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Processo n.º 136/12
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Por decisão instrutória proferida em 15 de julho de 2011 no Tribunal da Comarca do Baixo Vouga, foi o recorrente A. indiciado pela prática de um crime de homicídio simples, p. e p. pelo artigo 131º e n.º 1 do Código Penal, e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pela alínea c) do n.º 1 do artigo 86º da Lei n.º 5/2006 de 23 de fevereiro. O representante do Ministério Público naquele tribunal, discordando da decisão na parte relativa aos factos provados, que levaram à qualificação como homicídio simples da conduta em causa, interpôs recurso do despacho de pronúncia, sustentando:
“ O arguido A. foi acusado pelo Ministério Público pela autoria de factos que foram subsumidos ao crime de homicídio qualificado.
Realizada a instrução foi proferida decisão de pronúncia, tendo-se concluído que os factos levados a cabo pelo arguido são subsumíveis ao crime de homicídio simples, em concurso com um crime de detenção de arma proibida.
A decisão instrutória não aderiu à matéria de facto constante do libelo acusatório, tendo introduzido alterações, resultante da prova recolhida em sede de instrução.
Contudo, não pode deixar de se discordar de parte da matéria de facto dada por apurada em sede de instrução, designadamente no que concerne aos fundamentos para a atuação do arguido e que levaram à qualificação como homicídio simples da conduta nem causa (…)”.
O arguido respondeu ao recurso e concluiu:
“- O presente recurso não é admissível, por força do disposto no art. 310, n.º 1, do CPP, na interpretação que desse preceito atrás se acha feita, pelo que o recurso deve ser rejeitado, nos termos do disposto no art. 414, nº 2, daquele mesmo Diploma Legal.
- Se porventura assim se não entendesse – o que apenas por mera hipótese abstrata de dever de patrocínio se invoca – então sempre teria que ser-lhe negado provimento porquanto são falsos e inócuos os elementos nele apontados, sem cumprimento aliás do disposto no art. 412, n.ºs 3 e 4 do CPP, aqui a aplicar analogicamente.
- E absolutamente incompatíveis com a situação apurada de o agente ter agido debaixo de compreensível emoção violenta, em resposta a estímulo adequado a provocar a agressão.
Deve ser rejeitado o recurso, por legalmente inadmissível, ou, se assim porventura se não entendesse, sempre se deve negar-lhe provimento”.
No tribunal de 1ª instância, o recurso foi admitido por despacho do seguinte teor:
“Nos termos do disposto no artigo 399º do CPP pode recorrer-se das decisões cuja irrecorribilidade não estiver prevista na Lei.
No caso em análise o recurso do MP (cuja admissibilidade o arguido atacou) vem interposto do despacho de pronúncia constante de fls.2464 e seguintes.
A irrecorribilidade do despacho de pronúncia está prevista expressamente quanto à decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do MP – art.310 nº 1 do CPP.
Destes normativos resultam duas conclusões:
- é irrecorrível a decisão instrutória quanto à mera qualificação jurídica dos factos, isto é, a decisão instrutória que, pronunciando o arguido pelos factos constantes da acusação (considerando-os, pois, todos suficientemente indiciados) se limita a alterar a qualificação jurídica dos mesmos;
- é recorrível a decisão instrutória na parte em que não pronuncia o arguido por factos constantes da acusação mas que foram considerados como não suficientemente indiciados.
E bem se compreende que assim seja.
- por um lado, a qualificação jurídica seguida na acusação (como, aliás, na pronúncia e, em certo sentido mesmo na sentença proferida em 1.ª instância) não são vinculativas pois que podem ser alteradas desde que cumprido o disposto nos artigos 303º nº 5 e 358 nº 3 do CPP;
- por outro lado a negação do recurso ao MP em caso de não pronúncia quanto a certos factos constantes da acusação violaria o principio do duplo grau de jurisdição.
Atentas as conclusões formuladas no recurso em causa resulta que, por um lado, o MP pretende fazer valer certa qualificação jurídica dos factos descritos na pronúncia, factos esses que estavam já vertidos na acusação. Nesta parte a decisão não é, como se viu, recorrível.
Só que também está abrangido pelo objeto do recurso um facto constante da acusação que se deu na pronúncia como não indiciado. Efetivamente, conclui-se no recurso (13.ª cls.) que deverá passar a constar da pronúncia que «o arguido decidiu, logo após a primeira visita levar para a segunda visita uma arma de fogo de defesa pessoal. ». Tal facto constava da acusação (artigo 6º) e foi dado como não indiciado na decisão instrutória (3º parágrafo do ponto 1 8 a fls.2466).
Face ao exposto deve concluir-se pela admissibilidade do recurso interposto no MP na parte (mas só nessa parte) em que impugna a decisão de não considerar como suficientemente indiciado o referido facto constante da acusação.
As restantes questões suscitadas pelo arguido quanto ao não cumprimento pelo MP do disposto no art.412 n.ºs 3 e 4 não são questões que obstem à admissibilidade do recurso e não cabe a este tribunal pronunciar-se (art. 414º nº 2 e 417º nº 3 do CPP).
Assim, admite-se o recurso interposto pelo MP.
O recurso sobe nos próprios autos, imediatamente e tem efeito suspensivo do processo — arts. 406º n.º 1 (interpretando-se esta norma como se referindo a cada fase do processo, 407º nº 2 alínea i) e 408º nº 1 b) do CPP”.
