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Processo n.º 834/10
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. No âmbito dos autos de reclamação e graduação de créditos que correm por apenso ao processo de insolvência de A., S.A, foi proferida sentença que, e relativamente ao imóvel constante da massa insolvente, graduou em primeiro lugar o crédito reclamado pelos trabalhadores (B. e C., ora Recorridos), e, em segundo, o crédito hipotecário do Banco D., S.A (ora Recorrente).
Este, por inconformado, recorreu para o Tribunal da Relação de Guimarães, que manteve o julgado na 1.ª instância.
2. Foi então interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que, negando provimento à apelação, e no que ora interessa, decidiu o seguinte:
“ (…) Resta a questão da constitucionalidade.
No Ac. n° 335/2008, de 19.6.08, do Tribunal Constitucional (disponível em www.tribunalconstitucional.pt e já citado no Acórdão recorrido), pode-se ler o seguinte: ‘O regime previsto no art. 377.º, n.° 1, al. b), do Código do Trabalho, destinou-se nitidamente a melhorar a graduação concedida aos créditos laborais no confronto com outros direitos reais de garantia. Ora, os salários devem gozar expressamente de garantias especiais segundo a Constituição pelo que o legislador ordinário está constitucionalmente credenciado para limitar ou restringir os direitos patrimoniais dos demais credores para assegurar aquele desiderato (artigo 59.°, n.° 3 da C.R.P.). Aliás, com o objectivo de reforçar a ténue tutela do salário inicialmente prevista no art. 737.°, n.° 1, al. d), do Código Civil de 1966, tem sido o que tem acontecido sucessivamente com as intervenções legislativas consubstanciadas na aprovação do regime constante do art. 12.° da Lei 17/86 e das suas ulteriores alterações, entre as quais se conta o próprio regime previsto no art. 377.º do Código do Trabalho. Esta última intervenção do legislador procurou sobretudo evitar que, numa situação de falência da entidade empregadora, os créditos laborais não obtivessem pagamento pelos bens da falida, face a uma preferência dos créditos garantidos por hipoteca, os quais, muito frequentemente, pelo seu valor elevado, exaurem a massa falida, colocando a sobrevivência condigna dos trabalhadores e seus agregados familiares em risco.
Deste modo, e pelos motivos que deixamos expostos, aliás resumidos nos arestos citados, não surpreendemos no referido artigo 377.°, do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n° 99/03, de 27.8, a violação de qualquer preceito constitucional.’
Já, aliás, a propósito da alínea b) do n.°1 do artigo 12.° da Lei dos Salários em Atraso, aquele Tribunal entendera que ‘uma situação de conflito entre um direito de natureza análoga aos direitos e liberdades e garantias, o direito dos trabalhadores à retribuição do trabalho e o princípio geral da segurança jurídica e da confiança no direito’ devia ser resolvida com a prevalência do direito à retribuição, ‘eventualmente, o único e derradeiro meio, numa situação de falência da entidade empregadora, de assegurar a efectivação de um direito fundamental dos trabalhadores que visa a respectiva sobrevivência condigna.’ (Ac. n.° 498/2003, publicado no Diário da República, II Série de 3.1.2004).
Também este Supremo Tribunal de Justiça já foi claro ao referir - no Ac. de 5.6.2007, revista n.°1279/07, disponível em www.dgsi.pt - que: ‘Não está ferida de inconstitucionalidade a norma da al. b) do n.° 1 do art. 377.° do Código do Trabalho na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário especial nela conferido - sobre os imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade - aos créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, gerados após a entrada em vigor da referida norma, prefere à hipoteca voluntária, independentemente da data de constituição e registo desta.’
