|
Processo n.º 69/2012
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. A., S.A., B., S.A., e C., S.A., instauraram ação de contencioso pré-contratual contra o MUNICIPIO do PORTO, impugnando a decisão que excluirá o agrupamento formado pelas autoras de um concurso público (concurso limitado por prévia qualificação internacional denominado “Concessão de recolha de resíduos sólidos urbanos e limpeza pública no Município do Porto”).
Tendo sido julgada procedente a exceção de caducidade dessa ação, as Autoras interpuseram recurso da sentença para o Tribunal Central Administrativo Norte. Por acórdão de fls 781 foi negado provimento ao recurso.
As recorrentes interpuseram recurso de constitucionalidade deste acórdão, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com vista à apreciação da inconstitucionalidade da norma contida na alínea a) do n.º 1 do artigo 469.º do Código dos Contratos Públicos, na medida em que não concede aos particulares concorrentes ou candidatos em procedimentos adjudicatórios a possibilidade que, pelo n.º 2 do mesmo artigo, é conferida às entidades adjudicantes.
2. As recorrentes apresentaram alegações em que concluem nos termos seguintes:
“a) O presente recurso para o Tribunal Constitucional vem interposto da douta sentença do Tribunal a quo que aplicou a norma prevista no artigo 469.º, n.º 1 do Código dos Contratos Públicos, cuja inconstitucionalidade foi suscitada no recurso de apelação;
b) Com o presente recurso, os recorrentes pretendem ver julgado inconstitucional o artigo 469.º do Código dos Contratos Públicos, por violação do artigo 13.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, no sentido em que diferencia, sem qualquer justificação, as pessoas de direito público das pessoas de direito privado, em prejuízo destas;
c) O acórdão recorrido deve ser revogado, aplicando-se o artigo 469.º, n.º 2 aos ora recorrentes, com todos os efeitos legais que daí advêm;
d) O artigo 469.º do CCP consagra uma diferença de tratamento jurídico entre as pessoas de direito público e de direito privado, pois estipula que as notificações se consideram efetuadas na data da expedição, exceto se trate da entidade adjudicante ou do contraente público, caso em que a notificação feita após as 17h se presume feita às 10 horas do dia útil seguinte;
e) Sendo pessoas de direito privado e tendo a notificação sido enviada numa 6ª feira, às 22h50m, os ora recorrentes consideraram-se notificados logo naquela data;
f) Para a sua verdadeira proteção, os destinatários de atos administrativos devem ter a possibilidade de ter conhecimento efetivo destes;
g) Razão pela qual, nomeadamente, a lei diferencia elaboração e expedição de uma comunicação, bem como se fundamenta a presunção do artigo 469.º, n.º 2 do CCP;
h) A lei civil faz coincidir a data relevante para inicio da contagem de prazo com a expedição, sendo esta distinta da elaboração da notificação, o que tem todo o sentido, já que não se pode partir do princípio que os notificandos estão com o computador ligado á espera de uma qualquer notificação, como não pode o notificando por via eletrónica ver-se coartado nos seus direitos relativamente aos notificandos por via postal tradicional!
i) Deve, assim, aplicar-se analogicamente a lei civil, cuja ratio legis é extensível ao caso dos autos, aplicando ao prazo de defesa das ora requerentes uma dilação de 3 dias;
j) Da mesma forma, a presunção do n.º 2 do artigo 469.º do CCP deve aplicar-se, também, ás pessoas de direito privado;
k) A diferença de tratamento imposta por aquela disposição causou grande prejuízo aos recorrentes;
1) O princípio da igualdade, consagrado no nosso ordenamento jurídico no artigo 13.º da CRP, obriga a que uma diferenciação de tratamento imposta por lei seja sustentada por um fundamento que a justifique;
m) O artigo 469.º do Código dos Contratos Públicos apresenta uma diferenciação entre as pessoas de direito privado e direito público totalmente desprovida de justificação, sendo certo que as entidades públicas e privadas coincidem nos pontos basilares que relevam para a aplicabilidade das regras relativas ao momento em que se deve considerá-las notificadas;
n) Não existe qualquer circunstância que diferencie as entidades públicas perante o início da contagem de um prazo, nem qualquer interesse público nesse prazo, nem sequer existe uma situação excecional que justifique a diferenciação imposta pelo artigo 469.º do CCP;
o) O artigo 469.º do CCP, aplicado pelo tribunal a quo, é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da CRP.
