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Processo n.º 785/10
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A., LLC., ao abrigo dos artigos 40.º, n.º 1, alíneas f) e d), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), e 606.º do Código Civil, em sub-rogação da sociedade B., S.A., deduziu embargos à sentença declaratória de insolvência da sociedade C., Lda., proferida em 29 de Janeiro de 2010, no Juízo do Comércio da Comarca de Baixo Vouga.
Por despacho de 5 de Março de 2010 tais embargos foram liminarmente indeferidos.
Inconformada, a embargante recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de 7 de Setembro de 2010, negou provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
A embargante interpôs recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), nos seguintes termos:
“A., LLC., embargante e recorrente no processo à margem identificado, não se conformando com o teor do Acórdão, proferido em 7 de Setembro de 2010, que julgou improcedente o recurso de apelação apresentado pela ora Requerente, dele pretende interpor recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (adiante, Lei do Tribunal Constitucional ou LTC), o que faz nos termos seguintes:
1. Vem o presente recurso interposto do Acórdão proferido em 7 de Setembro de 2010 nos autos supra referenciados, por ter este procedido à aplicação das normas contidas nos artigos 606.º do Código Civil (CC), 26.º e 234.º-A do Código de Processo Civil, 2.º, n.º 1, 40.º, n.ºs 1 e 2, e 41.º, n.º 2, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE) e 501º, 502.º e 503.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo.
2. O Despacho recorrido aplicou ainda as normas contidas no artigo 270.º, alínea a), e 271.º do Código de Processo Civil (CPC), numa interpretação imprevisível, invocando o regime da substituição processual para afastar a possibilidade da sub-rogação pretendida exercer pela embargante, numa decisão surpresa, na medida em que a invocação daquelas normas como fundamento da decisão proferida era de tal forma imprevisível que tornou dispensável o cumprimento, pela ora Requerente, do ónus de suscitação da inconstitucionalidade destas duas referidas normas.
Vejamos:
3. A Requerente é credora da sociedade B., SGPS, S.A.. Tem, portanto, sobre esta, um direito de crédito.
4. A sociedade B. SGPS, SA., é uma holding que encabeça um grupo de várias sociedades, com as quais se encontra em relação de domínio total.
5. Tratando-se o Grupo B., como todos os grupos societários, de uma única organização empresarial, que dispõe de um património global único (embora detido em “cascata”) que vai sendo alocado a umas ou outras sociedades do grupo, conforme o interesse do grupo, isto é, o interesse da sociedade-mãe, o regime legal dos grupos societários previu mecanismos destinados a proteger os credores do grupo, sejam os da sociedade-mãe, sejam os das sociedades-filhas. Os credores contam, assim, com o património da sociedade-mãe, isto é, o património de todo o grupo, como garantia patrimonial geral dos seus créditos.
6. As sociedades-filhas da B. SGPS, S.A., entre as quais a C., Lda., insolvente nestes autos, apresentaram-se à insolvência prévia e separadamente da sociedade-mãe, com o que pretenderam extinguir a relação de grupo existente e proceder a uma separação patrimonial violadora do regime dos grupos de sociedades.
7. A insolvência das referidas sociedades-filhas foi decretada, o que teve e terá por efeito o esvaziamento de todo o património da holding B. Comercial, na medida em que o património de tais sociedades-filhas – que até então pertencia à sociedade-mãe – será distribuído apenas pelos credores das sociedades filhas, deixando vazia a sociedade-mãe e sem qualquer garantia os credores desta.
8. Porque o Tribunal de primeira instância não teve em conta os factos supra referidos ao declarar a insolvência – nomeadamente, que a sociedade apresentada à insolvência se encontrava em relação de grupo com outras, num grupo encabeçado por uma sociedade-mãe; que a sociedade-mãe não tinha sido declarada insolvente; que todo o património do grupo havia sido alocado às sociedades-filhas; que a sociedade-mãe também tinha credores e pelo menos alguns destes não eram simultaneamente credores das sociedades-filhas – a sociedade-mãe B. Comercial, que também é credora da insolvente, deveria ter embargado a sentença, trazendo estes factos ao conhecimento e apreciação do Tribunal, para que a sentença fosse revogada e assim se mantivesse, na esfera patrimonial da sociedade-mãe, o património que integrava a C., impedindo o seu total esvaziamento.
9. Mas não o fez. Não o tendo feito, a ora Requerente, em sub-rogação da B. Comercial no exercício dos direitos de conteúdo patrimonial desta sobre a C., embargou a sentença de insolvência da C., como meio indispensável de conservação do património da B. Comercial e, logo, da garantia patrimonial do crédito da Requerente.
10. Uns dias depois da dedução dos embargos pela ora Requerente, a sociedade-mãe, a B. Comercial, apresentou-se, ela própria, à insolvência. O que de já nada serviu, porquanto todo o seu património (exclusivamente detido através das sociedades suas filhas) tinha já sido “congelado” em separados e prévios processos de insolvência e afecto, em exclusivo, aos credores das sociedades filhas. No processo de insolvência da sociedade-mãe já nada existe para distribuir entre os credores, já que se teve o cuidado de se esvaziar, primeiro, a sociedade-mãe em favor dos credores das sociedades-filhas, para só depois se apresentar à insolvência a sociedade-mãe.
11. Os embargos interpostos pela ora Requerente foram liminarmente indeferidos, por despacho da primeira instância que considerou a embargante parte ilegítima, por inadmissibilidade da sub-rogação, tendo também considerado inexistir fundamento legal para os embargos, pelo que estes seriam manifestamente improcedentes. Assim sucedeu nos processos de insolvência das restantes sociedades filhas.
12. Deste despacho a Requerente interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra, por requerimento apresentado via CITIUS no dia 29 de Março de 2010.
13. Nas suas alegações de recurso, suscitou a questão da inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 606.º do CC, 26.º e 234.º-A do CPC, 2.º, n.º 1, 40.º, n.ºs 1 e 2, e 41.º, n.º 2, do CIRE e 501º, 502.º e 503.º do CSC, de modo processualmente adequado perante o Tribunal da Relação de Coimbra, em termos de este estar obrigado a dela conhecer, tudo nos termos do artigo 72.º, n.º 2, da LTC.
14. O Acórdão de 7 de Setembro de 2010, ora recorrido, veio aplicar aquelas normas com o sentido normativo que a apelante havia reputado de inconstitucional.
15. Designadamente, interpretou e aplicou as normas contidas no artigo 606.º do CC no sentido de não contemplarem a possibilidade de sub-rogação, por um credor da sociedade-mãe (e por sua vez também credora) da sociedade insolvente, na dedução de embargos à sentença declaratória da insolvência, por estes embargos configurarem o exercício de um direito meramente processual e as normas do artigo 606.º do CC não preverem a sub-rogação para a prática de actos processuais;
16. e no sentido de que a reclamação de créditos, mesmo que subordinados, por parte da referida sociedade-mãe no processo de insolvência da sociedade filha constituir-se-ia como actividade bastante por parte da sociedade-mãe para afastar o direito à sub-rogação na dedução de embargos, por não se encontrar verificado o pressuposto da inactividade ou inércia do devedor do sub-rogante.
17. Tais normas do artigo 606.º do CPC, juntamente com as contidas no artigo 503.º do CSC, foram ainda interpretadas e aplicadas no sentido (também antecipado pela ora Requerente) de que o exercício, em sub-rogação, do direito de embargar a sentença de insolvência da sociedade-filha não seria apto a por si só aumentar o activo ou diminuir o passivo da sociedade-mãe, porquanto os bens da sociedade-filha não se transfeririam para a esfera da sociedade-mãe sem que fossem emitidas pela sociedade-mãe à sociedade-filha instruções para o efeito, resultando assim afastado, nessa interpretação, o conteúdo patrimonial do direito (de dedução de embargos) exercido em sub-rogação.
18. Interpretou e aplicou também os artigos 26.º do CPC e 40.º, n.º 1, do CIRE, como não conferindo legitimidade para os embargos a quem se sub-rogue àqueles que têm legitimidade para os embargos, parecendo inferir da norma contida no n.º 1 do artigo 40.º do CIRE – porque confere legitimidade específica a determinadas categorias de pessoas – o afastamento da possibilidade de outros virem deduzir embargos, mesmo que em acção de sub-rogação.