Vindo, outrossim, a aplicar, muito reiteradamente, aquele n.°1 do artigo 377.°, sem colocar sequer a questão da inconstitucionalidade - Ac.s de 29-11-2005, Revista n.° 3534/05 - 6.° Secção, 31-01-2006, Revista n.° 3978/05 - 1.ª Secção, 18-05-2006, Revista n.° 1253/06 - 7a Secção, 27-06- 2006, Revista n.° 1477/06 - 6.° Secção, 15-01-2008, Revista n.° 4238/07 - 1.ª Secção, 28-02-2008, Revista n.° 4423/07 - 6.° Secção, 25-06-2009, Revista n.° 45/09 -7.ª Secção, 02-07-2009, Revista n.° 752-S/2002.C1 .S1 - 2.° Secção e 22-10-2009, Revista n.° 605/04.OTJVNF-A.S1 – 7.ª Secção.
Não vemos razões para nos afastarmos da corrente que vem sendo seguida. Antes pelo contrário, aceitamos a argumentação expendida pelos arestos citados que se debruçaram sobre a inconstitucionalidade, mormente os do Tribunal Constitucional.”
2. Vem, finalmente, o Banco D., S.A interpor recurso para este Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações subsequentes (Lei do Tribunal Constitucional – LTC), para apreciação da conformidade constitucional da norma constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 377.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, e que veio a ser revogado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro.
4. Convidado pelo Relator para apresentar alegações, o Recorrente concluiu o seguinte:
“1. - A norma constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 377.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, e que veio a ser revogado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, padece de inconstitucionalidade material, quando entendido no sentido de prevalecer o privilégio creditório aí consagrado sobre a garantia conferida pela hipoteca, por violação dos Princípios da Igualdade e da Confiança, consagrados nos artigos 2.º e 13.º da Constituição da República Portuguesa;
2. — Consagra tal norma um privilégio creditório especial imobiliário dos trabalhadores, por créditos decorrentes do contrato de trabalho ou da sua cessação, sobre o imóvel no qual exercem a sua actividade;
3. — A despeito da questão da graduação do privilégio em crise, antecipa-se a constatação de, ao ser conferido este em razão do local da prestação do trabalho, se configurar in natura, na mera e estática previsão legal, uma paradigmática violação do Princípio da Igualdade, consagrado no artigo 13.º da Lei Fundamental, por conceder um inusitado benefício a certos e determinados trabalhadores — aqueles que exercem a sua actividade em instalações da empresa — face a outros trabalhadores, da mesma empresa, que exerçam a sua actividade fora das instalações ou em instalações que não sejam da titularidade da entidade patronal;
4. — Pelo Acórdão n.º 160/00, decidiu este Tribunal ‘…julgar inconstitucionais, por violação do artigo 2.º da Constituição da República, as normas constantes dos artigos 2.º do Decreto-Lei n.º 512/76, de 3 de Julho, e 11.º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, interpretadas no sentido de que o privilégio imobiliário geral nelas conferida prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do Código Civil.’
5. — No mesmo sentido, entendeu este Colendo Tribunal, no douto Acórdão n.º 362/2002, ‘…declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do artigo 2.º da Constituição, da norma constante, na versão primitiva, do artigo 104.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto- Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, e, hoje, na numeração resultante do Decreto-Lei n.º 198/2001, de 3 de Julho, do seu artigo 111.º, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nele conferido à Fazenda Pública prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do Código Civil.’;
6. — Subjacente ao sentido decisório perfilhado em ambos estes arestos esteve o entendimento de que os privilégios creditórios estatuídos pelas normas sindicadas, julgados prevalecentes sobre hipoteca, enfermam de inconstitucionalidade material por violação do Princípio da Protecção da Confiança contido no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa;
7. — Isto porque, diz-se no primeiro dos dois referidos decisórios, ‘…não estando o crédito da Segurança Social sujeito a registo, o particular que registou o seu privilégio, uma vez instaurada a execução com fundamento nesse crédito privilegiado, ou que ali venha a reclamar o seu crédito, pode ser confrontado com uma realidade — a existência de um crédito da Segurança Social — que frustra a fiabilidade que o registo naturalmente merece.’
