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Processo n.º 45/11
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I.- Relatório
1. A., recorreu para a Relação do Porto do despacho proferido em 5 de março de 2010 no Tribunal Judicial de Espinho pelo qual, deferindo pedido formulado pelo exequente, o juiz ordenou a substituição da recorrente, enquanto agente de execução, pelo solicitador Rui Sá. A Relação do Porto negou provimento ao recurso, por acórdão de 18 de novembro de 2010, nos seguintes termos:
“ No recurso interposto não vem posto em causa o exercício do direito que a lei confere ao exequente de substituir livremente o agente de execução – como refere expressamente a apelante na sua alegação de recurso –, mas tão-somente a inconstitucionalidade material da norma – nº 6 do Artº 808º – que, em sua opinião, interpretada literalmente como fez o Tribunal recorrido, viola os referidos preceitos constitucionais, “já que ofende os seus direitos pessoais de natureza profissional, assim como ofende a integridade de um sistema judicial de execução das decisões judiciais e de outros títulos executivos de que a própria Recorrente faz parte integrante” – (Sic).
São as seguintes as normas (legais e constitucionais) em causa:
Artº 808º nº 6 do CPC: - O agente de execução pode ser livremente substituído pelo exequente ou, com fundamento em atuação processual dolosa ou negligente ou em violação grave de dever que lhe seja imposto pelo respetivo estatuto, destituído pelo órgão com competência disciplinar sobre os agentes de execução.
Artº 20º nº 4 da CRP: - Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
Artº 202º nº 2 da CRP: - Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.
Artº 203º da CRP: - Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei.
A questão é agora a de saber se a norma legal ínsita no CPC – nº 6 do Artº 808º –, viola algum ou alguns daqueles preceitos constitucionais.
A nossa resposta é desde já que tal norma legal não está ferida de inconstitucionalidade.
(…)
Sendo verdade que a lei confere aos Agentes de execução uma função de Oficial Público, a verdade é que, ao contrário do que parece entender a recorrente, o Agente de execução não exerce uma função jurisdicional no processo executivo, pois não é “Tribunal” enquanto órgão de soberania.
Tribunal, enquanto órgão de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, é apenas e tão-somente os Juízes (de quaisquer Tribunais), e os Jurados — Artºs 202º, 203º e 207º da CREP.
Todos os outros agentes e autoridades intervenientes (por qualquer forma) na administração da justiça, integrando ou podendo integrar a noção “lactu sensu” de Tribunal, não exercem qualquer função jurisdicional, a qual é reserva dos Juízes e Jurados.
Daí que o Agente de execução não é na ação executiva uma primeira instância de decisão, nem a lei o tratou como tal, como diz a recorrente, nem tal se pode inferir de na alínea c) do nº 1 do Artº 809º do CPC o legislador ter atribuído competência ao Juiz da causa para julgar, sem possibilidade de recurso, as reclamações de atos e impugnações de decisões do agente de execução, pelo simples facto de “as decisões do Agente de execução” não terem natureza jurisdicional, ou seja, não lhe caber “dizer o direito”, função que apenas cabe ao Tribunal/Juiz no interesse e defesa do cidadão.
A função decisória relativamente a determinados atos ou requerimentos das partes no processo executivo (e que podem ser objeto de reclamação ou impugnação para o Juiz da causa), sendo da competência do Agente de execução, não constituem verdadeiros julgamentos das questões cujo conhecimento lhes é submetido, pois não têm natureza jurisdicional.
Diz a recorrente, que os Agentes de execução devem, também eles, em primeira linha garantir a legalidade e o direito, em estrito cumprimento da lei, assegurando os direitos de uns em face dos direitos e interesses de outros.
Pois devem.
Mas, esse é um dever de todo e qualquer agente que exerça uma função de Oficial Público, e não do Agente de execução em particular, que nada tem a ver com a função jurisdicional do Tribunal.