19. O Acórdão ora recorrido interpretou e aplicou ainda as normas contidas nos artigos 2.º, n.º 1, do CIRE e 501.º, 502.º e 503.º do CSC no sentido de que, embora estas últimas normas (as do CSC) prevejam desvios à separação formal das pessoas colectivas baseada apenas no critério da personalidade jurídica quando se está na presença de um grupo de sociedades, da sua interpretação, conjugada com o disposto no n.º 1 do artigo 2.º do CIRE, não resulta a impossibilidade de declaração, em separado, de apenas uma ou várias das sociedades do grupo.
20. Por outro lado, o Acórdão procede a uma interpretação e aplicação restritiva das normas do artigo 503.º do CSC, no sentido de aí se prever um poder limitado, que sempre teria de garantir a própria sobrevivência económica da sociedade dependente, para afastar a tese de que a apresentação à insolvência de uma sociedade-filha, pertencente a um grupo, sem que sejam, em conjunto, apresentadas todas as sociedades do grupo, incluindo a sociedade-mãe, implica uma intolerável disfuncionalização do regime da insolvência e dos grupos de sociedades.
21. O Tribunal da Relação de Coimbra interpretou ainda a norma contida no artigo 40.º, n.º 2, do CIRE – na parte relativa à invocação de factos que não tenham sido tidos em conta pelo tribunal e possam afastar os fundamentos da declaração de insolvência – como não estando preenchidos os seus requisitos de alegação num caso em que são alegados factos como (i) a existência de um grupo societário, (ii) o facto de a sociedade declarada insolvente ser detida, em relação de domínio total, por uma sociedade ainda não declarada insolvente e que legalmente responde pelas dívidas da sociedade-filha, (iii) o facto de a sociedade-mãe ter também credores e de estes credores não serem comuns à sociedade-filha e (iv) o facto de todo o património do grupo ter sido alocado às sociedades-filhas, sem que houvesse sido, pelo menos em parte, previamente transferido para a sociedade-mãe.
22. Foram ainda aplicadas as normas contidas nos artigos 41º, n.º 2, do CIRE (esta na parte referente à ausência de motivo para indeferimento liminar) e 234.º-A do CPC (esta na parte relativa à manifesta improcedência da petição) no sentido de ser evidente – sem necessidade de qualquer produção de prova e discussão em audiência de julgamento – que nada obsta a que uma sociedade-filha, integrada num grupo societário constituído por domínio total em que nem a sociedade-mãe nem outras das sociedades do grupo estão declaradas insolventes, seja prévia e isoladamente declarada insolvente, sem necessidade de apreciação da situação patrimonial do resto do grupo ou, pelo menos, da sociedade-mãe, que legalmente responde pelas suas dívidas e pelas suas perdas. E de essa evidência ser de tal modo forte que conduz a uma improcedência manifesta dos embargos em termos de os mesmos poderem ser liminarmente indeferidos.
23. A desconformidade das referidas normas, assim interpretadas, com a Constituição, foi suscitada pela Recorrente, como se disse, tendo sido apreciada e afastada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no Despacho ora recorrido.
24. O Despacho ora recorrido veio, ainda, e surpreendentemente, interpretar e aplicar os artigos 270º, a), e 271.º do CPC no sentido de estes implicarem que a sub-rogação, quando destinada à prática de actos processuais, se efectiva não através da acção sub-rogatória prevista no artigo 606.º do CC mas através da figura da substituição processual. De acordo com o critério normativo utilizado, aquelas normas foram aplicadas no sentido de que, sendo os embargos um direito de natureza processual (um direito subjectivo processual) que incide sobre um acto jurisdicional (uma sentença declaratória), e cujas condições de exercício não estão reguladas pelo direito substantivo, estaria vedada a sub-rogação por um credor a um devedor na dedução de embargos.
25. Esta interpretação é totalmente inesperada, por insólita.
26. Com efeito, a sub-rogação prevista no artigo 606.º do CC nada tem a ver com a substituição processual prevista no artigo 270º, al. a), do CPC. Não implica qualquer modificação subjectiva da instância. Não implica qualquer substituição processual. Nem inicial, nem superveniente.
27. Nem tão pouco existiu qualquer transmissão inter vivos da coisa ou direito litigioso que justificasse a substituição processual do transmitente pelo adquirente. Tratava-se, sim, de um caso de sub-rogação prevista no artigo 606.º do CC, não estando reunidos os pressupostos de qualquer substituição processual.
28. Não era, pois, previsível nem concebível que o regime da substituição processual (artigos 270.º, al. a), e 271.º do CPC) fosse invocado como fundamento para negar a um credor o exercício da pretendida sub-rogação ao seu devedor, nos termos do artigo 606.º do CC, no exercício dos direitos deste através da dedução de embargos.
29. Era, assim, imprevisível que o Tribunal fosse considerar que a forma de o credor poder conservar a garantia do seu crédito, exercendo os direitos de conteúdo patrimonial que o seu devedor não exerceu, era a da substituição processual, só porque esse exercício de direitos envolvia a dedução de embargos.
30. Com efeito, e tendo presente que a sub-rogação pode ser exercida judicialmente, nos termos do artigo 608.º do CC, estranho é também que o facto de ser exercida na dedução de embargos (e não numa acção declarativa principal, por exemplo) sirva para afastar a possibilidade de sub-rogação, com o fundamento de que se trataria, então, do exercício de um direito processual, e não substantivo, como previsto no artigo 606.º do CC, só exercitável através da figura da substituição processual.
31. Não era, portanto, exigível à Requerente o cumprimento do ónus de suscitação da desconformidade constitucional das normas dos artigos 270º, al. a), e 271.º do CPC.
32. Segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, o recurso, quanto a normas cuja inconstitucionalidade não foi suscitada deve ser admitido “em situações excepcionais ou anómalas, nas quais o interessado não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes proferida ou não era exigível que o fizesse, designadamente por o tribunal a quo ter efectuado uma aplicação de todo insólita e imprevisível” (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional de 14.04.2010, proferido no Processo n.º 212/10, 2ª Secção, Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues).
33. Estas últimas e as restantes normas atrás referidas violam o artigo 20.º da CRP, por terem como consequência impedirem a acção sub-rogatória e por isso deixarem sem tutela judicial o direito de crédito dos credores de uma sociedade cujo património era unicamente constituído pelo património das sociedades-filhas e que ficou sem qualquer património em virtude da declaração de insolvência dessas sociedades-filhas, num caso em que a sociedade-mãe não exerça o seu direito de crédito e restantes direitos de conteúdo patrimonial sobre as sociedades-filhas através da dedução de embargos de uma sentença de insolvência proferida sem que o Tribunal tivesse tido em conta factos que afastariam essa declaração de insolvência.
34. As mesmas normas, por implicarem a subtracção, sem possibilidade de impugnação judicial, de toda a garantia patrimonial de um crédito, tornando-o insusceptível de ser satisfeito, e abrindo essa possibilidade sem que ao credor seja concedido algum tido de compensação, violam o direito de propriedade privada consagrado no artigo 62.º da CRP, bem como o direito à iniciativa privada consagrado no artigo 61.º da CRP.
35. Tais normas, por implicarem a exclusão do concurso a um determinado património de credores que tinham direito a esse património, permitindo a sua afectação exclusiva a outros determinados credores, que assim saem favorecidos, viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.
36. Verificam-se, igualmente, no caso presente, os restantes requisitos da recorribilidade para o Tribunal Constitucional, na medida em que as normas em causa, constantes dos artigos 606.º do CC, 26.º e 234.º-A do CPC, 2.º, n.º 1, 40º, n.ºs 1 e 2, e 41.º, n.º 2, do CIRE, 501º, 502.º e 503.º do CSC, e 270.º, alínea a), e 271.º do CPC, foram efectivamente aplicadas, com uma determinada interpretação, no Acórdão recorrido, enquanto ratio decidendi da decisão de não dar provimento ao recurso e manter o indeferimento liminar dos embargos apresentados, e desse Acórdão não cabe recurso ordinário, conforme expressamente resulta do disposto no artigo 14.º, n.º 1, do CIRE.
Termos em que deve ser admitido o presente recurso do Acórdão proferido nestes autos em 7 de Setembro de 2010 para o Tribunal Constitucional, com os legais efeitos e consequências.”
A Recorrente apresentou as respectivas alegações, culminando as mesmas com a formulação das seguintes conclusões:
“1.ºA apreciação da legitimidade, num caso de legitimidade sub-rogatória, deve ser feita como em todos os outros casos: com base na configuração dada pelo autor. Se, depois, essa configuração não vier a ser provada, então o autor perderá a acção, mas aí já não será por ilegitimidade.
2.º Só assim se assegura, a todos os sujeitos processuais por igual – actuem ou não em sub-rogação – o direito de acesso aos tribunais, só assim se garantindo o respeito pelos princípios da igualdade e do acesso ao Direito e aos Tribunais.