Nestes termos, deverá ser proferido Acórdão considerando a procedência do presente recurso, sendo revogada a douta decisão recorrida e, por via disso, declarado inconstitucional o n.º 1 do artigo 469.º do CCP, bem como aplicado o n.º 2 do mesmo artigo aos ora recorrentes, com as devidas consequências legais”.
O Município do Porto contra-alegou, suscitando questões obstativas ao conhecimento do objeto do recurso e defendendo a improcedência do recurso, tendo concluído:
“1. Através do presente recurso vêm os Recorrentes pedir a este Tribunal que declare inconstitucional o n.° 1 do artigo 469° do Código dos Contratos Públicos e que seja bem assim aplicado o n.° 2 do mesmo artigo.
2. Não resulta claro, nem do pedido nem de nenhuma alegação, qual exatamente a interpretação dada pelo tribunal à norma cuja inconstitucionalidade vem invocada, parecendo as mais das vezes que o que afinal é ilegal não é a norma, mas sim a decisão propriamente dita.
3. Segundo o próprio TC, para que uma questão desta natureza se considere suscitada em termos de satisfazer este pressuposto não basta a referência a que um preceito legal ou determinada interpretação dele viola a Constituição, é necessário um módico de argumentação, ónus que não foi cumprido pelas Recorrentes, o que necessariamente impede o conhecimento do presente recurso.
4. Quanto ao pedido de que seja declarado inconstitucional o n.° 1 do artigo 469° do CCP, constitui jurisprudência uniforme e resulta clara e inequivocamente da lei, que o recurso interposto para o Tribunal Constitucional com fundamento na alínea b) do n.° 1 do artigo 70.°, cabe apenas das decisões que tenham aplicado norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, consubstanciando essa a norma-fundamento da decisão recorrida, de forma tal que se possa dizer que ela constitui “a ‘ratio decidendi’ da decisão.
5. Ora, a concreta norma cuja inconstitucionalidade as Recorrentes pretendem ver apreciada não é fundamento da decisão proferida, uma vez que o TCA - Norte não careceu, de nenhuma forma, de se fundamentar e suportar na alínea a) do número do artigo 469.° do CCP para corroborar o julgamento efetuado em 1ª instância.
6. Nem na enunciação do juízo formulado, nem na argumentação que lhe serve de base se deteta ou descobre uma só referência ou alusão à alínea a) do número 1 do artigo 469.° do CCP, mas tão-somente aos artigos 100.º a 103.° do CPTA e a várias alíneas do artigo 279.° do Código Civil.
7. Para além de que a data da notificação foi expressamente reconhecida pelas Recorrentes, pelo que foi a circunstância e fundamento de facto de as Recorrentes reconhecerem e confessarem terem tomado conhecimento do ato administrativo em determinada data e não o preceito do número 1 do artigo 469.° do CCP, que traduziram a “ratio decidendi” da decisão do TAF do Porto e do TCAN.
8. Impõe-se, quanto a este pedido, a inadmissibilidade do recurso ora interposto pelas Recorrentes para o Tribunal Constitucional.
9. Também o pedido de que seja aplicado o n. ° 2 do artigo 469° do CCP às ora Recorrentes deve ser considerado inadmissível, uma vez que da recusa da aplicação de uma norma não existe possibilidade de recurso ao TC senão nas hipóteses expressamente previstas nas alíneas a), c), e) e i) do artigo 70.° da LTC.
10. Tais normas não têm aqui cabimento, nem são invocadas pelas Recorrentes.
11. Para além do exposto, verifica-se que mesmo que a norma cuja inconstitucionalidade vem suscitada fosse declarada inconstitucional, nunca as Recorrentes lograriam obter qualquer utilidade para a sua causa, em termos de passar a considerar-se tempestivo o exercício do direito de ação julgado caduco.