Atrevemo-nos até a dizer, que esse é um dever de todas as entidades, públicas e privadas, e de todos os cidadãos que verdadeiramente exercem a cidadania.
Em conclusão, a reforma da ação executiva de 2008 operada pelo DL-226/2008 de 20 de novembro, aprofundou uma desjurisdicionalização do processo executivo em relação à reforma da ação executiva de 2003, mas nem desjudicializou a ação executiva, nem cometeu qualquer função jurisdicional ao Agente de execução.
Onde radica então “in casu”, no dizer da recorrente, a inconstitucionalidade da dita norma legal?
Alega a recorrente, que tal norma – nº 6 do Artº 808º do CPC –, ao permitir que o exequente possa livremente substituir o Agente de execução, e face a todos os poderes/deveres processuais do Agente de execução já acima enunciados e tratados, tal substituição colide com a independência necessária à boa prática da gestão dos processos, já que os Agentes de execução devem ser independentes e imparciais pela aplicação daqueles normativos constitucionais que impõem essa mesma independência e imparcialidade aos Tribunais.
Essa independência e imparcialidade fica em causa, no dizer da recorrente, porque ao poder substituir livremente o Agente de execução, o exequente passa a ter o mais completo e amplo poder sobre o processo, poder do qual o Agente de execução é obrigado a abdicar, por decair perante a mais elementar dependência – a económica –, já que é um profissional liberal (embora depositário de funções públicas), e que fiscal e comercialmente agem no mercado como verdadeiras empresas ou comerciantes, em concorrência aberta.
Essa limitação, como qualquer outra, na independência ou imparcialidade dos Agentes de execução, ofende a garantia do due process, e com isso ofende virtualmente os direitos de todos os executados.
Acrescenta que “... a imparcialidade e independência de quem tem a seu cargo a gestão do processo é claramente condenada com a possibilidade constante daquela disposição do CPC, inviabilizando, em abstrato, o exercício de funções públicas com o necessário afastamento e serenidade, essenciais à boa tramitação processual e à garantia dos direitos de todas as partes envolvidas – partes processuais e terceiros intervenientes (fiel depositário, encarregados de venda, credores reclamantes, devedores do executado, etc… e por isso viola os normativos constitucionais que impõem a independência e imparcialidade dos Tribunais (englobando estes os Agentes de Execução, como vimos já…”
Se assim fosse, como alega a recorrente, se os Agentes de execução, por razões de dependência económica decorrente do facto de poderem ser substituídos pelos exequentes, e para o não serem, perdessem a imparcialidade e independência a que estão vinculados na gestão do processo pela sua condição de Oficial Público, então bem poderíamos dizer que estávamos perante “razões de caráter” absolutamente incompatíveis com tais funções.
Restar-lhes-ia abdicar de as exercer.
Por outro lado, em parte, estaria explicado o público inêxito que com as ditas reformas tem sido a ação executiva, “cancro” nos nossos dias e nos últimos anos da boa administração da justiça.
Só que recusamos a ideia de que, a sua possível substituição num mero processo pelo exequente, seria passível de, por deixar de receber honorários nesse processo, levar o Agente de execução a favorecer ou prejudicar uma das partes processuais, abdicando da sua imparcialidade e independência, mesmo em abstrato.
Os valores da vida em sociedade vão sendo ultrajados, mas pensamos que ainda não chegou tão longe...
Concluímos, tal como o Snr. Juiz na decisão recorrida, que a circunstância de o agente de execução ser nomeado pelo exequente e por este poder ser substituído não obstaculiza a que o agente de execução proceda aos atos de execução em prazo razoável e mediante processo equitativo, não pondo, por isso, em causa a exigência constitucional de que “todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo” – cf. nº 4 do artigo 20º da CRP – .
Também que, apesar de o agente de execução ter uma função de oficial público, não exerce uma função jurisdicional, nem é o “tribunal” enquanto órgão de soberania, que importe apreciar à luz dos artigos 202º e 203º, da CRP.
