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Processo n.º 435/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
Relatório
O Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão, por Acórdão de 29 de junho de 2010, condenou o arguido A. na pena de 6 anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 4 anos de prisão, pela prática de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), com referência ao artigo 204.º, n.º 2, alínea a), ambos do Código Penal, e na pena de 6 meses de prisão, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d), com referência ao artigo 2.º, n.º 3, alínea l), da Lei n.º 5/2006, de 26 de fevereiro, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 8 anos de prisão.
Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação do Porto que, por Acórdão de 22 de fevereiro de 2011, julgou improcedente o recurso e confirmou a decisão da primeira instância.
O arguido interpôs recurso deste Acórdão para o Tribunal Constitucional nos seguintes termos:
«A., arguido/recorrente nos autos à margem referenciados, tendo sido notificado do Acórdão, deste Venerando Tribunal, que julgou totalmente improcedente o seu recurso, e não conformado com a douta decisão, vem da mesma
Interpôr Recurso para o Tribunal Constitucional
Nos termos dos artigos 280º nº 1 al. b) da C.R.P. e artigos 69º a 85º da L.T.C., maxime, o art. 70º nº 1 al. b).
Para os efeitos do art. 75º-A da L.T.C., consigna-se que:
- O principio da Constitucionalidade violado pelo Acórdão recorrido, é o principio da presunção de inocência, estatuído no art. 32º nº 2 da C.R.P.
- A violação do princípio em causa, foi invocada a propósito da condenação do arguido, pelo crime de Tráfico de Estupefacientes, no âmbito das alegações apresentadas, aquando da interposição de recurso da 1ª para 2ª instância. Para melhor localização da questão, o recorrente consigna que, expressamente, invocou a preterição do indicado principio, nas alíneas F), G), H), 1) e J) das conclusões formuladas na peça processual Alegações.»
O Desembargador Relator proferiu despacho de não admissão do recurso, com a seguinte fundamentação:
“[…]
O arguido menciona neste seu recurso que o mesmo funda-se no disposto na al. b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82 de 15 de novembro, apontando também que suscitou a respetiva inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal recorrido, nas suas conclusões recursivas dirigidas a esta Relação, designadamente nas suas alíneas H) e I).
Cumpre decidir.
De acordo com a Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, que estabelece o regime jurídico da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC, mais concretamente o seu art. 76.º, compete ao tribunal que tiver proferido a decisão recorrida apreciar a admissão do respetivo recurso” [n.º 1], esclarecendo-se no seu n.º 2 que “O requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional deve ser indeferido quando não satisfaça os requisitos do artigo 75º-A, mesmo após o suprimento previsto no seu n.º 5, quando a decisão o não admita, quando o recurso haja sido interposto fora do prazo, quando o requerente careça de legitimidade ou ainda, no caso dos recursos previstos nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70º, quando forem manifestamente infundados”.
O segmento normativo da citada al. b), do n.º 1, do art. 70.º, reporta-se àquelas decisões dos tribunais “Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”.
Tal segmento normativo é complementado pelo art. 72.º, n.º 2, segundo o qual “Os recursos previstos nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70º só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar, obrigado a dela conhecer”.
Isto significa ou exige que a questão de constitucionalidade tenha sido atempadamente suscitada no processo, de modo que o tribunal recorrido possa ter tido a possibilidade de pronunciar-se sobre essa matéria, antes de esgotado o correspondente poder jurisdicional, salvo se se tratar de um decisão surpresa.
Assim a exigência legal “durante o processo” deve ser tomada não num sentido meramente formal, mas essencialmente funcional [Ac. TC n.º 704/98; 12/99].
Por outro lado, essa questão de constitucionalidade deve ter sido um dos alicerces de fundamentação da decisão recorrida, constituindo a sua ratio decidendi, com o sentido de que foi um dos suportes argumentativos proferidos pelo tribunal “a quo” [Ac. TC n.º 571/2005, de 2005/Out./04].
E aqui deverá estar em causa uma questão de inconstitucionalidade normativa e não a concreta valoração jurídica efetuada pelo julgador ao caso “sub judicio”, pois como se refere no Ac. do TC n.º 2/6 “ao Tribunal Constitucional não compete apreciar a correção da interpretação do direito ordinário feita pela decisão recorrida, mas tão-só apurar se essa interpretação, que recebe como um dado da questão, é, ou não, conforme às normas e princípios constitucionais”.