12. Não existindo legitimidade para o recurso da decisão do tribunal quanto à recusa da aplicação do n.° 2 do artigo 469° do CCP -, as Recorrentes não beneficiariam automaticamente de tal norma, e a solução normativa subsumível às Recorrentes seria aquela emergente dos instrumentos de aplicação subsidiária do CCP, maxime do Código do Procedimento Administrativo.
13. A verdade é que, também nesse âmbito e à luz de tal normativo, nem assim as Recorrentes beneficiariam do regime que reclamam lhes seja aplicável (artigo 700 do CPA).
14. Assim, o presente recurso também não deverá ser admitido por ausência de interesse em agir.
15. Sem prescindir, não podem proceder as alegações das Recorrentes, no sentido de que o artigo 469°, n.° 1, do CCP viola o princípio da igualdade, ou de que a não aplicação do n.° 2 deste preceito resulta numa violação desse mesmo princípio.
16. O princípio da igualdade constitucionalmente consagrado no artigo 13° da CRP dirige-se aos cidadãos, a quem reputa a mesma dignidade social e a igualdade perante a lei.
17. Não faz qualquer sentido - pelo facto de extravasar totalmente o fundamento e a ratio legis do princípio consagrado - a invocação da igualdade dos cidadãos perante a própria administração pública!
18. Poder-se-ia, quando muito, admitir que tal questão se colocasse quando a administração agisse despida da sua posição de supremacia, mas não é este o caso dos presentes Autos, uma vez que a norma aplicável à administração pública (artigo 469°, n.° 2) se lhe aplica apenas quando esta age na qualidade de entidade adjudicante ou de contraente público, ou seja, precisamente nas situações em que o CCP lhe atribui uma supremacia sobre os particulares.
19. Não há, no caso concreto, qualquer situação de desigualdade que justifique sequer a invocação do princípio da igualdade!
20. A fórmula constitucional do artigo 13° visa vedar privilégios e discriminações, enquanto situações de vantagem e de desvantagem não fundadas.
21. Não pode resultar nenhuma vantagem ou desvantagem existe das normas cuja inconstitucionalidade vem alegada.
22. Na verdade, ambos estes preceitos reportam-se a situações radicalmente diferentes, em que os respetivos destinatários não se encontram sequer em situações comparáveis.
23. A entidade adjudicante tem, no âmbito de um procedimento de contratação pública, direitos, deveres e funções radicalmente diferentes das que são por lei - e por natureza - atribuídas aos concorrentes.
24. Designadamente, e com reporte direto ao caso dos presentes Autos, a entidade adjudicante jamais teria interesse ou legitimidade para impugnar os concursos que ela própria havia lançado, ao abrigo do artigo 100° do CPTA!
25. Pelo que é impensável que o Recorrido se pudesse encontrar numa situação semelhante ou sequer comparável àquela em que se encontram as Recorrentes, quando reclamam a igualdade de tratamento, o que obsta a que se possa invocar o princípio da igualdade.
26. De resto, o invocado fundamento material da desigualdade não tem qualquer aplicação ao caso concreto!
27. Segundo as Recorrentes, a ratio legis que justifica a aplicação da regra do n.° 2 do artigo 469° do CCP às pessoas de direito privado é a proteção dos destinatários de atos administrativos e os direitos dos administrados, enquanto destinatários de atos administrativos, artigo 268°, n.° 3, da CRP.
28. Se o artigo 469° visasse efetivamente a proteção dos administrados, destinatários de atos, não teria consagrado uma regra mais favorável para a entidade que precisamente não vai ser nunca a destinatária do ato.
29. Ainda sem prescindir, mesmo que se entendesse existir uma situação de efetiva desigualdade entre o concorrente privado e a administração pública, ainda assim tal desigualdade teria plena justificação material.