3.º É inconstitucional a norma resultante da conjugação do n.º 1 do artigo 40.º do CIRE com o n.º 3 do artigo 26.º do CPC, por violar os princípios consagrados nos artigos 13.º e 20.º da CRP, quando interpretada no sentido de que à aferição da legitimidade prevista no artigo 40.º, n.º 1, do CIRE não é aplicável o critério da configuração dada pelo sujeito processual à relação controvertida, constante da parte final do n.º 3 do artigo 26.º do CPC, ou que, aplicando-se em regra esse critério, ele não é aplicável aos casos de legitimidade assente na sub-rogação do sujeito processual ao seu devedor por esta depender da efectiva comprovação, liminar, dos invocados pressupostos da sub-rogação.
4.º É inconstitucional a norma que permita o entendimento de que a existência de uma norma específica sobre a legitimidade para a dedução de embargos à sentença de insolvência afasta a possibilidade de dedução de embargos em sub-rogação, nos termos previstos no artigo 606.º do CC.
5.º Quem se sub-roga, nos termos do artigo 606.º do CC, àqueles que têm legitimidade para deduzir embargos (sejam os embargos de terceiro do artigo 351.º do CPC, sejam os embargos da insolvência do artigo 40.º do CIRE) age em lugar do substituído e tem, por isso, legitimidade para o acto processual em causa. A legitimidade que tem é a que o seu substituído tiver.
6.º Conferir ao artigo 40.º, n.º 1, do CIRE o alcance de excluir a possibilidade de sub-rogação, nos termos do artigo 606.º do CC, pelos credores de qualquer das entidades que têm legitimidade para opor embargos à sentença de insolvência é privar os credores de um dos meios de conservação da garantia patrimonial do seu crédito que lhes é facultado pela Lei, o que, além de representar uma injustificada restrição do princípio do acesso ao Direito e aos Tribunais, também representa – por via do esvaziamento do direito de crédito cuja garantia patrimonial não pôde assim ser conservada – uma violação do direito de propriedade privada consagrado no artigo 62.º da CRP.
7.º É, assim, inconstitucional a norma prevista no artigo 40.º, n.º 1, do CIRE, por violação dos artigos 20.º e 62.º da CRP, na interpretação de que só podem opor embargos à sentença de insolvência as entidades indicadas nas diversas alíneas da norma, não sendo possível aos credores de qualquer dessas entidades oporem os referidos embargos em sub-rogação daquelas, por não ser aplicável o artigo 606.º do CC quando a sub-rogação envolva ou se destine a embargar uma sentença de insolvência, na medida em que a existência de uma norma expressa a conferir legitimidade específica a determinados sujeitos para embargar a sentença de insolvência, como é o artigo 40.º, n.º 1, do CIRE, afasta, só por si, a possibilidade de sub-rogação por um credor de qualquer daqueles sujeitos.
8.º A sub-rogação do artigo 606.º do CC pode ser exercida na prática de actos processuais. Seja na propositura de uma acção (veja-se a acção sub-rogatória prevista no artigo 1469.º do CPC), seja na oposição de embargos, seja através de qualquer outro acto processual. Assim se decidiu, por exemplo, no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22 de Junho de 2006 (proferido no Processo n.º 0633118, disponível em www.dgsi.pt, tendo como Relator o Juiz Desembargador Teles de Menezes), que admitiu a sub-rogação por um credor ao seu devedor nos embargos de terceiro que este poderia ter deduzido e não deduziu numa execução em que havia sido penhorado um bem que não pertencia aos executados, mas antes ao devedor.
9.º Na medida em que um direito sem a correspondente acção judicial deixa de ser um direito, o artigo 606.º do CC, interpretado no sentido de a sub-rogação aí prevista ser reservada a um exercício de direitos substantivos que não contemple o recurso à via judicial implicará uma injustificada restrição do acesso ao Direito e aos Tribunais, além de restringir fortemente, em violação do artigo 62.º da CRP, o conteúdo do direito de crédito dos credores, que assim vêem o instrumento de conservação da garantia patrimonial previsto no artigo 606.º praticamente inutilizado, já que o exercício de direitos sem possibilidade de recurso à via judicial não é um verdadeiro exercício.
10.º É, assim, inconstitucional o artigo 606.º do CC, por violação dos artigos 20.º e 62.º da CRP, na interpretação de que a sub-rogação aí prevista se distingue da substituição processual, destinando-se a primeira ao exercício de direitos substantivos e a segunda à prática de actos processuais e que, por isso, a sub-rogação não pode ser utilizada para prática de actos processuais, nomeadamente, para a oposição de embargos, em virtude de, diversamente do que sucede com a figura da substituição processual, ter um âmbito de aplicação reservado ao exercício de direitos substantivos.
11.º Tem conteúdo patrimonial o direito, atribuído ao credor do insolvente, de embargar a respectiva sentença de insolvência. Assim entendeu já o Tribunal da Relação de Coimbra, no acórdão de 30 de Novembro de 2010, proferido num caso idêntico ao dos presentes autos (em que é recorrente a ora Recorrente, no Processo n.º 212/10.9T2AVR-A), em que a recorrente embargou a sentença de insolvência em sub-rogação da sua devedora, que não o fez, tendo o Tribunal afirmado que, “No caso concreto, o direito ou faculdade de embargar tem conteúdo patrimonial […]”.
12.º O acto de oposição, pelo credor, dos embargos à sentença de insolvência é um acto de conservação da garantia patrimonial do crédito que o credor detém sobre o insolvente. Assim refere VAZ SERRA, quando afirma que o direito conferido aos credores de intervirem em litígios dos quais possam sair prejudicados é também um meio de conservação da garantia patrimonial dos seus créditos, a acrescer aos especificamente previstos nos artigos 605.º e seguintes do CC.
13.º O que é especificamente conferido pelo CIRE ao credor do insolvente, pelo disposto no artigo 40.º, n.º 1, alínea d), do CIRE, é um meio de conservação da garantia patrimonial do seu crédito, semelhante a outros: à acção de nulidade, à impugnação pauliana, à própria sub-rogação, ao arresto.
14.º Um acto de conservação da garantia patrimonial de um crédito tem, inequivocamente, conteúdo patrimonial. O que a expressão “direito de conteúdo patrimonial”, contida no n.º 1 do artigo 606.º do CC, pretende excluir é que o credor se possa arrogar da defesa de eventuais interesses morais do seu devedor ou do exercício de direitos cujo objecto não seja avaliável em dinheiro.
15.º Com efeito, o requisito de patrimonialidade refere-se ao objecto do direito e não ao resultado imediato do correspondente acto de exercício praticado pelo credor. Será, portanto, consentido, por exemplo, requerer em sub-rogação, em defesa de um direito de natureza patrimonial, uma providência cautelar ou até uma acção de simples apreciação, embora seja evidente que daí não deriva um directo e imediato incremento do património do devedor.
16.º A título de exemplo, VAZ SERRA admite a sub-rogação por um credor ao seu devedor em acções de impugnação de paternidade quando dirigidas a um objectivo de carácter patrimonial (cfr. op. cit., p. 167). E, como bem se vê, o resultado directo de uma acção judicial dessa natureza nunca é o imediato incremento do património do devedor sub-rogado.
17.º A doutrina (por todos, VAZ SERRA) admite sem reservas a sub-rogação de segundo grau. A subrogação é assim, também, ela própria, um direito de conteúdo patrimonial para os efeitos previstos no artigo 606.º, n.º 1, do CC e, por isso, passível de ser exercida em sub-rogação.
18.º Tal como a acção sub-rogatória é passível de ser exercida em sub-rogação, também os outros meios de conservação da garantia patrimonial, como o arresto, a impugnação pauliana e a acção de nulidade, são susceptíveis de ser exercidos em sub-rogação, porque dispõem da mencionada patrimonialidade.
19.º Se estes meios de conservação da garantia patrimonial, que estão à disposição de todo o credor – e dos quais não resulta o seu imediato incremento patrimonial – podem ser exercidos em sub-rogação, isto é, pelo credor do credor, então outros meios de conservação da garantia patrimonial, como por exemplo os embargos da sentença de insolvência do devedor do credor, podem também ser exercidos em subrogação, pelo credor do credor.