O arguido, notificado deste despacho, veio aos autos dizer o seguinte:
A., arguido nos autos acima referenciados em que é recorrente o MP, tendo sido notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 417, n.º 2, do CPP, vem dizer o seguinte:
1. Veio o MP, através de douta motivação, interpor recurso do douto despacho de pronúncia, a que o arguido respondeu, pugnando pela sua inadmissibilidade legal e, subsidiariamente, pela sua improcedência (cfr. resposta remetida ajuízo em 19.08.2011);
2. Por douto despacho de 1.09.2011, proferido depois da apresentação da resposta recursória apresentada pelo arguido, veio tal recurso a ser admitido apenas em relação a um facto constante da conclusão 13ª daquela douta motivação — cfr. teor do douto despacho de admissão;
3. O objeto do recurso, assim admitido, passou pois a ser constituído pela pretensão do MP de ver mantido na acusação um facto que não se deu por indiciado e que constava anteriormente do art.º 6.º do libelo acusatório;
4. Tal facto mereceu o repúdio da pronúncia com base nas razões apontadas pela decisão instrutória a fls. 2466, ponto 1B, 3.º parágrafo, conforme fez expressamente assinalar o douto despacho de admissão do recurso;
5. Aí se fez consignar que, pela prova produzida em instrução, ficou claramente demonstrado e afastado que “o arguido tenha decidido, após esta primeira visita àquele local, levar para a segunda visita uma arma de fogo de defesa pessoal e que o tenha feito em execução do seu desígnio anteriormente formulado de matar a vítima, projetando utilizá-la, se as circunstâncias o permitissem, para alvejar a vítima” , que era o que constava da 1.ª parte do art.º 6.º do libelo acusatório;
6. Como também no mesmo despacho ficou claramente demonstrado e afastado que a vítima nutrisse quaisquer sentimentos de ódio e desprezo pela vítima, que era o que constava da 2.ª parte do art.º 6.º do mesmo libelo acusatório;
7. A fundamentação do afastamento de tais factos foi dada pela decisão instrutória (págs. 6/7), do modo seguinte:
a) quanto aos sentimentos de ódio e desprezo por parte do arguido, por se ter provado exatamente o contrário;
b) o facto de o arguido ter levado uma arma não significa, por si só, que tivesse previamente tomado a resolução de matar, sobretudo quando existia um conflito aberto com a vítima e o arguido receava que pudesse ser alvo por aquele de agressões físicas;
8. Tal realidade resulta aliás com granítica evidência não só da dinâmica dos factos, mas sobretudo do depoimento das testemunhas ouvidas em instrução cujos depoimentos, referenciados no respetivo suporte digital, se encontram referenciados na resposta à motivação e cujo teor aqui se dá como inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais;
9. Vem agora o representante do MP neste Tribunal da Relação, em seguimento do douto despacho de admissão de recurso, promover que este Venerando Tribunal determine que se introduza na pronúncia, se bem entendemos, “a data da decisão e a inexistência de motivo para tal comportamento”.
10. Pretendendo tal inclusão com base num passo mágico e inventivo, em desrespeito absoluto por tudo quanto se demonstrou em instrução, clara e inequivocamente
11. Se não for ao arrepio de tudo quanto se apurou em instrução, como podemos qualificar, a expressão “e o mais lógico (?!) é que esse desígnio se tenha formado na anterior visita “, embora se desconheça “qual a razão que formulou tal desígnio “?
Ou, se não for por desrespeito absoluto pela matéria fáctica apurada, como poderemos conceber a expressão “pois não vem descrito qualquer facto posterior que o potencie”?
12. Designadamente, quando se sabe, por apuramento da decisão instrutória
a) que a perigosidade da vítima tinha obrigado a própria família a requerer o seu internamento compulsivo (art.º 54 do RAI recolhido nos factos indiciados da decisão instrutória);
b) que o arguido se vira ameaçado pela vítima (art.º 62 do RAI recolhido nos factos indiciados da decisão instrutória);
c) que a vítima sofria de grave perturbação do foro psiquiátrico caracterizada por perturbação delirante de tipo persecutório e perturbação paranoide de personalidade (art.º 85 do RAI recolhido nos factos indiciados da decisão instrutória);
d) que o arguido, após os distúrbios e agressões praticados pela vítima em S.ta Maria da Feira, passou a pedir a amigos e familiares que verificassem se a vítima não trazia arma aquando das visitas a sua casa (art.º 88 do RAI recolhido nos factos indiciados da decisão instrutória);
e) que, por isso, no dia dos acontecimentos, o arguido transportava consigo o revólver identificado nos autos, como instrumento de defesa e dissuasão de qualquer ataque de que porventura fosse vítima por parte da vítima (art.º 89 do RAI dado como indiciado na decisão instrutória).
É óbvio que toda esta matéria dada como indiciada, com particular realce para a matéria indicada na última das alíneas imediatamente atrás elencadas, esclarece qual a razão por que o arguido, no dia dos acontecimentos, transportava consigo a arma, que aliás contraria direta e perentoriamente a pretensão inventiva do representante do MP atrás analisada.
Termos em que encontrando-se evidentemente indicadas as razões ou motivos que levaram o arguido a transportar a arma consigo, não contrariados por nada, não pode a infundamentada e fantasista pretensão do MP proceder a título algum.
Interpretação que se quisesse ver no art.º 308, n.ºs 1 e 2, do CPP, como o recorrente pretende, embora por aplicação implícita, a possibilidade de serem incluídos no despacho de pronúncia factos contrariados em instrução e incompatíveis com outros factos dados como indiciados na decisão instrutória proferida, fariam padecer aqueles preceitos de grave vício de inconstitucionalidade material, que aqui expressamente se invoca, por violação das garantias criminais do arguido em processo penal consignadas no art.º 32, n.º 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.
Conclui-se, pois, pela inadmissibilidade do recurso, com base nas razões apresentadas na resposta; subsidiariamente pela improcedência, com base nas razões ali e aqui apresentadas, incluindo a inconstitucionalidade material albergada na motivação e no parecer do MP.
Por acórdão de 26 de outubro de 2011a Relação de Coimbra julgou parcialmente procedente o recurso. No que aqui interessa fazer notar, disse a Relação:
“[...] Qualificação jurídica dos factos:
Recorre-se do despacho de instrução que pronunciou o arguido e não do despacho de sustentação.