Ainda e também que, tal circunstância não põe (nem pode pôr) em causa a independência e imparcialidade do Agente de execução no exercício de tais funções públicas.
Conclui-se assim pela não verificação da invocada inconstitucionalidade e pela improcedência da apelação”.
2. É deste aresto que A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC (Lei n.º 28/82 de 15 de novembro), pedindo a fiscalização da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 808º n.º 6 do Código de Processo Civil, por violação dos artigos 20º, 202º e 203º da Constituição.
3. Recebido o recurso, recorrente apresentou a sua alegação, concluindo do seguinte modo:
“A. O Decreto-Lei nº 226/2008 de 20 de novembro (diploma aprovado no uso da autorização legislativa concedida pela Lei nº 18/ 2008 de 21 de abril) operou a reforma da ação executiva.
B. No âmbito dessa reforma o legislador previu a possibilidade da livre substituição do agente de execução pelo exequente (art. 808º nº 6 do CPC) e a criação de uma Comissão para a Eficácia das Execuções (novos artigos 69º -B a 69º-F do Estatuto da Câmara dos Solicitadores), órgão com poder disciplinar sobre a atuação dos agentes de execução.
C. Embora o Agente de Execução se apresente como um misto de profissional liberal e oficial público, a natureza do seu estatuto é predominantemente pública pois ele exerce poderes de autoridade no âmbito do tribunal em que a ação decorre.
D. A natureza pública do seu estatuto decorre da função que lhe é atribuída de direção do processo, função anteriormente entregue ao juiz e às secretarias judiciais.
E. A Lei Fundamental estipula que incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados (nº 2 do art. 202º.) E isso há de ser feito por tribunais independentes (art. 203º) que garantem a todas as partes numa ação um processo equitativo (art. 20º nº 4)
F. Os tribunais são órgãos complexos que integram não apenas juízes mas também o Ministério Público e os funcionários judiciais.
G. A exigência de independência, imparcialidade, objetividade e isenção estende-se a todos os órgãos que integram esse conceito de tribunal.
H. Sendo os agentes de execução oficiais públicos a quem cabe a direção do processo executivo, processo no âmbito do qual eles exercem poderes de autoridade, também a eles lhe são aplicáveis as mesmas exigências.
I. A livre substituição do agente de execução, por discricionária e não fundamentada vontade do exequente, ainda para mais tendo em conta a supressão do poder geral de controlo do juiz e a cessação da dependência funcional face a ele, cria objetivamente condições para colocar o primeiro na dependência do segundo.
J. Nessa medida essa solução põe em causa a independência, objetividade, imparcialidade e isenção que deve pautar a atuação do agente de execução, entrando em conflito com as normas constitucionais.
K. É assim inconstitucional a norma do nº 6 do art. 808.º do CPC que estabelece, em favor do exequente, a possibilidade livre e infundamentada de substituição do agente de execução.
Termos em que se conclui pela procedência do presente recurso e por via dele se pede a declaração da inconstitucionalidade do art. 808.º nº 6 do Código de Processo Civil na parte em que estatui a possibilidade, sem qualquer fundamento, da substituição pelo exequente, do agente de execução nomeado na ação executiva, por violação dos art. 20.º, 202.º e 203.º da Constituição da República Portuguesa”.
4. O exequente aqui recorrido não apresentou contra-alegação.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentação
5. A norma objeto do presente recurso é a que se extrai do artigo 808º n.º 6 do Código de Processo Civil, na parte em que estatui a possibilidade de substituição livre do agente de execução nomeado na ação executiva, apresentando a seguinte redação:
Artigo 808.º
Agente de execução
(…)
6 - O agente de execução pode ser livremente substituído pelo exequente ou, com fundamento em atuação processual dolosa ou negligente ou em violação grave de dever que lhe seja imposto pelo respetivo estatuto, destituído pelo órgão com competência disciplinar sobre os agentes de execução.
