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Processo n.º 355/12
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, A. reclamou, em 08 de março de 2012 (fls. 69 a 72), ao abrigo do n.º 4 do artigo 76º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho proferido pela Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de Setúbal, em 24 de fevereiro de 2012 (fls. 66 e 67), que rejeitou recurso de constitucionalidade por si interposto, em 23 de dezembro de 2011 (fls. 63), com fundamento na falta de suscitação processualmente adequada de qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
2. Inconformado com a decisão proferida, o recorrente veio deduzir a seguinte reclamação:
«(…)
2 - Na impugnação judicial foi claramente alegada a ofensa ao n ° 1 do art. 20° da Constituição que estabelece que a justiça não pode 'ser denegada por insuficiência de meios económicos' denegação de que estes autos são exemplo tenebroso.
3 - O princípio constitucional contido no citado n ° 1 do art. 20° insere-se no quadro dos direitos fundamentais aos quais, nos termos do preceituado no art. 17 ° da CRP, é aplicável o 'regime dos direitos, liberdades e garantias',
Regime que,
4 - Por força do n ° 1 do art. 18 ° da CRP, é directamente aplicável, sendo, por si só, inculativo para todas as 'entidades públicas e privadas'.
o que,
5 - No fundo significa que o princípio não necessita de tradução na legislação ordinária para se tomar vinculativo e dever ser respeitado.
E,
6 - Tornaria desnecessária, por maioria de razão, a especificação, no caso concreto, da norma cuja inconstitucionalidade se pretende demonstrar.
De qualquer forma,
7 - No requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional foi clara e motivadamente indicado o art. 25 ° da Lei n' 34/2004, de 29 de Julho, como a norma cuja constitucionalidade foi, e é, questionada.
Ora,
8 - Tal requerimento faz parte do processo, sendo difícil perceber o motivo pelo qual dele deve considerar-se excluído, designadamente pelo que conceme à satisfação do requisito formal de indicação da norma cuja constitucionalidade pretende pôr-se em causa.
9 - Pensa-se mesmo que tal requerimento é o momento mais oportuno para esse efeito.
Por outro lado,
10 - O acidente, bem como o grau de incapacidade dele resultante, prejudicou irremediável e definitivamente a capacidade de trabalho do reclamante, trabalho que era a sua única fonte de subsistência, deixando-o sem meios para custear as despesas do processo de indemnização cujo valor (€ 440 500,00) implica o pagamento de taxas de justiça completamente fora do seu alcance.
11 - Processo que constitui também a única esperança do reclamante poder reorientar a
sua vida.
12 - Por isso se qualificou, sem exagero, o indeferimento de desumano, injusto e violador do princípio constitucional vertido no n o 1 do art. 20 o da CRP.»
3. Notificado para o efeito, o Ministério Público veio responder nos seguintes termos.
«1. A. impugnou judicialmente a decisão administrativa que indeferiu o pedido de Protecção Jurídica.
2. Por decisão proferida no Tribunal Judicial de Setúbal, foi recusado o seu provimento, com fundamento em extemporaneidade daquela impugnação judicial.
3. Desta decisão foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional para apreciação “ da inconstitucionalidade da norma contida no art.º 25.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, na interpretação segundo a qual o indeferimento expresso posterior ao acto tácito de deferimento do pedido de apoio judiciário revoga aquele, por contrária ao princípio consagrado no n.º 1 do art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa, cuja amplitude não se compadece com tal interpretação”.
4. Ora, diferentemente do que afirma o recorrente no requerimento de interposição do recurso, a questão de inconstitucionalidade não foi suscitada na impugnação da decisão da Segurança Social.
5. Efectivamente, o que ali vem dito é que o indeferimento da pretensão é desumano, injusto e ofende a regra constitucional segundo a qual “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais – art. 20º da CRP”.
6. Por outro lado, não tendo a decisão recorrida conhecido do mérito da impugnação por a ter considerado extemporânea, não aplicou sequer a “norma” indicada pelo recorrente como objecto do recurso, mas antes e exclusivamente os artigos 27º, nº1 e 28º, nº 5, da Lei nº 34/2004.
7. Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
Posto isto, importa apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Antes de mais, importa frisar que, fazendo a presente decisão deste Tribunal caso julgado quando à admissibilidade do recurso (artigo 77.º, n.º 4, da LTC), deve averiguar-se se estão preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso, dos quais se destaca, desde já, a aplicação da norma cuja inconstitucionalidade se suscita pelo tribunal recorrido.
Ora, no caso em apreço o reclamante interpôs recurso para que fosse apreciada a constitucionalidade da norma extraída do artigo 25º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, quando – em boa verdade – a decisão recorrida não chegou a aplicá-la. Assim é porque a decisão recorrida não conheceu sequer do mérito da questão substantiva decorrente daquele preceito legal, na medida em que se limitou a concluir pela intempestividade da impugnação judicial (então) deduzida, por força dos artigos 27º, n.º 1, e 28º, n.º 5, da Lei n.º 34/2004. Essas foram as únicas normas aplicadas pelo despacho proferido em 06 de dezembro de 2011 (fls. 61).
Assim sendo, o conhecimento do objeto do recurso sempre ficaria prejudicado, visto que este Tribunal apenas pode conhecer de normas ou interpretações normativas que tenham sido efetivamente aplicadas pelo tribunal recorrido (artigo 79º-C da LTC).
Para além disso, a reclamação ora deduzida resume-se a dois argumentos: i) a aplicabilidade imediata dos direitos, liberdades e garantias – neste caso, um direito de natureza análoga (artigos 17º e 20º da Constituição da República – CRP) – dispensaria a especificação, em concreto, da norma que padeceria de inconstitucionalidade; ii) a indicação da questão de inconstitucionalidade de determinada norma jurídica seria bastante quando ocorresse em sede de requerimento de interposição de recurso.
Em primeiro lugar, o sistema português de fiscalização da constitucionalidade apenas admite o controlo da inconstitucionalidade de normas jurídicas especificamente identificadas (artigo 277º, n.º 1, da CRP). Se é verdade que todas as entidades públicas ficam obrigadas ao respeito imediato dos direitos, liberdades e garantais, certo é que o Tribunal Constitucional nem pode apreciar a inconstitucionalidade das decisões administrativas proferidas pelos órgãos competentes das pessoas coletivas públicas, nem as próprias decisões jurisprudenciais proferidas pelos tribunais. Pelo contrário, apenas lhe cabe apreciar da inconstitucionalidade de normas jurídicas. Não basta, como tal, que o recorrente invoque a violação de determinada norma ou princípio constitucional; antes se exige que o tribunal recorrido possa ter sido confrontado com uma questão relativa à inconstitucionalidade de uma específica norma jurídica (artigo 72º, n.º 2, da LTC).
Daqui resulta que o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional não corresponde à sede própria e adequada para suscitar, pela primeira vez, uma questão de inconstitucionalidade normativa. Na medida em que, em fiscalização concreta, o Tribunal Constitucional apenas pode conhecer de questões de inconstitucionalidade normativa por via de recurso, torna-se forçoso que o tribunal recorrido já tenha apreciado – ou, pelo menos, podido apreciar – a questão de inconstitucionalidade normativa em causa.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 27 de junho de 2012. – Ana Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão.
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