8. — E ainda, porque ‘…não se encontrando este privilégio sujeito a limite temporal e atento o seu âmbito de privilégio ‘geral’ e não existindo qualquer conexão entre o imóvel onerado pela garantia e o facto que gerou a dívida (no caso à Segurança Social), ao contrário do que sucede com os privilégios especiais referidos nos artigos 743.º e 744.º do Código Civil, a sua subsistência, com a amplitude acima assinalada, implica também uma lesão desproporcionada do comércio jurídico.
9. — Estatuindo o acórdão que se pronunciou sobre o privilégio conferido à Fazenda Nacional, reportando-se ao que o antecedeu, ‘...em ambos os casos são atingidos terceiros a quem não é acessível o conhecimento, nem da existência do crédito, em virtude de estar protegido pelo segredo fiscal, nem da oneração pelo privilégio, devido à inexistência de registo.’
10. - O titular do direito real de garantia que lhe é conferido pela hipoteca, na génese desta, promove — ou, pelo menos, deve cautelarmente fazê-lo — um juízo de prognose garantística quanto à ressarcibilidade do seu crédito, estribado na realidade de facto cognoscível no momento e numa álea expectável.
11. — Refutando a fundamentação erigida no douto Acórdão n.º 335/2008 — que, salvo o devido respeito, falha ao asseverar a conformidade constitucional da norma aqui em apreço — importa consignar que não é pela prévia imprevisibilidade — pela hipotética superveniência de um ou outro crédito dotado de privilégio imobiliário especial legalmente consagrado, que a própria Lei reputa excepcional e admite geradora de injusto sacrifício — que passam a estar legitimadas todas as ulteriores afrontas ao Princípio da confiança. Outrossim, quanto mais excepções forem abertas, maior é a violação da segurança conferida pela hipoteca e das legítimas expectativas do beneficiário no momento da constituição desta.
12. — Não obstante entenda o mesmo aresto que ‘Se é legítimo que as regras de um concurso não se alterem após o anúncio da sua realização, não há razão para não se considerarem as alterações ocorridas antes de se saber da necessidade de realização do concurso.’, o certo é que na génese da constituição da garantia hipotecária está já um juízo de prognose de incumprimento e a salvaguarda dos meios para mitigar tal eventualidade. Ou seja, relevante momento é o da constituição da hipoteca, que contém em si já uma decisão de ‘ir a jogo’, e não o do eventual incumprimento das obrigações garantidas. Impõem-se, pois, os fundamentos que levaram às duas decisões declaratórias de inconstitucionalidade de normas semelhantes, sobre os infirmados motivos que sustentaram a decisão de sentido contrário proferida no último acórdão referido.”
4. Decorrido o prazo legal, os Recorridos não responderam.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
a) O objecto do recurso
5. O Recorrente veio submeter à apreciação do Tribunal Constitucional a inconstitucionalidade material da norma constante da alínea b), do n.º 1, do artigo 377.º, do Código do Trabalho, na interpretação segundo a qual os créditos laborais garantidos por privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade prevalecem sobre os créditos garantidos por hipoteca voluntária constituída sobre esses bens.
Assim, o que o Recorrente pretende integrar no objecto do presente recurso radica na apreciação da citada norma, constante da alínea b), do n.º 1, do artigo 377.º, do Código do Trabalho, na interpretação segundo a qual, declarada a falência do empregador após a entrada em vigor do Código do Trabalho, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, os créditos que venham a ser reclamados pelos respectivos trabalhadores são garantidos por privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais os trabalhadores prestem a sua actividade e prevalecem sobre os créditos garantidos por hipoteca voluntária constituída sobre esses bens em data anterior à da entrada em vigor do referido diploma legal.
Como parâmetros que ancoram a suscitada inconstitucionalidade, o Recorrente invoca a lesão dos princípios da confiança e da igualdade, previstos, respectivamente nos artigos 2.º e 13.º da CRP.