A recorrente alega que a norma é inconstitucional por violação dos artigos 20.º, 202.º e 203.º da Constituição. Invoca, para tal, que a norma em causa, ao permitir que o exequente possa livremente substituir o agente de execução, colide com a independência necessária à boa prática da gestão dos processos, já que os agentes de execução devem ser independentes e imparciais na aplicação daqueles normativos constitucionais.
6. A figura do agente de execução foi instituída na reforma da ação executiva decorrente da aprovação do Decreto-lei n.º 38/2003 de 8 de março. Segundo o preâmbulo do diploma, na base da sua criação está o propósito de acabar com a excessiva jurisdicionalização do processo, entregando ao agente de execução “a iniciativa e prática dos atos necessários à realização da função executiva, a fim de libertar o juiz das tarefas processuais que não envolvem uma função jurisdicional, e os funcionários judiciais de tarefas a praticar fora do tribunal”. Tais funções foram preferencialmente atribuídas aos solicitadores de execução (artigo 808.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), ou seja aos solicitadores que reunissem os requisitos exigidos pelo artigo 117.º, do Estatuto da Câmara dos Solicitadores (E.C.S.), pois apenas no caso de não haver solicitador de execução inscrito no círculo judicial, ou sendo impossível nomear um desses solicitadores, é que as funções de agente de execução poderiam ser exercidas por um oficial de justiça (artigo 808.º, n.º 2, parte final, do CPC na versão do no Decreto-lei n.º 38/2003). Como referia o então artigo 116.º, do E.C.S., “o solicitador de execução é o solicitador que, sob fiscalização da Câmara e na dependência funcional do juiz da causa, exerce as competências específicas de agente de execução e as demais funções que lhe forem atribuídas por lei”. Tendo o seu estatuto específico definido no E.C.S., estava sujeito, quer na sua atuação de solicitador, quer enquanto agente de execução, à ação fiscalizadora dos órgãos da Câmara de Solicitadores, encontrando-se, nomeadamente, sob o seu poder disciplinar.
A reforma concretizada pelo Decreto-lei n.º 38/2003 de 8 de março foi impulsionada pela urgente necessidade de rever o sistema de processo executivo, até então marcadamente jurisdicionalizado, o que entravava o efetivo cumprimento do dever de suum cuique tribuere.
Conforme escreveu, a este propósito, José Lebre de Freitas (Agente de execução e Poder Jurisdicional, Themis, Ano IV, n.º 7, 2003: p. 19), 'O desenvolvimento vertiginoso das relações económicas, o esvaziamento dos valores sociais tradicionais, o exacerbamento do liberalismo, o aumento da conflitualidade e o acréscimo de facilidade na deslocação dos bens têm levado, um pouco por toda a parte, à progressiva generalização de comportamentos de fuga ao cumprimento das obrigações jurídicas e a situações de grave estrangulamento do aparelho estadual competente para a execução forçada. Consequentemente, um pouco por toda a parte, preocupam-se, ou fingem preocupar-se, os Governos em erguer barreiras e encontrar soluções para a crescente dissolução da garantia do direito em pântanos de progressiva ineficácia. A década de 90 e o início do século XXI assistiram a um renovar do interesse (pragmático e também científico) pelo processo de execução e pelos institutos que com ele se relacionam: vários países europeus, com a França em primeiro lugar, empreenderam importantes reformas do direito processual executivo; noutros, como a Itália, têm-se sucedido os projetos de reforma, finalmente em vias de passar à forma de lei; no plano da União Europeia, a revisão da Convenção de Bruxelas Relativa à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, de 27.9.68, finalmente substituída pelo Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22.12.2000, teve como um dos seus pivots o aligeiramento do procedimento de exequatur, no mesmo plano, estuda-se a instituição dum título executivo europeu e tenta-se a harmonização dos regimes da penhora dos depósitos bancários.'
