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Processo n.º 197/12
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A. foi condenado, no âmbito do Processo Comum n.º 31/08, que correu termos no tribunal da comarca da Grande Lisboa-Noroeste-Sintra, por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de abril de 2011, já transitado em julgado, na pena de 8 anos de prisão.
Ao abrigo do disposto no artigo 80º, n.º 1, do Código Penal, na redação dada Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, veio requerer perante o juiz titular do processo o desconto, na pena de prisão a cumprir, dos períodos de prisão preventiva a que ficou sujeito à ordem dos processos n.ºs 292/98 da 1ª Vara Criminal e n.º 581/04 da comarca de Sesimbra e de um outro processo não identificado que correu termos na comarca de Condeixa.
O juiz indeferiu o pedido por considerar não aplicável a regra de desconto a que se refere o artigo 80º, n.º 1, do Código Penal, atendendo a que os factos pelos quais o requerente foi condenado tinham sido praticados posteriormente à decisão final dos processos no âmbito dos quais foram aplicadas as medidas de coação de prisão preventiva.
O arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, invocando, além do mais, a inconstitucionalidade da norma do artigo 80º, n.º 1, do Código Penal, quando interpretada no sentido de que o desconto de pena aí previsto só opera em relação a penas de prisão em que o arguido seja condenado, quando o facto que originou a condenação tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no qual a medida de prisão preventiva foi aplicada.
Por acórdão de 6 de dezembro de 2011, o Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente o recurso, desatendendo a suscitada questão de inconstitucionalidade.
O arguido interpôs então recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, alegando, em síntese, que a norma do artigo 80º, n.º 1, do Código Penal, quando interpretada no sentido de que os períodos de prisão preventiva sofridos anteriormente no âmbito de processos que culminaram com decisões de não pronúncia ou absolvição não podem ser descontados na pena de prisão aplicada por factos posteriores, gera uma situação de desigualdade e viola os artigos 1°, 13°, 29°, 30° e 32° da Lei Fundamental e artigos 3°, 5° e 6° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Em contra-alegações, o Exmo Procurador-Geral Adjunto sustenta que o estabelecimento de um limite temporal para o desconto do tempo de duração de medidas processuais privativas de liberdade, como resulta da atual redação do n.º 1 do artigo 80.º do Código Penal, nada tem de arbitrário, de infundado ou de destituído de fundamento racional de forma a poder ser constitucionalmente censurável.
Cabe apreciar e decidir.
II – Fundamentação
2. O recorrente foi condenado em pena de prisão efetiva em processo crime, por decisão definitiva proferida em 27 de abril de 2011, e pretende que, para efeitos do cumprimento dessa pena, sejam descontados, ao abrigo do disposto no artigo 80º, n.º 1, do Código Penal, na redação dada Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, os períodos de prisão preventiva que anteriormente sofreu à ordem de outros diferentes processos.
Está assente, e não é sequer controvertido, que os factos pelos quais o recorrente foi condenado são posteriores à data das decisões finais proferidas nos processos no âmbito dos quais foram aplicadas as medidas de prisão preventiva, que se pretende que sejam descontadas no cumprimento da penas.
O tribunal recorrido, baseando-se na literalidade da norma do artigo 80º, n.º 1, do Código Penal, formulou o entendimento de que o desconto da prisão preventiva a que se refere essa disposição apenas pode ter lugar quando o facto por que o arguido for condenado «tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas».
É esta norma que vem arguida de inconstitucionalidade por violação dos artigos 1°, 13°, 29°, 30° e 32° da Lei Fundamental e artigos 3°, 5° e 6° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Deve começar por dizer-se que, embora venham invocados diversos parâmetros de inconstitucionalidade, o recorrente não concretiza minimamente, nem nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação, nem nas alegações de recurso para o Tribunal Constitucional, as razões por que considera violados os princípios constitucionais que decorrem dos citados artigos 29°, 30° e 32° da Constituição, que consagram as garantias do processo criminal, e que já de si acolhem soluções normativas justificadas pelo princípio da dignidade da pessoa humana a que alude o também mencionado artigo 1º. Por identidade de razão, não é possivel conhercer da invocada violação das disposições dos artigos 3°, 5° e 6° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
O recorrente limita-se apenas a centrar a sua argumentação na possível desigualdade que decorre da norma impugnada, no ponto em que confina o desconto da prisão preventiva no cumprimento da pena de prisão às situações em que se verifica a anterioridade do facto por que o arguido foi condenado relativamente à decisão final do processo em que foram aplicadas as medidas de coação, deixando desprotegida a situação inversa em que o facto que originou a condenação tenha sido praticado posteriormente.
Deste modo, apenas há que conhecer da norma do artigo 80º, n.º 1, do Código Penal, por referência ao princípio ao princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Lei Fundamental.
3. O artigo 80º, n.º 1, do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, inserido num capítulo atinente à «Escolha e medida da pena», sob a epígrafe «Medidas processuais», estipula o seguinte:
A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.
Conforme foi já observado na decisão recorrida, na sua nova redação a norma altera significativamente o regime de desconto da prisão preventiva. Na versão primitiva e na redação depois introduzida pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março (que acrescentou a referência à detenção e à obrigação de permanência na habitação), a norma limitava-se a consignar que «a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação, sofridas pelo arguido no processo em que vier a ser condenado, são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão que lhe for aplicada».
A atual redação passou a considerar a possibilidade de desconto no cômputo da pena de prisão ainda que as medidas de coação tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.