Assim, que é irrelevante, em termos de caso julgado, o facto de neste se referir que “é irrecorrível a decisão instrutória quanto à mera qualificação jurídica dos factos, isto é, a decisão instrutória que, pronunciando o arguido pelos factos constantes da acusação (considerando-os, pois, todos suficientemente indiciados) se limita a alterar a qualificação jurídica dos mesmos” até porque não foram indiciados todos os factos da acusação.
E, a “última palavra sobre estas questões, atenta a sua natureza, deve caber sempre ao juiz de julgamento (ou, eventualmente, de recurso)” – Prof. Nuno Brandão, “A Nova Face da Instrução” in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 18, pág. 239.
Assim como não tem razão o arguido quando na resposta após notificação nos termos do art. 417 nº 2 do CPP vem dizer que o recurso foi admitido “apenas em relação a um facto constante da conclusão 13 da motivação.
Como se constata o juiz elaborou despacho nos termos do art. 414, n.º 4 do CPP, em sustentação da sua decisão.
Depois é que recebeu o recurso sem qualquer restrição, como se pode constatar no despacho supra transcrito.
Recebido o recurso e, nesta Relação motivos não se vislumbraram para que o não fosse (art. 414 n.º 2 do CPP), há que o analisar em todas as suas vertentes (a não ser que a análise de uma das questões fosse prejudicial do conhecimento de outra ou outras).
Se apenas estivesse em análise a qualificação dos factos entenderíamos como sustentado naquele despacho, não haveria lugar a recurso, porque era possível em julgamento qualificarem-se os factos de maneira diferente, mediante o cumprimento do estatuído no art. 358, ex vi no 3 do mesmo preceito, do CPP.
Isto apesar de entendermos que a qualificação do crime corresponde a uma alteração substancial dos factos, segundo o conceito vertido no art. 1, al. f), do CPP, que define como “«alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.
Trata-se de uma alteração substancial em que para a mesma ser possível e válida basta dar cumprimento ao estatuído no art. 358 do CPP, por força do estatuído no seu nº 3.
Mas recebido o recurso e analisando-o em todas as suas vertentes há que averiguar a questão da qualificação jurídica dos factos, pelos quais o arguido foi pronunciado.[...]”.
Notificado, o arguido reclamou; arguiu a nulidade do acórdão, concluindo:
a) o requerente argui assim a nulidade do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26.10.1 1, tendo como relator o IlImo Desembargador Fernando Jorge Dias e referente ao supra referenciado processo n.º 40/11.4JAAVR.C 1 (ref.ª 3656367), por, com base nas razões atrás expostas, que se dão aqui como reproduzidas, ter conhecido de questão que lhe estava vedada por força de despacho judicial não impugnado, ao qual devia obediência (art.º 379, n.º 1, alínea e), in fine, do CPP ex vi do art.º 425, n.º 4, daquele Diploma Legal) e também porque qualificou mais gravosamente os mesmos factos, constantes da pronúncia, quando tal qualificação, nesta fase e até ao julgamento, é definida, por força da lei, pelo Juiz de Instrução (art.º 379, n.º 1, alínea b) do CPP ex vi da interpretação conjugada do disposto no art.º 310, n.º 1 e 358, n.º 3, ambos do CPP);
b) o recorrente argui também, pelas razões atrás expostas, que aqui se dão igualmente por reproduzidas, a inconstitucionalidade material dos art.ºs 310 n.º 1,405, n.º 1,414, n.ºs 1 a 4, 416, n.º 1,417, n.ºs 2, 6, alíneas a), b) e d) e 420, n.º 1, alínea b), todos do CPP, e, reflexamente, dos art.ºs 131, n.º 1 e 132, n.ºs 1 e 2, alíneas e) e j) do CP, na interpretação concreta e conjugada que deles fez o Acórdão ora impugnado, atrás exposta e aqui dada como reproduzida, por violação dos princípios constitucionais das garantias de defesa do arguido em processo penal, da confiança na estabilidade das decisões judiciais, da boa fé e da segurança jurídica, e do princípio do acusatório e do direito ao contraditório, presentes designadamente nos art.ºs 2, 29, n.º 5 e 32, n.ºs 1 e 5, da CRP.
Termos em que se requer seja declarada a nulidade do Acórdão impugnado, com os devidos efeitos legais.
Por acórdão de 9 de janeiro de 2012, a Relação de Coimbra julgou improcedente a reclamação, nos seguintes termos:
“[...] Entende o impugnante que não se devia ter tomado conhecimento da parte do recurso em que se insurgia contra a qualificação jurídica dos factos.
É diferente o nosso entendimento e, como no acórdão expressamos, “Recebido o recurso e, nesta Relação motivos não se vislumbraram para que o não fosse (art. 414 nº 2 do CPP), há que o analisar em todas as suas vertentes (a não ser que a análise de uma das questões fosse prejudicial do conhecimento de outra ou outras)”.
E, o despacho de pronúncia (recorrido) não faz caso julgado, nem quanto à matéria de facto, nem quanto à matéria de direito, porque se fizesse, desnecessário era o julgamento, bastando apurar os elementos necessários à determinação da medida da pena e aplicar esta.
Assim como o não faz o acórdão impugnado. O que em definitivo fixará os factos e a qualificação jurídica dos mesmos é a decisão transitada que resultar após decurso da audiência de julgamento.
Temos que o entendimento mais plausível do estatuído no art. 310 do CPP e, nesse sentido se deve entender o despacho de recebimento do recurso é o de que, se o recurso visasse apenas matéria de qualificação jurídica dos factos, o mesmo seria inadmissível (matéria irrecorrível).
Mas, sendo admissível o recurso, por haver fundamento para ser recebido, já é possível conhecer também da qualificação jurídica dos factos, pois que a tal apreciação e conhecimento não se opõe o referido art. 310 do CPP.
Ou seja, recebido o recurso, inexistindo norma que restrinja ao seu conhecimento, são as conclusões do mesmo que delimitam o seu objeto.