20.º É injustificada a exclusão da possibilidade de sub-rogação na oposição pelo credor de embargos à sentença de insolvência do devedor. Esta é a única interpretação compatível com a CRP, nomeadamente com os seus artigos 20.º, n.ºs 1 e 5, e 62.º, n.º 1, por não deixar sem tutela o direito de crédito do credor que pretenda sub-rogar-se ao seu devedor no exercício de um acto de conservação da garantia patrimonial dos créditos deste sobre terceiros que sejam, por sua vez, indispensáveis à garantia do direito do credor.
21.º Do artigo 62.º da CRP resulta que os particulares gozam do direito de ser “titulares de quaisquer direitos de valor pecuniário — direitos reais, direitos de crédito […]” (cfr. JORGE MIRANDA, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 629).
22.º E, “Se a Constituição a todos confere o direito de adquirir a propriedade e outros direitos patrimoniais, não pode deixar de a todos igualmente conceder a segurança contra privações arbitrárias. […] O que lhes concede é a consistência e garantia, não permitindo que a sua ablação ocorra a não ser por motivos de utilidade pública, nos termos da lei e mediante justa indemnização. […] Todo o acto ablativo de propriedade ou de outro direito patrimonial envolve indemnização.” (sublinhado nosso. Cfr. JORGE MIRANDA, op. cit., p. 629).
23.º Se o artigo 606.º, n.º 1, do CC contemplar apenas a possibilidade de sub-rogação do credor ao devedor em actos de que directamente resulte o imediato incremento patrimonial do devedor, excluindo do seu âmbito de aplicação a sub-rogação do credor ao devedor nos actos de conservação da garantia patrimonial dos créditos deste sobre terceiros, nomeadamente, na oposição de embargos à sentença de insolvência do devedor do devedor, tal norma terá por efeito o completo esvaziamento do direito patrimonial de crédito do credor que pretendia sub-rogar-se, porque a satisfação do crédito dependia da pretendida sub-rogação, ficando assim, na prática, privado do seu direito patrimonial de crédito, porquanto se torna impossível impedir a dissipação da correspondente garantia patrimonial.
24.º Por outro lado, o artigo 20.º, n.ºs 1 e 5, da CRP a todos assegura o acesso ao direito e aos tribunais para a defesa dos seus direitos, assegurando a existência de procedimentos judiciais visando a tutela efectiva contra ameaças ou violações desses direitos.
25.º Viola o artigo 20.º da CRP o artigo 606.º, n.º 1, do CC, quando interpretado no sentido de não ser considerado direito de conteúdo patrimonial o direito de conservação da garantia patrimonial dos créditos do devedor sobre terceiros e de ser, portanto, excluída a possibilidade de sub-rogação, pelo credor ao devedor, no exercício desses actos de conservação da garantia patrimonial dos créditos do devedor sobre terceiros, nomeadamente, na oposição de embargos à sentença de insolvência de um terceiro insolvente sobre o qual o devedor tenha um crédito.
26.º Tem também conteúdo patrimonial o direito, atribuído ao sócio e responsável legal pelas dívidas do insolvente, de embargar a respectiva sentença de insolvência, porquanto da procedência de tais embargos resulta imediata e directamente o aumento do activo da sociedade-mãe embargante, na medida em que nele volta a integrar-se o valor correspondente à totalidade do valor da sociedade-filha.
27.º Ainda que assim não se entenda, com a revogação da declaração de insolvência, em resultado dos embargos, a disponibilidade patrimonial da sociedade-mãe aumenta, na medida em que esta poderá fazer seus os activos que compõem o património da sociedade-filha, no âmbito da relação de grupo que é restaurada com a revogação da sentença de insolvência.
28.º Quando é declarada a insolvência da sociedade-filha, esta é imediatamente dissolvida, por efeito do disposto no artigo 141.º, n.º 1, alínea e), do CSC. E, com o registo do encerramento do processo, a sociedade considerar-se-á extinta, nos termos do artigo 234.º, n.º 3, do CIRE (em consonância com o disposto no artigo 160.º, n.º 2, do CSC, para o encerramento da liquidação).
29.º Tal leva a que desapareça do activo da sociedade-mãe a componente que era composta pelo valor atribuído à totalidade do capital social da sociedade-filha (o valor total da sociedade). A sociedade-mãe deixa, assim, de contabilizar no seu activo o valor de toda uma sociedade. E tal leva a que a sociedade-mãe deixe de poder dispor, no seu interesse, como lhe era permitido pelo artigo 503.º do CSC, de qualquer dos activos da sociedade-filha. Reduz-se, efectivamente, a sua disponibilidade patrimonial.
30.º A revogação da declaração de insolvência da sociedade-filha – em caso de procedência dos embargos – conduz ao aumento do activo da sociedade-mãe, sociedade esta que, aliás, consolida nas suas contas as contas da sociedade-filha. Com a procedência dos embargos, o património da sociedade-filha fica, por efeito legal, disponível na esfera jurídica da sociedade-mãe sem a necessidade de qualquer acto de qualquer administrador.
31.º Para além destes efeitos de conteúdo patrimonial, é também certo que os administradores da sociedade-mãe ficariam aptos a ordenar que os activos da sociedade-filha fossem materialmente transferidos para a sociedade-mãe.
32.º E, se é certo que não seria a procedência dos embargos só por si apta a determinar que esses administradores o fizessem, contra essa inércia dos administradores poderiam agir judicialmente quer a própria sociedade-mãe, quer os credores desta (cfr. artigos 75.º e 78.º do CSC). E também para esta possibilidade de reacção judicial – que tem, em si, valor e conteúdo patrimonial, na medida em que é meio de conservação da garantia patrimonial dos créditos dos credores da sociedade – eram necessários os embargos da sentença de insolvência da sociedade-filha, de modo a que se mantivesse a relação de grupo.
33.º O artigo 606.º, n.º 1, do CC, ao excluir do conceito de “direito de conteúdo patrimonial” o direito de uma sociedade que detenha o domínio total de outra de, nos termos das alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 40.º do CIRE, embargar da sentença de insolvência da sociedade sua dominada, é inconstitucional por violação dos artigos 20.º, n.ºs 1 e 5, 62.º e 13.º da CRP.
34.º Com efeito, a referida norma viola o artigo 20.º, n.ºs 1 e 5, da CRP, por dela resultar a eliminação de todos os efeitos do acesso ao direito para a defesa dos direitos de crédito dos credores da sociedade-mãe, uma vez que, sendo-lhes vedada a sub-rogação no direito de embargar as sentenças de insolvência das sociedades-filhas, não têm meio de conservar a garantia patrimonial do seu crédito, não podendo reagir contra as sentenças que determinaram a subtracção do património da sociedade sua devedora.
Assim interpretado, o artigo 606.º, n.º 1, do CC não garante, antes elimina, a tutela efectiva do direito de crédito de tais credores.
35.º A mesma norma, por permitir a subtracção, sem possibilidade de reacção, de toda a garantia patrimonial de um crédito, tornando-o insusceptível de ser satisfeito, e abrindo essa possibilidade sem que ao credor seja concedido algum tipo de compensação patrimonial, viola o direito de propriedade privada consagrado no artigo 62.º da CRP.
36.º O n.º 1 do artigo 606.º do CC, por impedir a sub-rogação nos embargos da sentença de insolvência e dessa forma implicar, sempre que a sociedade-mãe não embargue, a exclusão do concurso ao património do grupo societário – imediata e formalmente contido nas sociedades-filhas mas em última análise detido pela sociedade-mãe – dos credores da sociedade-mãe, que tinham direito a esse património em pé de igualdade com os credores das sociedades-filhas, permitindo a afectação exclusiva desse património aos credores das sociedades-filhas, viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa e de que são corolários os artigos 604.º, n.º 1, do CC e 229.º do Código Penal.
37.º No que respeita à interpretação do n.º 1 do artigo 606.º do CC quanto ao requisito da inércia do devedor, o eventual exercício do direito de crédito do devedor (a cobrança através de acção judicial, por exemplo), não abrange nem consome os direitos de conservação da garantia patrimonial desse mesmo crédito.
38.º O artigo 606.º, n.º 1, do CC, quando interpretado no sentido de que a reclamação judicial do crédito do devedor contra terceiro deve ser, sem mais, considerada como exercício suficiente do direito de crédito e dos direitos instrumentais ao dispor dos credores, incluindo o direito de recurso a meios de conservação da garantia patrimonial, confere à necessária inércia do devedor um sentido de tal modo abrangente, que reduz consideravelmente o campo de aplicação do instrumento da sub-rogação.
39.º Essa interpretação constitui, assim, uma forte restrição ao acesso do Direito e aos Tribunais, em violação do artigo 20.º, n.ºs 1 e 5, da CRP, além de limitar gravemente o acesso dos credores a um instrumento de conservação da garantia patrimonial dos seus créditos, comprometendo injustificadamente os próprios direitos de crédito, em violação do artigo 62.º da CRP.