Em consequência, o processo de execução saiu da direção do juiz em tudo o que não fosse estritamente ligado à garantia de direitos fundamentais, e passou a ser dirigido pelo agente de execução. Conforme dizia o citado Autor (ob. cit.), 'o exequente designa o solicitador de execução na petição executiva (art. 810-3-e); mas a indicação não é vinculativa, pois carece de aceitação do designado, na própria petição ou em requerimento avulso apresentado nos 5 dias subsequentes (art. 810-6); se a designação não for feita pelo exequente ou o solicitador não a aceitar, fá-la-á a secretaria por escala (art. 811-A). Dir-se-ia que, no primeiro caso, nos encontramos perante um contrato de prestação de serviços de direito privado, semelhante ao estabelecido entre a parte e o mandatário judicial, tendo em conta que é o exequente quem paga os serviços do solicitador (embora no final eles entrem em regra de custas: art. 455); mas o exequente não tem o poder de denunciar o contrato, só o juiz podendo destituir o solicitador designado, por atuação processual dolosa ou negligente ou violação grave do dever imposto pelo respetivo estatuto (art. 808-4), o que o descaracteriza como figura de direito privado. Acresce que o solicitador de execução está sujeito a um regime de impedimentos, como os juízes, os peritos e os funcionários da secretaria (art. 121 do Estatuto da Câmara dos Solicitadores), e a algumas incompatibilidades (art. 120 do mesmo estatuto). Por outro lado, praticando, como se viu, atos executivos, exerce poderes de autoridade; por isso, o solicitador de execução pode promover a realização de diligências por empregado ao seu serviço, credenciado pela Câmara dos Solicitadores, mas não quando se trate de penhora, venda, pagamento ou outro ato de natureza executiva (art. 808-6), pois os poderes de autoridade que a lei lhe atribui não são delegáveis, a não ser em outro agente de execução para diligências a efetuar fora da área da comarca e suas limítrofes ou da área metropolitana de Lisboa e Porto (art. 808-5)'.
Importa, assim, fazer notar que, nesta versão inicial, o agente de execução é preferencialmente escolhido pelo exequente e que a sua destituição cabia ao juiz da execução, oficiosamente ou a requerimento do exequente, em razão de atuação processual dolosa ou negligente ou violação grave dos deveres estatutários.
7. Em 15 de janeiro de 2008 o Governo apresentou à Assembleia da República uma Proposta de Lei (n.º 176/X) que visava obter autorização legislativa para aprovar medidas destinadas a 'aperfeiçoar' o modelo adotado pela “Reforma da ação executiva”. Entre as novas medidas propunha-se o reforço do papel do agente de execução na tramitação das ações executivas. No exercício da subsequente autorização legislativa, o Governo aprovou o Decreto-Lei n.º 226/2008 de 20 de novembro, que procedeu a nova reforma do regime da ação executiva em processo civil, com o objetivo de “tornar as execuções mais simples e eliminar formalidades processuais desnecessárias”, como se lê no preâmbulo do diploma. Na prática, esta opção legislativa conduziu a uma redistribuição das competências funcionais entre os órgãos da execução, traduzida no reforço da posição do agente de execução e na correspondente diminuição do papel do juiz de execução. Ao agente de execução foi atribuído o poder de direção do processo executivo, tal como resultou da redação dada ao artigo 808º n.º 1 CPC, ao estabelecer que cabe ao agente de execução efetuar todas as diligências de execução, sendo genericamente reforçados os seus poderes processuais. Eliminou-se então a menção, feita anteriormente pelo n.º 1 do artigo 809º do CPC, de que ao juiz cabia “um poder geral de controlo do processo”. O poder de controlo exercido pelo juiz passou a ter de ser solicitado pelo interessado, sendo desempenhado caso a caso, de modo meramente “cassatório”, uma vez que o juiz se limita a controlar o ato ou a decisão do agente de execução, sem se substituir na realização do ato ou da tomada da decisão. Na formulação de Miguel Teixeira de Sousa, pode dizer-se, enfim, que “o agente de execução é o órgão ao qual incumbe a condução do processo executivo e o juiz de execução torna-se o “juiz dos incidentes” desse processo” (A Reforma da Ação Executiva, Lex, Lisboa, 2004, p. 16).