A seguir o entendimento do impugnante, o recurso parcial (na parte em que entende poderia ser recebido) não teria qualquer efeito útil mesmo que procedesse, porque entende que ainda que se alterasse a matéria de facto não se poderia alterar a qualificação jurídica porque entende estaria fixada em definitivo (no despacho recorrido) e sobre tal matéria, em seu entender, não foi admitido o recurso.
Se da norma do art. 310 do CPP resulta que, havendo um juízo de concordância entre o M.P. e o Juiz de Instrução quanto à relevância criminal dos factos imputados ao arguido, em termos de se justificar a sua sujeição a julgamento, não faria sentido, do ponto de vista da desejada celeridade processual, admitir ainda um recurso para confirmação dessa opção também, terá de se entender que a mesma celeridade processual que esteve na génese do preceito permite conhecer da qualificação jurídica em recurso, no caso de este ter sido admitido com outros fundamentos.
Assim que se entenda não se ter tomado conhecimento de matéria que estava vedado conhecer, pois que o fim último pretendido com a interposição do recurso era a alteração da qualificação jurídica dos factos, o que o arguido bem entendeu e sobre tal matéria se defendeu, como consta da resposta à motivação do recurso, onde refere que o Mº Pº no recurso vem, “e, em consonância, pugnar pela qualificação jurídica do crime de homicídio qualificado pelos arts. 132 nº 1 e 2 do CP.
Sendo que um dos itens da resposta do arguido ao recurso do Mº Pº tem como título “A qualificação do art. 132 do Código Penal”.
Não se conheceu de matéria que era vedado conhecer, assim como não se prejudicou o direito de defesa do arguido nem se impossibilitou o exercício do contraditório.
O arguido defendeu-se e opôs-se aos fundamentos do recurso, exercendo o contraditório nas contra-alegações.
E, a sua defesa pode também ser exercida de forma plena na audiência de julgamento.
Assim que também se entenda inexistir violação de princípios constitucionais inerentes aos direitos do arguido.
Motivos pelos quais se entende inexistir ou ser praticada nulidade, assim se indeferindo o requerimento de arguição[...]”.
2. O arguido veio, então, recorrer para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 de 15 de novembro (LTC), pretendendo obter a 'fiscalização concreta da constitucionalidade das normas abaixo identificadas, na interpretação concreta que delas fez o Acórdão da Relação de 26.10.11 acima referido, explicitado ou esclarecido pelo Acórdão da mesma Relação de 9.01.12 também acima referido, que estiveram na base da sua ratio decidendi:
a) Inconstitucionalidade material do disposto no art.º 310, n.º 1 do CPP com referência ao disposto no art.ºs 414, n.ºs 2 e 4, 417, n.º 6, alíneas a) e b) e 420, n.º 1, alínea b), do mesmo diploma legal, quando interpretados conjugadamente no sentido de deles se poder concluir pela faculdade legal de a Relação apreciar e agravar, em recurso, a qualificação jurídica dos mesmos factos feita pelo juiz de instrução, na pronúncia, depois de, no despacho de admissão do recurso da decisão instrutória, não impugnado e transitado em julgado, a questão da qualificação jurídica de tais factos ter sido expressamente rejeitada e excluída do objeto do recurso, por violação dos princípios constitucionais da segurança jurídica e da confiança e de todas as garantias de defesa consagrados nos art.s 2 e 32, n.º 1, da Constituição da República;
b) Inconstitucionalidade material do art.º 310, n.º 1, do CPP, agora com referência ao disposto nos artigos 416, n.º 1 e 417, n.º 2, daquele mesmo diploma legal quando interpretados conjugadamente no sentido de deles se poder retirar a conclusão de que se acha garantido o exercício do direito ao contraditório do arguido, quando este é notificado para apresentar, no tribunal da Relação, a resposta referida no último daqueles preceitos (art.º 417, n.º 2) contra promoção do MP da qual se encontrava omissa a questão da qualificação jurídica dos factos, por ter sido expressamente excluída do objeto do recurso por força do despacho de admissão do mesmo, transitado em julgado, questão essa de que a Relação veio depois a conhecer em agravamento da situação processual do arguido, por violação o princípio do acusatório e da garantia do direito ao contraditório consagrados no art.º 32, n.º 5, da Constituição da República. [...]'
O recurso foi admitido na Relação de Coimbra, mas no Tribunal Constitucional foi proferida a Decisão Sumária n.º 116/2012 que decidiu não conhecer do seu objeto.
A decisão tem a seguinte fundamentação:
[...] 2. O recurso foi admitido na Relação de Coimbra, cumprindo decidir se ocorre causa que determine o não conhecimento do seu objeto.
No caso de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, como é o presente, impõe-se que o recorrente haja suscitado a questão da inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (artigo 72º n.º 2 LTC). Tem-se entendido, por isso, que a questão deve ser colocada ao tribunal recorrido antes de este ter proferido a decisão recorrida, pois só assim o tribunal estará na situação de dever conhecer a matéria.
Acontece que o recorrente não colocou a questão de inconstitucionalidade ao tribunal recorrido – a Relação de Coimbra – antes de este ter decidido o objeto do recurso que lhe cumpria conhecer; com efeito, só após a prolação do acórdão de 26 de outubro de 2011 é que, arguindo a nulidade do aresto, o recorrente invocou tal matéria, argumentando que o aresto fizera uma inesperada aplicação das normas impugnadas. O acórdão constituiria, em suma, uma “decisão-surpresa”, para efeito de dispensar a sua antecipada suscitação.
Todavia, apura-se que a questão de inconstitucionalidade surge diretamente ligada à matéria discutida no recurso do Ministério Público que cumpria à Relação conhecer. Assim, e apesar do despacho proferido pelo juiz de instrução quanto ao âmbito desse recurso, o certo é que nunca poderá afirmar-se que o recorrente não teve oportunidade de suscitar a questão de inconstitucionalidade. Na verdade, essa oportunidade apresentou-se-lhe precisamente no momento em que contra-alegou no recurso.
Não pode, pois, dar-se por verificado o requisito legal.