Acresce ainda, que o recorrente deverá ter indicado essa questão de constitucionalidade de um modo claro e de uma forma percetível, como tem sido jurisprudência corrente do Tribunal Constitucional, apontando-se qual foi a incompatibilidade com a Lei Fundamental, indicando-se, pelo menos, a norma ou princípio constitucional infringidos [Ac. 199/88, 123/89, 269/94, 367/94, 178/95, 529/98].
Nesta conformidade, podemos considerar que a admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 da LTC está dependente da verificação cumulativa dos seguintes requisitos: a existência de um objeto normativo (i); o esgotamento dos recursos ordinários (ii); a suscitação prévia de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido (iii); e a aplicação da norma em causa como ratio decidendi da decisão recorrida (iv) [Ac. TC 152/2012].
Ora o recorrente limitou-se a sustentar nas suas alegações de recurso, mais precisamente sob a referência H) que “a presunção de inocência dos arguidos até ao trânsito em julgado, é um direito e uma garantia fundamental decorrente do artigo 32.º, n.º 2 da Constituição”.
Mais acrescentou logo de seguida e sob a alínea L) que “Ao decidir como decidiu o tribunal “a quo” violou, ostensivamente, o princípio de presunção de inocência da Constituição, tendo, por isso, cometido uma inconstitucionalidade”.
Trata-se de uma referência meramente genérica sem que tenha sido suscitada uma questão concreta de inconstitucionalidade normativa, o que deveria ter passado pela imputação da desconformidade constitucional de uma certa e precisa norma (i) e que a mesma tivesse sido fundamento da decisão recorrida (ii), o que não sucedeu no recurso interposto para esta Relação.”
O recorrente reclamou deste despacho para o Tribunal Constitucional, invocando os seguintes fundamentos:
«[…]
8. A interpretação restritiva perfilhada pelo tribunal: “a quo” é extremamente cerceadora do acesso ao direito e aos Tribunais, conforme estatui o art. 20º da C.R.P.
9. Pois, efetivamente, durante a instância, na sua motivação e conclusões, o arguido suscitou a questão da inconstitucionalidade da decisão, porque o tribunal, no processo de valoração das provas, havia postergado o princípio da presunção de inocência, consagrado no art. 32º da C.R.P.
10. Aliás, o arguido até juntou parecer jurídico, no qual expressamente se afirma ter existido a violação do aludido principio, por parte do Tribunal de 1ª instância.
11. Pois, no entendimento do arguido, no que tange ao crime de tráfico de estupefacientes, o tribunal de 1ª instância, e depois o da 2ª instância, fundaram a sua condenação apenas em escutas telefónicas, sem que houvesse um qualquer outro meio de prova que se concatenasse com aquelas escutas.
12. Nesta medida, o arguido não invocou uma “inconstitucionalidade normativa”.
13. Pois de facto, não se trata de uma inconstitucionalidade normativa.
14. Trata-se, sim, de uma inconstitucionalidade interpretativa, na medida em que - na perspetiva do arguido – o Tribunal procedeu à condenação sem ter provas bastantes para o efeito.
15. Aliás, citando o Ac. do TC que o Exmo. Desembargador cita para fundamentar a sua decisão, chegamos a conclusão diametralmente oposto à do Tribunal recorrido.
16. Na motivação que o recorrente pretende apresentar – depois de admitido o recurso – não se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a correção da interpretação do direito ordinário; pretende-se, outrossim que se apure “se a interpretação, que recebe como dado da questão, é, ou não, conforme às normas e princípios constitucionais” (Cfr. referida Ac. TC no 2/6).
17.Violaram, assim, os tribunais recorridos o principio de presunção de inocência, consignado no art. 32º nº 2 da C.R.P.
18. E, no entender do recorrente estão verificados todos os requisitos para que o recurso seja admissível, elencados pelo Exmo. Senhor Desembargador Relator, a saber:
i. Existência de objeto normativo;
ii. Esgotamento dos recursos ordinários;
iii. Suscitação prévia da inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido;
iv. Aplicação (ou não aplicação) da norma em causa como “ratio decidendi” da decisão recorrida.