Após a reforma de 2008 os poderes de supervisão e controlo do juiz sobre o agente de execução foram atenuados; foi eliminada a possibilidade de o solicitador de execução ser destituído oficiosamente pelo juiz de execução. Por seu turno, foi alterado o artigo 116.º do Estatuto da Câmara dos Solicitadores, onde se dispunha que o solicitador atua na dependência funcional do juiz de execução, passando a atuação do agente de execução a ser feita exclusivamente sob fiscalização da Comissão para a Eficácia das Execuções. Em suma, após a reforma operada pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro, a atividade do agente de execução tornou-se mais independente do controlo do juiz.
8. É no contexto dessa reforma que surge a norma objeto do presente recurso, que veio prever a possibilidade da livre substituição do agente de execução pelo exequente. Considera a recorrente que essa norma coloca em causa a independência e imparcialidade dos tribunais.
O princípio da imparcialidade dos tribunais decorre desde logo dos artigos 202.º e 203.º da Constituição, que estabelecem as garantias da função jurisdicional e da independência dos tribunais, e ainda do artigo 20.º da Constituição, que garante o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, o que implica o direito de acesso a um órgão independente e imparcial de resolução de conflitos e de administração da justiça (Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2005, p. 186). Cabe aqui afirmar esta dupla dimensão da imparcialidade imposta aos tribunais, que se decompõe na exigência de um processo justo e na equidistância dos agentes que intervêm na administração da justiça.
A imparcialidade de que falam estas normas constitucionais reporta-se, portanto, à atividade jurisdicional, visando caracterizar a atuação dos juízes e o poder dos tribunais. Acontece que o agente de execução não exerce nem participa na função jurisdicional, e não integra o “tribunal” enquanto órgão de soberania, sendo-lhe consequentemente inaplicável o acervo de garantias que vinculam a função jurisdicional. Por outro lado, é bem certo que o processo executivo não perdeu equitatividade com a criação do solicitador de execução, visto que esta figura não interfere nos poderes processuais das partes envolvidas, no equilíbrio do exercício desses poderes, ou na possibilidade de acesso ao juiz nos casos em que tal é autorizado.
É certo que a exigência de imparcialidade do funcionamento dos órgãos judiciários não se basta com as exigências impostas ao estrito exercício da função jurisdicional, uma vez que a atividade das autoridades públicas está genericamente vinculada à prossecução do interesse público, impondo-se-lhes que atuem 'com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé' (artigo 266º n.º 2 da Constituição). Ora, sendo certo que o solicitador de execução exerce funções próprias de oficial público (José Lebre de Freitas, “Agente de Execução e Poder Jurisdicional”, Themis, Ano IV, n.º 7, 2003, p. 26; Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, Almedina, 2010, p. 140; Miguel Teixeira de Sousa, “Novas tendências de desjudicialização na ação executiva: o agente de execução como órgão da execução”, Cadernos de Direito Privado, n.º 1, dezembro de 2010, p. 8), a verdade é que as exerce episodicamente e como profissional liberal.