30. O artigo 469° trata-se apenas de uma norma que fixa a contagem do prazo.
31. A regra geral, prevista no n.° 1, é a de que as notificações eletrónicas são feitas na data da expedição, independentemente da respetiva hora.
32. Ao contrário do que pretendem os Recorrentes, trata-se esta de uma solução comum no nosso ordenamento jurídico e transversal ao direito administrativo e ao processo civil, (inclusivamente quando haja recurso ao Citius), em que a hora da notificação não é tida em conta (cfr. artigo 70°, n.° 1, al. c), do CPA e artigos 150°, 2, aI. c), 254°, n.° 5 e 260°-A do CPC).
33. Todas estas notificações despoletam prazos e não se pode vir agora invocar a respetiva inconstitucionalidade, pelo facto de se ter recebido uma notificação depois das horas de expediente!
34. É esta uma solução basilar e comum do nosso ordenamento em termos de notificação, que não compromete nem nunca comprometeu a defesa ou a respetiva eficácia, ao contrário do que pretendem as Recorrentes.
35. A questão da presunção dos 3 dias úteis, aplicáveis às notificações efetuadas por via postal ou por via Citius é uma questão perfeitamente distinta, que não tem qualquer consideração pelas horas da receção das notificações.
36. Quanto à regra especial prevista no n.° 2 do referido artigo 469°, aplicável apenas às notificações dirigidas à entidade adjudicante ou ao contraente público, existe uma justificação para a distinção legal preconizada.
37. Existem, ao longo de todo o CCP, inúmeras diferenças quanto ao tratamento dado à entidade adjudicante e aos candidatos ou concorrentes, através das quais o CCP protege a entidade adjudicante, conferindo-lhe algum conforto na prossecução da contratação e mesmo no âmbito do próprio contrato.
38. Isto sucede em prol da proteção do interesse público visado e prosseguido pela administração pública.
39. Os organismos da administração pública, para além de constituírem ou integrarem, em regra, estruturas pesadas, distribuídas por diversos serviços cuja articulação nem sempre é fácil, são entidades cuja atividade, por natureza e naturalmente que em obediência à lei, seguem procedimentos extremamente burocratizados e complexos, cuja promoção requer o seu tempo.
40. O legislador pretendeu impedir que tais características a coartassem de usufruir plenamente dos prazos legais que lhe são atribuídos.
41. Existe, neste âmbito, uma presunção de racionalidade a favor do legislador, podendo apenas afastar-se as soluções legais insuscetíveis de credenciar-se racionalmente.
42. Assim, é inegável a existência de uma fundamentação material para a diferença de tratamento existente entre a al. a) do n.° 1 e o n.° 2 do artigo 469° do CCP”.
3. As recorrentes foram notificadas para responder às questões obstativas ao conhecimento do objeto do recurso suscitadas pelo recorrido, não tendo respondido.
II – FUNDAMENTOS
4. Na ação intentada pelas recorrentes, foi julgada procedente a exceção de caducidade considerando-se que o ato administrativo de exclusão do concurso se considera notificado no dia 4 de fevereiro de 2011 (sexta-feira), às 22 horas e 50 minutos, por correio eletrónico iniciando-se nesse dia o curso do prazo para propositura da ação estabelecido pelo artigo 101.º do CPTA. Na determinação do dies a quo do prazo de impugnação foi considerado o artigo 469.º do Código dos Contratos Públicos que dispõe:
“Artigo 469.º
Data da notificação e da comunicação
1 – As notificações e as comunicações consideram-se feitas:
a) Na data da respectiva expedição, quando efectuadas através de correio electrónico ou de outro meio de transmissão escrita e electrónica de dados, salvo o disposto no número anterior;
b) Na data constante do relatório de transmissão bem sucedido, quando efectuado através de telecópia, salvo o disposto no número seguinte;
c) Na data indicada pelos serviços postais, quando efectuadas por carta registada;
d) Na data da assinatura do aviso, quando efectuadas por carta registada com aviso de recepção.