3. Mas mesmo que assim não fosse, o certo é que outras razões levariam a não conhecer o objeto do recurso.
Com efeito, a norma enunciada no sentido de 'se poder concluir pela faculdade legal de a Relação apreciar e agravar, em recurso, a qualificação jurídica dos mesmos factos feita pelo juiz de instrução, na pronúncia, depois de, no despacho de admissão do recurso da decisão instrutória, não impugnado e transitado em julgado, a questão da qualificação jurídica de tais factos ter sido expressamente rejeitada e excluída do objeto do recurso' não foi manifestamente aplicada. Com efeito, ao decidir a matéria objeto do recurso, a Relação não quis aceitar que do despacho do juiz de instrução decorria que a questão da qualificação jurídica de tais factos se mostrava já fixada no processo por decisão transitada em julgado, circunstâncias que o recorrente inclui no enunciado normativo que apresenta ao Tribunal.
Daqui se conclui, sem necessidade de outras considerações, mas com total segurança, que a norma enunciada não foi aplicada na decisão recorrida.
4. O recorrente define a 2ª norma mediante a enunciação do seu sentido, ao permitir 'retirar a conclusão de que se acha garantido o exercício do direito ao contraditório do arguido, quando este é notificado para apresentar, no tribunal da Relação, a resposta referida no último daqueles preceitos (art.º 417, n.º 2) contra promoção do MP da qual se encontrava omissa a questão da qualificação jurídica dos factos, por ter sido expressamente excluída do objeto do recurso por força do despacho de admissão do mesmo, transitado em julgado, questão essa de que a Relação veio depois a conhecer em agravamento da situação processual do arguido, por violação o princípio do acusatório e da garantia do direito ao contraditório consagrados no art.º 32, n.º 5, da Constituição da República.'
Ora, ao invocar como objeto do recurso uma norma que permita tirar a conclusão de que se acha garantido o contraditório em face de ocorrências processuais concretas, o recorrente está – sem dúvida – a revelar o resultado concreto da aplicação da norma, mas não define o seu conteúdo; ou seja, está a pretender enunciar uma norma por via da extensão da decisão tomada pelo tribunal recorrido. Não se trata, em consequência, de uma formulação normativa.
5. Decide-se, em resumo, não conhecer do objeto do recurso.[...]
3. É contra esta decisão que o arguido recorrente agora reclama, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78º-A da LTC, nos seguintes termos:
A., recorrente nos autos acima referenciados, tendo sido notificado do despacho de V. proferido nos termos do art.° 78-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, que decidiu não conhecer do objeto do recurso por ele interposto,
vem, ao abrigo do disposto no n° 3 daquele mesmo preceito legal (art.° 78-A, n.º 3, da LTC), apresentar a seguinte Reclamação para a Conferência:
1. A primeira razão convocada pelo douto despacho reclamando para recusar o conhecimento do recurso fundamenta-se no alegado incumprimento, por parte do recorrente, do ónus imposto pelo art.° 72, n.º 2, da LTC.
Importará lembrar, porém, que o recorrente invocou os vícios de inconstitucionalidade no requerimento de arguição de nulidades deduzido contra o Acórdão da Relação de Coimbra, imediatamente à prolação deste e alegando desde logo o caráter objetivo e subjetivo de surpresa que tal decisão assumiu no contexto processual.
Os alegados vícios de inconstitucionalidade só se verificaram nessa decisão da Relação, que se assumiu como insólita, inesperada, anómala e absolutamente imprevisível.
Sobre o requerimento de arguição de tais vícios (nulidades e inconstitucionalidades) veio a recair novo Acórdão da Relação declarando que nenhum daqueles vícios se havia verificado.
A natureza surpreendente da decisão — decisão surpresa anómala, insólita, inesperada e absolutamente imprevisível em qualquer critério de razoabilidade — fundamentou-a o recorrente no facto de a Relação ter decidido, em recurso, sobre questão de que lhe estava vedado conhecer, por força de despacho transitado em julgado.
Razão clara e suficiente para que, a todas as luzes, ninguém em juízo racional pudesse contar com tal decisão.
Na verdade, conforme explicitou o recorrente ao longo do seu requerimento de interposição, verificando-se que o recurso do MP quanto à diversa qualificação dos factos não fora admitido por força do disposto no art.° 310, n.º 1, do CPP, que com tal se conformara o recorrente, até de modo expresso, que tal decisão passara a constituir juízo definitivo da questão referente à fase de instrução, que nunca o arguido foi notificado de pretensão diferente do recorrente em relação à qual pudesse e devesse exercer o contraditório, nada nem ninguém poderia supor como possível a interpretação daqueles preceitos (art. 310, n.º 1, 405, n.º 1, 414, nºs 1 a 3 416 n.º 1, 417, n.º 2 e 420, n.º 1, alínea b), todos do CPP) da forma como foi efetuada, nem a decisão surpresa que nela se baseou.
Conforme o recorrente explicitou, a entender-se de outro modo, teria que exigir-se ao ora recorrente que previsse que um recurso não admitido sobre determinada questão (qualificação dos factos) por despacho aceite pelo recorrente, viesse a ser conhecido pelo Tribunal ad quem, através de decisão que agrave a sua situação de arguido em processo penal e diminua as suas garantias de defesa, isto depois de, no Tribunal ad quem, ter sido chamado a exercer o contraditório sobre questão inteiramente diferente e alheia à que depois contra ele foi conhecida e decidida.
Ora tanto a doutrina como a jurisprudência constitucionais, em interpretação pacífica do teor do art.° 72, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, têm sido unânimes em reconhecer que, em casos como o vertente, só no requerimento de arguição de nulidades pode e deve ser alegada a insólita e imprevista inconstitucionalidade cometida na interpretação e aplicação das normas em questão — assim Guilherme da Fonseca e Inês Domingos, “Breviário de Direito Processual Constitucional”, 2ª ed., págs. 54 a 58; Carlos Blanco de Morais, “Justiça Constitucional”, tomo II, 2ª ed., págs. 767 a 770.