A competência que é atribuída ao agente de execução no processo executivo – incluindo a prática de atos fundamentais como a penhora, a venda e o pagamento – não põe em causa a exclusividade do exercício da função jurisdicional pelos tribunais, razão pela qual o juiz de execução deve intervir sempre que haja de resolver um conflito de interesses entre as partes da execução, ou entre estas e terceiros. Nas impressivas palavras de Miguel Teixeira de Sousa, “enquanto o agente de execução executa mas não decide, o juiz de execução decide mas não executa”. Da enunciação dos atos processuais em relação aos quais o juiz possui competência exclusiva (v.g., julgamento da oposição à execução e à penhora, verificação e graduação dos créditos reclamados, nos termos do artigo 809º n.º 1 do CPC), retira-se que a imparcialidade do órgão – o tribunal – se mostra garantida pela atividade do juiz, e não depende da atuação do agente de execução. A este está reservada uma outra função: a de tornar efetivo o crédito do exequente. Trata-se, portanto, de uma atuação que se justifica pelo interesse em dar pronta satisfação ao crédito do exequente, sendo exercida por profissional liberal, sujeito a um especial estatuto profissional de caráter público – fixado por lei – que lhe impõe um comportamento lícito, isento, e protegido por segredo profissional (artigos 109º, 110º, 114º e 115º E.C.S.).
9. As exigências que caracterizam a atividade dos agentes de execução são salvaguardadas pelas regras de deontologia profissional que os vinculam, constantes do seu Estatuto. Com efeito, o Estatuto da Câmara dos Solicitadores preocupa-se em estabelecer garantias de isenção do trabalho do agente de execução. O exercício de funções de agente de execução é incompatível com outras funções (artigo 120º do E.C.S.), e o agente de execução está sujeito ao regime estabelecido no CPC no que toca aos impedimentos e suspeições dos funcionários da secretaria (artigo 121º n.º 1). Por outro lado, nos termos do artigo 121º n.º 2 alínea a) do E.C.S. o agente de execução não pode exercer as suas funções quando haja participado na obtenção do título que serve de base à execução e quando tenha representado judicialmente alguma das partes nos últimos dois anos (alínea b)). Visa-se com isso, como refere Miguel Teixeira de Sousa, “evitar (…) colocar em perigo a independência e a imparcialidade da sua atuação na execução” (A Reforma… cit., p. 54). Por outro lado, nos termos do artigo 115º n.º 2 do E.C.S., o solicitador de execução está impedido de exercer o mandato judicial, em representação do exequente ou do executado, durante três anos contados a partir da extinção do processo de execução.
São regras que demonstram, afinal, que o legislador pretendeu dignificar profissionalmente a atividade do solicitador de execução, garantindo-lhe um mínimo de independência face aos interesses que defende no processo, o que se mostra suficiente para afastar os receios que a norma objeto do presente recurso suscita à recorrente. O que, obviamente, o Estatuto não poderá prever é a total independência do solicitador de execução face à atividade que justifica, afinal, a existência da figura e que é, conforme se viu já, o interesse em dar pronta satisfação ao crédito do exequente.
Desta forma, a norma entrega a avaliação da eficácia da atuação do solicitador de execução a quem melhor a pode aferir, e que é, precisamente, o principal interessado na tramitação célere e eficaz da execução: o exequente.
Assim, para além de ser nomeado pelo exequente, o agente de execução pode ser livremente destituído sem ser necessário invocar qualquer fundamento específico para esse efeito, e esse poder de destituição livre do solicitador de execução aproxima-o de uma relação de direito privado de mandato; a introdução da possibilidade de destituição livre do agente de execução pelo exequente veio, afinal, impor a este órgão do processo executivo que atue em sintonia com o interesse do exequente, o que nada tem de constitucionalmente reprovável, tanto mais que, como consequência do seu caráter de profissional liberal, a remuneração que o agente de execução aufere é aquela que respeitar os serviços prestados.
Nestes termos, haverá que concluir que a norma objeto do presente recurso, que permite que o agente de execução pode ser livremente substituído pelo exequente, não põe em causa, para além do admissível, a independência e a imparcialidade que se mostram exigíveis ao agente de execução.
Não se mostram, enfim, violadas as normas constitucionais por ela invocadas.
III. Decisão
10. Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso. Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 24 de abril de 2012.- Carlos Pamplona de Oliveira – Maria João Antunes – Gil Galvão – Rui Manuel Moura Ramos.
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