2 – As notificações e as comunicações que tenham como destinatário a entidade adjudicante ou o contraente público e que sejam efectuadas através de correio electrónico, telecópia ou outro meio de transmissão escrita e electrónica de dados, após as 17 horas do local de recepção ou em dia não útil nesse mesmo local, presumem-se feitas às 10 horas do dia útil seguinte.”
5. As recorrentes rematam as alegações do presente recurso com um pedido em que parecem pretender que o Tribunal Constitucional declare inconstitucional o n.º 1 do artigo 469.º e aplique o n.º 2 do mesmo artigo aos ora recorrentes.
Este pedido é parcialmente inadmissível no presente processo.
Em primeiro lugar, nos recursos de fiscalização concreta não cabe ao Tribunal Constitucional senão apreciar a constitucionalidade (sendo o caso, a ilegalidade reforçada) das normas que a decisão recorrida tenha aplicado ou a que tenha recusado aplicação com fundamento em inconstitucionalidade. É aos tribunais da causa que compete dar execução ao julgado, reformando a decisão em conformidade com o decidido sobre a questão de constitucionalidade.
Em segundo lugar, o objeto do recurso definido no respetivo requerimento de interposição pode ser restringido, mas não pode ser ampliado. Por essa razão e atendendo ao que consta desse requerimento e a que se debatia perante os tribunais da causa uma questão respeitante à notificação de um ato administrativo num procedimento adjudicatório, não pode ser apreciada a inconstitucionalidade senão da al. a) do n.º 1 do art.º 469.º do CCP interpretada no sentido de que não é concedida aos concorrentes ou candidatos em procedimentos adjudicatórios a possibilidade conferida pelo n.º 2 do mesmo art. 469.º às entidades adjudicantes.
6. O recorrido não tem razão quando sustenta a rejeição do recurso por falta de suscitação da questão de constitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, como é exigido pelas disposições conjugadas da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º e do n.º 2 do artigo 72.º da LTC.
É exato que a questão de constitucionalidade tem de ser suscitada, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, o que exige a enunciação, clara e precisa, do sentido normativo a que se pretende que, no uso do poder conferido pelo artigo 204.º da Constituição, esse tribunal recuse aplicação, bem como a substanciação dessa questão com a apresentação de um mínino de argumentação ordenada a convencer da desconformidade dessa norma com regras ou princípios constitucionais.
Porém, essa exigência tem de dar-se por preenchida no caso presente, em que nas alegações as recorrentes colocaram o Tribunal da Relação perante a necessidade de enfrentar – como aliás veio a enfrentar – uma questão de inconstitucionalidade suficientemente determinada e argumentada. Efetivamente, se bem que fazendo referência ao “artigo 469.º do CPP” no seu todo, resulta com suficiente clareza do capítulo das alegações das recorrentes dedicado à questão da constitucionalidade (IV- DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 469.º CPP), ocupando os artigos 66.º a 91.º e das correspondentes conclusões [alíneas. m) e n)] o critério normativo de decisão que se pretende ver afastado por inconstitucionalidade e as razões em que tal pretensão se sustenta. Embora fosse possível um maior rigor de enunciação, as recorrentes puseram claramente em causa um critério extraído do referido preceito legal segundo o qual, contrariamente ao disposto para as entidades adjudicantes (e os contraentes públicos, mas essa é uma dimensão que não interessa ao presente processo), para os candidatos e concorrentes, quando sejam destinatários de comunicações efetuadas depois das 17 horas do local da receção, estas não se presumirem feitas (apenas) às 10 horas do dia útil seguinte. Aliás, bem o entendeu o recorrido que respondeu especificada e claramente à questão assim enunciada (cfr. n.ºs 58 e segs. das contra-alegações perante a Relação). E bem o entendeu o Tribunal da Relação que como tal a apreciou, embora rejeitando a argumentação das recorrentes.
