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Processo n.º 810/2010
1ª Secção
Relator: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é reclamante A. e reclamado o Ministério Público, a primeiro reclamou, ao abrigo do artigo 76º, nº 4, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho de 1 de Outubro de 2010 do Vice-Presidente daquele Tribunal que não admitiu recurso para o Tribunal Constitucional.
2. A ora reclamante recorreu da decisão instrutória do Tribunal Central de Instrução Criminal de 30 de Abril de 2010, na parte em que indefere as nulidades invocadas no requerimento de abertura da instrução. Todavia o recurso não foi admitido, o que a levou reclamar de tal decisão. A reclamação foi indeferida, mediante despacho de 30 de Julho de 2010, pelo Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa.
Notificada desta decisão, a ora reclamante recorreu dela para o Tribunal Constitucional, mediante requerimento onde se lê, para o que agora releva, o seguinte:
“1. O presente recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade é interposto ao abrigo do disposto no artigo 280º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa e do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, por entender a Recorrente que o Tribunal da Relação de Lisboa, na Decisão supra identificada, interpretou e aplicou preceitos legais em sentido desconforme à Constituição.
2. Os preceitos legais onde se encontra vertida a norma jurídica cuja conformidade constitucional a Recorrente pretende ver apreciada são os artigos 5º, n.º 2, alínea a), e 310º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP).
3. A dimensão normativa extraída dos referidos preceitos legais cuja conformidade constitucional se pretende ver apreciada é aquela que resulta da interpretação daqueles preceitos no sentido de que a aplicação imediata do artigo 310.º, n.º 1, do CPP «não se repercute sobre as garantias de defesa do arguido, pelo que não está em causa um regime que traduza um agravamento sensível da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa»”.
3. Por despacho de 1 de Outubro de 2010, o Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa não admitiu o recurso, por considerar que “o mesmo se revela intempestivo”. É este despacho que é agora objecto da presente reclamação, ao abrigo do artigo 76º, nº 4, da LTC (fl. 2 e ss. dos presentes autos).
4. Neste Tribunal, os autos foram com vista ao Ministério Público, que se pronunciou pelo indeferimento da reclamação, por razões diversas do fundamento do despacho reclamado.
Notificada pela Relatora para, querendo, responder ao parecer do Ministério Público e, simultaneamente, para se pronunciar, querendo, sobre a possibilidade de a presente reclamação ser indeferida com fundamento na natureza não normativa da questão de constitucionalidade posta a este Tribunal, a reclamante aduziu a seguinte argumentação:
«22. Na Reclamação apresentada do despacho que não admitiu a interposição de recurso da Decisão Instrutória proferida nos autos que deram origem aos presentes autos de Reclamação, a aqui Reclamante invocou a seguinte questão de constitucionalidade:
«A norma que resulta da interpretação conjunta da alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º do CPP e do artigo 310.º, n.º 1 do mesmo Código, no sentido de que da aplicação imediata do artigo 310.º, n.º 1 do CPP não pode resultar um “agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa” é, não apenas ilegal, como ainda materialmente inconstitucional, por violação, designadamente, dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.os 1 e 4 e 32.º, n. os 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa inconstitucionalidade que se deixa desde já arguida para todos os efeitos legais.»
23. Do mesmo passo, no requerimento de interposição de recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, interposto da Decisão Singular do Exmo. Senhor Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, que julgou improcedente a Reclamação a que se aludiu no ponto anterior, a aqui Reclamante invocou o seguinte:
«Os preceitos legais onde se encontra vertida a norma jurídica cuja conformidade constitucional a Recorrente pretende ver apreciada são os artigos 5.º, n.º 2, alínea a), e 310.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP).
A dimensão normativa extraída dos referidos preceitos legais cuja conformidade constitucional se pretende ver apreciada é aquela que resulta da interpretação daqueles preceitos no sentido de que a aplicação imediata do artigo 310.º, n.º 1, do CPP «não se repercute sobre as garantias de defesa do arguido, pelo que não está em causa um regime que traduza um agravamento sensível da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa».»
24. Com base nesta interpretação e aplicação normativas dos referidos preceitos legais – artigos 5.º, n.º 2, alínea a), e 310º, n.º 1, do CPP –, não foi admitido um recurso interposto da parte de uma Decisão Instrutória que apreciou e julgou nulidades invocadas pela aqui Reclamante no seu requerimento de abertura da instrução, no âmbito de um processo iniciado antes da alteração da redacção do artigo 310.º, n.º 1, do CPP – operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto –, a qual veio restringir o recurso dos despachos de pronúncia à nulidade prevista no artigo 309º.