40.º É, assim, inconstitucional, por violação dos artigos 20.º, n.ºs 1 e 5, e 62.º da CRP, a norma do n.º 1 do artigo 606.º do CC, na interpretação restritiva de que só há inércia do devedor, no exercício do direito de recorrer a meios de conservação da garantia patrimonial de créditos que tenha sobre terceiros, se o devedor, não tendo utilizado nenhum meio de conservação da garantia patrimonial, não tiver sequer reclamado judicialmente esses créditos.
41.º O Tribunal recorrido interpretou ainda o n.º 1 do artigo 606.º do CC segundo o critério normativo de que uma qualquer actuação do devedor sub-rogado contra o mesmo terceiro, ainda que alheia e não relacionada com o direito no qual o credor se quer sub-rogar contra esse mesmo terceiro, constitui circunstância suficiente para dar por não verificado o requisito da inércia.
42.º Este entendimento leva a que não seja admissível a sub-rogação no exercício de direitos, que não sejam de crédito, contra um terceiro, se contra esse mesmo terceiro o devedor tiver exercido um direito de crédito.
43.º É, assim, inconstitucional, por violação dos artigos 20.º, n.ºs 1 e 5, e 62.º da CRP, a norma do n.º 1 do artigo 606.º do CC, na interpretação restritiva de que só há inércia do devedor, no exercício de um direito do devedor contra um terceiro, se o devedor não tiver exercido nenhum outro direito que tenha sobre esse mesmo terceiro.
44.º A declaração de insolvência da sociedade dependente, prévia, separada e independente da eventual declaração de insolvência da sociedade dominante e das restantes sociedades do grupo, tem por efeito o esvaziamento do património da sociedade dominante, reduzindo, senão eliminando, toda e qualquer garantia patrimonial dos créditos detidos pelos credores desta, em benefício dos credores da sociedade dependente, que vêem exclusivamente afecto a si o património da sociedade dependente, podendo ainda concorrer ao património que tenha sobrado da sociedade dominante.
45.º Tal resultado é incompatível com a Constituição. Com efeito, a apresentação de uma empresa à insolvência não pode ser feita em parcelas (pois tal permitiria escolher as parcelas inviáveis para deixar intocadas as parcelas viáveis), com a divisão artificial e a liquidação parcelar do património. Tal possibilidade representaria um uso abusivo do processo de insolvência, que seria assim deixado à conveniência dos empresários, que poderiam concentrar numa das sociedades do grupo as dívidas por solver e transmitir o activo para uma outra sociedade do grupo, expurgando o grupo através do isolamento da parcela não viável e respectiva insolvência (com os respectivos credores a ela confinados).
46.º E um resultado destes não pode ser tolerado pelo nosso sistema jurídico, nem seria compatível com as normas que proíbem a discriminação de credores, nomeadamente, o artigo 229.º do Código Penal e o artigo 604.º, n.º 1, do CC.
47.º São, assim, inconstitucionais, por violação dos artigos 13.º e 62.º da CRP, as normas extraídas do artigo 2.º, n.º 1, do CIRE e 501.º a 503.º do CSC quando interpretadas no sentido de que o critério da personalidade jurídica é atendível na aferição de quem pode ser declarado insolvente, em termos de uma sociedade comercial que se encontre em relação de grupo com outras sociedades comerciais poder ser declarada insolvente sem que as restantes sociedades do grupo, ou pelo menos a sociedade-mãe, o sejam também ou sem que, pelo menos, seja apreciada a situação patrimonial do grupo a que pertence a referida sociedade.
48.º Uma questão suscitada em juízo, relativa à possibilidade de declaração, em separado, da insolvência de uma sociedade que seja integrante de um grupo, designadamente, que seja totalmente dominada por uma outra, que responde legalmente pelas suas dívidas, não é simples, nem do ponto de vista do Direito nem do ponto de vista dos factos, não podendo ser liminarmente decidida.
49.º O artigo 234.º-A, n.º 1, do CPC, interpretado de forma tão extensiva, no sentido de considerar manifesta a improcedência de uma pretensão complexa, relacionada com a insolvência de uma sociedade em relação de grupo e com a articulação dessa insolvência com o regime dos grupos de sociedades, sendo além do mais uma questão ainda não tratada pela jurisprudência portuguesa, vem introduzir uma intolerável limitação ao acesso ao Direito e aos Tribunais, por negar liminarmente o julgamento de uma tal pretensão.
50.º É, assim, inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.ºs 1 e 5, da CRP, a norma contida no artigo 234.º-A, n.º 1, do CPC, na interpretação de que é manifesta a improcedência de uma pretensão quando esta pretensão se relacione com as questões complexas da insolvência, em separado, de uma sociedade em relação de grupo com outras sociedades e da articulação dessa insolvência com o regime dos grupos de sociedades, e quando essas questões nunca tenham sido tratadas pela jurisprudência portuguesa.
51.º Viola a Constituição a interpretação do artigo 40.º, n.º 2, do CIRE num sentido de tal modo restritivo que só factos que levassem à demonstração de solvabilidade da sociedade apresentada à insolvência, em si considerada, é que preencheriam o requisito legal de alegação.
52.º Esta interpretação implica uma injustificada limitação ao acesso ao Direito e aos Tribunais, por negar a possibilidade de julgamento dos embargos à sentença de insolvência àqueles que por esse meio pretendam tutelar os seus direitos, quando os factos que afastam os fundamentos da insolvência não sejam demonstrativos da solvabilidade da entidade declarada insolvente, considerada isoladamente, mas outros que, por outros motivos, afastassem os fundamentos da insolvência.
53.º É, assim, inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.ºs 1 e 5, da CRP, a norma extraída do artigo 40.º, n.º 2, do CIRE, na parte respeitante ao requisito da alegação de factos que possam afastar os fundamentos da declaração de insolvência, na interpretação de que somente os factos que demonstrassem a solvabilidade da entidade declarada insolvente, quando considerada isoladamente, serviriam para afastar os fundamentos da insolvência, e não outros, designadamente respeitantes à legitimidade para apresentação à insolvência ou à integração da entidade declarada insolvente numa estrutura empresarial mais vasta.
