa acolhida pela decisão recorrida se afigura contrário à Lei Fundamental, por restringir, de modo desproporcionado, o direito de acesso à Justiça.
7. Apreciando a questão normativa de fundo, dir-se-á que a consequência da aplicação subsidiária do n.º 3 do artigo 721º do CPC resulta na vedação do acesso do recorrente ao Supremo Tribunal de Justiça, enquanto segunda instância de recurso.
O Tribunal Constitucional tem vindo a apreciar, de modo reiterado e constante, a questão da delimitação da esfera de proteção normativa do direito fundamental de acesso aos tribunais. Precisamente em sede de processo penal, a jurisprudência constitucional tem considerado, de modo unânime, que não decorre do artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP) um direito subjetivo a que determinada questão jurisdicionalmente controvertida goze de um duplo grau de recurso (nesse sentido, entre muitos outros, ver os Acórdãos n.º 338/2005, n.º 2/2006, n.º 575/2006 e n.º 551/2009). Estando em causa, nos presentes autos, um recurso circunscrito a matéria de natureza cível – ainda que enxertado em processo penal –, existem razões acrescidas que justificam que a privação de um duplo grau de recurso não afeta, de modo desproporcionado, o direito de acesso do recorrente aos tribunais (artigo 20º, n.º 1, da CRP). O que este último preceito constitucional garante é a possibilidade de ver sindicadas decisões jurisdicionais proferidas por um tribunal de primeira instância. Tal não significa, porém, que essa possibilidade de confronto de uma decisão jurisdicional perante um tribunal superior exija um grau ótimo (ou pleno) de recurso, que apenas cabe ao legislador ordinário decidir se e em que medida é justificado.
Em suma, o direito fundamental de acesso aos tribunais (artigo 20º, n.º 1, da CRP) não abrange o direito a um duplo grau de recurso, pelo que a interpretação normativa que constitui objeto do presente recurso não padece de inconstitucionalidade material.
Sucede, porém, que o recorrente invoca um outro argumento a favor da inconstitucionalidade, o qual assenta no facto de o processo-crime no qual foi deduzido pedido cível ter tido início em 2006, enquanto a atual redação do n.º 3 do artigo 721º do CPC apenas entrara em vigor, por força do n.º 1 do artigo 11º do Decreto-Lei n.º 303/2007 que, portanto, lhe foi posterior, ou seja, trata-se de um problema de aplicação retroativa da norma.
Com efeito, apesar de a Constituição da República não consagrar expressa e textualmente, o “princípio da segurança jurídica”, este tem sido associado e extraído do “princípio do Estado de Direito” (artigo 2º, da CRP), à semelhança do que já sucedera, pela doutrina jus-publicista germânica, relativamente ao artigo 20º da “Grundgesetz” alemã. Tal princípio exige a garantia de previsibilidade das atuações jurídico-públicas (normativas e outras), por parte dos respetivos destinatários, desdobrando-se numa “dimensão apriorística” que pressupõe uma “certeza na orientação” e numa “dimensão aposteriorística”, que já reclama uma “segurança na implementação” (adotando esta contraposição, ver Reinhold Zippelius, Filosofia do Direito, Quid Iuris, Lisboa, 2010, 215-216). Por um lado, o “princípio da segurança jurídica” exige que que o legislador ordinário adote normas suficientemente claras e precisas, de tal modo que possam constituir parâmetro expectável da atuação a prosseguir pelos particulares, funcionando assim como verdadeiras normas de conduta (“certeza na orientação”). Por outro lado, impõe ainda que uma atuação levada a cabo em consonância com as normas vigentes se consolide na ordem jurídica, a tal ponto que os poderes públicos garantam o respeito, por terceiros, das situações jurídicas geradas por tal atuação, se necessário, mediante o emprego de meios coercivos (“segurança na implementação”).
No caso ora em apreço, suscita-se o problema da compatibilidade da interpretação normativa aplicada com o princípio da segurança jurídica (artigo 2º da CRP), na sua dimensão de “certeza na orientação”. Como tal, só se fosse possível detetar uma perturbação da previsibilidade dos mecanismos de recurso relativamente a decisões de tribunais de segunda instância é que poderia concluir-se pela inconstitucionalidade da interpretação normativa adotada pela decisão recorrida.
Ora, apesar de o processo-crime ter tido o seu início em 2006, certo é que, à data da prolação da decisão desfavorável, proferida pelo tribunal de primeira instância, a norma constante do n.º 3 do artigo 721º do CPC já há muito se encontrava em vigor. Como tal, no momento decisivo de ponderação acerca dos meios de recurso ao seu dispor, o recorrente já dispunha da possibilidade objetiva de antever a solução normativa que viria a ser sufragada pela decisão recorrida.
Não se pode, portanto, sufragar o entendimento de que a aplicação da interpretação normativa objeto do presente recurso corresponderia a uma aplicação retroativa de norma restritiva do direito de acesso aos tribunais, na sua dimensão de direito a um duplo recurso, na medida em que, à data da prolação da decisão contra o recorrente, não se verificava ainda qualquer fato jurídico-processual concreto que legitimasse a constituição de um direito subjetivo ao recurso. É que, não tendo ainda sido proferida qualquer decisão desfavorável ao recorrente, não podia este invocar um direito subjetivo concreto ao recurso. Tal só ocorreria no preciso momento em que fosse proferida decisão jurisdicional desfavorável e não antes.
Aliás, esse tem sido, precisamente, o entendimento persistente e reiterado deste Tribunal, quando aprecia o problema da sucessão no tempo de leis processuais penais que alteram o regime dos recursos. A esse propósito, o Tribunal Constitucional tem decidido sempre no sentido de que o momento determinante para a aferição do direito fundamental ao recurso corresponde à data da prolação de decisão condenatória a quem pretende exercer o referido direito (assim, ver os Acórdãos n.º 263/2009, n.º 551/2009, n.º 645/2009, n.º 125/2010, n.º 174/2010, n.º 276/2010, n.º 277/2010, n.º 308/2010, n.º 314/2010, n.º 359/2010, n.º 471/10 e n.º 215/2011). Ora, no caso, a própria dedução do pedido cível é posterior à entrada em vigor da norma.
Daqui decorre, assim, que a interpretação normativa adotada pela decisão recorrida não fere igualmente o princípio da segurança jurídica, na sua dimensão de “certeza na orientação”, na medida em que o momento relevante para a fixação do direito subjetivo ao recurso corresponde à decisão desfavorável proferida pela primeira instância.
Em conclusão, o presente recurso deve ser indeferido, por ausência de inconstitucionalidade material da interpretação normativa extraída da conjugação entre o artigo 400º, n.º 3, do CPP, e o artigo 721º, n.º 3, do CPC.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se não conceder provimento ao recurso interposto.
Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC´s, nos termos do n.º 1 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 26 de setembro de 2012. – Ana Guerra Martins – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Rui Manuel Moura Ramos.
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