Relativamente ao primeiro princípio, sustenta o Recorrente, que o entendimento subjacente à decisão recorrida no sentido de que os privilégios creditórios estatuídos pela norma sindicada, prevalecem sobre a hipoteca, enferma de inconstitucionalidade material já que, não estando sujeitos ao registo predial, pode o particular que registou a hipoteca, uma vez instaurada a execução com fundamento nesse crédito privilegiado, ou que ali venha a reclamar o seu crédito, vir a ser confrontado com uma realidade – a existência de um crédito de um trabalhador – que frustra a fiabilidade que o registo naturalmente merece. Acrescenta ainda o Recorrente que, não se encontrando este privilégio sujeito a limite temporal e não existindo qualquer conexão entre o imóvel onerado pela garantia e o facto que gerou a dívida, ao contrário do que sucede com os privilégios especiais referidos nos artigos 743.º e 744.º do Código Civil, a sua subsistência, com a amplitude acima assinalada, implica igualmente uma lesão desproporcionada do comércio jurídico.
No que toca ao princípio da igualdade, o Recorrente sustenta a inadmissibilidade de um tratamento diferenciado entre os trabalhadores que exercem a sua actividade em instalações da empresa e os outros trabalhadores que desenvolvam a sua actividade fora dessas mesmas instalações ou em instalações que não pertençam à entidade patronal. Uma tal diferenciação concede, na sua óptica, um inusitado benefício aos primeiros.
6. O objecto do recurso é, portanto, a apreciação do preceito contido no artigo 377.º, n.º 1, alínea b), do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, no sentido em que concede, aos trabalhadores, privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador.
b) Do mérito do recurso
7. A questão da restrição à tutela da confiança do credor hipotecário na prioridade da satisfação do seu crédito face aos créditos salariais foi já apreciada pelo Tribunal Constitucional. Entendeu-se que uma tal restrição encontra justificação constitucionalmente adequada na circunstância de o direito dos trabalhadores à remuneração se configurar como expressão de um direito fundamental, susceptível de legitimar a compressão do direito concedido pela garantia hipotecária. Pelo Acórdão n.º 498/2003 (publicado no Diário da República, II Série, de 3 de Janeiro de 2004), o Tribunal decidiu não julgar inconstitucional a “norma constante da al. b) do n.º 1 do art. 12º da Lei n.º 17/86, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nela conferido aos créditos emergentes do contrato individual de trabalho prefere à hipoteca, nos termos do art. 751º do Código Civil”.
Porque o então decidido e respectiva fundamentação valem, para a situação que ora nos ocupa, (ao contrário do que ocorre com a jurisprudência citada pelo Recorrente – Acórdãos n.ºs 160/2000 e 362/2002, publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 10 de Outubro de 2000, e I Série - A, de 16 de Outubro de 2002) não obstante hoje seja diversa a norma, embora substancialmente idêntica, até porque precedeu a ora sindicada, transcreve-se, com proveito, os seguintes excertos do mencionado aresto:
“(…)do lado do credor hipotecário está em causa a tutela da confiança e da certeza do direito, constitucionalmente protegidas pelo artigo 2º da Constituição e particularmente prosseguidas através do registo, como se observou, por exemplo, no acórdão n.º 215/2000 (Diário da República, II série, de 13 de Outubro de 2000):
‘No caso, esta segurança jurídica tem a ver com o interesse de ordem geral: o registo, na medida em que confere publicidade e segurança ao acto registado, está a realizar a certeza e a segurança do direito ou do facto sujeito a registo e, do mesmo passo, torna seguro o comércio jurídico que possa ter por objecto os factos ou direitos registados, assim se fomentando também o princípio constitucional da liberdade de iniciativa económica, reconhecida na Lei Fundamental após a Revisão de 1997 (artigo 80º, alínea c) da Constituição).