Nestes termos e nos mais de direito, deve ser revogado o Acórdão recorrido, que deverá ser substituído por outro que mande defira a reclamação apresentada pela ora Recorrente, e:
(i) declarada a inconstitucionalidade, por violar os princípios consagrados nos artigos 13.º e 20.º da CRP, das normas extraídas do n.º 1 do artigo 40.º do CIRE e do artigo 26.º do CPC, quando interpretada no sentido de que à aferição da legitimidade activa aí consagrada não é aplicável o critério da configuração dada pelo sujeito processual à relação controvertida, constante da parte final do n.º 3 do artigo 26.º do CPC, ou que, aplicando-se em regra esse critério, ele não é aplicável aos casos em que a legitimidade seja indirecta, porque assente na sub-rogação do sujeito processual ao seu devedor, caso em que a legitimidade dependeria da confirmação da efectiva verificação dos pressupostos da invocada sub-rogação;
(ii) declarada a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 20.º e 62.º da CRP, da norma prevista no artigo 40.º, n.º 1, do CIRE, na interpretação de que só podem opor embargos à sentença de insolvência as entidades indicadas nas diversas alíneas da norma, não sendo possível aos credores de qualquer dessas entidades oporem os referidos embargos em sub-rogação daquelas, por não ser aplicável o artigo 606.º do CC quando a sub-rogação envolva ou se destine a embargar uma sentença de insolvência, na medida em que a existência de uma norma expressa a conferir legitimidade específica a determinados sujeitos para embargar a sentença de insolvência, como é o artigo 40.º, n.º 1, do CIRE, afasta, só por si, a possibilidade de sub-rogação por um credor de qualquer daqueles sujeitos;
(iii) declarada a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 20.º e 62.º da CRP, das normas contidas no artigo 606.º do CC, na interpretação de que a sub-rogação aí prevista se distingue da substituição processual, destinando-se a primeira ao exercício de direitos substantivos e a segunda à prática de actos processuais e que, por isso, a sub-rogação não pode ser utilizada para prática de actos processuais, nomeadamente, para a oposição de embargos, em virtude de, diversamente do que sucede com a figura da substituição processual, ter um âmbito de aplicação reservado ao exercício de direitos substantivos;
(iv) declarada a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 20.º, n.ºs 1 e 5, e 62.º da CRP, da norma extraída do n.º 1 do artigo 606.º do CC quando interpretada no sentido de não ser considerado direito de conteúdo patrimonial o direito de conservação da garantia patrimonial dos créditos do devedor sobre terceiros, nomeadamente através da oposição de embargos à sentença de insolvência desses terceiros, e de ser, portanto, excluída a possibilidade de sub-rogação, pelo credor ao devedor, no exercício desses actos de conservação da garantia patrimonial dos créditos do devedor sobre terceiros, nomeadamente, na oposição de embargos à sentença de insolvência de um terceiro insolvente sobre o qual o devedor tenha um crédito;
(v) declarada a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 20.º, n.ºs 1 e 5, 62.º e 13.º da CRP, da norma extraída do n.º 1 do artigo 606.º do CC quando interpretada no sentido de excluir do conceito de “direito de conteúdo patrimonial” e, portanto, da possibilidade de ser exercido em sub-rogação, o direito de embargar a sentença de insolvência atribuído às entidades indicadas nas alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 40.º do CIRE, quando a sociedade embargante detenha o domínio total da sociedade declarada insolvente;
(vi) declarada a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 20.º, n.ºs 1 e 5, e 62.º da CRP, da norma extraída do n.º 1 do artigo 606.º do CC, na interpretação restritiva de que só há inércia do devedor, no exercício do direito de recorrer a meios de conservação da garantia patrimonial de créditos que tenha sobre terceiros, se o devedor, não tendo utilizado nenhum meio de conservação da garantia patrimonial, não tiver sequer reclamado judicialmente esses créditos;
(vii) declarada a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 20.º, n.ºs 1 e 5, e 62.º da CRP, da norma do n.º 1 do artigo 606.º do CC, na interpretação restritiva de que só há inércia do devedor, no exercício de um direito do devedor contra um terceiro, se o devedor não tiver exercido nenhum outro direito que tenha sobre esse mesmo terceiro;
(viii) declarada a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 13.º e 62.º da CRP, das normas extraídas dos artigos 2.º, n.º 1, do CIRE e 501.º a 503.º do CSC, quando interpretadas no sentido de que o critério da personalidade jurídica é atendível na aferição de quem pode ser declarado insolvente, em termos de uma sociedade comercial que se encontre em relação de grupo com outras sociedades comerciais poder ser declarada insolvente sem que as restantes sociedades do grupo, ou pelo menos a sociedade-mãe, o sejam também ou sem que, pelo menos, seja apreciada a situação patrimonial do grupo a que pertence a referida sociedade;
(ix) declarada a inconstitucionalidade, por violação do artigo 20.º, n.ºs 1 e 5, da CRP, da norma contida no artigo 234.º-A, n.º 1, do CPC, na interpretação de que é manifesta a improcedência de uma pretensão quando esta pretensão se relacione com as questões complexas da insolvência, em separado, de uma sociedade em relação de grupo com outras sociedades e da articulação dessa insolvência com o regime dos grupos de sociedades, e quando essas questões nunca tenham sido tratadas pela jurisprudência portuguesa;
(x) declarada a inconstitucionalidade, por violação do artigo 20.º, n.ºs 1 e 5, da CRP, da norma extraída do artigo 40.º, n.º 2, do CIRE, na parte respeitante ao requisito da alegação de factos que possam afastar os fundamentos da declaração de insolvência, na interpretação de que somente os factos que demonstrassem a solvabilidade da entidade declarada insolvente, quando considerada isoladamente, serviriam para afastar os fundamentos da insolvência, e não outros, designadamente respeitantes à legitimidade para apresentação à insolvência ou à integração da entidade declarada insolvente numa estrutura empresarial ou património mais vastos cuja análise se impunha.”
A recorrida não apresentou contra-alegações.
Fundamentação
1. Da delimitação do objecto do recurso
1.1. Da irrelevância das modificações introduzidas em sede de alegações na enunciação das questões colocadas no requerimento de interposição de recurso
Tem sido entendimento do Tribunal Constitucional que, ao definir, no requerimento de interposição de recurso, a norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretende sindicar, o recorrente delimita, em termos irremediáveis e definitivos, o objecto do recurso, não lhe sendo consentida qualquer modificação ulterior, com excepção duma redução do pedido, nomeadamente, no âmbito da alegação que produza.
Confrontando o teor das conclusões das alegações com o do requerimento de interposição de recurso, constata-se que a Recorrente reformulou os termos em que havia delimitado o objecto do recurso neste requerimento, modificando, em relação a algumas das questões de constitucionalidade, a enunciação da interpretação normativa que pretende ver sindicada.
Ora, conforme se disse, é no requerimento de interposição de recurso que se define a norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade se pretende sindicar, pelo que as questões de constitucionalidade suscitadas pela Recorrente serão apreciadas, tendo em atenção a delimitação das mesmas efectuada em tal requerimento e não os termos em que foram recolocadas em sede de alegações.
1.2. Do não conhecimento do recurso de constitucionalidade na parte respeitante à interpretação normativa dos artigos 270.º, alínea a), e 271.º, ambos do Código de Processo Civil
No requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional a Recorrente alegou que a decisão recorrida veio, surpreendentemente, a interpretar e aplicar os artigos 270.º, alínea a), e 271.º, do Código de Processo Civil, no sentido de estes implicarem que a sub-rogação, quando destinada à prática de actos processuais, se efectiva, não através da acção sub-rogatória prevista no artigo 606.º, do Código Civil, mas através da figura da substituição processual, sustentando a inconstitucionalidade de tal interpretação normativa.
Contudo, essa interpretação não constitui ratio decidendi da decisão recorrida.
É o seguinte o seu conteúdo, na parte que ora releva:
“[…]
A lei processual não prevê a sub-rogação para a prática de actos processuais, com fundamento na norma de direito substantivo inscrita no art. 606 do CC. O que a lei prevê e regula é a figura da substituição processual ou a intervenção de um terceiro na causa.
A substituição processual acontece quando alguém defende direito alheio em nome próprio, por não haver coincidência entre o titular do direito subjectivo e o exercício da acção, sendo uma espécie de legitimidade extraordinária, distinguindo-se da sucessão processual e da representação.
A substituição processual pode ser inicial, quando a acção é proposta pelo substituto, ou superveniente, se no decurso do processo se opera a substituição, como no caso previsto no art. 271 do CPC, desde que não ocorra uma modificação subjectiva da instância por habilitação do transmissário.
Por isso, a apelante não pode fundar-se no art. 606 do CC para legitimar o direito aos embargos, além do mais, porque a sub-rogação não é automática, dependendo da prévia comprovação dos respectivos pressupostos e destinando-se os embargos a impugnar a sentença declaratória da insolvência, com base em “factos novos” susceptíveis de “afastar os fundamentos da declaração insolvência”, logo com uma estrita finalidade, não parece que através deles se possa exercitar a acção sub-rogatória, de natureza conservatória, pois tal implicaria alargar o objecto dos próprios embargos, sendo um direito de natureza processual (direito subjectivo processual) que incide sobre um acto jurisdicional (a sentença declaratória de insolvência), e cujas condições de exercício não estão reguladas pelo direito substantivo, havendo, de resto, disposição legal expressa a conferir legitimidade específica a determinados sujeitos/titulares (art. 40 nº 1 do CIRE).
[…]”
Da leitura da decisão recorrida verifica-se que a mesma entendeu que não se encontra prevista na lei processual a sub-rogação para a prática de actos processuais, com fundamento na norma de direito substantivo constante do artigo 606.º do Código Civil, concluindo, por isso, que a ora Recorrente não poderia fundar-se nesta norma para legitimar o direito a deduzir embargos de uma sentença de insolvência, em sub-rogação de um seu devedor, a quem é conferido tal direito de deduzir embargos.
Se a decisão recorrida acrescenta que o que a lei prevê e regula é a figura da substituição processual ou a intervenção de um terceiro na causa e tece algumas considerações sobre o conceito de substituição processual, fá-lo, nitidamente, em obiter dictum, nunca sustentando que esses são os mecanismos processuais para o credor intervir processualmente, em subrogação.
O fundamento para entender que a Recorrente não pode exercer, em sub-rogação, o direito a embargar a sentença de insolvência foi o acima apontado, e não a aplicação dos artigos 270º, alínea a), e 271.º, do Código de Processo Civil, no sentido enunciado pela Recorrente.
Assim sendo, o conhecimento do mérito desta questão de constitucionalidade não tem qualquer efeito útil prático, pois, mesmo que procedesse a pretensão da Recorrente, tal decisão não teria qualquer repercussão na decisão recorrida, uma vez que ela não teve o seu fundamento na interpretação normativa agora questionada, pelo que o tribunal a quo nunca seria confrontado com a obrigatoriedade de reformar o sentido do seu julgamento.