25. Trata-se, no fundo, de saber se, no âmbito de um processo iniciado antes da alteração da redacção do artigo 310.º, n.º 1, do CPP, operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, pode ser rejeitado um recurso interposto de um despacho de pronúncia, limitado às questões prévias e nulidades sobre as quais o mesmo se pronunciou, com base numa interpretação do disposto nos artigos 5º, n.º 2, alínea a), e 310.º, n.º 1, do CPP no sentido de que a aplicação imediata do artigo 310.º, n.º 1, do CPP «não se repercute sobre as garantias de defesa do arguido, pelo que não está em causa um regime que traduza um agravamento sensível da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa».
26. Trata-se, pois, de uma questão normativa, no conceito funcional e formal de norma adoptado por este Venerando Tribunal Constitucional,
27. E não de uma mera decisão judicial sem conteúdo normativo, as quais, como é sabido, se situam fora do âmbito das decisões sujeitas ao crivo de constitucionalidade deste Venerando Tribunal».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. O recurso de constitucionalidade interposto pela ora reclamante não foi admitido com fundamento em intempestividade do mesmo.
Sucede, porém, que ainda que fosse tempestivo, sempre seria de concluir pela inadmissibilidade do mesmo, com fundamento na natureza não normativa da questão de constitucionalidade posta no requerimento de interposição de recurso. Sendo certo que no julgamento da reclamação de despacho que indefira o requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, o Tribunal tem de averiguar se se encontram preenchidos todos os pressupostos do conhecimento do objecto do recurso, uma vez que a decisão a proferir faz caso julgado quanto à admissibilidade do mesmo, segundo o disposto no artigo 77º, nº 4, da LTC.
2. De acordo com o que se dispõe na alínea b) do nº 1 do artigo 280º da Constituição da República Portuguesa e na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, “identificando-se assim, o conceito de norma jurídica como elemento definidor do objecto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objecto de tal recurso” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 361/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
A reclamante pretende ver apreciada a inconstitucionalidade dos artigos 5.º, n.º 2, alínea a), e 310.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que “a aplicação imediata do artigo 310.º, n.º 1, do CPP «não se repercute sobre as garantias de defesa do arguido, pelo que não está em causa um regime que traduza um agravamento sensível da situação processual do arguido nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa»”.
Atendendo ao disposto naquela alínea, nos termos da qual a lei processual penal não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata possa resultar agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente do seu direito de defesa, é de concluir que o que a recorrente pretende, afinal, é questionar a decisão judicial de aplicar, no caso em apreço, a nova redacção do artigo 310.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Ou seja, o juízo judicial no sentido de a aplicação da lei nova ao caso não se repercutir sobre as garantias de defesa da arguida, não se traduzindo num agravamento sensível da situação processual da arguida nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa.
Face às regras de aplicação da lei processual no tempo, contidas no artigo 5.º do Código de Processo Penal, e à alteração legislativa entretanto verificada, importava decidir sobre a aplicabilidade da nova redacção do artigo 310.º, nº 1, ao processo em causa, o qual fora iniciado anteriormente à vigência da alteração da lei. Importava decidir se da aplicabilidade imediata da nova redacção deste artigo do Código de Processo Penal poderia resultar um agravamento sensível e ainda evitável da situação processual da arguida, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa. E a isto o Tribunal da Relação de Lisboa respondeu negativamente, concluindo que “o direito a recorrer da decisão instrutória, na parte em que aprecia nulidades e outras questões prévias ou incidentais «não se repercute sobre as garantias de defesa do arguido, pelo que não está em causa um regime que traduza um agravamento sensível da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa»” (fl. 49 e s. dos presentes autos).
Estamos, pois, perante o pedido de apreciação do decidido no caso concreto e não da norma aplicada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, como ratio decidendi, o que obsta ao conhecimento do objecto do recurso interposto por o mesmo não ter natureza normativa.
3. Em suma, embora com um fundamento distinto do invocado no despacho reclamado, é de concluir pela inadmissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 2 de Fevereiro de 2011.- Maria João Antunes – Carlos Pamplona de Oliveira – Gil Galvão.
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