7. O recorrido adianta outra razão para que não deva conhecer-se do recurso de constitucionalidade: a norma submetida a apreciação não constitui ou integra, no plano lógico e jurídico, a verdadeira ratio decidendi do acórdão recorrido quanto à questão de caducidade da ação. Apoia este seu entendimento, nas seguintes razões:
(i) Nem na enunciação do juízo formulado, nem na argumentação que lhe serve de base se deteta ou descobre uma só referência ou alusão à alínea a) do número 1 do artigo 469.º do CCP, mas tão-somente aos artigos 100.º a 103.º do CPTA e a várias alíneas do artigo 279.º do Código Civil;
(ii) Para além de que a data da notificação foi expressamente reconhecida pelas Recorrentes, pelo que foi a circunstância e fundamento de facto de as Recorrentes reconhecerem e confessarem terem tomado conhecimento do ato administrativo em determinada data e não o preceito do número 1 do artigo 469.º do CCP, que traduziram a “ratio decidendi” da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto e do Tribunal Central Administrativo.
7.1. O primeiro argumento é manifestamente insustentável.
Sendo embora certo que, no acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, não se discorre explicitamente sobre a regra da alínea a) do n.º 1 do artigo 469.º do CCP, a sua aplicação na solução da questão da caducidade da ação está implícita, desde logo, na confirmação do decidido pela sentença de 1.ª instância, especificadamente questionada neste aspeto. Basta atentar na seguinte passagem:
“(…)
Já se viu que o Tribunal a quo considerou procedente a exceção de caducidade arguida pelos demandados e fê-lo com os fundamentos que se podem resumir nos seguintes pontos:
- nos termos do art.469º do CCP as notificações e as comunicações consideram-se feitas, quando efetuadas através de correios eletrónico ou de outro meio de transmissão escrita e eletrónica de dados, na data da respetiva expedição (ai. a) do nº 1), ressalvando-se apenas o disposto no n.º 2 do citado preceito legal, que são os casos das notificações e das comunicações que têm por destinatários a entidade adjudicante ou o contraente; -tendo a notificação da deliberação camarária impugnada sido efetuada por transmissão eletrónica de dados expedida no dia 4.02.2011, pelas 22h50m, é essa a data da notificação da deliberação em causa; O dia 4 de fevereiro foi uma sexta-feira; - O prazo de um mês estabelecido no art.101º do CPTA para impugnação dos atos em causa é um prazo de caducidade, portanto de natureza substantiva, aplicando-se assim à sua contagem as regras do art. 279º do Cód. Civil, mais especificamente, a regra da sua alínea c); - a regra da al. c) do art. 279º do Cód. Civil não se pode “acumular” com a da alínea b); -o prazo de um mês para instaurar a presente ação terminava no dia 04.03.20 11, que foi dia útil (sexta-feira), pelo que tendo a presente ação sido instaurada no dia 07.03.2011, a mesma é extemporânea” (O dia 7 de março foi uma segunda-feira); -o chamado princípio «“pro actione”» vertido no art. 7° do CPTA, só opera em caso de dúvida sobre o sentido das normas a interpretar, sendo que aqui não existe qualquer dúvida sobre essa matéria.
(…).”
Além disso e decisivamente o que está em causa não é a regra da alínea a) do n.º 1 do artigo 469.º do CCP, em si mesma, mas a inaplicabilidade da exceção aí referida aos concorrentes notificados depois das 17 horas. E esta inaplicabilidade é claramente assumida ao abordar a questão da constitucionalidade, que o acórdão recorrido decidiu nos termos seguintes:
“(…)
E o que dizer da inconstitucionalidade da norma contida na alínea a) do n.º 1 do art. 469º do CCP, na medida em que não concede aos particulares concorrentes ou candidatos em procedimentos adjudicatórios, a mesma possibilidade que pelo nº 2 do mesmo artigo é conferida às entidades adjudicantes? A este propósito as recorrentes argumentam o seguinte: -a decisão de que se recorre assenta, entre outros argumentos, na aplicação do artigo 469.º do CCP que, sob a epígrafe “Data da notificação e da comunicação”, estipula que as notificações se consideram efetuadas na data da expedição; -porém, o mesmo artigo, no seu n.º 2, estabelece que, na eventualidade dos destinatários da notificação ou comunicação, feita após as 17h, serem “(...) a entidade adjudicante ou o contraente público (...)“, aquela se presume feita “(...) às 10 horas do dia útil seguinte”; -não existe qualquer justificação para a diferenciação feita entre as pessoais de direito privado, como as ora recorrentes, e as pessoas de direito público; -no caso em concreto, a diferença de tratamento jurídico, isto é, a verdadeira discriminação à pessoa de direito privado, é totalmente desprovida de justificação. -as ora recorrentes viram-se coartadas no seu direito, o que foi motivado pelo simples facto de serem pessoas de direito privado – pois, caso lhes fosse aplicado o disposto no n.º 2 do artigo 469.º do CCP, o prazo para reagirem seria mais longo e a questão da exceção de caducidade nunca se teria posto; -a aplicação de um prazo igual ao fornecido às entidades públicas seria fundamental para que, gozando de prazo mais longo, fosse possível preparar uma defesa mais eficaz e cabal e, assim, estar em igualdade perante qualquer outra pessoa. -estamos, assim, perante uma situação de violação do princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.