Por isso, atenta a natureza instrumental dos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, em fiscalização sucessiva concreta, não deve ser conhecido o recurso nesta parte.
2. Do mérito do recurso
2.1. Da inconstitucionalidade da interpretação normativa do artigo 606.º, do Código Civil, no sentido de esta norma não prever a sub-rogação para a prática de actos processuais, excluindo, por isso, a possibilidade de ser exercido em sub-rogação o direito de embargar a sentença de insolvência atribuído às entidades indicadas no n.º 1 do artigo 40.º do CIRE.
Refere-se no requerimento de interposição de recurso que se pretende ver apreciada a constitucionalidade da interpretação do artigo 606.º, do Código Civil, no sentido deste preceito não contemplar a possibilidade de sub-rogação, por um credor da sociedade-mãe (e por sua vez também credora) da sociedade insolvente, na dedução de embargos à sentença declaratória da insolvência, por estes embargos configurarem o exercício de um direito meramente processual e as normas do artigo 606.º, do Código Civil, não preverem a sub-rogação para a prática de actos processuais.
Da leitura da decisão recorrida constata-se que esta efectivamente entendeu que a lei processual não prevê a sub-rogação para a prática de actos processuais, com fundamento na norma de direito substantivo inscrita no artigo 606.º, do Código Civil, concluindo, por isso, que a ora Recorrente não poderia fundar-se neste instituto para legitimar o direito aos embargos, o qual é um direito de natureza processual (direito subjectivo processual) que incide sobre um acto jurisdicional (a sentença declaratória de insolvência), cujas condições de exercício não estão reguladas pelo direito substantivo, havendo disposição legal expressa a conferir legitimidade específica a determinados sujeitos/titulares (artigo 40.º, n.º 1, do CIRE).
Tendo sido este, efectivamente, o critério normativo que fundamentou a pronúncia do tribunal recorrido, o objecto deste recurso, nesta parte, é a norma constante do artigo 606.º, do Código Civil, quando interpretada no sentido de esta norma não prever a sub-rogação para a prática de actos processuais, excluindo, por isso, a possibilidade de ser exercido em sub-rogação o direito de embargar a sentença de insolvência atribuído às entidades indicadas no n.º 1 do artigo 40.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Está em causa, nos autos, a possibilidade de impugnação, pela Recorrente de uma sentença declaratória da insolvência de uma sociedade comercial.
De acordo com o regime estabelecido no CIRE, tal sentença pode ser impugnada através da oposição de embargos (artigo 40.º) e de recurso (artigo 42.º), voltando-se ao sistema da dupla via de reacção, anteriormente consagrado nos artigos 1182.º e 1183.º, do Código de Processo Civil, e que havia sido afastado pelo Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF).
A opção pela impugnação através de embargos está reservada exclusivamente para as situações em que estejam em causa razões de facto, pressupondo a alegação “de factos ou de meios de prova que não tenham sido tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da declaração de insolvência” (artigo 40.º, n.º 2, do CIRE), sendo que a legitimidade para embargar é conferida às pessoas enumeradas no artigo 40.º, n.º 1, do CIRE.
Na alínea b), deste número, confere-se a qualquer credor da insolvente essa legitimidade
No caso sub judice, uma vez que a Recorrente não é um dos sujeitos legitimados, nos termos do artigo 40.º, n.º 1, do CIRE, para deduzir embargos, a questão que se colocou ao tribunal recorrido foi a de saber se este direito de embargar pode ser exercitado por via da sub-rogação, prevista no artigo 606.º, do Código Civil. Isto porque a Recorrente alegou ser credora da B., SGPS, S.A., – a qual, sendo, por sua vez, credora da insolvente, tinha legitimidade para deduzir embargos, nos termos do referido artigo 40.º, n.º 1, do CIRE –, pretendendo, por isso, sub-rogar-se no direito de embargar da sua devedora.
Dispõe o artigo 606.º, n.º 1, do Código Civil, que “sempre que o devedor o não faça, tem o credor a faculdade de exercer, contra terceiro, os direitos de conteúdo patrimonial que competem àquele, excepto se, por sua própria natureza ou disposição da lei, só puderem ser exercidos pelo respectivo titular.”
Encontra-se aqui prevista a sub-rogação do credor ao devedor, tradicionalmente designada como acção sub-rogatória, a qual é um meio de conservação da garantia patrimonial que “consiste na faculdade concedida ao credor de se substituir ao devedor no exercício de certos direitos capazes de aumentarem o activo, diminuírem o passivo ou impedirem uma perda do activo do património do obrigado” (Antunes Varela, em “Das Obrigações em geral”, Vol. II, pág. 437, 7.ª Edição, Almedina).
Ou seja, através deste instituto, o nosso ordenamento jurídico possibilita ao credor a defesa da garantia patrimonial, reconhecendo-lhe a faculdade de se substituir ao seu devedor no exercício de direitos de conteúdo patrimonial contra terceiro, desde que o obrigado não o faça e esse exercício seja essencial à satisfação ou garantia do seu crédito face ao devedor.
Está aqui em causa a chamada sub-rogação indirecta ou oblíqua, em que o credor age na qualidade de representante ou substituto legal do devedor, tudo se passando como se os actos fossem praticados por este.
Conforme assinala Margarida Lima Rego (As partes processuais numa acção em sub-rogação, em Themis – Revista da Faculdade de Direito da UNL, Ano VII – Nº 13 – 2006, pág. 63 e ss.), “A chamada acção sub-rogatória é na verdade uma competência jurídica de direito substantivo passível de ser judicial ou extrajudicialmente aproveitada.” Daí que, para esta autora, seja preferível “falar de uma actuação sub-rogatória do credor, ou da sua actuação em sub-rogação, dado que o termo acção arrasta inelutavelmente uma forte conotação adjectiva”.
Contrariamente ao que sucedia no Código Civil de 1867, em que a acção sub-rogatória era tida como uma providência de carácter excepcional, que só existia nos casos expressamente previstos na lei, no Código Civil vigente a sub-rogação passou a ser admitida com carácter geral, embora sujeita a determinados requisitos, procurando a lei conciliar, por um lado, a exigência de defesa dos credores contra a inércia do devedor e, por outro, a necessidade de não coarctar, para além de certos limites, a liberdade de agir do devedor no que respeita ao exercício dos direitos de que é titular.
Relativamente aos efeitos da sub-rogação, a nota mais importante a destacar é a de que os bens por ela atingidos regressam ao património do devedor ou ingressam nele, em proveito de todos os credores e do próprio devedor. Quer isto dizer que os efeitos da sub-rogação exercida por um dos credores não aproveitam apenas a este.
No caso dos autos, a decisão recorrida entendeu que “a lei processual não prevê a sub-rogação para a prática de actos processuais, com fundamento na norma de direito substantivo inscrita no art. 606.º do CC”, sustentando, por isso, que a ora Recorrente «não pode fundar-se no art. 606 do CC para legitimar o direito aos embargos, além do mais, porque a sub-rogação não é automática, dependendo da prévia comprovação dos respectivos pressupostos e destinando-se os embargos a impugnar a sentença declaratória da insolvência, com base em “factos novos” susceptíveis de “afastar os fundamentos da declaração insolvência”, logo com uma estrita finalidade, não parece que através deles se possa exercitar a acção sub-rogatória, de natureza conservatória, pois tal implicaria alargar o objecto dos próprios embargos, sendo um direito de natureza processual (direito subjectivo processual) que incide sobre um acto jurisdicional (a sentença declaratória de insolvência), e cujas condições de exercício não estão reguladas pelo direito substantivo, havendo, de resto, disposição legal expressa a conferir legitimidade específica a determinados sujeitos/titulares (art. 40 nº 1 do CIRE)».
É contra este entendimento que se insurge a Recorrente, sustentando que o mesmo contraria os artigos 20.º e 62.º da Constituição, na medida em que o artigo 606.º, do Código Civil, interpretado no sentido de a sub-rogação aí prevista ser reservada ao exercício de direitos substantivos, que não contemple o recurso à via judicial, implicará uma injustificada restrição do acesso ao Direito e aos Tribunais, além de restringir fortemente o conteúdo dos direitos de crédito dos seus titulares, que assim vêem o instrumento de conservação da garantia patrimonial previsto naquele dispositivo praticamente inutilizado, já que o exercício de direitos sem possibilidade de recurso à via judicial não é um verdadeiro exercício.