19. Pois, efetivamente, na instância recorrida, aconteceu o que segue:
a) Invocou-se a existência de objeto normativo – o art. 32º da C.R.P.;
b) Verificou-se o esgotamento dos recursos ordinários;
c) Suscitou-se a prévia inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido;
d) E, o Tribunal da Relação, não aplicou o princípio constitucional, consubstanciado no art. 32º da C.R.P., como “ratio decidendi” da decisão recorrida.
20. Estão, assim, verificados todos os requisitos elencados, para a admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional.
21. Não nos podemos esquecer que estamos, apenas, e ainda, no momento do requerimento de interposição de recurso.
22. Depois de admitido, formalmente, caberá ao arguido/recorrente fundamentar a inconstitucionalidade suscitada.
23. Depois da motivação apresentada, o Tribunal Constitucional aferirá se os argumentos apresentados pelo recorrente são – ou não – válidos.
24. O recorrente alimenta a esperança que demonstrará, perante o Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade suscitada junto do Tribunal da Relação.
25. Por ora, o recorrente apenas almeja que lhe seja dada a oportunidade de fundamentar o seu recurso, depois de admitido.
26. E, na verdade, a decisão de não admitir o recurso é, como se afirmou, cerceadora do acesso ao direito, aos tribunais e à Justiça.
Termos em que deverá a presente reclamação ser julgada procedente, proferindo-se decisão que revogue o despacho de não admissão do recurso interposto, e ordene a subida do processo para o Venerando Tribunal Constitucional.»
O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação.
Fundamentação
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões em que a desconformidade constitucional é imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas e não diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Constitui jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional que o recurso de constitucionalidade, reportado a determinada interpretação normativa, tem de incidir sobre o critério normativo da decisão, sobre uma regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica, não podendo destinar-se a pretender sindicar o puro ato de julgamento, enquanto ponderação casuística da singularidade própria e irrepetível do caso concreto, daquilo que representa já uma autónoma valoração ou subsunção do julgador – não existindo no nosso ordenamento jurídico-constitucional a figura do recurso de amparo de queixa constitucional para defesa de direitos fundamentais.
A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada diretamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adoção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com caráter de generalidade, e, por isso, suscetível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
No caso dos autos, o Reclamante fez constar do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, acima transcrito, que «O princípio da Constitucionalidade violado pelo Acórdão recorrido, é o principio da presunção de inocência, estatuído no art. 32º nº 2 da C.R.P.», acrescentando, na reclamação apresentada, que «suscitou a questão da inconstitucionalidade da decisão, porque o tribunal, no processo de valoração das provas, havia postergado o princípio da presunção de inocência, consagrado no art. 32º da C.R.P.» e que «no que tange ao crime de tráfico de estupefacientes, o tribunal de 1ª instância, e depois o da 2ª instância, fundaram a sua condenação apenas em escutas telefónicas, sem que houvesse um qualquer outro meio de prova que se concatenasse com aquelas escutas», concluindo que não invocou uma inconstitucionalidade normativa uma vez que se está perante «uma inconstitucionalidade interpretativa, na medida em que - na perspetiva do arguido – o Tribunal procedeu à condenação sem ter provas bastantes para o efeito.»
Conforme resulta destas peças processuais, o ora Reclamante limitou-se a invocar determinadas normas e princípios constitucionais que entendeu serem aplicáveis na resolução do caso concreto, concretamente na apreciação das provas, argumentando que as decisões ou soluções jurídicas adotadas pelo tribunal a quo, envolveriam a violação de tais normas ou princípios, sem que, no entanto, tenha questionado a conformidade constitucional de qualquer norma ou de determinada interpretação normativa, aplicadas pela decisão recorrida.
Ou seja, conclui-se que o Reclamante pretende discutir a constitucionalidade da decisão recorrida em si mesma, enquanto resultado de uma operação de subsunção e não a aplicação de um qualquer critério jurídico, genérica e abstratamente concebido, passível de controlo jurídico-constitucional.
Ora, não existindo entre nós a figura do recurso de amparo ou outra equivalente, não tem o Tribunal Constitucional competência para conhecer de recurso que tenha como objeto a própria decisão judicial e não uma questão de constitucionalidade normativa, como acima já se explicou.
Não se mostrando preenchido este requisito de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, previsto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, revela-se correta a decisão de não admitir o recurso de constitucionalidade sob apreciação, com este fundamento.
Por este motivo deve ser indeferida a reclamação apresentada.
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A..
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 27 de junho de 2012.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.
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