Vejamos.
O artigo 13.º da CRP estabelece que “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”.
Este princípio constitucional da igualdade do cidadão perante a lei é um princípio estruturante do Estado de Direito Democrático e do sistema constitucional global, que vincula diretamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional. Como o Tribunal constitucional tem uniformemente entendido, a obrigação da igualdade de tratamento (apenas!!!) exige que “aquilo que é igual seja tratado igualmente”, de acordo com o critério da sua igualdade, e “aquilo que é desigual seja tratado desigualmente, segundo o critério da sua desigualdade”.
Tal princípio -da igualdade-, entendido como limite objetivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a realização de distinções, antes lhe proíbe a adoção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objetiva e racional. Em suma, traduz-se na ideia geral da proibição do arbítrio.
Só que, não sendo as situações referidas totalmente idênticas, elas não podem ser tratadas de forma totalmente igual, pelo que, salvo melhor entendimento, não se vê que haja aqui violação da Constituição quer por parte da decisão quer por parte do artigo 469º do CCP.
Contrariamente ao aventado, não se nos afigura que a desigualdade de tratamento contemplada na norma em apreço seja arbitrária ou irrazoável, assente numa qualquer ordem corporativista ou política de privilégio do funcionalismo público, parecendo-nos antes que encontra fundamento material bastante na defesa do interesse público, nos vários casos a reclamar solução por parte dos entes públicos e nos horários de expediente dos mesmos serviços públicos.
Improcedem, pois, as conclusões das alegações das recorrentes, embora, como a recorrida não deixa de salientar, em abstrato, em tese, ou num plano de jure condendo, as mesmas não sejam de desprezar.”
7.2. O segundo argumento tem outra consistência.
Com efeito, na solução da questão da caducidade foi considerado assente, por confissão das recorrentes, a data da notificação, como resulta da seguinte passagem da sentença de 1ª instância:
“(…).
O agrupamento constituído pelas empresas AA. foi notificado no dia 04.02.2011, pelas 22h50m, por correio eletrónico, através do correspondente aviso e comunicação na Plataforma Eletrónica, da deliberação camarária tomada no dia 25 de janeiro de 2011, que aprovou o relatório final do Júri do concurso de 19.11.2010, em que se propunha, para efeitos de qualificação de candidatos, a exclusão do agrupamento constituído pelas AA., e que assim determinou a exclusão definitiva do agrupamento constituído pelas três empresas ora Autoras do concurso em causa, atos esses que constituem o objeto de impugnação na presente ação.
Ora, nos termos do art. 469° do CCP, sob a epígrafe “Data da notificação e da comunicação”, as notificações e as comunicações consideram-se feitas, quando efetuadas através de correio eletrónico ou de outro meio de transmissão escrita e eletrónica de dados, na data da respetiva expedição (al. a) do nº 1), ressalvando-se apenas o disposto no nº 2 do citado preceito legal, que são os casos das notificações e das comunicações que têm por destinatário a entidade adjudicante ou o contraente público, quando sejam efetuadas após as 17h00 do local de receção ou em dia não útil nesse mesmo local, sendo que em tais casos notificações/comunicações se presumem feitas às 10 horas do dia útil seguinte.