Ora, perante este quadro, o douto despacho reclamando raciocina e decide assim:
“Todavia apura-se que a questão de inconstitucionalidade surge diretamente ligada à matéria discutida no recurso do Ministério Público que cumpria à Relação conhecer. Assim, e apesar do despacho proferido pelo juiz de instrução quanto ao âmbito desse recurso, o certo é que nunca poderá afirmar-se que o recorrente não teve oportunidade de suscitar a questão de inconstitucionalidade. Na verdade, essa oportunidade apresentou-lhe precisamente no momento em que contra-alegou no recurso.
Não pode, pois, dar-se por verificado o requisito legal.”
Ora, salvo o devido respeito, o douto despacho em questão deixa envolver-se em manifesta confusão.
É que, no momento em que o recorrente respondeu no recurso, não era de modo algum não só previsível, como sequer descortinável, o vício praticado pela Relação.
Porquê?
Pois porque, aquando da resposta à motivação do recurso do MP, não havia ainda sido proferido nos autos o despacho parcial de não admissão do mesmo, nem tão pouco havia sido definitivamente fixada a mesma matéria de facto, a qual só por via da improcedência parcial do recurso veio a fixar-se em rigorosa confirmação com o que a pronúncia na 1ª instância havia decidido.
A violação da Constituição é assim efetuada em primeira linha pelo Acórdão da Relação quando, interpretando explicitamente os preceitos que invoca (art.° 310, n.º 1, 414, nºs 2 e 4, todos do CPP) conclui que eles lhe permitem qualificar de modo diferente e mais gravoso os mesmos factos constantes da pronúncia inicial, assim conhecendo de objeto de recurso não admitido por despacho transitado.
Antes de tal despacho ter sido proferido, exatamente quando apresentou a sua resposta à motivação do MP, não podia o ora recorrente ter invocado a inconstitucionalidade de um complexo normativo interpretado com relação a despacho... inexistente na altura!
Sendo que, foi após a prolação do despacho de não admissão parcial do recurso, aceite pelo MP, que este, em consonância, reduziu o âmbito do seu recurso, conforme se vê da promoção que apresentou ao abrigo do art.° 416, n.º 1, do CPP, e foi a esta que o ora recorrente respondeu, não lhe sendo exigível que adivinhasse outras.
Foi por isso que no requerimento de interposição do recurso se disse que, após a prolação daquele despacho, se criou um quadro processual inteiramente novo, com limitação do objeto do recurso, sendo sobre esta realidade — ainda não existente nos autos na altura da resposta à motivação de recurso do MP — que o contraditório se exerceu.
Assim se podendo concluir que não tem fundamento a asserção do douto despacho reclamando segundo a qual o ora recorrente teria tido a oportunidade de suscitar as questões de constitucionalidade em momento anterior, designadamente quando “contra-alegou no recurso”.
Deve pois ter-se por verificado o requisito legal de admissão do recurso previsto no art.° 72, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, aqui se dando como reproduzido o teor do requerimento de interposição do recurso apresentado no Tribunal da Relação de Coimbra.
2. À luz do que atrás ficou dito e do que se alegou no requerimento de interposição do recurso, o aqui recorrente pôs em relevo a inconstitucionalidade material da norma retirada da interpretação conjugada que a Relação fez dos preceitos por ela expressamente invocados e aplicados (art.° 310, n.º 1, 414, nºs 2 e 4, do CPP) e dos que, embora por ela não expressamente invocados, foram porém implicitamente aplicados (art.°s 417, n.º 6, alíneas a) e b) e 420, n.º 1, alínea b) do mesmo Diploma Legal).
A inconstitucionalidade material de tais preceitos, na interpretação que deles era feita pela Relação, concretizava-se, no entender do recorrente, na violação dos princípios constitucionais da segurança jurídica e da confiança e das garantias de defesa de arguido em processo penal consagrados nos art.s 2.° e 32.°, n.º 1, da Constituição da República.
Isto pelo facto de, com base em tal interpretação, ter a Relação concluído pela possibilidade legal, que utilizou, de apreciar e agravar, em recurso, a qualificação jurídica dos mesmos factos efetuada na pronúncia, não obstante o despacho de admissão de recurso, não impugnado e transitado em julgado, ter rejeitado e excluído do objeto do recurso essa possibilidade.
O douto despacho reclamando declara porém que a(s) norma(s) apontada não foi aplicada pela decisão recorrida, porquanto “ao decidir a matéria de recurso, a Relação não quis aceitar que do despacho do juiz de instrução decorria que a questão da qualificação jurídica de tais factos se mostrava já fixada no processo por decisão transitada em julgado “.
Ora, a inconstitucionalidade arguida pelo ora recorrente resultava, nesta parte do recurso, do facto de, na interpretação concreta daqueles preceitos acima indicados e que nos dispensamos de repetir, a Relação ter entendido
a) poder conhecer e agravar, em recurso, da qualificação jurídica dos mesmos factos constantes da pronúncia; e isto
b) não obstante o despacho de admissão do recurso, transitado em julgado, ter rejeitado e excluído essa questão do objeto do mesmo,
Que a Relação sempre definiu, com clareza, a sua ilegitimidade para conhecer da questão sumariada na precedente alínea a), vê-se inequivocamente tanto do texto do Acórdão de 26.10.20 11 como do teor do Acórdão de esclarecimento de 9.01.2012.
No primeiro daqueles arestos, na página 4, quando disserta sobre o teor do art.° 310, n.º 1, a Relação afirma que “é irrecorrível a decisão instrutória quanto à mera qualificação jurídica dos factos “, para mais abaixo concluir que “atentas as conclusões formuladas no recurso em causa resulta que, por um lado, o MP pretende fazer valer certa qualificação jurídica dos factos descrita na pronúncia, factos esses que estavam já vertidos na acusação; nesta parte a decisão não é, como se viu, recorrível “.