O princípio geral da segurança jurídica ínsito no princípio do Estado de Direito prevê que qualquer cidadão possa, de antemão, saber que aos actos que praticar ou negócios que realizar se ligam determinados efeitos, incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas decorrentes de normas jurídicas em vigor, por forma que cada um tenha plena consciência das consequências da sua actividade (ou da sua omissão) na comunidade.
Este princípio está intimamente relacionado com o princípio da confiança na medida em que o registo, enquanto constitui publicidade do seu conteúdo, torna este digno de crédito, isto é, as pessoas, em geral, têm de poder confiar nos factos constantes do registo.
Por um lado, a segurança registral, quando o registo é definitivo, faz presumir que o direito existe e pertence ao titular inscrito (admitindo prova em contrário).
Por outro lado, a segurança jurídica registral visa a protecção de terceiros que fizeram aquisições confiando na presunção registral resultante do registo anterior em favor do transmitente.
Assim, o princípio da segurança jurídica e o princípio da confiança que decorrem do princípio do Estado de Direito democrático constante no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa credenciam a prevalência registral que pode favorecer um adquirente «a non domino», na medida em que o princípio da publicidade que atribui essa prevalência determina a extinção do direito incompatível.’
Do outro lado, porém, encontra-se um direito constitucionalmente incluído entre os direitos fundamentais dos trabalhadores, o direito à retribuição do trabalho, que visa ‘garantir uma existência condigna’, conforme preceitua o artigo 59º, n.º 1, alínea a), da Constituição, e que o Tribunal Constitucional já expressamente considerou como direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (cfr. acórdão n.º 373/91, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 20, p. 111 e segs. e Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, ed., Coimbra, p. 152, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 318, João Caupers, Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição, Coimbra, 1985, p. 141, nota 215 e João Leal Amado, ob. cit., p. 32, nota 44).
O caso dos autos coloca-nos assim perante uma situação de conflito entre um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, o direito dos trabalhadores à retribuição do trabalho, e o princípio geral da segurança jurídica e da confiança no direito.
Muito embora o modo como a norma impugnada solucionou o conflito, fazendo prevalecer o direito à retribuição, não pareça poder ser avaliado, directamente, à luz do disposto no artigo 18º da Constituição, isso não significa que não deva ser analisado do ponto de vista de um critério de proporcionalidade.
Na verdade, as exigências do princípio da proporcionalidade decorrem, não só especificamente do artigo 18º, n.º 2, da Constituição, mas também, justamente, do princípio geral do Estado de direito, consignado no artigo 2º (cfr., neste sentido, o Acórdão n.º 491/02, publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Janeiro de 2003).
Assim, e em primeiro lugar, há que observar que parece manifesto que a limitação à confiança resultante do registo é um meio adequado e necessário à salvaguarda do direito dos trabalhadores à retribuição; na verdade, será, eventualmente, o único e derradeiro meio, numa situação de falência da entidade empregadora, de assegurar a efectivação de um direito fundamental dos trabalhadores que visa a respectiva ‘sobrevivência condigna’.
Muito embora a falência da entidade empregadora seja também a falência da entidade devedora, é precisamente este último aspecto, ou seja, a retribuição como forma de assegurar a sobrevivência condigna dos trabalhadores, que permitiria justificar em face da Constituição a solução da norma impugnada, na interpretação aludida.
Mas esta consideração carece de ser confrontada com outros aspectos, e, em particular, com o âmbito da tutela constitucional da retribuição (artigo 59º, n.º 1, al. a), da Constituição), para saber se incide apenas sobre o direito ao salário ou abrange também, de modo mais geral, os créditos indemnizatórios emergentes do despedimento.
Ora a verdade é que não se descortinam quaisquer razões que justifiquem uma interpretação do direito constitucional à retribuição dos trabalhadores no sentido de vedar ao legislador ordinário a equiparação, para o efeito agora em análise, da tutela conferida a ambos os créditos.
No fundo, é manifesto que o crédito à indemnização desempenha uma evidente função de substituição do direito ao salário perdido.