Ora, não sendo as AA. nem entidade adjudicante, nem o contraente público, não se lhes aplica a exceção do nº 2, mas a regra geral, digamos assim, do nº 1, al. a), que considera as notificações e as comunicações efetuadas na data da respetiva expedição, quando efetuadas através de correio eletrónico ou de outro meio de transmissão escrita e eletrónica de dados, como foi o caso.
Assim, tendo a notificação da deliberação camarária impugnada sido efetuada por transmissão eletrónica de dados expedida no dia 4.02.2011, pelas 22h50m, é essa a data da notificação da deliberação em causa, o que aliás é reconhecido pelas AA. na sua p.i., como resulta do alegado pelas mesmas nos arts. 38º e 39º do referido articulado, alegação essa aceite, e também afirmada, pelos demandados.
(…).”
Esse entendimento de que as recorrentes aceitaram ter tomado conhecimento efetivo do ato na data da sua comunicação por via eletrónica é assumido a fls. 19 do acórdão recorrido quando, embora a propósito de outra questão, se diz: “No caso posto, a questão aludida (e totalmente ao arrepio da sua posição anterior: sobre o facto da data do efetivo conhecimento do ato impugnando), de uma pretensa “dilação de 3 dias (…).”
Bem ou mal, mas isso é matéria que escapa ao poder cognitivo deste Tribunal, os tribunais da causa interpretaram as afirmações das recorrentes em matéria de facto (designadamente o alegado nos n.ºs 38 e 39 da p.i.) como significando a aceitação do conhecimento ou cognoscibilidade efetiva da comunicação na data em que ela foi efetuada. Assim, a ratio decidendi da questão da caducidade não resulta (no que respeita ao termo inicial do prazo) da mera consideração do preceituado na alínea a) do n.º 1 do artigo 469.º do CCP, mas do facto de as recorrentes terem aceite ou, pelo menos, não terem posto em causa o efetivo conhecimento do ato administrativo na data da notificação por via eletrónica. Deste modo, o critério normativo de decisão adotado pelo acórdão recorrido não corresponde àquele que no presente recurso se submete a apreciação. Falta a este um elemento essencial da dimensão normativa concreta, suscetível de modificar os termos em que o problema de constitucionalidade se analisa. Com efeito, uma coisa é – seja pelo ângulo do princípio da igualdade em que os recorrentes a colocam, seja no confronto com as exigências constitucionais de notificação dos atos administrativos e do procedimento administrativo justo e leal (ou procedimento equitativo) – que as comunicações eletrónicas dirigidas aos destinatários fora da horas de expediente ou em dia não útil no local do destino produzam sempre os seus efeitos desde a data em que são efctuadas, outra, bem diferente, que o produzam quando, apesar daquelas circunstâncias, esteja assente o conhecimento ou cognoscibilidade efetiva da comunicação.
Tanto basta, não correspondendo o objeto do recurso à dimensão normativa concreta que operou como ratio decidendi do julgamento da questão para que relevou a determinação da data da notificação do ato administrativo impugnado, para que não deva conhecer-se do recurso.
As demais questões ficam prejudicadas.
8. Decisão
Pelo exposto decide-se não tomar conhecimento do objeto do recurso e condenar as recorrentes nas custas, fixando a taxa de justiça (solidariamente) em 20 UCs.
Lisboa, 27 de junho de 2012.- Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral – Ana Guerra Martins – Carlos Fernandes Cadilha (vencido por considerar que a referência, na decisão recorrida, no conhecimento efetivo da notificação constitui um mero elemento indiciário, no plano dos factos, continuando a operar a subsunção jurídica do caso concreto na norma do art.º 469, n.º 1 alínea a) do CCP, e não um novo critério que descaracterize a dimensão normativa que foi efetivamente aplicada e constitui ratio decidendi) – Gil Galvão.
|