No segundo daqueles arestos, explica, no mesmo sentido, que “o entendimento mais plausível do estatuído no art.° 310 do CPP, e nesse sentido se deve entender o despacho de recebimento do recurso é o de que, se o recurso visasse apenas matéria de qualificação jurídica dos factos, o mesmo seria inadmissível (matéria irrecorrível) “.
Só que — diz a Relação — pelo único e exclusivo facto de existir aquele concreto despacho de admissão de recurso, nos exatos e concretos termos em que se acha proferido, já ela Relação, ao abrigo do mesmo preceito legal, passa a poder conhecer de matéria que antes reconhecera expressamente lhe estar vedado fazer, precisamente — e paradoxalmente — quando tal despacho lhe negara expressamente tal faculdade.
E pois à prolação de tal despacho — que, como vimos, lhe nega a faculdade de modificar a qualificação jurídica dos factos — que a Relação vai recolher a por si proclamada legitimidade para conhecer do recurso, pois que, conforme explicitou, esta lhe faleceria se tal despacho não tivesse sido proferido (então tal questão era irrecorrível, como explicitou).
Quer isto dizer, para rebater o argumento avançado neste ponto pelo douto despacho reclamando, que a inconstitucionalidade deduzida resulta claramente de se ter interpretado o art° 310, n.º 1, do CPP, com referência aos restantes preceitos atrás citados, em dupla violação da nossa Lei Fundamental, em dois pianos diferentes e sucessivos, sendo que cada um deles, só por si, é suficiente e adequado ao desencadeamento do processo legal de verificação do vício, não podendo nenhum deles poder prejudicar a apreciação do outro.
É assim que, num primeiro plano, os preceitos legais citados (art.° 310, n.º 1, com referência aos art.s 414, nºs 2 e 4, 417, n.º 6, alíneas a) e b) e 420, n.º 1, alínea b), todos do CPP) na concreta interpretação que deles é feita, violam a Constituição quando são invocados ou aplicados para admitir a faculdade legal de a Relação, em recurso, poder apreciar e agravar a qualificação jurídica dos mesmos factos feita pelo Juiz na pronúncia; num segundo plano, também quando, além disso, existe despacho de não admissão de recurso com aquele objeto proferido pela 1 a instância e transitado em julgado.
Bem se sabe que a aplicação em processo penal do conceito de caso julgado impede que tal despacho se assuma como decisão definitiva com efeitos em todo o processo, mas ele não deixa de produzir tais efeitos — dada a estanquicidade das fases processuais — em relação à fase em que opera (instrução).
Por isso dúvidas não existem de que a interpretação daqueles preceitos legais violou os princípios constitucionais da segurança jurídica e da confiança e das garantias de defesa consagrados nos art.ºs 2 e 32, n.º 1, da Constituição da República, como aliás foi já decidido, em caso em tudo idêntico, por este Tribunal Constitucional (cfr., v.g., Ac. n.º 44/2004 da 2. Secção, proferido no recurso n.º 636/2003, tendo como relatora Maria Fernanda Palma).
Não tem pois fundamento a denegação formulada no ponto 3 do douto despacho reclamando, devendo conhecer-se do recurso, o que se requer.
3. Verifica-se que, após a prolação e trânsito do despacho de não admissão do recurso sobre a qualificação jurídica dos factos, o recorrente, em consonância com essa realidade jurídica processual, decidiu exercer o direito que lhe concede o art.° 416, nº 1, do CPP, para, entre outras coisas, explicar que do recurso por si interposto havia sido retirada aquela questão (qualificação jurídica dos factos).
Foi sobre tal pronúncia que o arguido 01-a recorrente exerceu o seu direito ao contraditório, mediante a apresentação da resposta a que se refere o art.° 417, n. °2, do CPP.
Tendo o Acórdão da Relação conhecido do recurso, na questão que dele estava excluída, e sobre a qual não fora exercido o contraditório prescrito pelos art.ºs 416, n.º 1 e 417, nº 2, do CPP (já atrás vimos que é neste quadro processual novo, criado após o trânsito do despacho, que a questão da inconstitucionalidade aflora), segue-se que a interpretação que ele fez dos preceitos legais referidos (art.° 310, n.º 1, com referência aos art.°s 416, n.º 1 e 417, n.º 2, todos do CPP), com base na qual concluiu poder conhecer do recurso sobre tal questão sem descortinar violação dos princípios do acusatório e do contraditório, afronta claramente o dispositivo do art.° 32, n.º 5, da Constituição da República.
E, consequentemente, é a formulação normativa criada e utilizada pela Relação sobre tais preceitos, garantindo na situação concreta a conformidade da aplicação da lei com o travejamento constitucional, que o recorrente quis pôr e pôs em crise na alínea b) do pedido formulado no seu requerimento de interposição de recurso.
Não se pode pois concordar com a enxuta conclusão denegatória do despacho reclamando.
O princípio jura novit curia, sempre proclamado pela boa doutrina constitucional, e não só presente no art.° 79-C, 2ª parte, da LTC, insere-se na preocupação de evitar que este importante Tribunal possa, seduzido por práticas de habitualidade denegatória, auto-limitarse na intervenção corretiva que, no fundo, a sua ação fiscalizadora pressupõe.
Segundo cremos, é bem neste sentido que se defende nada impedir “o Tribunal constitucional de conhecer de incidentes conexos com a questão definida que afetem a marcha normal do recurso, de acordo com o princípio geral do art.° 96, n.º 1, do CPC” (Jorge Miranda, “Manual de Direito Constitucional “, tomo VI, 3ª ed., pág. 224) ou que o Tribunal Constitucional não pode nunca deixar de tomar conhecimento do objeto do recurso desde que se tenha podido aperceber — como não pode deixar de suceder no caso vertente — da necessidade de resolução de uma questão de inconstitucionalidade — Isabel Alexandre, “A norma ou princípio constitucional ou legal violado como elemento de objeto dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade ou da legalidade “, in Jurisprudência Constitucional, n.º 6, Abril-Junho de 2005, págs. 40 a 42.