Deste modo, o legislador abandonou o critério da unidade do processo como requisito exclusivo do desconto, admitindo irrestritivamente a aplicação dessa medida processual, ainda que com um limite temporal, que se reporta à anterioridade do facto pelo qual o arguido foi condenado em relação à decisão final do processo no âmbito do qual a prisão preventiva foi aplicada (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 250).
Este último requisito não constava da Proposta de Lei nº 98/X, que deu origem à Lei n.º 59/2007, e foi aditado já no decurso do processo legislativo tendo sobretudo em vista salvaguardar os fins de prevenção geral das penas.
De facto, como se refere no acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 9/2011 (publicado no Diário da Republica DR, I Série, n.º 225, de 23 de novembro de 2011, «a limitação prevista no último inciso do artigo 80.º, n.º 1, de que só se desconte o tempo de privação de liberdade sofrido noutras causas por factos anteriores à decisão final do processo no âmbito do qual o arguido sofreu as medidas processuais privativas da liberdade tem o sentido de evitar o desconto do tempo de privação de liberdade anteriormente sofrido em processos por factos posteriores de forma a não gerar, em quem tivesse a seu favor um tempo de privação de liberdade sobrante, um crédito ou saldo positivo de tempo de privação de liberdade por conta de um futuro crime, o que poderia equivaler a uma compensação em pena futura como se de um convite a delinquir se tratasse. Desta forma, do que se trata é de evitar situações que repugnariam aos fins preventivos das penas».
Tratou-se por isso de afastar uma solução normativa que – como também esclarece Maia Gonçalves (Código Penal Português Anotado e Comentado, 18ª edição, Coimbra, págs. 317-318), «podia fornecer aos arguidos um somatório de antigas medidas processuais de coação a descontar em futuras condenações que obstariam ao cumprimento de penas que podiam até ser necessárias para a sua integração».
3. É à luz destas considerações que haverá de verificar-se se a norma do artigo do artigo 80º, n.º 1, do Código Penal viola, como vem alegado, o princípio da igualdade.
Conforme tem sido frequentemente afirmado, não cabe ao Tribunal Constitucional substituir-se ao legislador na avaliação da razoabilidade das medidas legislativas, formulando sobre elas um juízo positivo, e impondo a sua própria ideia do que seria, no caso, a solução razoável, justa e oportuna. O controlo do Tribunal é antes de caráter negativo, cumprindo-lhe tão-somente verificar se a solução legislativa se apresenta em absoluto intolerável ou inadmissível, de uma perspetiva jurídico-constitucional, por para ela se não encontrar qualquer fundamento intelígível.
Por outro lado, como foi salientado, ainda recentemente, no acórdão nº 166/10, na linha de anterior jurisprudência de idêntico sentido, «o princípio da igualdade, entendido como limite objetivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a adoção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objetiva e racional. Numa perspetiva sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio».
Ora, como se deixou já esclarecido, e melhor se explicita no já citado acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 9/2011, o segmento final da norma do n.º 1 do artigo 80º, ao estabelecer um limite temporal para o desconto de medidas processuais privativas de liberdade em processo diferente daquele em que essas medidas foram aplicadas – correspondendo esse limite à data da decisão final proferida no processo no âmbito do qual essas medidas foram aplicadas – tem uma finalidade precisa. Visa obstar a que o arguido que foi sujeito a medidas processuais privativas de liberdade num processo, no âmbito do qual não pôde proceder-se ao desconto das medidas processuais sofridas ou não pôde proceder-se ao desconto, por inteiro, das medidas processuais sofridas, «mantenha, a seu favor um tempo de privação de liberdade, que lhe possa vir a aproveitar, por via do desconto, na eventual condenação por crime futuro, ou seja, por crime praticado posteriormente à decisão final do processo em que sofreu tais medidas».
A ausência desse limite temporal poderia rendar, na prática, num incentivo à atividade delituosa, na medida em que o tempo de privação de liberdade que o arguido tivesse sofrido em processo que culminasse com a absolvição ou a não pronúncia seria descontado na pena de prisão em que viesse a ser condenado por qualquer outro ilícito penal em que incorresse em momento posterior.
Essa situação é muito diversa daquela outra – que o preceito pretende especialmente contemplar – em que a condenação se reporta a facto anterior à decisão de absolvição ou não pronúncia proferida em processo à ordem do qual o arguido sofreu medida cautelar de privação de liberdade. Neste caso, a privação de liberdade, tornada injusta por não comprovação dos factos que cautelarmente justificavam a medida de coação, poderá ser considerada no cômputo da pena de prisão em que o arguido tenha sido condenado, ainda que em processo diferente, como modo de reparar os danos que lhe foram infligidos com a aplicação dessa medida, sem que daí resulte uma qualquer consequência negativa no plano da prevenção geral das penas.
Tudo permite concluir que a solução legislativa em causa, contendo embora a referida distinção com base na anterioridade ou posteridade do facto que origina a condenação, não é desrazoável ou arbitrária, e surge antes fundamentada à luz de um critério inteligível ou racionalmente apreensível, que é congruente com valores constitucionalmente relevantes.
Tanto basta para concluir pela improcedência do recurso.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) não julgar inconstitucional a norma do artigo 80º, n.º 1, do Código Penal interpretada no sentido de que o desconto de pena aí previsto só opera em relação a penas de prisão em que o arguido seja condenado, quando o facto que originou a condenação tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no qual a medida de prisão preventiva foi aplicada;
b) consequentemente, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Lisboa, 26 de abril de 2012.- Carlos Fernandes Cadilha – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral – Gil Galvão.
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