Vejamos se lhe assiste razão.
Antes de mais, importa fazer uma precisão no que respeita ao entendimento sustentado na decisão recorrida. Note-se que, ao contrário do que alega a Recorrente, a decisão recorrida não entendeu que a sub-rogação prevista no artigo 606.º, do Código Civil, tem um âmbito reservado ao exercício de direitos substantivos, não contemplando o recurso à via judicial.
A decisão recorrida pronunciou-se apenas no sentido que a sub-rogação é um instituto de direito substantivo, não estando prevista na lei processual (adjectiva), a prática, em sub-rogação, de actos processuais. Ou seja, segundo o entendimento desta decisão, não é possível que um terceiro intervenha numa causa pendente, exercendo em sub-rogação actos/direitos processuais conferidos pela lei adjectiva a determinados sujeitos legitimados para o efeito.
Não compete ao Tribunal Constitucional apreciar da correcção deste entendimento. Incumbe-lhe, sim, saber se a interpretação normativa seguida pela decisão recorrida é ofensiva da Constituição, designadamente por violação do disposto nos seus artigos 20.º e 62.º, conforme sustenta a Recorrente.
O artigo 20.º da Constituição garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos (n.º 1), impondo ainda que, para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegure aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos (n.º 5).
A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional implica a garantia de uma protecção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efectiva, cujo âmbito normativo abrange nomeadamente: (a) o direito de acção, no sentido do direito subjectivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas (veja-se, neste sentido, entre outros, o Acórdão n.º 440/94, acessível na Internet em www.tribunalconstitucional.pt, tal como os restantes acórdãos que adiante se referem sem outra menção).
Contudo, tem sido também entendimento reiterado do Tribunal Constitucional que, embora esteja vinculado a criar meios jurisdicionais de tutela efectiva dos direitos e interesses ofendidos dos cidadãos, “o legislador não deixa de ser livre de os conformar, não sendo de todo o modo obrigado a prever meios iguais para situações diversas, considerando ainda que a identidade ou diversidade das situações em presença há-de resultar de uma perspectiva global que tenha em conta a multiplicidade de interesses em causa, alguns deles conflituantes entre si” (cfr. Acórdão n.º 63/2003).
No caso dos autos, a Recorrente, para defesa de um crédito que detém sobre determinada sociedade comercial, pretende subrogar-se no direito conferido a esta de deduzir embargos a uma sentença de insolvência de outra sociedade.
A decisão recorrida negou-lhe essa pretensão por entender que não é admissível ao credor o exercício de direitos processuais do devedor, em sub-rogação. Ao fazê-lo não defendeu, genericamente, que a sub-rogação prevista no artigo 606.º, do Código Civil, não contempla a possibilidade de o credor recorrer à via judicial para accionar direitos patrimoniais do devedor, mas apenas que ela não abrange o exercício dos direitos processuais deste em acção pendente.
Não estamos, pois, perante uma recusa do direito do credor accionar judicialmente o devedor do seu devedor, mas sim perante uma limitação do âmbito de alcance da sub-rogação, enquanto meio de garantia patrimonial colocado à disposição do credor, pelo que se verifica que a interpretação sob fiscalização não põe em causa a garantia da tutela jurisdicional efectiva, consagrada no artigo 20.º da Constituição.
Invoca ainda a Recorrente que a interpretação normativa adoptada pela decisão recorrida, viola o “direito de propriedade privada” consagrado no artigo 62.º da Constituição.
A doutrina vem sustentando a adopção de um conceito constitucional de propriedade entendido em sentido amplo, de forma a englobar, tendencialmente, a generalidade dos direitos patrimoniais.
Também o Tribunal Constitucional tem perfilhado esta concepção ampla do direito de propriedade privada, afirmando que o direito de propriedade a que se refere o artigo 62.º da Constituição “não abrange apenas a proprietas rerum, os direitos reais menores, a propriedade intelectual e a propriedade industrial, mas também outros direitos que normalmente não são incluídos sob a designação de «propriedade», tais como, designadamente, os direitos de crédito e os 'direitos sociais' – incluindo, portanto, partes sociais como as acções ou as quotas de sociedades” (cfr., por todos, o Acórdão n.º 491/02).
E, especificamente, no que respeita à tutela constitucional dos direitos de crédito, o Tribunal Constitucional tem entendido, conforme se refere no Acórdão n.º 494/94 que “da garantia constitucional do direito de propriedade privada, há-de, seguramente, extrair-se a garantia (constitucional também) do direito do credor à satisfação do seu crédito. E este direito há-de, naturalmente, conglobar a possibilidade da sua realização coactiva, à custa do património do devedor, como, de resto, se prescreve no artigo 601º do Código Civil (…)” (cfr., neste sentido, ainda, entre outros os Acórdãos n.ºs 349/91, 516/94, 128/95, 451/95, 374/03, 273/04, 620/04 e 178/07).
Mas, mesmo que se admita que da garantia constitucional do direito de propriedade privada se extrai a garantia (constitucional também) do direito do credor à satisfação do seu crédito, isto não implica que esse imperativo de tutela não permita uma liberdade de escolha do legislador dos meios que, na ponderação dos diferentes interesses que nessa matéria se reflectem, tutelem da forma mais adequada esse direito.
Estando em causa a garantia patrimonial de um direito de crédito, no âmbito de protecção do artigo 62.º, da Constituição, só entram os instrumentos essenciais à sua subsistência, não bastando para a sua violação qualquer afectação dessa garantia, mesmo que seja substancial, com acréscimo significativo do risco de insatisfação do crédito (Sousa Ribeiro, em “O direito de propriedade na jurisprudência do Tribunal Constitucional Português”, relatório apresentado na Conferência Trilateral Espanha/Itália/Portugal, de 2009, acessível no site www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, se a possibilidade da utilização do mecanismo da sub-rogação para o exercício pelo credor de direitos (meramente) processuais do devedor, seria um instrumento que permitiria ao credor intervir em acções em que estivesse em jogo o património do devedor, ele não é seguramente um meio imprescindível ou essencial à satisfação dos direitos de crédito, os quais não deixam de dispor, na nossa ordem jurídica, de uma série de outros meios de tutela, incluindo vários instrumentos de conservação do património do devedor (v.g., a declaração de nulidade de actos praticados pelo devedor, a sub-rogação em direitos substantivos patrimoniais do devedor, a impugnação pauliana, e o arresto de bens).
Atento o exposto, é forçoso concluir que a interpretação normativa do artigo 606.º, do Código Civil, no sentido de excluir a possibilidade do exercício de direitos processuais em sub-rogação, não provoca uma insuficiente protecção do direito do credor à satisfação do seu crédito, pelo que não pode ser considerada inconstitucional, por violação do artigo 62.º, da Constituição.
Não se mostrando violado qualquer parâmetro constitucional por esta interpretação normativa sustentada na decisão recorrida, deve o recurso ser julgado improcedente nesta parte.
3. Da inutilidade da apreciação das restantes questões de constitucionalidade
Concluindo-se pela não inconstitucionalidade desta interpretação normativa, mantém-se incólume o respectivo fundamento utilizado no acórdão recorrido – a Recorrente não tem legitimidade para deduzir embargos à declaração de insolvência –, o qual é bastante para sustentar o sentido da sua decisão.
Isto faz com que, mesmo que se apreciasse e se concluísse pela inconstitucionalidade de qualquer uma das restantes interpretações normativas questionadas pela Recorrente, as quais respeitam a outros fundamentos utilizados pelo Acórdão recorrido para não admitir os embargos à declaração de insolvência, tal pronúncia não teria qualquer repercussão útil na decisão recorrida, uma vez que sempre subsistiria a falta de legitimidade da Recorrente para embargar.
Dai que, atenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, se deva considerar prejudicado, por inutilidade, o conhecimento do mérito das restantes questões colocadas neste recurso.
Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) não conhecer do recurso quanto à questão de constitucionalidade da interpretação normativa dos artigos 270.º, alínea a), e 271.º, ambos do Código de Processo Civil;
b) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 606.º do Código Civil, quando interpretada no sentido de esta norma não prever a sub-rogação para a prática de actos processuais, excluindo, por isso, a possibilidade de ser exercido em sub-rogação o direito de embargar a sentença de insolvência atribuído às entidades indicadas no n.º 1 do artigo 40.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
c) julgar improcedente o recurso nesta parte;
c) considerar prejudicado o conhecimento das demais questões de constitucionalidade suscitadas pela Recorrente.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 4 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 4 de Maio de 2011
Lisboa, 04 de Maio de 2011.- João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.
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