Ora, as questões de inconstitucionalidade então e aqui levantadas inserem-se em processo onde, após longa, aturada e cuidadosa atividade instrutória, o M.mo JIC- pôde apurar, conforme se pode ver da decisão instrutória, que o arguido agiu dominado por compreensível emoção violenta, em resposta a estímulo idóneo, provocado pela vítima, a que reagisse com uma agressão.
E onde o Tribunal da Relação, por mero contacto abstrato com o processo, sem analisar a globalidade da matéria de facto apurada, veio de repente, com base nas afirmações presuntivas refletidas no Acórdão, a alterar gravosamente a qualificação dos factos.
Tudo isto fez, como se demonstrou, à revelia e em confronto com os princípios e preceitos constitucionais, bem mais necessária se tomando a fiscalização constitucional de tal comportamento.
Por considerar que inexiste qualquer obstáculo ao conhecimento do presente recurso, designadamente aqueles que são indicados no douto despacho reclamando, deve a presente reclamação ser atendida, julgada fundamentada e procedente e, em consequência, prosseguir a tramitação ulterior regular do recurso, assim se fazendo a habitual Justiça!
4. Os recorridos B. e C. responderam à reclamação, que têm por improcedente. Também o representante do Ministério Público se pronuncia no sentido do seu indeferimento.
Sem vistos, o processo vem à Conferência para decisão.
5. O arguido recorrente pretendia, no presente recurso, ver analisada a conformidade constitucional das seguintes duas normas:
– a retirada do artigo 310º n.º 1 do Código de Processo Penal, com referência ao disposto no artigos 414º n.ºs 2 e 4, 417º n.º 6 alíneas a) e b) e 420º n.º 1 alínea b) do mesmo Código, quando interpretada no sentido de se poder «concluir pela faculdade legal de a Relação apreciar e agravar, em recurso, a qualificação jurídica dos mesmos factos feita pelo juiz de instrução, na pronúncia, depois de, no despacho de admissão do recurso da decisão instrutória, não impugnado e transitado em julgado, a questão da qualificação jurídica de tais factos ter sido expressamente rejeitada e excluída do objeto do recurso»;
– a retirada do artigo 310º n.º 1 do Código de Processo Penal, com referência ao disposto nos artigos 416º n.º 1 e 417º n.º 2 do mesmo Código, interpretada no sentido «de que se acha garantido o exercício do direito ao contraditório do arguido, quando este é notificado para apresentar, no tribunal da Relação, a resposta referida no último daqueles preceitos (art.º 417, n.º 2) contra promoção do MP da qual se encontrava omissa a questão da qualificação jurídica dos factos, por ter sido expressamente excluída do objeto do recurso por força do despacho de admissão do mesmo, transitado em julgado, questão essa de que a Relação veio depois a conhecer em agravamento da situação processual do arguido».
Ora, tal como se afirmou na Decisão Sumária n.º 116/2012, agora em reclamação, nenhuma destas questões de inconstitucionalidade foi suscitada pelo recorrente, perante a Relação de Coimbra, antes de esse tribunal ter decidido o objeto do recurso que lhe cumpria conhecer; com efeito, só após a prolação do acórdão de 26 de outubro de 2011 é que, arguindo a nulidade do aresto, o recorrente invocou tal matéria, argumentando que se fizera uma 'inesperada' aplicação das normas impugnadas, o que o dispensaria de antecipar a suscitação da questão. Acontece que o n.º 2 do artigo 72º da LTC determina que o recurso 'só pode' ser interposto pela parte 'que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida em termos de este estar obrigado a dela conhecer'. O Tribunal tem entendido que não é momento adequado para colocar questões de inconstitucionalidade o da reclamação por nulidades apontadas ao aresto que decidiu o recurso, dado que o poder jurisdicional do tribunal se acha então limitado à específica questão de nulidade arguida. E assim é, não porque o Tribunal se mostre 'seduzido por práticas de habitualidade denegatória' – conforme surpreendentemente insinua o reclamante –, mas por que é a própria Constituição que o impõe (alínea b) do n.º 1 do artigo 280º). É que, conforme explicam JJ Gomes Canotilho e Vital Moreira (CRP Anotada, Coimbra, 4ª edição), 'o recorrente não pode suscitar a questão de inconstitucionalidade apenas depois de proferida a decisão recorrida, quando o tribunal recorrido já aplicou (e não pode agora desaplicar porque se ter esgotado o seu poder jurisdicional) as normas arguidas de inconstitucionalidade. Por isso, é também extemporâneo levantar a questão em incidentes pós-decisórios (aclarações, etc.) que já não podem conduzir à alteração da decisão'.
Ora, o caráter de surpresa da decisão que aplica a norma impugnada provém da aplicação inesperada da norma, e seguramente tal não acontece quando a questão a tratar no recurso consiste precisamente no alcance precetivo da norma impugnada, como acontece no caso em presença.
É, por isso, de concluir – conforme fez a Decisão Sumária – que se não mostra verificado o requisito em análise.
6. Para além disto, é igualmente certo que a 1ª norma enunciada pelo reclamante não foi aplicada pelo tribunal recorrido; com efeito, o reclamante aditou-lhe artificialmente o elemento relativo ao 'transito em julgado' do despacho de admissão do recurso da decisão instrutória, que a Relação expressamente rejeitou, conforme inequivocamente resulta do acórdão de 9 de janeiro de 2012. Tal circunstância conduziria o Tribunal a não conhecer desta matéria, se outro motivo se não verificasse.
E é certo, ainda, que a 2ª norma enunciada não apresenta caráter normativo, não traduz um qualquer critério jurídico porventura adotado pelo tribunal recorrido. O enunciado limita-se a afirmar um entendimento que, quando muito, refletiria uma decisão concreta.
7. Em face do exposto, é de concluir pelo indeferimento da reclamação. O Tribunal decide, por isso, mantendo a decisão reclamada, não conhecer do recurso interposto. Custas pelo reclamante, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 3 de abril de 2012.- Carlos Pamplona de Oliveira – Maria João Antunes – Gil Galvão
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