Acresce ainda que a inclusão, repita-se, para o efeito agora em causa, do direito ao salário e do direito à indemnização por despedimento no âmbito da tutela constitucional do direito à retribuição é a que mais se ajusta à referência constitucional a uma “existência condigna”, exprimindo o que João Leal Amado (ob. cit., p. 22) designa de carácter alimentar e não meramente patrimonial do crédito salarial, neste sentido (ou seja, no confronto com os créditos dos titulares de direitos reais de garantia levados ao registo).
Nesta conformidade, deve entender-se que a restrição do princípio da confiança operada pela norma impugnada não encontra obstáculo constitucional”.
8. Sobre esta mesma questão, e, embora, no recurso em análise, não seja colocada a problemática da aplicação da lei no tempo, uma vez que a data da insolvência, relevante, para indagar da lei aplicável, em sede de concurso de credores, é posterior à Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, que aprovou o Código do Trabalho, sempre se refira o que, com especial relevância, foi decidido no Acórdão n.º 335/2008 (publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Julho de 2008), citado na decisão recorrida:
“O regime previsto no art. 377.º, n.° 1, al. b), do Código do Trabalho, destinou-se nitidamente a melhorar a graduação concedida aos créditos laborais no confronto com outros direitos reais de garantia. Ora, os salários devem gozar expressamente de garantias especiais segundo a Constituição pelo que o legislador ordinário está constitucionalmente credenciado para limitar ou restringir os direitos patrimoniais dos demais credores para assegurar aquele desiderato (artigo 59.°, n.° 3 da C.R.P.). Aliás, com o objectivo de reforçar a ténue tutela do salário inicialmente prevista no art. 737.°, n.° 1, al. d), do Código Civil de 1966, tem sido o que tem acontecido sucessivamente com as intervenções legislativas consubstanciadas na aprovação do regime constante do art. 12.° da Lei 17/86 e das suas ulteriores alterações, entre as quais se conta o próprio regime previsto no art. 377.º do Código do Trabalho. Esta última intervenção do legislador procurou sobretudo evitar que, numa situação de falência da entidade empregadora, os créditos laborais não obtivessem pagamento pelos bens da falida, face a uma preferência dos créditos garantidos por hipoteca, os quais, muito frequentemente, pelo seu valor elevado, exaurem a massa falida, colocando a sobrevivência condigna dos trabalhadores e seus agregados familiares em risco.
Deste modo, e pelos motivos que deixamos expostos, aliás resumidos nos arestos citados, não surpreendemos no referido artigo 377.°, do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n° 99/03, de 27.8, a violação de qualquer preceito constitucional”.
Ponderadas as exigências do princípio da proporcionalidade, perante a natureza dos direitos conflituantes, concluiu-se “dever entender-se que a restrição do princípio da confiança operada pela norma impugnada não encontra obstáculo constitucional”.
Quanto à questão da alegada violação do princípio da igualdade, compulsados os autos constata-se, todavia, que o preceito não foi aplicado na segunda dimensão especificada. Com efeito, confrontada com a questão, a Relação esclareceu que a norma comporta várias interpretações possíveis, retirando-lhe um sentido e alcance diverso, em conformidade com o que havia sido já decidido em acórdão da Relação de Guimarães de 5 de Dezembro de 2006, no âmbito do Processo n.° 1587/06-1 (disponível em www.dgsi.pt), concluindo, portanto, “que o legislador teve em vista, em sentido amplo, os imóveis em que esteja sediado o estabelecimento para o qual o trabalhador prestou a sua actividade, independentemente de essa actividade ter sido aí prestada ou no seu exterior.”
Face ao exposto, improcede o recurso.
III – Decisão
9. Nestes termos, acordam, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional, em negar provimento ao recurso.
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 7 de Junho de 2011.- José Borges Soeiro – Gil Galvão – Maria João Antunes – Carlos Pamplona de Oliveira – Rui Manuel Moura Ramos.
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